jeudi 31 janvier 2008

Materialismo histórico, fé e Deus

Este texto do Molotov, blog do PSTU, foi recomendado por um companheiro trotskista. É um texto apologético que discute materialismo histórico, fé e Deus. É muito interessante: recomendo a leitura.

"Mas sejam quais forem as circunstâncias da minha morte, morrerei com fé inabalável no futuro comunista da humanidade" (Leon Trotsky).

A fé é um fenômeno tipicamente humano. Quase todos os seres humanos manifestam fé em algo. Leon Trotsky, por exemplo, na frase citada acima, afirma sua "fé inabalável" no futuro comunista da humanidade. Outras pessoas têm outras fés, diferentes (e não necessariamente incompatíveis com essa fé de Trotsky).

De onde Trotsky tirou sua "fé inabalável" no futuro comunista da humanidade? Quem podia lhe garantir que o futuro da humanidade não será a barbárie (como expresso na célebre dicotomia de Rosa Luxemburgo: "Socialismo ou barbárie"), quem podia lhe garantir que o comunismo triunfará? Nada, nem ninguém, poderia. Mesmo assim, Trotsky tinha não apenas fé, mas fé inabalável, em um futuro comunista.

Algumas polêmicas podem então ser suscitadas quando os ateus proclamam a sua crença na não existência de Deus como sendo a "Verdade". Em primeiro lugar, existe uma grande diferença entre não aceitar as religiões oficiais estabelecidas (como o catolicismo ou o luteranismo) e ser ateu. Vejamos alguns exemplos:

O próprio Charles Darwin, criador da Teoria da Seleção Natural, morreu sem nunca se afirmar ateu. Nos últimos anos de sua vida, dizia-se agnóstico, e polemizava com os que queriam impor o ateísmo (como polemizou com o marxista Edward Aveling, esposo de Eleanor Marx).

Um dos maiores físicos de todos os tempos, pai da Teoria da Relatividade, o socialista Albert Einstein, não era ateu, e expressou em diversas oportunidades sua religiosidade. A mais célebre talvez tenha sido na sua conhecida frase "Deus não joga dados". Mas essa não foi a única ocasião. Certa vez afirmou: “a ciência sem a religião é manca; a religião sem a ciência é cega” O fato de Einstein não professar nenhuma religião oficial nunca o tornou um ateu.

Einstein não acreditava em um Deus personalizado, mas se irritava quando insistiam em lhe imputar a pecha de ateu. Einstein sempre estabeleceu uma distinção nítida entre sua descrença num Deus pessoal, de um lado, e o ateísmo, de outro. Num texto em que comentava um livro que negava a existência de Deus, Einstein disse: “Nós, seguidores de Espinosa, vemos nosso Deus na maravilhosa ordem e submissão às leis de tudo o que existe, e também na alma disso, tal como se revela nos seres humanos e nos animais." Em seu ensaio "Religião e Ciência", de 1930, Einstein definiu o que chamava de "três estágios de desenvolvimento" da religião. O terceiro estágio, que considerava o mais avançado, ele chamou de “sentimento religioso cósmico”.

A crença de Einstein talvez seja reflexo da percepção mais moderna, do século XX, que tinha do Universo e da matéria (ele mais do que ninguém, como pai da Relatividade). A visão que se tinha da matéria no século XIX, nos tempos em que Marx escreveu (obviamente condicionado por sua época), era uma visão bastante limitada, e bem menos refinada do que a visão que foi-se desenvolvendo no decorrer do século XX.

O próprio materialismo histórico de Marx distinguia-se do materialismo vulgar de Feuerbach. Marx, pessoalmente, era um ateu, porém sua maior contribuição teórica, o materialismo histórico, é uma Teoria da História, cuja preocupação central é explicar a evolução da história humana através do prisma da luta de classes. Não se tratava de uma mera filosofia da matéria, como o materialismo vulgar, cuja maior preocupação era afirmar a "matéria" como sendo tudo o que existe, e negar a existência de qualquer evento ou Ser extra-material (incluindo Deus).

A própria concepção de matéria da época de Marx sofreu inúmeros impactos posteriores. No tempo de Marx, o átomo, unidade fundamental da matéria, ainda era visto como uma bolinha indivisível, e seus componentes como prótons, nêutrons e elétrons ainda não haviam sido descobertos. No decorrer do século XX, responder a pergunta: "O que é a matéria" tornou-se algo cada vez mais complexo. Einstein descobriu que E=mc² (a correspondência entre matéria e energia). Os prótons e nêutrons foram cada vez mais subdivididos em novas partículas subatômicas descobertas, surgindo toda uma "fauna" de múons, glúons, quarks, e outras partículas até hoje não inteiramente compreendidas pelos cientistas. Descobriu-se que a luz, misteriosamente, as vezes se comporta como onda eletro-magnética, e as vezes como partícula (o famoso fóton). A força da gravidade continua um mistério, e ainda não há provas irrefutáveis da existência de uma partícula chamada gráviton, que permanece na especulação.

Se é tão difícil afirmar o que é a matéria, como os "materialistas" de nosso tempo podem afirmar com tanta certeza que tudo o que existe é a matéria, e não existem seres imateriais (incluindo o Criador)? Como podem cultuar o seu "deus matéria" sem sequer explicar do que ele é feito?

Não seria mais prudente, e mais plural e democrático, manter o materialismo histórico como aquilo que ele é, uma Teoria da História, baseada na luta de classes?

* Este texto é de autoria de Iskra, em um debate democrático com os defensores do ateísmo. O autor é materialista-histórico (em sua concepção da História humana), mas não é materialista (em sentido feuerbachiano), e acredita em Deus

Site: Molotov/ blog do PSTU. 
WEB: http://blogmolotov.blogspot.com/2007/05/questo-de-f.html

mardi 15 janvier 2008

Elementos para uma antropologia

Prof. Dr. Jorge Pinheiro
Façamos o ser humano segundo a nossa imagem, semelhante a nós”. Gn 1.26

Toda a criação de Deus é o mundo do ser humano: assim afirmam os dois relatos da criação e o Salmo 8. Mas em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus confere ao ser humano essa correspondência? O livro de Gênesis e o Salmo 8 nos dão elementos para a construção de uma antropologia:

[1] Em primeiro lugar o ser humano é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento sublime, especial, como um ser que coroa toda a ação criadora de Deus (Sl 8.6). Ele recebe responsabilidade (Gn 2.15-17) e poder de decisão (2.18-23).

[2] Em segundo lugar, Deus explica porque decidiu criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação (1.26). Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de trabalho, produção e administração (2.15,16 e 19). O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus.

[3] Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que o ser humano mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe sutil: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação.

[4] Mas imagem de Deus traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

[5] Esse ser humano de que fala Gênesis 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Assim, estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos seres humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade.

Da mesma maneira, em Gn 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por homens e mulheres. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gn 1.27b, de uma humanidade formada por gêneros, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”. Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico aprofunde-se em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se e complementando-se.

Se toda a criação de Deus é o mundo do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar.

E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através dessa necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres.

O afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza.

Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Colossenses 1.15 cf. 2Co 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações”. (Mateus 28.18 e seguintes).