mardi 11 novembre 2008

O século 21 -- parte I

A construção da Modernidade, numa leitura tillichina

Para Paul Tillich, o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social do que outras, pois tem por base uma ética calcada no amor, que possibilita um objetivo estável para os grandes desafios sociais: reunir o que está separado e mudar o que não deve ser. A separação toma diferentes formas através dos tempos, das relações e das circunstâncias. O amor deve, como conseqüência, partir da intuição criadora para superar a separação. Não pode se contentar com velhas receitas, deve imaginar sempre novas soluções. Não pode ficar preso aos mandamentos, as leis, as regras, e embora parta delas e seja inspirado por elas, deve modificá-las e atualizá-las em função das novas situações que se apresentam. A ética do amor leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social: faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político/econômico, e proclama a necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social.

O amor denuncia o egoísmo das economias que levam à expropriação de muitos em benefício de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo, e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas nega também a afirmação da luta de classes enquanto princípio e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e da exploração de setores profissionais por outros.

O amor condena também o egoísmo internacional da força e do comércio, que justifica a violência e a guerra sobre povos, nações e continentes. Assim, a ética do amor prega a submissão dos povos, sejam ricos ou pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades. Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico, afirma Tillich, diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, para ele, a partir do amor, vemos que o ser humano não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas e que, por isso, o objetivo da economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular e sim a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.

Rupturas econômicas e espirituais

Para Tillich, na história, uma ruptura espiritual vem sempre associada a uma ruptura econômica, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica. A alma dessa unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica. Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, para Tillich, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha: ou participa do processo, inspirando e atuando a favor desse desenvolvimento ou se retrai e entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido.

Em artigo publicado em Das neue Deutschland, em 1919, Tillich disse que o socialismo é o produto da evolução espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impõe com a Renascença, a Reforma e no surgimento do capitalismo. Visão que é compartida por teóricos marxistas, como Gramsci, por exemplo.

A filosofia da práxis pressupõe todo este passado cultural, o Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a revolução francesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção moderna da vida”.

Assim, o socialismo surge em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média, sedimenta suas bases nas criações culturais dos últimos séculos, e só pode ser compreendido a partir desta evolução: sua permanência está ligada a esse desenvolvimento. Mas não devemos esquecer, porém, que é do interior do cristianismo que brota o socialismo e aqueles que defendem o socialismo devem defender também os princípios sobre os quais ele repousa.

A organização espiritual e econômica da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que associava a natureza e o supranatural numa unidade poderosa. Ou, como diz Costa, não distinguia aparência de essência. Ela era a substância mesma do que significava viver. Foi o romanticismo de Rousseau, a educação burguesa e a invenção do “homem trabalhador” que reduziram a sociabilidade em dois domínios separados: um domínio afetivo, interpessoal, no qual podemos ser sinceros e honestos, e um domínio público, impessoal, no qual dissimulamos o que sentimos para melhor exercer a função de cidadão. Mas foi a Reforma, sustentada pela visão humanista que surgiu com a Renascença, que golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé para o plano formal ao recorrer à autoridade das Escrituras e no plano material valorizou a subjetividade da consciência individual. E a Revolução francesa, em 1789, propôs ao mundo um novo tipo de sociedade.

A França tornou-se o primeiro país da Europa a viver uma realidade político-social até então inédita, que transformaria de alto a baixo a vida da Igreja cristã. Na verdade, a Igreja já tinha vivido crises, como a da Reforma protestante, mas mesmo esta tinha acontecido no âmbito da consciência cristã. Agora, a partir da Revolução surgia uma sociedade que não tinha como fundamento as evidências ou afirmações de fé da Igreja. Ao contrário, a França e, por extensão, a Europa escolhiam o caminho oposto, da secularização, que tem por base o ideal triplo de liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse caso, a nova sociedade buscou uma razão cujos ideais aparentemente eram estranhos à revelação.

Apoiado formalmente sobre as Escrituras, o protestantismo eclesiástico engendrou novas contradições, mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos. Coube ao indivíduo decidir a que grupo ele queria ligar-se. Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento, transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu foi que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou o espírito autônomo nos mais variados campos: a consciência européia ocidental se tornou adulta, atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que os destroços do constrangimento autoritário.

