samedi 16 mars 2013

A pensar a ditadura brasileira: para entender o passado


O bonapartismo militar
Fonte: Jorge Pinheiro. Teologia e Política, Paul Tillich. Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, pp. 170-180.


O estilo personalista de ditadores, de regimes e governos militares, foi chamado por Karl Marx de bonapartismo, em sua análise do golpe de estado de Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão. No 18 Brumário de Luís Bonaparte,[1] Marx analisa as intenções e razões do golpe, mostrando como diante da crise de direção da burguesia, do acirramento das contradições sociais, e da crescente força do movimento de massas, a única saída para a burguesia era um governo forte, com base no aparelho militar, que se colocasse acima dos interesses imediatos de sua própria classe. Ou seja, surgia o governo de arbítrio, acima do Legislativo e do Judiciário.[2]

O conceito, enriquecido posteriormente por dois teóricos preocupados com a tendência ao surgimento de governos fortes no século vinte, Antonio Gramsci e León Trotski, passou a fazer parte da terminologia da sociologia política. Gramsci para o mesmo conceito utilizará um sinônimo, cesarismo. Trotski arriscou uma previsão: a de que a tendência nos países dependentes e semicoloniais era a do surgimento de governos de tipo bonapartista, devido à própria fraqueza estrutural do capitalismo nesses países.

Um bonapartismo não é igual a outro. Não há dois governos bonapartistas inteiramente iguais, mas sempre terão características centrais semelhantes; a sua própria razão de existência será sempre uma aguda contradição e choque de classes e o debilitamento político da burguesia. Daí o papel das forças armadas, as restrições às liberdades e o surgimento de um Executivo que exerce o papel de juiz, de árbitro.[3] Nesse sentido, a partir de 1964, os governos militares brasileiros foram bonapartistas. Mas o bonapartismo de Geisel, possivelmente como o de Castelo Branco, foi o mais típico dos quatro, já que não somente arbitrou, mas equilibrou-se entre interesses distintos, às vezes fazendo acordos, às vezes golpeando. Por isso, nos deteremos em seu governo e estilo por considerá-lo modelo do bonapartismo militar brasileiro e por nos dar condições de analisar o processo de conjunto do período militar. Assim, entendendo o estilo de Geisel como uma conseqüência, ao menos em parte, do momento histórico em que governou, podemos traçar um perfil do “estilo político” do bonapartismo militar brasileiro, sem perder de vista algo importante: desde o início seu governo tinha como meta criar as condições para uma abertura política no Brasil, sem, no entanto, desestabilizar o poder burguês. O presidente Ernesto Geisel foi o primeiro presidente do movimento de 1964 que exonerou um ministro do Exército. Também foi o primeiro a punir ostensivamente um general do Exército, Ednardo D´Ávila Mello,[4] em janeiro de 1976. E mandou prender em 1978, um general, Hugo Abreu, que poucos meses antes tinha sido um de seus assessores mais chegados. Estes gestos sem precedentes indicavam um estilo de governar, que tem desnorteado analistas. Seu estilo é considerado, em geral, agressivo e personalista, e muitos militares sempre temeram que esses gestos pudessem colocar em risco a unidade corporativa das Forças Armadas, ou mesmo o regime de poder vigente no país. Mas essa interpretação era uma simplificação, já que não levava em conta as condições do momento, e o amplo leque de significações que cada gesto presidencial contém e produz. Em primeiro lugar, o general – dentro de sua meta de governo, desenvolvimento com segurança – sempre agiu em nome da hierarquia e da disciplina militar. Assim, combinando sua diretriz política de governo (a chamada distenção), as pressões sociais do momento e a estrutura hierárquica das Forças Armadas, podemos dizer que os generais Frota e d´Ávila Mello foram punidos por não adotarem a diretriz política do governo e por não cumprirem à risca, em suas áreas de responsabilidade, as ordens presidenciais.[5]

Como estamos falando de um governo bonapartista e de um estilo bonapartista, aqui diretriz política de governo e diretriz presidencial se combinam. Aliás, esta é uma das chaves para entender o bonapartismo: ele destrói as estruturas da democracia burguesa substituindo-as pelo princípio do chefe, que norteia a conduta no interior das Forças Armadas. Assim, hierarquizada militarmente a sociedade civil, chega o momento em que governo e executivo, propriamente, se confundem. Do ponto de vista estritamente político, os gestos do presidente ao punir homens da própria revolução tinha uma significação mais ampla, pois pretendiam justamente mostrar que Geisel podia e devia transcender o regime, estar acima dele, e colocá-lo sob o controle de princípios que supunha desvirtuado na prática. Nesse sentido, o general Geisel é o primeiro presidente pós-64, desde Castelo Branco, que pretendeu falar não em nome do regime, apenas, mas da nação como um todo. Evidentemente, os generais presidentes anteriores também supunham falar em nome da nação. Mas devido à própria situação histórica, o momento os levou a esbarrar no jogo pendular entre direita e esquerda. Tinham limites estritos determinados, surgidos dos compromissos com setores específicos burgueses e dos acordos com a linha dura, o núcleo não castelista que se pretendia portador da legitimidade e intérprete da pureza revolucionária. Mas, se o bonapartismo desde os primeiros anos da ditadura “assumira o controle das chaves dos cárceres e dos cofres, os partidos políticos estavam inertes, a atividade parlamentar resumira-se ao exercício de investigação dos limites do Congresso, e os empresários faziam seus negócios no varejo enquanto seus órgãos de classe banqueteavam o regime no atacado. Concluíra-se o processo de desmobilização da sociedade brasileira. De todos as instituições de âmbito nacional e tradição política só uma não coubera inteira no acerto: a Igreja”.[6] É bem verdade que até 1967 ela marchou ao lado do regime, mas em nenhum momento entregou sua independência aos novos donos do poder.

