samedi 16 mars 2013

Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro


Faculdade Teológica Batista de São Paulo

Seminário
Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro
Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Dias – sábados 16.03, 13.04, 18.05 e 08.06 de 2013
Horário: 8h30 às 12 horas e 13h00 às 16 horas

Textos para discussão no dia 16.03
Fonte: Jorge Pinheiro. Teologia humana, pra lá de humana. São Paulo, Fonte Editorial. 2010, pp. 96-101, 137-143, 147-153.


Dá para ver o caminho?

O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça.

A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, essa leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasce de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre os “trois petits cochons” da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nossos estudiosos se debruçam sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum um ponto de partida no mínimo questionável: a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia.

Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos séculos dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente.

Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis.

Depois que o pensamento marxiano entrou em crise, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente.

O que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser olhada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal.

Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista.

Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?

Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas.

Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Agora, no entanto, queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich, Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura, analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas. Mas também, aqui neste transposto, vamos caminhar com Orlando, que vencido por Medoro na luta pelo amor de Angélica, é tomado pela loucura, segundo relata Ludovico Ariosto (1474-1533) no poema épico Orlando Furioso, em tradução de Pedro Garcez Ghirardi.

Cansado cai, e aflito, no
relvado,
Fita os olhos nas nuvens, e
emudece.
Sem dormir, sem comer, fica
parado
Enquanto o sol três vezes
sobe e desce.

Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, busca do sentido da vida, e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu cerca de 250%, dados de 2009, nos últimos dez anos. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.

De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.

Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã diversificada, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/ evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.

A dor aguda o deixa
exasperado
E tanto vai crescendo, que o
enlouquece.

Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.

Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque protestantes foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de preconceitos, foram cúmplices de torturas e mortes.

Ao quarto dia, o furor dele
se apossa,
Couraça e malha em fúria
ele destroça.


Torre de névoa

Conheci Florbela, a poeta, em 1961. Fui apresentado por Clara Sílvia, uma amiga comum. A partir daí sempre conversamos. Três casamentos, duas tentativas de suicídio fracassadas e uma terceira bem sucedida, fez dela uma das primeiras amigas feministas. Apaixonada e erótica. E quando canta seus amores, reais ou não, às vezes, digo: acho que você está falando da minha tresloucada paulicéia. Ela não responde. Deixa que eu faça, liberto, minha viagem. Por causa dessas travessias, convidei Florbela para opinar neste texto. E ela aceitou.

A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia do catolicismo reformado como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.

No Brasil, a sociologia viu o movimento evangélico como fundamentalista, passou a ver apenas o seu lado integrista. É certo que o movimento evangélico é fundamentalista, e Antonio Gouvêa Mendonça explicou:

Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente”.

Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica.

O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos.

Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.

Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações.

O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias.

Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.

Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, do meu sonhar,
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: Que fantasia...

E o movimento evangélico montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe dêem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são fenômeno urbano.

E por não ter tal modernidade definições precisas e sólidas, o movimento evangélico urbano necessita um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descon­tentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano.

Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade.

Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/ evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento das igrejas protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos.

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu!

Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade.

Uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra o movimento evangélico em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. É o lado misterioso dela.

Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo da Bíblia, a liturgia nas igrejas e até mesmo os currículos de faculdades de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a igreja local contribua para a espiritualidade mundial.

O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.

A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam.

Tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os protestantismos e evangelicalismos urbanos pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de protestantismo urbano viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas.

A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformida­de. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uni­formidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização envolve simultaneamente globalidade e localidade.

É por isso que, quando falamos em evangelicalismo urbano, apontamos para a comunicação entre grupos, igrejas e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferen­ça autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar evangelicalismo e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões.

E Florbela completa:

Calaram-se os poetas, tristemente...
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao céu! ...


Onde está o chão?

Quando analisada a partir do princípio protestante, a situação proletária mostra que a miséria humana toca tanto o corpo como a alma. E a contracultura, por sua parte, lembra ao protestantismo que o dualismo platônico, idealista ou burguês, não tem correspondência nem com a mensagem bíblica, nem com a teologia. Por isso, Tillich disse que o protestantismo está livre para o materialismo proletário. Porém, no caso brasileiro, desde sua origem, com os mercadores ingleses e imigrantes alemães e norte-americanos, e depois com os missionários norte-americanos, o protestantismo sempre teve para o país um projeto político capitalista.

Com a teologia liberal, presente no Brasil nas primeiras décadas do século vinte, tal projeto político capitalista viu os Estados Unidos como modelo de um desenvolvimento que, no entanto, esbarrava na cultura católica, considerada cartorial. Por isso, no correr do século vinte, o catolicismo sempre foi olhado como força retrógrada, inimiga do progresso. Mas até os anos cinquenta, os protestantes não tiveram como enfrentar o catolicismo dominante.

Foi a cavalo do crescimento econômico a partir dos anos cinquenta, com o surgimento de novos setores sociais, de uma classe média e de um proletariado urbano modernos, que o protestantismo abandonou velhas maneiras de ser, virou evangelicalismo, movimento reformista, redentor, e cresceu entre as massas urbanas.

