dimanche 7 avril 2013

O Dia do Senhor


hwhy-Mwy

O dia do Senhor

O hoje, o kairós e o escatológico

Jorge Pinheiro


Há uma expressão no Antigo Testamento que têm sido motivo de análise e discussão por exegetas e especialistas: O Dia do Senhor. Esta expressão, que muitas vezes é tomada apenas em seu sentido escatológico, futuro, faz parte do linguajar teológico e pastoral. Por isso, queremos aqui refletir sobre ela e ver como nos apresenta uma abrangência que não se limita ao seu conteúdo escatológico.
Assim, teremos um objetivo em nossa análise: focalizar a expressão hebraica “yom Iaveh”,  Dia do Senhor, enquanto conceito teológico presente em textos do Antigo Testamento. Vamos partir do texto de Joel 2.1-3, que nos serve de referência, e procurar compreender os sentidos teológicos implícitos na expressão, conforme se encontram nos textos de Isaías 2.5, Isaías 58.13-14 e Joel 1.15 e em seus correlatos gregos no Novo Testamento: João 4.21-23, Gálatas 4.4 e 2 Pedro 3.7.
Como instrumental teórico, ou seja, como hermenêutica, utilizaremos uma (1) leitura trinitária dos textos: como e onde se expressam as Pessoas de Deus no dia do Senhor; (2) uma exegese dos conceitos nos idiomas originais numa análise comparativa com os os textos de Qumran. E uma (3) leitura contextualizada, levando em conta a história da vida cotidiana do povo judeu no tempo de Jesus.
E vamos delimitação o nosso tema, a fim de alcançar maior profundidade na análise. A análise estará circunscrita ao objeto de pesquisa, Dia do Senhor, descrito anteriormente. Por isso, não analisaremos em profundidade, nem vamos expor questões teológicas presentes nas expressões Ruach, Massiah e Iaveh, embora tais expressões apareçam no desenvolvimento de nosso estudo.

TOCAI a buzina em Sião, e clamai em alta voz no monte da minha santidade. Perturbem-se todos os moradores da terra, porque o dia do Senhor vem, ele está perto; Dia de trevas e de tristeza; dia de nuvens e de trevas espessas, como a alva espalhada sobre os montes, povo grande e poderoso, qual desde o tempo antigo nunca houve, nem depois dele haverá pelos anos adiante, de geração em geração. Diante dele um fogo consome, e atrás dele uma chama abrasa; a terra diante dele é como o jardim do Éden, mas atrás dele um desolado deserto; sim, nada lhe escapará”. Joel 2.1-3. 

Introdução

Mwy
yom é um conceito da teologia hebraica, relativo a tempo, presente no Antigo Testamento. Yom não deve ser entendido apenas como uma palavra, mas como conceito que dependendo do contexto em que é utilizado pode significar um instante, um momento especial ou um longo ou distante período de tempo. Mas, geralmente, é traduzido por dia, ano, tempo.

Assim, pode expressar o período de iluminação natural, em contraste com o período de escuridão. O dia é formado por oposto que se complementam, o período da tarde (ereb, tarde ou layla, noite) e da manhã formam uma unidade de 24 horas. Quando este dia luz ou dia tarde e manhã se refere ao dia hoje dizemos em hebraico mwyh hayom.

É importante dizer que o yom de luz no mundo hebraico não era medido em horas, mas de acordo com os fenômenos naturais e as atividades cotidianas. As duas refeições do dia, eram balizadoras das atividades do dia luz. E o dia ereb, tarde, ou dia layla, noite, eram divididos pelas três vigílias. Mas, além desse dia dual, havia o dia ano, e nesses casos o conceito vem no plural. Mas dia podia ser também um período indeterminado de tempo.

A palavra dia em português deriva do latim vulgar, dies, e de forma genérica significa o tempo em que a Terra está clara, ou seja, o intervalo entre uma noite e outra. Mas significa também a medida de tempo que nosso planeta ou qualquer corpo celeste leva para descrever uma volta em torno de seu eixo de rotação.