“Como instituição a Igreja podia fazer muitas coisas, menos uma: dar a César sua própria desmobilização. Ao contrário do empresariado, do funcionalismo público civil e militar, dos partidos políticos e do Congresso, ela não precisava de remuneração terrena ou licença do governo para existir. Essa independência decorria de um patrimônio espiritual amarrado a conceitos de civilização que estavam sendo revogados no Brasil”.[7]

Por isso, o desejo de aliança com o bonapartismo não traduzia a realidade do conjunto da Igreja católica no Brasil. Uma mudança tivera início ainda na década de 1950. A doutrina social da igreja católica, que teve como ponto de partida Leão XIII, começou a tomar corpo no Brasil nos anos 1950. É dessa época a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB (1952), que teve dom Hélder Câmara como seu primeiro secretário-geral; a reestruturação da Ação Católica, que englobava a Juventude Operária Católica (JOC), Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juventude Universitária Católica (JUC), sob uma ênfase espiritual e evangelizadora.

“Mas nos anos 60, a JUC engaja-se no processo político, rebela-se contra os bispos diocesanos e alia-se a organizações de esquerda não-católicas. Betinho, Herbert José de Souza, homem preocupado com a fome e a miséria no Brasil, por exemplo, em 1962 era líder da JUC, e no correr dos anos 60 transformou-se num dos expoentes da Ação Popular, um dos partidos políticos mais ativos de toda a esquerda, oriundo da JUC e da JOC. É interessante notar que em abril de 1962, a 5a Assembléia do Episcopado apoiou as reformas de base de João Goulart e, no ano seguinte, com base na encíclica Pacem in terris (1963), exigiu a participação das ‘massas populares’ no processo de desenvolvimento. Nos anos 63/64, três encíclicas eram discutidas dentro e fora da Igreja, e amplamente analisadas pela imprensa brasileira: Rerum novarum, de Leão XIII, Mater et magistra e Pacem in terris, as duas últimas de João XXIII. E foram elas que formaram a primeira base teórica da moderna esquerda cristã brasileira”.[8]

Desde 1961, o clero católico estava dividido em três tendências: conservadora, reformista e revolucionária. A ala conservadora era liderada pelo cardeal dom Jaime Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro, por dom Vicente Scherer, arcebispo de Porto Alegre, e por dom Eugênio Sigaud, autor de Reforma Agrária, Questão de Consciência.[9]

“A ala reformista estava sob a direção do cardeal dom Carlos Carmelo Mota, arcebispo de São Paulo, de dom Hélder Câmara, bispo auxiliar do Rio de Janeiro e depois arcebispo de Olinda e Recife, de dom José Távora, arcebispo de Aracaju, e de dom Serafim, arcebispo de Natal. Aliados aos reformistas estavam os dominicanos e uma grande parte do clero secular, que procurava uma ligação maior com as organizações de classe e os sindicatos. Junto a eles, atuava a Ação Católica, que englobava a JEC/JUC e a Juventude Operária Católica. (...) O setor revolucionário era liderado por dom Jorge Marcos, bispo de Santo André, e por vários padres, entre os quais podemos citar Francisco Lage, de Belo Horizonte, Ruas, de Manaus, Almery e Senna, do Recife, Alípio de Freitas, que junto com Julião, dirigiu as Ligas Camponesas, Aloísio Guerra, autor de A Igreja está ao lado do povo?, frei Josaphat, diretor do jornal Brasil Urgente e dom Padim, assistente da Ação Católica. (...) Em 1961, quando esteve no Brasil, frei Cardonnel, intelectual dominicano francês, lançou as bases para a organização da esquerda católica. (...) Depois de oito meses no Brasil (afirmou Cordonnel), penso que o primeiro problema, o mais urgente, é a luta contra a miséria (...). Impugnar esta luta em nome do perigo comunista representa a pior das hipocrisias”.[10]

Por causa de seu pronunciamento foi mandado de volta à França, mas sua pregação deu origem à Ação Popular.[11] Em 1964, o golpe contra João Goulart se deu num momento em que ainda eram pequenas e frágeis as áreas da hierarquia católica sensibilizadas com as mobilizações populares.

“É consenso entre os historiadores que a hierarquia da Igreja desempenhou um papel fundamental na criação do clima ideológico favorável à intervenção militar, engajando-se na campanha anticomunista sustentada pelas elites conservadoras: contra a Reforma Agrária, contra os movimentos grevistas, contra as reivindicações dos sargentos, cabos e soldados das Forças Armadas, contra a aliança de cristãos e marxistas que começava a ocorrer nas entidades sindicais e estudantis”.[12]

Mas, sem dúvida, esta não era uma postura monolítica da Igreja católica, pois antes do golpe militar, bispos, sacerdotes e leigos apoiaram as Reformas de Base. E logo depois, ainda em 1964, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, num pronunciamento ambíguo, publicado pelo jornal carioca Correio da Manhã,[13] procurou definir um certo distanciamento do novo regime.