Nos vinte anos de ditadura militar, esses protestantes tiveram uma oportunidade política: foram reconhecidos como força religiosa emergente – e isso os militares conseguiram ver e aproveitar – e também futura força política. Tal realidade fez com que o evangelicalismo nascente levantasse como sua herança o projeto político capitalista. E foi esse projeto, agora evangélico, que sensibilizou e conquistou milhões de brasileiros. E, ao que tudo indica, vai continuar conquistando. Nesse sentido temos aqui um processo civilizatório calcado sobre uma antiga proposta, fazer do Brasil um país capitalista como os Estados Unidos dos anos cinquenta.

Os evangelicalismos urbanos estão à procura de fundamentos, numa busca por bases sólidas, mas não por um centro. Tal busca por fundamentos nem sempre é bem resolvida por causa das inter-relações sociais. Ou seja, os evangelicalismos, assim como outras religiosidades urbanas na alta modernidade, apresentam um forte grau de inautenticidade.

Claro que o evangelicalismo não é, por natureza, inautêntico em relação aos seus objetivos, porque tem por base o princípio protestante de luta pela justiça, mas muitas vezes chega próximo ao delírio na inautenticidade da experiência que oferece às pessoas. Por isso, o evangelicalismo globalizado, ou aquele de expressão local, solitário, é um espaço e tempo de produção da diferença, mas também de contínua produção da globalidade. Tal situação remete à urbanização global e à tendência de acomodação e de homogeneização do evangelicalismo.

A produção da diferença é um ingrediente essencial à urbanização, que está envolvida na múltipla variedade do evangelicalismo. Ao mesmo tempo, as micro-expressões evangélicas ocorrem no contexto das práticas protestantes globais. Assim, os evangelicalismos têm que se aco­modar à materialidade do mundo urbano com suas contingências e à multiculturalidade, inclusive para dar sentido às necessidades de seus fiéis.

É importante reconhecer os esforços do evangelicalismo em correlacionar o mundo global com o local. Isto porque o evangelicalismo em sua diversidade tem que responder às questões de suas micro-expressões dentro do contexto do interesse local, particular, mas também global. Assim, a questão do evangelicalismo urbano emer­giu com força significativa na vida brasileira nos últimos sessenta anos.

Uma primeira hipótese parte da abordagem da urbanização do evangelicalismo brasileiro a partir das generalizações empíricas referentes à crescente compressão do protestantismo em um campo global único. A segunda hipótese parte das idéias conceituais sobre os modos pelos quais os protestantismos deveriam ser mapeados em termos sociológicos. As duas compreensões estão relacionadas. No início da expansão evangélica urbana no Brasil, nos anos cinquenta, a questão da busca de sentido era central.

No final da década de 1970 teve início o ressurgi­mento dessa busca de sentido e vimos o fenômeno como ex­pressão de identidade social. Mas não notamos que essa busca por identidade social era também, e muito, busca por conquistas dentro da sociedade capitalista. Ao perder a noção da herança política protestante em solo brasileiro, enquanto ética do capital, se passou a ver a busca por fundamentos, analiticamente, apenas enquanto problema de particularidade do cenário global.

Mas a verdade é que a tradução do projeto político protestante na alta modernidade brasileira está a ser construída através de princípios que balizam a busca por fundamentos. Esses princípios se expressam como teológicos quando levantam o conceito da promessa de vitória dos escolhidos. Como econômicos, quando direcionam os crentes a um novo posicionamento no mercado produtivo, não mais como assalariados, mas como gestores. Como sociais, quando baseados em famílias mononucleares de alta performance, o que implica em rígido controle da natalidade e educação dirigida para um novo posicionamento na produção. E financeiros, onde dízimos e ofertas são vistos como investimentos que geram retornos materiais. Assim, é necessário analisar a construção glo­bal do fenômeno evangélico urbano e como se dá sua busca por fundamentos dentro do projeto capitalista protestante.

Quando analisamos a primeira hipótese, focamos a compressão espaço-temporal, que percebe a necessidade das cidades em expressarem suas iden­tidades através de propósitos internos e externos. Olhando dessa perspectiva, a busca evangélica por fundamentos é uma reação e não uma criação da globalidade. Mas, a partir da segunda hipótese, vemos que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral de globalidade.

Quando falamos de urbanização brasileira na alta modernidade estamos nos referindo aos caminhos específicos que as cidades tomaram nos últimos anos na construção de suas singularidades. Mas também que no processo geral da globalidade, as cidades brasileiras, por razões geográficas e por suas diferentes expressões de multibrasilidade, tenderam a um processo de diferenciação. Estes dois aspectos, no que se refere ao evangelicalismo urbano estimularam os fundamentalismos gerando dois tipos de vivências: a totalizan­te e a antitotalizante.