Temos, assim, em português, os dias ou os tempos quotidianos, o dia-a-dia. Os dias litúrgicos cristãos, que ao contrário dos primeiros são separados, escolhidos para a realização de alguma coisa especial. Podemos dizer, por exemplo, que o dia de ano-bom é o primeiro dia do ano, o 1º de janeiro; que o dia de Reis é 6 de janeiro, comemoração católica da adoração do Menino Jesus pelos Reis Magos (Baltasar, Melchior e Gaspar). Mas temos, ainda, um dia sem data, um dia de juízo, de julgamento final, de clamor, confusão e desgraça.  

I.          Dia luz, dia tarde e manhã

Dia de adoração e serviço


Então, em nossa análise, vamos começar por este dia luz, dia novo que começa a cada entardecer. Dia de tarde e manhã. Conforme nos diz Isaías, 2.5:

Venha, ó descendência de Jacó, andemos na luz do SENHOR! O Dia do SENHOR”.

Mas, se formmos ao Novo Testamento vemos uma idéia correlata em João 4.21-23:

Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem (oti ercetai wra), em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem

No texto de Lucas, Jesus fala com a samaritana que chegaria uma wra, e usa a palavra grega que deu a expressão hora em português (que podemos traduzir também por tempo ou mesmo dia) em que Deus exigiria de nós adorá-lo no Espírito e não mais segundo as tradições, fossem elas samaritanas ou judaicas.

E para falar dessa hora luz, desse dia luz, devemos entender como o Espírito de Deus se faz presente nele e atua em nossas vidas. Por isso, vamos ver rapidamente como hebreus e cristãos viam a ação do Espírito.

A expressão hebraica ruach e seu correlato grego pneuma significam literalmente vento ou sopro. Normalmente traduzimos esses termos, quer do hebraico ou do grego, por “espírito” ou por Espírito” com letra maiúscula. Quando optamos pela tradução “espírito” queremos nos referir ao espírito humano ou a um espírito, que pode ser um demônio ou um anjo. Optamos pela tradução “Espírito”, quando o texto se refere ao Espírito Santo ou Espírito de Deus. Assim, em 2Tesssalonicenses 2:8 significa sopro (“a quem o Senhor Jesus matará com o sopro de sua boca”). E em Eclesiastes 8:8 indica o princípio essencial da vida, nosso fôlego de vida. Mas, ao nascermos de novo, através da aceitação pela fé do sacrifício de Jesus na cruz do calvário, o Espírito Santo passa a habitar em nós, como explica Paulo em 1Coríntios 3. Em Romanos 1:4, 2Coríntios 3:17 e 1Pedro 3:18 a expressão grega pneuma nos remete à uma das Pessoas da Trindade, ao Espírito Santo de Deus.

O Espírito Santo nos manuscritos encontrados em Qumran, que faziam parte da biblioteca dos essênios, piedosa comunidade judaica que vivia no deserto na época de Jesus, aparece de forma explícita como Pessoa trinitária.[1] Por isso, podemos dizer que nos textos de Qumran encontramos elementos conceituais da doutrina do Espírito Santo.[2] E é interessante ver que um manuscrito ao falar da promessa da autoridade profética, restauradora da justiça, apresentada na figura do Messias, diz que “O Espírito Santo desceu sobre o seu Messias”. 2Q 287 (3.13). “Céu e terra pertencerão ao meu Messias (...) e tudo o que neles há. Ele não se afastará dos mandamentos dos santos (linha 6) e o seu Espírito estará sobre os humildes e os crentes serão fortalecidos por seu poder”. 4Q 521 (fragmento 1, coluna 2).[3] E a Regra da Comunidade afirma que: “Ele purificará a carne de todas as obras ímpias pelo Espírito Santo e aspergirá sobre ela o Espírito de verdade como água de purificação”(IQS 4.21).[4]

Estamos, dessa maneira, diante de um dia onde se deve andar na luz do Espírito da verdade. É o dia tarde e manhã que, sucessivamente, Deus cria para nós: é dia de adoração. Este é um dia particular, me envolve como pessoa, mas é cotidiano, são todas as horas do dia, todos os dias. Mas deve ser comunitário, porque implica em reunião, porque é assim que se adora e se  serve no Espírito da verdade. É por excelência o dia da igreja.