“Não há dúvida que a ação militar deve consolidar a vitória mediante o expurgo das causas da desordem. Entretanto, o critério da correção e os métodos a serem empregados na busca e no trato dos culpados, as medidas saneadoras e as penalidades não são atribuição da força como tal, mas de outros valores, sem os quais a força não passaria de arbitrariedade, de violência e tirania. Que os acusados tenham o sagrado direito de defesa e não se transformem em objeto de ódio ou de vindita. (...) Cumpre-nos declarar que não podemos concordar com a atitude de certos elementos que têm promovido mesquinhas hostilidades à Igreja, na pessoa de bispos, sacerdotes, militantes leigos e fiéis”.[14]

Mas é em 1968 que a Igreja vive o marco de sua virada contra o arbítrio, a repressão militar e as torturas. Esse foi o ano das grandes mobilizações contra o regime e de feroz repressão militar. Foi o ano da decretação do Ato Institucional-5, mas ao mesmo tempo o ano em que tiveram início as primeiras experiências das Comunidades Eclesiais de Base. E, em fevereiro de 1969, através do documento Presença da Igreja, escrito por D. Jaime Câmara e aprovado pela CNBB, definitivamente a Igreja católica colocou-se na oposição ao bonapartismo.

“A situação institucionalizada no mês de dezembro último [refere-se ao AI-5] possibilita arbitrariedades, entre as quais a violação de direitos fundamentais, como o de defesa, de legítima expressão do pensamento e de informação: ameaça à dignidade da pessoa humana, de maneira física ou moral; institui poder que, em princípio, torna muito difícil o diálogo autêntico entre governantes e governados, e poderá levar muitos a uma perigosa clandestinidade”.[15]

No correr do regime bonapartista, dezenas de padres e leigos católicos atuaram na oposição, quer através de entidades das sociedades civil e religiosas, quer integrados às organizações e partidos clandestinos de esquerda. Na contra-ofensiva, o regime sentiu-se livre para prender e torturar padres e leigos católicos.

“Dos dois fenômenos, um era acessório e transitivo, pois nem todos os terroristas eram padres, muito menos se podia dizer que todos os padres simpatizassem com a esquerda, quanto mais com a esquerda armada. O segundo fenômeno era essencial e permanente: o regime fazia da tortura de presos um instrumento primordial de investigação e não pretendia mudar de posição”.[16]

Situação esta que formatou nos anos de chumbo a solidariedade militante entre os cristãos e a esquerda brasileira. Ou, como mais tarde dirá Philip Potter, ex-Secretário-Geral do Conselho Mundial de Igrejas no prefácio do livro Brasil: Nunca Mais: “Foi este Jesus que falou aos seus discípulos, assim como a nós: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. E aquela verdade é conhecida e praticada quando se é justo e se afirma a dignidade de cada ser humano”.[17]

Podemos dizer, comparando o governo Geisel com o de Médici, que embora mantendo seu profundo conteúdo de classe burguês, o estilo bonapartista de Geisel não foi tão ideológico no sentido imediato do termo, já que não representou o setor militar comprometido com prescrições estritas, nem com grupos específicos da sociedade civil, mas com a estrutura capitalista da sociedade como um todo. Por isso seu governo foi mais complexo e contraditório e menos definido ideologicamente. Os gestos autoritários de Geisel não foram aleatórios, nem produto de um temperamento contraditório. Tudo indica que Geisel, e a inteligência técnico-militar que o rodeou, tinha metas a cumprir nos cinco anos de governo, e de acordo a cada momento foi elaborando as táticas aparentemente mais viáveis a cada situação. Podemos dizer também que Geisel (e Golbery, logicamente) tinha uma noção aguda do momento de transição vivido no país. E tentou levar a cabo a reabilitação de um programa político. Implementando-o à maneira bonapartista: acima dos partidos, das classes sociais e dos próprios grupos funcionais, militares e tecnocratas, que estiveram na gestão do Estado até aquele momento. Como toda estratégia bonapartista, a de Geisel visava à unidade nacional sob a hegemonia não contestada da burguesia. Esta estratégia durante o seu governo teve uma formulação política mais precisa, que era a de preparar o país para uma conciliação nacional. Conciliação esta supervisionada por seu sucessor – o general Figueiredo – e logicamente pelas Forças Armadas. A esta estratégia, Geisel foi acrescentando em momentos precisos uma tática bastante utilizada pelo bonapartismo: aquela que consiste em dar a todos a nítida impressão de que é vítima constante de fortes pressões vindas do interior da sociedade, às quais precisa antecipar-se ou enfrentar. São os shows bonapartistas montados especialmente e que permitem ao executivo manter o autoritarismo. Geisel, o mais político dos presidentes do movimento de 64, obteve certos êxitos com esta tática bonapartista. E a utilizou intensamente. Podemos citar alguns exemplos: o show montado ao redor da descoberta da gráfica do Partido Comunista, logo no início de seu governo (antes de completar um ano); o massacre da direção do Partido Comunista do Brasil; as cassações de parlamentares do MDB; o caso do general Sílvio Frota e outros militares e a repressão ao Movimento de Convergência Socialista.[18] Mas já no final de seu governo, quando uma nova etapa da história do Brasil se abria, principalmente a partir das mobilizações operárias e sindicais de 1978, esta tática começou a desgastar-se. Ela, ao contrário, causava um efeito inverso na sociedade. Já não atemorizava, mas incentivava. Isto porque o governo Geisel viveu dois períodos distintos: o antes e o depois de maio de 1978. E nem tudo que valia para março/abril de 1978 podia, por exemplo, ser aplicado em junho/julho do mesmo ano. Exemplo, a lei antigreve.