Os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo totalizante apresentam um empenho estratégico de ligar sua urbanidade à globalidade, sob a suposição de que suas teologias e doutrinas e mesmo suas expressões eclesiológicas possam ser mais bem resolvidas no reconhecimento de ser enclave de um contexto maior. Mas consideram que seus desafios só podem ser resolvidos ao nível urbano. Essa leitura se expressa principalmente naquelas entidades e mesmo agrupamentos de tradições e heranças históricas, chegadas com os protestantismos de imigração e missão, que pensam seus desafios de forma estritamente analítica e constroem uma visão de mundo que acaba por excluir a cidade. De todas as maneiras, devemos entender que quando realçamos a globalidade tendemos a nos perguntar: mas podem as urbanidades não ser partes da globalidade? Ora, tal questionamento surge quando se pensa apenas a relação globalidade/urbanidade em termos de grande/pequeno, forte/fraco, civilizado/nativo. A noção de globalidade refere-se à universalidade em sua plenitude, mas não é a única dimensão da expressão evangélica.

Já os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo antitotalizante, ao enfrentaram a questão globalidade/urbanidade não colocam a globalidade no centro da discussão. Ao contrário, dão importância ao fato de que as cidades brasileiras na alta modernidade se transformaram e continuam a se transformar em espaços de conquista capitalista. Por isso, se voltam para as culturas regionais. Só que as expressões urbanas, locais e regionais também se tornam cada vez mais globais. De certa maneira, o fundamentalismo antitotalizante nega a globalidade em seu sentido primeiro, como processo autônomo, e por sensibilizar que a principal dinâmica da globalidade envolve um processo de urbanização, privilegia o espaço urbano com suas possibilidades e desafios.

Ora, o fundamentalismo evangélico brasileiro é capitalista e urbano, o que facilita a emergência de movimentos que buscam o significado imediato das cidades e procuram ressignificações globais para as questões enfrentadas por seus membros. A globalidade das cidades remete à busca global por soluções localizadas. Tal busca leva aos cultos contextualizados, às necessidades dos estratos sociais marginalizados e à proposta de reconstrução da vida. Tal compreensão, nesse tipo de fundamentalismo, repousa sobre a procura da pessoa urbana por respostas atávicas à globalidade. Essas respostas atávicas expressam atitudes antitotalizantes.

Para o fundamentalismo antitotalizante o centro da teologia e da prática não é apenas a procura por funda­mentos, mas a correlação entre a busca por fundamentos e a comunidade, onde as crenças caminham pari passo com a saudade de algo que ficou para trás. Dessa maneira, o fundamentalismo antitotalizante trabalha com um sentimento de perda, de nostalgia. Mas, quando a procura por fundamentos é organizada em bases extra-urbanas a idéia de volta aos fundamentos reais fica problematizada.

A procura por fundamentos foi uma marca do protestantismo, mas na urbanidade brasileira aprofundou-se o conservadorismo fundamentalista, quer totalizante ou antitotalizante. Mas é preciso entender que tais fundamentalismos viabilizaram o movimento evangélico. Os evangelicalismos vivem numa urbanidade que é um espectro de diferenças entrecruzadas. Esta é a urbanidade onde os evangelicalismos funcionam, onde o aqui e agora não está mais isolado, nem está definido. Por isso, a herança do projeto político protestante tem fissuras e possibilita leituras sociais, como a apresentada pela teologia da missão integral, uma práxis evangélica que nasceu do diálogo com a teologia da libertação. Além disso, tal herança associa, de forma estranha, mas compreensível, a defesa tanto de fundamentos tota­lizantes como antitotalizantes.

Por mais que pareçam rudes ou grosseiras, algumas idéias devem ser realçadas na finalização desses três artigos sobre os mitos da religiosidade evangélica: (1) a pobreza não é ideal ético no Brasil evangélico; (2) é melhor ser banqueiro de Cristo do que “povero Francesco d'Assisi”; (3) no evangelicalismo não há santos, o que possibilita múltiplas compreensões e múltiplas atitudes; (4) líderes bem sucedidos – pastores, bispos e apóstolos – são confiáveis por serem exemplos do projeto político protestante e, por extensão, padrão para a comunidade.

As relações entre evangelicalismo, projeto protestante e urbanização nos ajudam a compreender alguns mitos da religiosidade evangélica. Expressões de inautenticidade são superficiais e não traduzem o fenômeno evangélico enquanto processo civilizatório. Quer queiramos ou não, o fato é que o evangelicalismo transformou-se em formador e dinamizador de um projeto capitalista. Esse fenômeno corre em trilhos próprios a pleno vapor.

Apesar dessa obsessão política capitalista no evangelicalismo, a esperança exorta à luta política a caminhar na direção de um futuro bom. A ação evangélica não-alienada deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, embora nunca se alcance uma existência isenta de ameaça. O princípio último da justiça é o reconhecimento concreto da dignidade do ser humano como pessoa e, em primeiro lugar, dos injustiçados ou ameaçados pela injustiça. Essa é a proposta militante de Paulo, o apóstolo, no capítulo doze de sua carta aos romanos, com trechos presentes nos intertítulos deste artigo. Esse é o desafio – correlacionadas unidade e diversidade --, construir um tempo de justiça, paz e alegria, que sobrepasse os limites do capitalismo, seja ele evangélico ou não.


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