II.        Dia kairós

Dia de salvação e proclamação


Quando falamos de kairós falamos plenitude, falamos de máxima extensão, brilho e glória. Plenitude é tempo de beleza, é um momento de graça onde a possibilidade humana se torna cheia da força divina. Mas este kairós é diferente de todos os tempos anteriores e futuros, pois aponta para a possibilidade de liberdade e salvação. E a esperança que o kairós gera é maior que a simples ilusão humana, pois esta esperança tem o próprio Cristo por fundamento, já que aqui a graça gera a plenitude. Assim, o kairós é o dia da plenitude, de grande magnitude e beleza. É um dia especial de irrupção da liberdade e da salvação. É um dia diferente, é particular, marca as nossas vidas e não se repete. É o dia do Senhor Jesus.

Se desviares o teu pé do sábado e de fazer a tua vontade no meu santo dia, e se chamares ao sabado deleitoso, e santo dia do Senhor, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, nem pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falar as tuas próprias palavras. Então te deleitarás no Senhor, e te farei cavalgar sobre as alturas da terra, e te sustentarei com a herança de teu pai Jacó; porque a boca do Senhor o disse”. Isaías 58.13-14.

No Antigo Testamento, o dia kairós era simbolizado pelo sábado, que traduzia a idéia de regeneração da vida e, por isso, de liberdade e salvação. Com o tempo, os hebreus perderam esse sentido maior do sábado e passaram a ver nele apenas um aspecto, o da separação e santificação, que sem dúvida está presente.

No Novo Testamento, o dia kairós ressurge com toda sua força simbólica na Pessoa de Jesus, que encarna na plenitude dos tempos, na época certa de liberdade e salvação.

Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”. Gálatas 4.4.

Por isso, ele traz a plenitude da salvação para nossas vidas através de um dia especial: o dia de nossa conversão. Esse dia acontece apenas uma vez em nossas vidas. Ele é definitivo e faz com que nossas vidas se dividam em antes de depois dele.

João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem depois de mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça”. João 1.15-16.

Por isso, o dia kairós é um dia particular, pessoal, de encontro com o Salvador. É o dia do Cristo: é único, é transformador. Produz regeneração que se projeta na eternidade. Esse é o meu dia, da particularidade da minha salvação. Eu sei o que ele significa. É cheio de beleza, graça e força. E por isso eu testemunho sobre ele.

III.       Dia escatológico

Dia de juízo e justiça


Mas há um dia escatológico, de consumação do tempo e da história, quando os seres humanos que não aceitaram a alforria e a salvação pelo kairós do Cristo estarão sob a justiça e juízo do Deus eterno. Este é o grande e  terrível dia do Deus Pai, que abre um tempo novo, o yom eterno. 

O Deus eterno é Deus do tempo e da história. Isso significa que é Deus quem atua na história com destino a uma meta final. A história segue uma direção, algo novo há de criar-se nela. Essa meta pode ser compreendida de várias maneiras, como vitória sobre os poderes demoníacos, bem-aventurança, chegada do reino de Deus e, mais além da história, criação de novos céus e nova terra, ou seja, de uma realidade nova e superior.

Ah! aquele dia! porque o dia do Senhor (hwhy Mwy yom Iaveh) está perto, e virá como uma assolação do Todo-poderoso”. Joel 1.15.

A rainha do meio-dia (uma referência de Jesus à rainha de Sabá) se levantará no dia do juízo com esta geração, e a condenará; porque veio dos confins da terra para ouvir a sabedoria de Salomão. E eis que está aqui quem é mais do que Salomão”. Mateus 12.42.

No profetismo antigo muitos eram os símbolos para expressar a esperança escatológica e o Dia do Senhor era talvez o de maior impacto. No profetismo vétero-testamentário a história é história universal. Negam-se as limitações espaciais e as fronteiras entre as nações. Para Abraão todas as nações serão benditas, todas poderão adorar a Deus no monte Sião, pois o sofrimento do Filho da nação escolhida tem o poder de salvar todas as demais arrependidas. O milagre do Pentecostes supera as diferenças do idioma. Em Cristo salva-se e une-se o cosmo, o universo.

Mas os céus e a terra que agora existem, pela mesma palavra se reservam como tesouro. e se guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos homens ímpios”. 2 Pedro 3.7.

Nós evangélicos comprometidos com as missões mundiais vivemos a promessa desse dia quando fazemos missões, pois elas têm um caráter universal e visa criar uma consciência humana em Cristo. Esse tempo do Deus Pai alcança plenitude na história, porque a história aponta para o reino universal de Deus, o reinado da justiça e da paz. Isso nos leva ao ponto decisivo da luta entre o tempo e o espaço.

