mercredi 23 décembre 2015

Católicos e protestantes repensam a revolução (III)

Católicos e protestantes repensam a revolução -- terceira parte
Jorge Pinheiro, PhD


Assim para o bispo, a história da catolicidade é passível de críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação potencializou o distanciamento entre o cristianismo e o socialismo. Mas, segundo Paul Tillich, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão[1]. 

Assim, a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base possibilitaram, no contexto brasileiro, o diálogo e a aproximação necessários ao partido em construção. E os socialistas aprenderam a entender as contradições da hierarquia e a fazer alianças com os católicos:

Qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história. (...) Se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.[2]

Não somente a lutar juntos, a novidade é que começaram a pensar juntos, a pensar a catolicidade com seus acertos e desacertos. 

(...) se analisarmos o caminho da Igreja através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico, desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l931, até o discurso do Papa João Paulo II em Monterrey, na sua chegada ao continente para a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da Igreja chegou, não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices com as classes dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um plebiscito para a “teologia da libertação”, falharam totalmente. Há, sem dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento direto com as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México sabe que as decisões do Medellín foram demasiadamente profundas para serem abolidas por um ato de vontade. [3]

As contradições existiam, mas a questão era: será possível contar com um setor do catolicismo nesta construção de um partido de trabalhadores? Paulo J. Krischke, na época exilado brasileiro que lecionava na Universidade Autônoma do México e era integrante do Latin American Research Unit, respondeu à pergunta mostrando que os socialistas não podiam descartar a possibilidade de que setores da hierarquia tentassem despolitizar as bases da igreja e esvaziar o projeto das CEBS.

(...) na medida em que o período atual de transição e conflitos abertos com o governo tiver sido superado. Porém, se tal superação realmente se concretizar, com a “volta dos militares aos quartéis, dificilmente se poderia exigir das bases da igreja mobilizadas politicamente, uma “volta dos cristãos à Igreja”, ou seja, unicamente para suas atividades religiosas... Como vimos em Gramsci, “uma concepção ativa do mundo” (ao contrário do fanatismo sectário de uma doutrina de segurança nacional) conduz necessariamente a uma expressão partidária e ao questionamento do poder, sempre que seja essa uma “religião historicamente necessária”, quer dizer, que corresponda ao desenvolvimento orgânico da sociedade. Além disso, o exercício das atividades internas da igreja não é incompatível com sua expressão exterior face a uma prática política pluralista. Antes (...) elas se reforçam mutuamente. Já vai longe o tempo em que a igreja podia aspirar a uma unidade monolítica, ou ao controle disciplinar da maioria da instituição eclesiástica. Assim, o surgimento de setores religiosos sensibilizados politicamente gera um potencial de atuação partidária, que pode ser canalizado tanto por orientações de esquerda, como de direita ou de centro, porém, principalmente por tendências terceiristas ou centristas, dadas as características da ideologia social-cristã e sua forte penetração recente entre a liderança e as bases da Igreja.[4]

Assim, socialistas e políticos de esquerda aprenderam a acompanhar com atenção o movimento pendular da hierarquia católica. Em análise de conjuntura no jornal Versus, escrevemos sobre a possibilidade de que a Igreja viesse a apoiar o novo partido, pois cada vez mais se distanciava da idéia de construir um partido democrata-cristão. 

(...) até agora os cardeais e bispos brasileiros têm-se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional, naqueles lugares onde a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram cai também o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida.[5]

Dessa maneira, a teologia e sua práxis passaram a fazer parte das discussões da esquerda, que viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhe faltava, meios de chegar às massas empobrecidas do país. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que a massa de trabalhadores sindicalizados era católica e tinha ligações com as CEBs. Tais realidades eram indiscutíveis e possibilitaram não somente um diálogo entre católicos, uma minoria protestante, os sindicatos e as esquerdas, mas ações e mobilizações conjuntas que caminharam em direção à criação de um partido de classe. 


Notas

[1] Paul Tillich, “Rapport au Consistoire in Christianisme et socialisme”, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp.3-8. 
[2] Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., pp.14-15 
[3] Vanderlei José Maria, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 14. 
[4] Paulo J. Krischke, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 15. 
[5] Jorge Pinheiro, “O príncipe do rancho”, São Paulo, Versus no 33, 06.1979, pp. 28-32.