Assim, o bonapartismo de Geisel foi mais rico porque teve que dar respostas a um número de problemas sociais maiores do que seus antecessores e porque conseguiu fazê-lo sem ocasionar grandes e bruscas rupturas na estrutura autoritária do regime.

Por ser bonapartista o regime, os militares e o governo que se sucederam a partir de 1964 formaram um todo. E nesse sentido, excluindo o governo de Vargas no período que vai de 1932 a 1943, eles foram os únicos que tentaram elaborar uma doutrina de conjunto, e para ser cumprida num longo período, para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Antes de pensar sobre a viabilidade desse projeto integrado de desenvolvimento, é importante analisar as bases sobre as quais se apoiou. A partir do material publicado pelos teóricos da Escola Superior de Guerra, conforme analisamos no jornal Versus,[19] é possível tirar algumas conclusões:

• Os militares consideraram que o movimento de 31 de março teve um caráter de revolução, que implicou num processo tríplice: a formação uma nova camada dirigente que teria como meta a destruição do pensamento tradicional, tanto ao nível político, como econômico.[20]

• Tendo em vista a crise anterior a 1964, dos anos 1961-63, e levando em conta que para derrubar o governo de Goulart necessitaram do apoio dos setores tradicionais, que em termos estratégicos não mereciam nenhuma confiança, os militares passaram a se considerar reserva moral da nação e única alternativa de governo. Tomando sua aliança com os setores tradicionais ou oligárquicos como tática, tentaram excluí-los do processo político, sempre que estes se mostravam ousados ou como fator de aglutinação do descontentamento ou da oposição.

• É um reducionismo afirmar que o movimento de 31 de março foi a expressão da penetração do capital estrangeiro no Brasil. Embora o movimento tenha desde o primeiro momento se considerado como parte da geopolítica ocidental, ele considerou também que era possível o desenvolvimento a partir de uma acumulação da riqueza. Daí que a visão que teve foi exatamente inversa à defendida pelas correntes nacionalistas radicais de “que a dependência aumenta na proporção direta da entrada de divisas e investimentos transnacionais”.[21] Aclarando. Uma das teses econômicas defendidas pelos teóricos da Escola Superior de Guerra-ESG, ao nível da economia, foi que a entrada de capital estrangeiro pode gerar uma acumulação de riqueza, que se num primeiro momento apresenta-se como problemática, tende a produzir uma decolagem, ou seja, um processo gradual de desenvolvimento, a partir de um certo grau de acumulação. Daí consideraram de secundária importância no processo geral da economia a questão da dívida externa.

• Levando em conta a impossibilidade de fazer crescer a economia em todos os seus itens, a política econômica da inteligência militar procurou criar o que eles chamaram de pólos de desenvolvimento, começando pelos setores de ponta, já que estes por realizar mais rápido a mais-valia atraíriam mais investimentos estrangeiros. Já ao nível do Estado começaram, ou continuaram, esta seria a expressão correta, a dar importância ao setor de bens de capital, mas desde que estivesse relacionado diretamente com o resto do parque industrial brasileiro. Ou seja, a política de substituição de importações nesse setor só passa a ser prioritária quando seus custos são menores ou iguais aos do competidor estrangeiro. O que pode parecer uma contradição com um plano geral de desenvolvimento, mas surgiu de um fenômeno concreto, a descapitalização da economia. Aqui também deve ser levada em consideração a política de construção de grandes obras, que junto à questão militar levou alguns economistas a verem características do modo de produção asiático no projeto militar, que esteve mais ligado à rápida realização da mais-valia do que à intenção de diminuir as tensões sociais geradas pelo desemprego, embora seja importante notar que algumas dessas grandes obras tiveram claro fim estratégico.

• A teoria política desenvolvida pela ESG e sintetizada na Lei de Segurança Nacional mais do que expressar um fenômeno conjuntural de repressão mostrou que os militares acreditavam estar enfrentando de fato uma revolução.[22]

Mas, devido à internacionalização do capital e à interdependência da economia a nível mundial, é impossível um processo de desenvolvimento sem desequilíbrio, sem romper a relação estratificada entre os países industrializados e os países periféricos, ainda que esse desequilíbrio se dê dentro das margens do capitalismo. Ou seja, a acumulação do capital e de riqueza terá sempre um limite, caso se mantenha a sangria que representa o déficit do balanço de pagamentos e da dívida externa. E mesmo que se dê importância secundária a este fenômeno, o certo é que a sangria existe e é ela que funciona como um dos fatores de dependência e que torna impossível o desenvolvimento como meta integrada. A verdade é que o equilíbrio fracionado da situação mundial favoreceu naquele momento o projeto hegemônico brasileiro. De forma conjuntural, mas favoreceu. Em termos mais gerais e históricos, o pensamento militar, desenvolvido como teoria da ESG a partir principalmente de 1964, considerou que a liberdade deve estar condicionada aos ditames da razão segurança.

