mardi 8 décembre 2015

A igreja diante da revolução social -- segunda parte

A igreja diante da revolução social -- segunda parte
Jorge Pinheiro, PhD


Do lado protestante, o século XIX foi um século inglês. A Inglaterra era o berço da revolução industrial, Londres possuía o centro financeiro mais importante do Ocidente, o comércio britânico rodeava a Terra e a marinha britânica dominava os mares. Os protestantes ingleses estavam reunidos na igreja oficial, a anglicana, mas também em denominações não-conformistas, como a metodista, a batista, a congregacionalista e algumas menores. Mas havia o temor de que aquele tempo de prosperidade e liberdade fosse engolfado em dias como os da Revolução francesa. Assim, o medo e a esperança, que se misturavam, levaram a sociedade inglesa, através de suas igrejas e sociedades religiosas, a encarar a questão social como um desafio para os cristãos.

E foi assim que dois movimentos marcaram a Inglaterra: a campanha contra a escravidão, que começou em 1789, com um discurso de William Wilberforce na Câmara dos Comuns, e as campanhas pelas reformas trabalhistas, que desembocaram no movimento social cristão. Em 23 de fevereiro de 1807, o tráfico de escravos foi interrompido, graças à intensa militância cristã e política de Wilberforce. A partir desse momento, as campanhas abolicionistas foram lideradas por outro ativista, Thomas Fowell Buxton. Ambos, Wilberforce e Buxton pertenciam a um pequeno grupo protestante surgido na paróquia de Clapham, vilarejo distante oito quilômetros de Londres. 

Assim, a comunidade de Clapham, aliada a grupos não-conformistas, e através da publicação de literatura, realização de palestras e mobilizações de rua, foi responsável por algumas das cruzadas sociais mais importantes da Inglaterra.[1] E em 25 de julho de 1833, o Ato de Emancipação libertou os escravos em todo o império britânico. O significado dessa ação repercutiu em todo o mundo, inclusive no Império brasileiro, estrategicamente ligado à Inglaterra. Da mesma maneira, as reformas trabalhistas mobilizaram outros intelectuais protestantes vindos do anglicanismo, como John Malcolm Ludlow (1821-1891), Charles Kingsley (1819-1875) e Thomas Hughes (1822-1896), que lutaram pelo fim da escravidão, contra o trabalho infantil nas fábricas e pela jornada de dez horas. Essas mobilizações levaram a uma ampla reforma social e ao surgimento do movimento social cristão inglês. 

Foi como reação ao socialismo anticlerical de Robert Owen e ao cartismo, que os protestantes deram início ao seu movimento social. Homens como Ludlow, Kingsley, Maurice e Hughes deram origem ao socialismo cristão na Inglaterra. Dessa maneira, afirmou Maurice: “A necessidade de uma reforma teológica inglesa, como meio de evitar uma revolução política e de trazer o que de bom existisse nas revoluções estrangeiras para se conhecer a si própria, tem estado cada vez mais impresso no meu pensamento. [2]

Nos Estados Unidos, apesar da visão escravagista de muitos religiosos, como Richard Furman, líder batista da Carolina do Sul, que, de certa forma, traduzia o sentimento generalizado entre os grandes fazendeiros sulistas, no norte surgiu um forte movimento evangélico contra a escravidão. Seu primeiro grande ativista foi Charles G. Finney, seguido por abolicionistas como Theodore Weld e Lymann Beecher. 

Mas um romance marcará a campanha abolicionista e entrará para a história da literatura mundial: A Cabana do pai Tomás, de Harriet Stowe. Numa leitura escatológica milenarista, Harriet Stowe, considerava que a escravidão não era apenas um pecado do sul, mas que a culpa era nacional e, por isso, o juízo seria nacional. No livro atacava a consciência nacional escravagista na esperança de que uma purificação da alma dos Estados Unidos livrasse o corpo político da vingança divina.[3] 

Veio a guerra e, com a vitória do norte, a abolição da escravatura. Finda a escravidão, a discussão sobre a industrialização do país e os danos humanos, misérias e exclusão que produzia entraram na ordem do dia. Surgiram assim os “protestantes públicos” que, ao contrário dos “privatistas”, falavam de cristianismo social, evangelho social, serviço social. Expoentes desse pensamento foram Washington Gladden, ministro congregacional de Ohio, o escritor Charles Sheldon, que escreveu uma obra até hoje famosa, Em Seus Passos Que Faria Jesus?, e o pastor batista Walter Rauschenbusch.

Rauschenbush (1861-1918) era de origem alemã. Levantou a questão do evangelho social, a partir de uma leitura que combinava a doutrina bíblica da responsabilidade social e os socialistas utópicos. Defendeu uma democracia econômica e política e propôs uma atuação através dos sindicatos.

