jeudi 14 juin 2012

Educação teológica para o século XXI

Primeira parte

A educação moral é impossível sem uma visão de grandeza. Se não somos grandes, pouco importa o que fazemos e o sentido da grandeza é uma intuição imediata e não a conclusão de uma argumentação lógica. Por isso precisamos criar um Brasil e não ensiná-lo”. Décio Pignatari (1)

Tenho recebido de alunos e professores de Teologia, de diferentes regiões do Brasil, questionamentos sobre como seminários e faculdades de teologia devem encarar o desafio de formar profissionais contextualizados à realidade brasileira. Ou seja, como construir uma teobrás? Diante disso, decidi escrever um artigo, dividido em duas partes, apresentando algumas ideias sobre a questão.

A faculdade de teologia que funciona enquanto realidade isolada não entendeu uma das exigências da alta modernidade: o ensino que não se integra na vida real, em sentido horizontal e também vertical, não é motivador, abandonou o fator experiência. Por isso, o estudo da realidade brasileira e a riqueza do multiculturalismo das brasilidades precisam chegar às salas de aula. Da mesma maneira, não podemos esquecer a mediação da emoção na produção dessa correlação entre as teologias e as brasilidades.

Hoje, o desafio da educação teológica nasce da correlação entre educação clássica e educação profissional. Como bem observou Gramsci (2), em relação à escola italiana de sua época, podemos dizer que o Brasil vive a dicotomia entre uma educação clássica, que forma pensadores, e uma educação profissional, que forma instrumentalizadores. Assim, é normal ver defensores de educações teológicas com posições diametralmente opostas.
Acreditamos que essa discussão tem solução quando entendemos que o profissional de teologia deve ser formado para a sociedade e não somente para a igreja local. É nesse sentido que educação clássica e educação profissional se combinam e remetem ao desafio de um currículo teológico unitário. E quando falamos em currículo unitário, falamos da construção de currículos que valorizam espaços de reflexão, ensino e pesquisa sobre religião a partir das leituras teológicas cristãs. (3) Nesse sentido, um currículo unitário para a realidade brasileira vai além do quadrivium reformado: estudos bíblicos, históricos, sistemáticos e práticos.

Segundo Mendonça (4), tal currículo unitário teria de atender áreas distintas, mas complementares, como dogmática e pastoral, tradição cristã geral e ciências de apoio. A primeira atenderia às necessidades e objetivos profissionalizantes; a segunda ofereceria aos estudantes os elementos básicos do depositum fidei comum ao cristianismo; e a última consistiria nas disciplinas da cultura científica geral, cujo fim principal seria o de proporcionar aos estudantes o contato com a metodologia científica.

Mas a relação entre currículo e planejamento é estreita e, por isso, o planejamento, enquanto organização, diálogo crítico e ética que possibilita a interdisciplinaridade, não pode ser esquecido. E se o currículo é documento de identidade que define o percurso, está prenhe de uma dimensão política: influencia, cria padrões, elabora material e direciona alunos e professores no desenvolvimento das atividades docentes e discentes. (5) Nesse sentido, a partir de Mendonça, constatamos que se o objetivo é formar pensadores e profissionais, o currículo deve levar em conta os fenômenos referentes ao campo religioso e correlacioná-los com as teologias cristãs. Ou seja, somos desafiados a reconstruir com nossos alunos o processo histórico que deu origem às teologias protestantes, que desde o início estiveram ligadas às filosofias e à cultura modernas.

E somos obrigados, por imposição da contemporaneidade, a refazer anos de História, quando o pensamento protestante deu continuidade a sua tradição de origem, tornando o pensamento filosófico alemão hegemônico nas universidades da Europa protestante, no direcionamento das ciências históricas e da pesquisa bíblica. Essa reconstrução atravessou o século dezenove até o início do século vinte, quando as teologias, calcadas no Iluminismo e no humanismo, marcaram o pensamento europeu da época, embora depois da Primeira Guerra Mundial tenham descoberto caminhos novos. Assim, as correntes teológicas contemporâneas devem ser estudadas a partir das raízes filosóficas e culturais da Modernidade, para então se entrar na leitura dos principais teólogos do século vinte.

Mas de onde partir? Sem dúvida, das origens das teologias cristãs, que estão presentes no pensamento dos pais do deserto e na Patrística, e do acesso às línguas originais dessa produção cristã, ou seja, do grego e do latim. E por que? Porque a Patrística é a filosofia cristã que fundamentou as doutrinas da fé cristã. Mas o estudo da Patrística deve nos remeter também ao pensamento divergente, que apresentou à igreja cristã de conjunto, desde seus primórdios, hermenêuticas que caminhavam na contramão do catolicismo romano institucionalizado.


Assim, o estudo de pensadores como Pelágio, da teologia trinitária e da pneumatologia da ortodoxia oriental, e das teologias libertárias de albigenses, valdenses e anabatistas são importantes porque nos apresentam a riqueza do pensamento cristão e nos permitem construir hermenêuticas que respondam às necessidades da contemporaneidade. Essa produção filosófica cristã, institucional e divergente, inclui pensadores como Justino Mártir, passa por Agostinho e Clemente Alexandrino e vai desaguar em Boécio. Sem a compreensão da produção patrística, em toda sua riqueza e diversidade, é difícil compreender as bases dogmáticas da igreja cristã medieval e da Escolástica.