No protestantismo temos outros símbolos de esperança escatológica de igual força e trancendência, como os apocalípticos da revelação joanina. De todas as maneiras, o Dia do Senhor, quer nos símbolos vétero-testamentários, quer na revelação apocalíptica neo-testamentária, traduz a idéia de que o círculo trágico do espaço será superado e que a história teve um princípio e terá um fim. E isso tem um significado especial para nós, já que o apóstolo Paulo também fala de “nova criatura”.

Com o Dia do Senhor o monoteísmo profético se apresenta como monoteísmo da justiça, porque os falsos deuses do espaço suprimem, necessariamente, a justiça. O direito ilimitado de todo deus espacial choca-se inevitavelmente com o direito ilimitado de outro deus espacial. A vontade de poder das comunidades submetidas a esses deuses espaciais não pode fazer justiça diante da vontade de poder de outras comunidades submetidas a outros deuses espaciais. Isso é válido para os grupos poderosos que operam dentro de uma nação e para as próprias nações. O politeísmo, que é a religião do espaço, é forçosamente injusto. O direito ilimitado de todo deus do espaço anula a universalidade implícita na idéia de justiça. Este é um clamor do Dia do Senhor presente no monoteísmo profético.

Mas a ameaça profética do Dia do Senhor também pende sobre joio que se esconde em meio ao povo eleito, de ser rechaçado por o Eterno, por causa da injustiça. A tragédia e a injustiça são próprias dos falsos deuses do espaço, mas a realização histórica e a justiça o são do Pai eterno que atua no tempo para criar um dia eterno.[5] Por isso, o dia escatológico é um dia universal. Terrível para aqueles que rechaçaram a plenitude da graça e o viver no Espírito.

Considerações finais

 

A idéia do kairós nasce da relação com o eterno. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante, mas o dia kairós não pode existir num estado de eternidade no tempo. O dia kairós traduz a idéia de que o Deus eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo sem, contudo, fixar-se nele.

Assim, a realização plena do dia de hoje, como do kairós, se encontra além do tempo. Toda transformação exige uma compreensão do momento vivido, que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Toda transformação deve projetar-se na eternidade, deve entender que há na suave presença do Espírito, hoje, em nossas vidas, uma complementaridade entre este kairós de alforria e salvação e a eternidade que se abre com o fim dos tempos.

É a partir dessa compreensão do que significa o Espírito no tempo presente, que voltamos ao kairós, construído enquanto necessidade e responsabilidade que não podem ser adiadas ou recusadas. Kairós significa tempo concluído e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção da eternidade no tempo. O kairós não é um momento qualquer, não é uma parte do curso temporal: é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do nosso destino.

Considerar um momento de nossa vida como kairós, considerar o tempo do Cristo como uma decisão inadiável e inevitável é considerá-lo enquanto tempo que reúne o hoje da adoração no Espírito da verdade com o tempo do Pai eterno, lá onde tempo e história deixam de existir. Essas raízes do dia do Senhor mantêm entre si uma relação trinitária, que é mais do que simples justaposição. Por isso, o Dia do Senhor é tempo do Espírito, de adoração e serviço, é tempo do Cristo, de salvação e proclamação, é tempo do Pai eterno, de juízo e justiça.



[1]Conforme Escrito de Damasco; Regra da Seita caverna 1; 4 Q 414 (textos da caverna 4, segundo versão de R.H. Eisenmann e M. Wise, The Dead Sea Scrolls Uncovered, 1992); e Rolo da Guerra, caverna 1. A Regra da Seita 4: 21-22 diz: “Ele derramará sobre eles o Espírito da Vida como água purificadora para a purificação de todos os males”. Klaus Berger, op. cit., p. 69.
[2]Em 4 Q 521, fragmento 1, coluna 2, linha 6, o texto afirma, depois de nomear o Messias: “E o seu Espírito vai parar sobre os humildes, e ele restabelecerá os fiéis com seu poder”. Klaus Berger, Qumran e Jesus, op. cit., p. 105.
[3]Klaus Berger, idem, op. cit., pp. 90-92, 96-97.
[4] M. Burrows, More Ligth on the Dead Sea Scrolls,  Londres, Secker & Warburg, 1958, p. 60.
[5] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 40-42. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.