Esta é a lição dada por um dos teóricos da ESG, general Meira Matos, em palestra proferida em 1978 na Câmara Americana de Comércio para o Brasil, em Washington. Segundo o general, o Brasil tinha condições geopolíticas para emergir entre as grandes nações do mundo e se tornar um dos países mais importantes, uma potência em condições de influir nas decisões de ordem mundial.

Nestas poucas palavras estava sintetizado o projeto político-militar brasileiro. E uma leitura mais atenta delas nos conduz à certeza de que o projeto de poder brasileiro incluía a construção de arsenal nuclear.[23] A noção de potência capaz de “influir nas decisões de ordem mundial” estava vinculada à posse de armas nucleares e à capacidade de dispará-las. Poder mundial sem poder nuclear era visto como ficção num mundo dominado pelo conceito de soberania. Em decorrência, o general Meira Matos e toda a inteligência militar consideraram que a busca de status de potência conduz a mudanças e a conflitos nas relações tradicionais.

Mas tudo tem o seu preço. E se no plano sul-americano o projeto do Brasil potência despertaria receios e reações, corridas ao poder militar pelos regimes militares, no plano interno o preço era a supressão da liberdade, pré-condição implícita na predominância da doutrina de segurança, tal como se depreende do pensamento do general Meira Matos. Ele próprio disse que a segurança é o ônus que o Brasil tem que pagar para “emergir entre as grandes nações do mundo”.

Diante do bonapartismo militar, uma parte representativa do protestantismo histórico[24] não se colocou na oposição ao regime, nem mesmo optou pela neutralidade, ao contrário, fez-se solidário.



[1] A primeira edição foi publicada na revista Die Revolution, Nova York, EUA, 1852, sob o título Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. Fonte: K. Marx y F. Engels, Obras escogidas en tres tomos, Editorial Progreso, Moscou, 1981: Tomo I, pp. 404 a 498.
[2] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, São Paulo, Versus no 29, 02.1979, pp. 4-7.
[3] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[4] “Geisel, que possuía agudo sentido de autoridade, demitiu o comandante em São Paulo, general Ednardo D'Ávila Mello, quando da morte sob tortura, em dependência do Exército, do operário Manuel Fiel Filho”. Roberto Pompeu de Toledo, “Figueiredo e o cabaré de Aldir Blanc”, Veja, 12.01.2000. Linha dura, o general já tinha se posicionado outras vezes contra uma possível abertura, conforme conta o jornalista Cláudio Marques (Coluna Um, Shopping News, 03.08.1975): “Dos meus arquivos implacáveis: General Ednardo D’Ávila Mello deixando escapar comentário: ‘Afinal, se o pessoal de comunicação defende a liberdade de opinião e de expressão, há evidente paradoxo na condenação do jornalista que usou desta mestria liberdade dias atrás’ (referência ao caso Fausto Rocha)”.
[5] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[6] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p.236.
[7] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit., p. 236.
[8] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, São Paulo, Ágape, 2001, p. 127.
[9] Dom Geraldo de Proença Sigaud, Reforma agrária: questão de consciência, Editora Vera Cruz, 1962.
[10] Paulo Schilling, “Como se coloca a direita no poder”, São Paulo, Global, 1979, Vol. 1, pp. 92, 94, 99.
[11] Jorge Pinheiro, Somos a imagem de Deus, op. cit., p. 126.
[12] Um relato para a história, Brasil: nunca mais, prefácio de D. Paulo Evaristo, Cardeal Arns, Petrópolis, Vozes, 1985, 7a. edição, p. 147.
[13] Correio da Manhã, 3 de junho de 1964.
[14] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit, p. 237.
[15] Fernando Prandini, Victor A. Petrucci, frei Romeu Dale, O. P. (orgs.), As relações Igreja-Estado no Brasil, vol. 2, p. 120 in Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit, p. 257.
[16] Elio Gaspari, A ditadura escancarada, op. cit., p. 267.
[17] Brasil: Nunca Mais, op. cit., p. 19.
[18] Jorge Pinheiro, “Um Luís Bonaparte?”, artigo citado.
[19] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, pp.4-8.
[20] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[21] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[22] Jorge Pinheiro, “Figueiredo e o Projeto Militar”, artigo citado.
[23] “O Projeto Aramar estava perseguindo a idéia da Bomba Atômica impetuosamente. Conforme publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, ‘a arma nuclear estratégica principal do Brasil seria um artefato de 20 a 30 quilotons (quatro a seis vezes mais poderoso do que o usado em Hiroshima), feito com plutônio e lançado por um imenso míssil de 16 metros de altura, 40 toneladas de peso, classe MRBM (Medium Range Ballistic Missile), capaz de cobrir cerca de 3 mil quilômetros transportando uma ogiva de guerra de mais de uma tonelada. É a versão militar do VLS/Veículo Lançador de Satélite, que o Instituto de Atividades Espaciais, de São José dos Campos, prepara’”. “O Submarino Nuclear e a Bomba Brasileirain Nuclear Tecnologia e Consultoria. Site: www.nuctec.com.br/educacional/submarino (Acesso em 30.12.2005).
[24] Protestantismo histórico é o ramo das igrejas cristãs que surgiram como resultado da Reforma religiosa do século XVI na Europa e que se estabeleceram no Brasil a partir do século XIX. Diferencia-se do pentecostalismo, que enfatiza a dimensão extática e a idéia da revelação contínua e direta de Deus aos crentes, conofrme expõe Joanildo Albuquerque Burity, “A redenção total: a construção protestante da realidade brasileira”, in Teresa Halliday (ed./org.), Atos retóricos, mensagens estratégicas de políticos e igrejas, São Paulo, 1988, p. 30.

Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro


Faculdade Teológica Batista de São Paulo

Seminário
Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Dias – sábados 16.03, 13.04, 18.05 e 08.06 de 2013
Horário: 8h30 às 12 horas e 13h00 às 16 horas

Textos para discussão no dia 16.03
Fonte: Jorge Pinheiro. Teologia humana, pra lá de humana. São Paulo, Fonte Editorial. 2010, pp. 96-101, 137-143, 147-153.


Dá para ver o caminho?

O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça.

A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, essa leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasce de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre os “trois petits cochons” da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nossos estudiosos se debruçam sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum um ponto de partida no mínimo questionável: a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia.

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos séculos dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente.

Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis.

Depois que o pensamento marxiano entrou em crise, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.

O que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser olhada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal.

Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista.

Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?

Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Agora, no entanto, queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich, Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura, analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas. Mas também, aqui neste transposto, vamos caminhar com Orlando, que vencido por Medoro na luta pelo amor de Angélica, é tomado pela loucura, segundo relata Ludovico Ariosto (1474-1533) no poema épico Orlando Furioso, em tradução de Pedro Garcez Ghirardi.

Cansado cai, e aflito, no
relvado,
Fita os olhos nas nuvens, e
emudece.
Sem dormir, sem comer, fica
parado
Enquanto o sol três vezes
sobe e desce.

Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, busca do sentido da vida, e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu cerca de 250%, dados de 2009, nos últimos dez anos. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.

De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã diversificada, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/ evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.

A dor aguda o deixa
exasperado
E tanto vai crescendo, que o
enlouquece.

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.

Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque protestantes foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de preconceitos, foram cúmplices de torturas e mortes.

Ao quarto dia, o furor dele
se apossa,
Couraça e malha em fúria
ele destroça.


Torre de névoa

Conheci Florbela, a poeta, em 1961. Fui apresentado por Clara Sílvia, uma amiga comum. A partir daí sempre conversamos. Três casamentos, duas tentativas de suicídio fracassadas e uma terceira bem sucedida, fez dela uma das primeiras amigas feministas. Apaixonada e erótica. E quando canta seus amores, reais ou não, às vezes, digo: acho que você está falando da minha tresloucada paulicéia. Ela não responde. Deixa que eu faça, liberto, minha viagem. Por causa dessas travessias, convidei Florbela para opinar neste texto. E ela aceitou.

A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia do catolicismo reformado como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.

No Brasil, a sociologia viu o movimento evangélico como fundamentalista, passou a ver apenas o seu lado integrista. É certo que o movimento evangélico é fundamentalista, e Antonio Gouvêa Mendonça explicou:

Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente”.

Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.

O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos.

Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.

Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações.

O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias.

Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.

Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, do meu sonhar,
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: Que fantasia...

E o movimento evangélico montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe dêem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são fenômeno urbano.

E por não ter tal modernidade definições precisas e sólidas, o movimento evangélico urbano necessita um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descon­tentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano.

Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/ evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento das igrejas protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos.

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu!

Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade.

Uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra o movimento evangélico em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. É o lado misterioso dela.

Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo da Bíblia, a liturgia nas igrejas e até mesmo os currículos de faculdades de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a igreja local contribua para a espiritualidade mundial.

O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.

A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam.

Tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os protestantismos e evangelicalismos urbanos pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de protestantismo urbano viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas.

A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformida­de. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uni­formidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização envolve simultaneamente globalidade e localidade.

É por isso que, quando falamos em evangelicalismo urbano, apontamos para a comunicação entre grupos, igrejas e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferen­ça autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar evangelicalismo e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.

E Florbela completa:

Calaram-se os poetas, tristemente...
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao céu! ...


Onde está o chão?

Quando analisada a partir do princípio protestante, a situação proletária mostra que a miséria humana toca tanto o corpo como a alma. E a contracultura, por sua parte, lembra ao protestantismo que o dualismo platônico, idealista ou burguês, não tem correspondência nem com a mensagem bíblica, nem com a teologia. Por isso, Tillich disse que o protestantismo está livre para o materialismo proletário. Porém, no caso brasileiro, desde sua origem, com os mercadores ingleses e imigrantes alemães e norte-americanos, e depois com os missionários norte-americanos, o protestantismo sempre teve para o país um projeto político capitalista.

Com a teologia liberal, presente no Brasil nas primeiras décadas do século vinte, tal projeto político capitalista viu os Estados Unidos como modelo de um desenvolvimento que, no entanto, esbarrava na cultura católica, considerada cartorial. Por isso, no correr do século vinte, o catolicismo sempre foi olhado como força retrógrada, inimiga do progresso. Mas até os anos cinquenta, os protestantes não tiveram como enfrentar o catolicismo dominante.