Nossa economia política tem sido por muito tempo o oráculo de um deus falso. Ensinaram-nos a ver as questões econômicas do ponto da vista dos bens e não do homem. Disseram-nos como a riqueza é produzida e dividida e consumida pelo homem, e não como a vida e o desenvolvimento do homem podem melhorar e serem promovidos pela riqueza material. É significativo que a discussão do consumo da riqueza esteja negligenciada na economia política, contudo a questão humana é a mais importante de todas. 

 A teologia deve ser cristocêntrica, mas a economia política deve tornar-se antropocêntrica. O homem é cristianizado quando põe Deus acima de si próprio, a economia política será cristianizada quando colocar o homem acima da riqueza. É isso que uma economia política socialista faz.[4]

Nada dará a classe trabalhadora uma compreensão real de seu status de classe e de seu objetivo final do que a luta permanente para conquistar suas reivindicações mínimas e para eliminar as pressões reacionárias contra seus sindicatos. Nós partimos do princípio de que uma organização fraternal da sociedade não terá força se for apoiada apenas por idealistas. Ela (a organização fraternal da sociedade) necessita da sustentação firme da classe trabalhadora, cujo futuro econômico depende do sucesso desse ideal. 

A classe trabalhadora industrial é, consciente ou inconscientemente, a força para a realização desse princípio. Assim, aqueles que desejam a vitória, desde um ponto de vista religioso, terão que fazer uma aliança com a classe trabalhadora. Mas o princípio protestante da liberdade religiosa e o princípio democrático da liberdade política levam à vitória através da aliança da classe média, que também deseja a conquista do poder, com a classe trabalhadora; dessa maneira, o novo princípio cristão, que busca uma organização fraternal da sociedade, deve aliar-se para a conquista que ambos querem. [5]

A leitura da questão social como prioridade da igreja também levou os protestantes à cooperação interdenominacional, assim como à formação de associações não denominacionais. As Associações Cristãs de Moços (1851) e a Christian Endeavor Society (1881) procuraram dar à juventude uma formação ética, social e religiosa. Sob a coordenação de Dwight Moody, um “protestannte privatista”, surgiu em 1886 o Student Volunteer Movement, que tinha como finalidade recrutar jovens para o trabalho missionário, e que estava ligado a um organismo interdenominacional dirigido por John R. Mott (1865-1955). 

Nessa mesma época, começou a surgir um movimento ecumênico entre as igrejas históricas norte-americanas: Samuel S. Schmucker (1799-1873) escreveu Apelo Fraternal às Igrejas Americanas e, mais tarde, foi fundado o Federal Council of the Churches of Christ in America. 


Notas

[1] Bruce L. Shelley, História do cristianismo, São Paulo. Shedd Publicações, 2004, pp. 409-413. 
[2] Vidler, A Igreja Numa Era de Revolução, op. cit., p. 97. 
[3] Bruce L. Shelley, História do cristianismo, op. cit., pp. 435-437. 
[4] Walter Rauschenbusch, Christianity and the social crisis, Nova York/Londres, The Macmillan Company, 1910, p. 371. Trad. Jorge Pinheiro. 
[5] Walter Rauschenbusch, Christianity and the social crisis, op. cit., p. 409. Trad. Jorge Pinheiro.

Apocalíptica e sabedoria grega

Espreguiçando a manhã 
com um pouco de apocalíptica 
Jorge Pinheiro, PhD


O ponto de contato mais importante entre a literatura apocalíptica e a sabedoria grega é a idéia de uma ordem cósmica predeterminada. Anteriormente, a idéia de inacessibilidade levou, por exemplo, o Eclesiastes a falar sobre a ilusão do esforço humano. A literatura apocalíptica, no entanto, apresenta uma linguagem imagológica amarrada e uma virtualidade bem encadeada. 

A preocupação do escritor apocalíptico com o definitivo não se limita à virtualidade. O poder do Eterno não pode ser limitado pela morte, de modo que a escatologia é virtualidade existencializada. Assim, Daniel refere-se existencialmente à ressurreição dos mortos: “alguns para a vida eterna, outros para a vergonha e desprezo eternos” (Dn 12.2). No final dos dias, os justos “que dormem no pó da terra” retornarão para “brilhar como as luminárias do firmamento... como estrelas, para todo o sempre” (Dn 12.3). 

É no período helenico que a idéia da ressurreição toma corpo, e se transforma numa idéia-força do judaísmo popular. A fé na ressurreição aparece de forma clara em 2Macabeus 7.9 e 14.46 e é o fundo do relato do martírio dos sete irmãos (I2Mc.7.11, 14, 23, 29 e 36). Antes, só tínhamos no Antigo Testamento dois versículos que falavam da ressurreição (Is 26.19 e Jó 19.26s). 

Outras obras importantes que fazem parte da literatura apocalíptica são os livros de Enoque, 2Esdras e Baruch. Enoque é uma edição de vários fragmentos, da qual certas partes podem até ser anteriores a Daniel. No correr do livro, o narrador Enoque (Gn 5.21-24) descreve suas visitas aos extremos da terra e sua ascensão aos palácios celestiais. O livro inclui um tratado sobre astronomia, poemas sobre o destino derradeiro do justo e do pecador, e uma seção chamada Similitudes, referente ao eleito ou Filho do Homem, que será mandado pelo Eterno nos últimos dias para julgar a humanidade. 