Para Tillich, o pensamento cartesiano deu um golpe decisivo no autoritarismo eclesiástico ao afirmar que a certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. Embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, somente, que se enraiza a certeza. Assim, no século dezoito uma profunda mudança de mentalidade teve lugar na cultura européia, que foi dominada por um apaixonado desejo de felicidade, de confiança no progresso sem limites e em projetos para transformar o ser humano e a sociedade. Nesse processo, a autonomia da razão era olhada como fonte de tolerância e maturidade, e única norma para a liberdade. Tal mudança fixou aspirações e projetos, unidos ao sentimento de que o ser humano havia arrancado das mãos de Deus o conhecimento da natureza e a partir daí definiria a condução de seu próprio destino. E o Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica. Mas se o racionalismo levou ao Iluminismo, possibilitou também o surgimento de novos movimentos religiosos, como o pietismo, que surgiu na Europa continental. O pietismo levou a um novo interesse pelo estudo das Escrituras, pela ação e função do Espírito Santo, gerando um avivamento da igreja luterana na Morávia. Este avivamento alastrou-se pelo continente, pela Inglaterra e chegou aos Estados Unidos. O conde de Zinzendorf (1700-1760) e o teólogo August Spangensberg, assim como o pietismo morávio de conjunto, influenciaram John Wesley (1793-1791), fundador do Metodismo e um dos líderes do avivamento na Inglaterra. Assim, a partir do Iluminismo, no domínio espiritual, político, econômico, nada ficou de positivo que não fosse pensado, confrontado com a consciência pensante, medido e negado. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas autoridades estabelecidas. Lamentou-se a perda do sistema de autoridade ou festejou-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, deu-se o reconhecimento de que a vida cultural não pode ser pensada sem autonomia. Líderes e camponeses tiveram o mesmo sentimento, conquistar a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, fosse ele imanente ou transcendente. Esse é um fato fundamental que o cristianismo deve levar em conta.

Do lado positivo, a autonomia significou o reinado da razão. Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não via limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentava um sistema novo, racional. O pensamento moderno, que surgiu com o fim da Guerra dos Trinta Anos na Europa continental e da revolução puritana na Inglaterra, deu origem à filosofia racionalista, à ciência empírica e ao formalismo religioso. Este último, durante quase um século predominou no Velho Mundo e na jovem América.

Para entender o empirismo e o racionalismo é importante notar que a partir do final da Idade Média o conhecimento científico começou a desenvolver-se numa velocidade até então desconhecida. Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), Sir Isaac Newton (1642-1727), John Locke (1632-1704) foram cientistas e filósofos que mudaram a maneira do mundo pensar. Cada vez mais, o mundo buscava as razões naturais, compreensíveis à razão. O universo deixava de ser um desconhecido e tornava-se máquina movida por leis mensuráveis. Depois de séculos de arbítrio, os homens foram possuídos por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional.

Mas também a vida econômica deve ser formulada racionalmente. Assim, antes de Marx, Henri Saint-Simon, com seu trabalho Sisteme Industriel, apresentou pela primeira os princípios de uma teoria econômica que deveria pouco a pouco substituir a velha religião, pois não é o interesse de certos indivíduos ou povos que deve fazer a lei, mas é a humanidade inteira, que é sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deve fazê-lo a partir de critérios racionais. A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisa construir um mundo sem arbítrio. Eis um segundo fato que o cristianismo não pode esquecer. Mas, explica Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o pensamento histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas.

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Aqui, no entanto, devemos acrescentar, como o faz Jean Baudrillart, que “não é a ciência, nem mesmo é a técnica que são modernas, mas os efeitos da ciência e da técnica é que são”. E atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surge com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação alegre deste mundo, que durante muito tempo foi negado e rebaixado por um outro mundo, sombrio e místico.

Os outros mundos empalideceram diante da validade universal das leis da natureza, diante da beleza do real redescoberta na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza. É assim que a imanência ressoa no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se une à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. Este é o terceiro fato que o cristianismo deve levar em conta.