Foi a cavalo do crescimento econômico a partir dos anos cinquenta, com o surgimento de novos setores sociais, de uma classe média e de um proletariado urbano modernos, que o protestantismo abandonou velhas maneiras de ser, virou evangelicalismo, movimento reformista, redentor, e cresceu entre as massas urbanas.

Nos vinte anos de ditadura militar, esses protestantes tiveram uma oportunidade política: foram reconhecidos como força religiosa emergente – e isso os militares conseguiram ver e aproveitar – e também futura força política. Tal realidade fez com que o evangelicalismo nascente levantasse como sua herança o projeto político capitalista. E foi esse projeto, agora evangélico, que sensibilizou e conquistou milhões de brasileiros. E, ao que tudo indica, vai continuar conquistando. Nesse sentido temos aqui um processo civilizatório calcado sobre uma antiga proposta, fazer do Brasil um país capitalista como os Estados Unidos dos anos cinquenta.

Os evangelicalismos urbanos estão à procura de fundamentos, numa busca por bases sólidas, mas não por um centro. Tal busca por fundamentos nem sempre é bem resolvida por causa das inter-relações sociais. Ou seja, os evangelicalismos, assim como outras religiosidades urbanas na alta modernidade, apresentam um forte grau de inautenticidade.

Claro que o evangelicalismo não é, por natureza, inautêntico em relação aos seus objetivos, porque tem por base o princípio protestante de luta pela justiça, mas muitas vezes chega próximo ao delírio na inautenticidade da experiência que oferece às pessoas. Por isso, o evangelicalismo globalizado, ou aquele de expressão local, solitário, é um espaço e tempo de produção da diferença, mas também de contínua produção da globalidade. Tal situação remete à urbanização global e à tendência de acomodação e de homogeneização do evangelicalismo.

A produção da diferença é um ingrediente essencial à urbanização, que está envolvida na múltipla variedade do evangelicalismo. Ao mesmo tempo, as micro-expressões evangélicas ocorrem no contexto das práticas protestantes globais. Assim, os evangelicalismos têm que se aco­modar à materialidade do mundo urbano com suas contingências e à multiculturalidade, inclusive para dar sentido às necessidades de seus fiéis.

É importante reconhecer os esforços do evangelicalismo em correlacionar o mundo global com o local. Isto porque o evangelicalismo em sua diversidade tem que responder às questões de suas micro-expressões dentro do contexto do interesse local, particular, mas também global. Assim, a questão do evangelicalismo urbano emer­giu com força significativa na vida brasileira nos últimos sessenta anos.

Uma primeira hipótese parte da abordagem da urbanização do evangelicalismo brasileiro a partir das generalizações empíricas referentes à crescente compressão do protestantismo em um campo global único. A segunda hipótese parte das idéias conceituais sobre os modos pelos quais os protestantismos deveriam ser mapeados em termos sociológicos. As duas compreensões estão relacionadas. No início da expansão evangélica urbana no Brasil, nos anos cinquenta, a questão da busca de sentido era central.

No final da década de 1970 teve início o ressurgi­mento dessa busca de sentido e vimos o fenômeno como ex­pressão de identidade social. Mas não notamos que essa busca por identidade social era também, e muito, busca por conquistas dentro da sociedade capitalista. Ao perder a noção da herança política protestante em solo brasileiro, enquanto ética do capital, se passou a ver a busca por fundamentos, analiticamente, apenas enquanto problema de particularidade do cenário global.

Mas a verdade é que a tradução do projeto político protestante na alta modernidade brasileira está a ser construída através de princípios que balizam a busca por fundamentos. Esses princípios se expressam como teológicos quando levantam o conceito da promessa de vitória dos escolhidos. Como econômicos, quando direcionam os crentes a um novo posicionamento no mercado produtivo, não mais como assalariados, mas como gestores. Como sociais, quando baseados em famílias mononucleares de alta performance, o que implica em rígido controle da natalidade e educação dirigida para um novo posicionamento na produção. E financeiros, onde dízimos e ofertas são vistos como investimentos que geram retornos materiais. Assim, é necessário analisar a construção glo­bal do fenômeno evangélico urbano e como se dá sua busca por fundamentos dentro do projeto capitalista protestante.

Quando analisamos a primeira hipótese, focamos a compressão espaço-temporal, que percebe a necessidade das cidades em expressarem suas iden­tidades através de propósitos internos e externos. Olhando dessa perspectiva, a busca evangélica por fundamentos é uma reação e não uma criação da globalidade. Mas, a partir da segunda hipótese, vemos que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral de globalidade.

Quando falamos de urbanização brasileira na alta modernidade estamos nos referindo aos caminhos específicos que as cidades tomaram nos últimos anos na construção de suas singularidades. Mas também que no processo geral da globalidade, as cidades brasileiras, por razões geográficas e por suas diferentes expressões de multibrasilidade, tenderam a um processo de diferenciação. Estes dois aspectos, no que se refere ao evangelicalismo urbano estimularam os fundamentalismos gerando dois tipos de vivências: a totalizan­te e a antitotalizante.