O escolasticismo fez parte da filosofia medieval, e aquele de acento cristão, já que podemos falar de escolasticismo judaico e muçulmano, surgiu como seqüência natural da Patrística em responder às exigências da fé ensinada pela igreja hegemônica. Esse pensamento filosófico cobriu os anos que vão do começo do século nove até o fim do século dezesseis. O nome dessa filosofia cristã deve-se aos ensinos ministrados pelos professores cristãos nas escolas medievais. Estes ensinos faziam parte do trivium, gramática, retórica e dialética, e do quadrivium, aritmética, geometria, astronomia e música. A escolástica, porém, é resultado do aprofundamento do estudo da dialética.


A filosofia até o surgimento da Escolástica estava calcada no estudo dos clássicos gregos, e sofreu influências das culturas judaica e cristã. E, assim, pelo viés das teologias, temas como criação, providência, e revelação tornaram-se presentes nas reflexões filosóficas. A Escolástica foi influenciada também pelo neoplatonismo, que correlacionava elementos da filosofia de Platão com a espiritualidade cristã. E mesmo Tomás de Aquino, que trouxe Aristóteles para o pensamento escolástico cristão, não colocou de lado a filosofia neoplatônica.


Mas, por que, para um protestante, é importante entender o escolasticismo? Porque a questão central que atravessou o pensamento escolástico foi a possibilidade ou não da harmonia entre a fé e a razão. E essa questão foi tema fundamental durante a Modernidade e ainda hoje faz parte de qualquer reflexão teológica séria. O pensamento conservador de Agostinho defendeu uma subordinação da razão em relação à fé, por crer que ela restaurava a condição decaída da razão humana. Já Tomás de Aquino trabalhou com a possibilidade de certa autonomia da razão na obtenção de respostas, por força de sua leitura de Aristóteles, apesar de afirmar, em última instância, a subordinação da razão à fé.


Para a Escolástica, as fontes patrísticas eram fundamentais, pois seus autores tinham a autoridade de fé e de santidade. Os maiores representantes do pensamento escolástico, que já citamos, foram Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Mas não são as únicas referências importantes do período medieval, já que podemos também falar de protoescolásticas e escolásticas de contramão apresentadas por pensadores de grande expressão.

O primeiro deles, Ário (260-330), cristão cuja visão antitrinitária foi duramente combatida e por fim rejeitada pela igreja institucional. Sabélio, que viveu no século três, e que também apresentou uma hermenêutica divergente em relação à Trindade. Esses dois pensadores, assim como outros, foram chamados por Atanásio, pai da Igreja, de assassinos que não eram os verdadeiros possuidores das Escrituras. E assim as hermenêuticas que produziram foram anatematizadas. Mas, há um outro escolástico, muçulmano, chamado Averroés (1126-1198), na época um dos maiores especialistas em Aristóteles, que a partir da visão da unidade do intelecto humano considerou desnecessária uma doutrina da imortalidade pessoal. Sua escolástica teve presença marcante, e Tomás de Aquino se viu obrigado a contestá-lo apologeticamente.

Dessa forma, sem fazer o caminho da Patrística e da Escolástica e das hermenêuticas de contramão será difícil entender a Teologia Sistemática, enquanto lastro do depositum fidei. As doutrinas oriundas das leituras das Escrituras Sagradas, definidas por assembleias gerais conciliares e pelo magistério da igreja cristã institucional são muitas vezes apresentadas como dogmas basilares da fé. Alguns dos temas tratados pela Dogmática são aqueles referentes à Cristologia e a Eclesiologia, entre outros.
No que diz respeito à Cristologia, um currículo que responda às necessidades de uma educação brasileira, deve partir da análise dos estudos doutrinais cristológicos e soteriológicos, sem esquecer a visão contemporânea da tensão entre história e dogma, assim como a identidade entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Mas, além de estudar as etapas vividas pela história dos dogmas cristológicos, deve fazer a leitura da Cristologia brasileira, tanto no que se refere às correntes cristãs, como aquela Cristologia não-cristã presente nos terreiros e comunidades afrobrasileiras e brasilíndias. Já a Eclesiologia, também estudada na perspectiva exposta, analisará a importância teórica e prática da compreensão da Igreja, institucional ou não, a partir dos diferentes referenciais culturais e sociais, e a importância dos mitos e ritos para sua existência.

E são os desafios da permanência e possibilidade de uma Dogmática cristã na contemporaneidade que nos remetem aos estudos das Ciências da Cultura e às análises de conjuntura dentro das Ciências Sociais. As Ciências da Cultura estudam as organizações e as formas de expressão das sociedades e, nesse sentido, são ramos das Ciências Sociais. Ou seja, podemos dizer que as ciências da Cultura são, principalmente, a Sociologia, a Antropologia e a História, cuja finalidade comum é estudar a sociedade através de suas evidências culturais.


Citações


1. Décio Pignatari, Contracomunicação, São Paulo, Editora Perspectiva, 1971, p. 61.
2. Antonio Gramsci, Os intelectuais e a organização da cultura, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, pp. 118-120.
3. Antonio Maspoli de Araújo Gomes (org.), Teologia: Ciência e Profissão, São Paulo, Fonte Editorial, 2007, p. 93. 
4. Antônio Gouvêa Mendonça, “Currículo teológico básico”, in Márcio Fabri dos Anjos (org.), Teologia: Profissão, São Paulo, Soter/ Loyola, 1996, p. 145.
5. Madalena de Oliveira Molochenco, “Planejamento e currículo, uma relação estreita”, São Paulo, Faculdade Teológica Batista de São Paulo, Reunião de Congregação, jul. 2007.