Notas
1. André Gounelle, “Une éthique sociale pour aujourd’hui?”, Montpellier : Institut Protestant de Théologie, Etudes Théologiques et Religieuses, ETR, 79o. ano, 2004/3, p. 355.
2. Paul Tillich, “Rapport au Consistoire” in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 154-160. “ Christentum und sozialismus, Bericht an das Konsistorium der Mark Brandenbourg ”, Impressionen und reflexionen, Gesammelte Werke, XIII, Evangelisches Verlagswerke Stuttgart, 1972, pp. 154-160. (p. 4).
3. A tradução francesa utiliza a expressão “économie de l’entreprise privée et du profit”. Paul Tillich, “Rapport au Consistoire” in Christianisme et socialisme, idem, op. cit., p. 4.
4. Paul Tillich, “Rapport au Consistoire” in Christianisme et socialisme, idem, op. cit., p. 5.
5. Paul Tillich, “Rapport au Consistoire” in Christianisme et socialisme, op. cit., p. 5.
6. Paul Tillich, “Christianisme e socialisme I”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 23-30. “Christentum und Sozialismus I”, Christentum und Soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerke Stuttgart, 1962, pp. 21-28. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
7. Hugues Portelli, Gramsci e a questão religiosa, São Paulo, Edições Paulinas, 1984, p. 188.
8. Paul Tillich, “Christianisme e socialisme I”, op.cit., p. 23.
9. Paul Tillich, “Christianisme e socialisme I”, op.cit., p. 24.
10. Jurandir Freire Costa, “O inferno de todos nós”, São Paulo, Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 02.05.1999, pp. 5-7.
11. Paul Valadier, Essais sur la modernité: Nietzsche et Marx, Paris, Cerf-Desclée, 1974, p. 35-37.
12. Gustave Martelet, Deux mille ans d’Église en question, du schisme d’Occident à Vatican II, Paris, Les Éditions du Cerf, 1990, p. 185-186.
13. Paul Tillich, “Christianisme e socialisme I”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 24. “Christentum und Sozialismus I”, Christentum und Soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp. 21-28. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
14. Gustave Martelet, Deux mille ans d’Église en question, du schisme d’Occident à Vatican II, op. cit., p. 185.
15. Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, Vida Nova, São Paulo, 1992, págs. 320-331.
16. Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op.cit., p. 24.
17. Earle E. Cairns, O Cristianismo Através dos Séculos, op. cit., pp. 330-331.
18. Paul Valadier, Essais sur la modernité: Nietzsche et Marx, Paris, Cerf-Desclée, 1974, p. 31.
19. Paul Tillich, “L’homme et l’État” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 478-479. “Mensch und Staat”, Impressionen und Reflexionen, Gesammelte Werke XIII, EvangelischesVerlagswerk Stuttgart, 1972, pp. 167-177. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
20. Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op.cit., p. 25.
21. Paul Tillich, On the boundary, An autobiographical sketch, New York, Charles Scribner´s Sons, 1966. Aux frontières, Esquisse autobiographique (1936), Entre l´idéalisme et le marxisme, Paris, Genebra, Quebec, Les Editions de Cerf, Editions Labor et Fides, Les Presses de l´Université Laval, 2002, p. 55.
22. Marc Boss, “Protestantisme et modernité: résonances troeltschiennes des premiers écrits socialistes de Tillich (1919-1920)”, in A Dumais e J. Richard, ed., Ernst Troeltsch et Paul Tillich, pour une nouvelle synthèse du christianisme avec la culture de notre temps, Les Presses de l’Université Laval e L’Harmattan, p. 95-96.
23. Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op.cit, p. 25.
24. Aqui devemos acrescentar, como o faz Jean Baudrillart, que “não é a ciência, nem mesmo é a técnica que são modernas, mas os efeitos da ciência e da técnica é que são”. Paul Valadier, Essais sur la modernité: Nietzsche et Marx, Paris, Cerf-Desclée, 1974, pp. 15 e 31.
25. Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op. cit., p. 25.
26. Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op. cit., p. 25.
27. Marc Boss, “Protestantisme et modernité: résonances troeltschiennes des premiers écrits socialistes de Tillich (1919-1920)”, op. cit., pp. 93-94.
28. Paul Tillich, “Christianisme et Socialisme I”, op. cit., p. 26.