Em 2Esdras, o narrador sente-se perplexo ante as calamidades que recaem sobre Israel, o aparente abandono em que o Senhor deixa seu povo amado e pergunta por que tão poucos merecerão a vida eterna. Um anjo dá a Esdras conta do significado da história e seu fim, instruindo para que escreva e esconda “setenta livros” que consolarão os que viverem antes dos últimos dias. 

Baruch, de quem se diz ter sido escriba de Jeremias, trata de questões similares. Contém uma oração de confissão e de esperança, um poema sapiencial, no qual a sabedoria é identificada com a Lei, um trecho profético, onde Jerusalém personificada se dirige aos judeus da diáspora e onde o profeta a encoraja com a evocação das esperanças messiânicas. A importância dessa coleção de textos sob o nome de Baruch é nos levar às comunidades da diáspora e de nos mostrar como a vida religiosa também lá, distante, estava relacionada com Jerusalém, pela oração, pelo culto à Lei, pelas promessas proféticas e pelo espírito messiânico. 

Assim, a partir dos diferentes textos apocalípticos analisados podemos definir os elementos formais desse gênero de literatura: 

(1) Uso de pseudônimo. É um contemporâneo dos seus primeiros leitores, mas fala como se fosse um personagem antigo. É o que se vê no livro de Daniel. No Apocalipse de João é um anjo quem revela. 

(2) Caráter reservado. As revelações foram comunicadas ao personagem da Antiguidade; que deviam, porém, ficar em segredo até os dias do fim. Veja-se, por exemplo, Dn 8.26 e 12.9. 

(3) Presença de anjos. Estes aparecem, nos apocalipses, ora como ministros de Deus que colaboram com a Providência Divina na dispensação da salvação aos seres humanos, ora como intérpretes das visões ou revelações que o autor do livro descreve. Cf. Ez 40.3; Zc 2.1s; 2.5-9; 5.1-4; 6.1-8; Ap 7.1-3; 8.1-13. 

(4) Forte imagologia. Animais podem significar homens e povos; feras e aves representam geralmente as nações pagãs; os anjos bons são descritos como se fossem homens, e os maus como estrelas caídas. O recurso aos números é frequente, explorando-se então o simbolismo dos mesmos -- 3, 7, 10, 12, 1000 como imagens de bonança; 3 ½, como imagem de penúria e tribulação. É a exuberância da imagologia dos apocalipses que torna difícil a compreensão dos mesmos. O leitor analisar essa imagologia a partir de passagens bíblicas e extrabíblicas paralelas. Há imagens que se repetem com a mesma significação: gafanhotos, águias, cedro, três anos e meio, mil anos. Os autores de apocalipses estão livres ao construir virtualidades a partir de imagens, visões e personificações: propõem tais virtualidades sem se preocupar com a realidade em que vivemos. Exemplo é Jerusalém nova em Ez 47.1-12 e Ap 21.1-7. (5) Forte escatologia. Os apocalipses se referem a tempos finais virtuais e os descrevem apresentando a intervenção do Eterno em meio a um cenário cósmico, o julgamento dos povos, o abalo da natureza, a punição dos maus e a exaltação dos bons, estando reservado para Israel nesse contexto um papel de relevo e recompensa. 

Na literarura apocaliptìca a razão ética perde força a favor do discurso existencial. O que preocupa João, por exemplo, é a fidelidade, que deve nascer da esperança escatológica. E as duas idéias que revolucionaram o judaísmo: a recompensa apresentada na ressurreição[1] e a restauração da justiça, apresentada na figura do Messias, fundamentarão o Apocalipse joanino.[2]

Vejamos agora como a preocupação existencial do pensamento helênico se fez presente no livro de Eclesiastes, no capítulo 15 de Romanos e no Apocalipse de João. 


Notas

[1] 2Macabeus 7; Daniel 12:2-3; Escrito de Damasco 4:4. 
[2] ”O Espírito Santo desceu sobre o seu Messias”. 2 Q 287 3:13. “Céu e terra pertencerão ao meu Messias (...) e tudo o que neles há. Ele não se afastará dos mandamentos dos santos (linha 6) e o seu Espírito estará sobre os humildes e os crentes serão fortalecidos por seu poder”. 4 Q 521 (fragmento 1, coluna 2). “O Messias da justiça, o rebento de Davi”. 4 Q 252. “Assim ele (Deus) o glorificou, quando tu te santificaste para ele, quando ele te tornou um santo dos santos (...) ele decidiu sobre o teu destino e em muito multiplicou a tua glória, e te tornou primogênito para ele eternamente”. 4 Q 416 1:4-5. In Berger, Klaus, op. cit., pp. 90-92, 96-97.