Os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo totalizante apresentam um empenho estratégico de ligar sua urbanidade à globalidade, sob a suposição de que suas teologias e doutrinas e mesmo suas expressões eclesiológicas possam ser mais bem resolvidas no reconhecimento de ser enclave de um contexto maior. Mas consideram que seus desafios só podem ser resolvidos ao nível urbano. Essa leitura se expressa principalmente naquelas entidades e mesmo agrupamentos de tradições e heranças históricas, chegadas com os protestantismos de imigração e missão, que pensam seus desafios de forma estritamente analítica e constroem uma visão de mundo que acaba por excluir a cidade. De todas as maneiras, devemos entender que quando realçamos a globalidade tendemos a nos perguntar: mas podem as urbanidades não ser partes da globalidade? Ora, tal questionamento surge quando se pensa apenas a relação globalidade/urbanidade em termos de grande/pequeno, forte/fraco, civilizado/nativo. A noção de globalidade refere-se à universalidade em sua plenitude, mas não é a única dimensão da expressão evangélica.

Já os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo antitotalizante, ao enfrentaram a questão globalidade/urbanidade não colocam a globalidade no centro da discussão. Ao contrário, dão importância ao fato de que as cidades brasileiras na alta modernidade se transformaram e continuam a se transformar em espaços de conquista capitalista. Por isso, se voltam para as culturas regionais. Só que as expressões urbanas, locais e regionais também se tornam cada vez mais globais. De certa maneira, o fundamentalismo antitotalizante nega a globalidade em seu sentido primeiro, como processo autônomo, e por sensibilizar que a principal dinâmica da globalidade envolve um processo de urbanização, privilegia o espaço urbano com suas possibilidades e desafios.

Ora, o fundamentalismo evangélico brasileiro é capitalista e urbano, o que facilita a emergência de movimentos que buscam o significado imediato das cidades e procuram ressignificações globais para as questões enfrentadas por seus membros. A globalidade das cidades remete à busca global por soluções localizadas. Tal busca leva aos cultos contextualizados, às necessidades dos estratos sociais marginalizados e à proposta de reconstrução da vida. Tal compreensão, nesse tipo de fundamentalismo, repousa sobre a procura da pessoa urbana por respostas atávicas à globalidade. Essas respostas atávicas expressam atitudes antitotalizantes.

Para o fundamentalismo antitotalizante o centro da teologia e da prática não é apenas a procura por funda­mentos, mas a correlação entre a busca por fundamentos e a comunidade, onde as crenças caminham pari passo com a saudade de algo que ficou para trás. Dessa maneira, o fundamentalismo antitotalizante trabalha com um sentimento de perda, de nostalgia. Mas, quando a procura por fundamentos é organizada em bases extra-urbanas a idéia de volta aos fundamentos reais fica problematizada.

A procura por fundamentos foi uma marca do protestantismo, mas na urbanidade brasileira aprofundou-se o conservadorismo fundamentalista, quer totalizante ou antitotalizante. Mas é preciso entender que tais fundamentalismos viabilizaram o movimento evangélico. Os evangelicalismos vivem numa urbanidade que é um espectro de diferenças entrecruzadas. Esta é a urbanidade onde os evangelicalismos funcionam, onde o aqui e agora não está mais isolado, nem está definido. Por isso, a herança do projeto político protestante tem fissuras e possibilita leituras sociais, como a apresentada pela teologia da missão integral, uma práxis evangélica que nasceu do diálogo com a teologia da libertação. Além disso, tal herança associa, de forma estranha, mas compreensível, a defesa tanto de fundamentos tota­lizantes como antitotalizantes.

Por mais que pareçam rudes ou grosseiras, algumas idéias devem ser realçadas na finalização desses três artigos sobre os mitos da religiosidade evangélica: (1) a pobreza não é ideal ético no Brasil evangélico; (2) é melhor ser banqueiro de Cristo do que “povero Francesco d'Assisi”; (3) no evangelicalismo não há santos, o que possibilita múltiplas compreensões e múltiplas atitudes; (4) líderes bem sucedidos – pastores, bispos e apóstolos – são confiáveis por serem exemplos do projeto político protestante e, por extensão, padrão para a comunidade.

As relações entre evangelicalismo, projeto protestante e urbanização nos ajudam a compreender alguns mitos da religiosidade evangélica. Expressões de inautenticidade são superficiais e não traduzem o fenômeno evangélico enquanto processo civilizatório. Quer queiramos ou não, o fato é que o evangelicalismo transformou-se em formador e dinamizador de um projeto capitalista. Esse fenômeno corre em trilhos próprios a pleno vapor.

Apesar dessa obsessão política capitalista no evangelicalismo, a esperança exorta à luta política a caminhar na direção de um futuro bom. A ação evangélica não-alienada deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, embora nunca se alcance uma existência isenta de ameaça. O princípio último da justiça é o reconhecimento concreto da dignidade do ser humano como pessoa e, em primeiro lugar, dos injustiçados ou ameaçados pela injustiça. Essa é a proposta militante de Paulo, o apóstolo, no capítulo doze de sua carta aos romanos, com trechos presentes nos intertítulos deste artigo. Esse é o desafio – correlacionadas unidade e diversidade --, construir um tempo de justiça, paz e alegria, que sobrepasse os limites do capitalismo, seja ele evangélico ou não.