samedi 7 mars 2009

Deus, unicidade e pluralidade

Uma análise dos nomes de Deus: Ieouá e Eloim

Moisés disse a Eloim: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: O Eloim de vossos pais me enviou a vós e me perguntarem: Qual é o seu nome?, que direi? Disse Eloim a Moisés: Eu sou aquele que é. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou até vós. Disse Eloim ainda a Moisés: Assim direis aos filhos de Israel: Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós. Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. Êxodo 3.13-15.

Dentro da Teologia Sistemática um dos temas mais difíceis, sem dúvida, é o estudo da unicidade e pluralidade de Deus. O Antigo Testamento nos dá muitas provas da singularidade de Deus, assim como também o Novo Testamento. Mas, o Senhor Jesus Cristo, e também os apóstolos fizeram questão de anunciar, talvez não tão claramente como desejássemos, que Deus é também pluralidade. E, a partir do século quarto, definimos uma formulação ortodoxa: Uma essência em três pessoas.

Muitos teólogos descartam qualquer possibilidade que o Antigo Testamento tenha deixado pistas sobre a pluralidade de Deus. Acreditam que essa revelação só nos é data no Novo Testamento. Sabemos que qualquer abordagem do tema implica em enfrentar dificuldades as mais variadas, mas nos parece que uma análise lingüística aliada a um estudo epistemológico da doutrina de Deus entre os antigos hebreus podem nos levar a uma compreensão mais plástica da discussão.

Nas traduções brasileiras o nome Eloim aparece como Deus. Simplesmente. Ora, sabemos que no Antigo Testamento aparecem diversos nomes para Deus: Eloim, Ieouá, El/Eloá, entre outros. Neste estudo analisaremos apenas dois desses nomes de Deus, Eloim e Ieouá, que acreditamos nos dão elementos para pesquisarmos dois aspectos teológicos da divindade, sua unicidade e sua pluralidade intrínseca. E tomamos como ponto de partida o texto de Êxodo 3.13-15.

A essência em Ieouá

O nome Ieouá ocorre no Antigo Testamento 6.823 vezes. Na verbalização do tetragrama optamos pela sonorização que remete à uma musicalidade ritualística apta para o culto coletivo, para a invocação e para o estado contemplativo. Assim, Ieouá parece pela primeira vez em Gênesis 2.4, junto a outro nome de Deus, Eloim como Eloim-Ieouá. No correr dos segundo e terceiro capítulos continua aparecendo, com exceção da história da tentação, quando aparece apenas Eloim. Na sequência, vamos ver que o nome Ieouá aparece sozinho ou combinado a Eloim, além de termos também apenas Eloim.

Essa situação acaba sendo um problema para os críticos. Afinal, porque Deus haveria de se revelar aos homens, em textos diferentes ou às vezes na mesma frase, ora como Ieouá, ora Eloim-Ieouá, ou apenas como Eloim? Por exemplo, em Gênesis 28.13, quando Jacó sonha, encontramos: Eu sou Ieouá, o Eloim de Abraão, teu pai, e o Eloim de Isaque.

A aparente dificuldade pode nos encaminhar a uma questão fundamental: a da personalidade ou atributos de Deus. Sem, dúvida, a personalidade de Deus está ligada à sua transcendência, mas também à sua imanência e é, em parte, traduzida nesses dois nomes de Deus.

O nome Ieouá deriva do substantivo hebraico hai, vida, que em português também pode ser traduzido por ser e estar. Assim quando balbuciamos, cantamos ou ouvimos o nome Ieouá, devemos pensar nos termos vida, ser, existência, entendendo que Ieouá é o único que possui vida em essência e existência eterna.

É importante observar, também, a conexão e semelhança existente entre o pronome ele em hebraico e hai. Em passagens como Isaías 43.10-11, o pronome é equivalente ao nome do Eterno Deus. No citado trecho de Isaías lemos: Eu sou a vida; antes de mim nenhum Eloim se formou, e depois de mim não haverá nenhum. Eu, eu mesmo sou Ieouá, e fora de mim não há nenhum salvador. E no salmo 102.27 encontramos: mas tu és a vida, e os teus anos jamais findarão.

Em hebraico, a palavra hai aparece muitas vezes como ser, equivalente ao “o mesmo”, aquele que não tem começo, nem fim.

Segundo Moshe Maimonides, erudito judeu da Idade Média, os nomes de Deus que encontramos nas Escrituras estão relacionados com suas ações, com apenas uma exceção, que é Ieouá. E este é considerado o nome por excelência, porque ele mostra em toda a sua extensão a substância de Deus. E na sequência acrescenta que no nome Ieouá, a personalidade do Eterno é expressada claramente. É sempre um nome próprio que traduz a pessoa de Deus.

A origem e o uso do nome Ieouá está ligado a Israel. Quando Moisés pergunta a Deus: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: o Eloim de vossos pais me enviou a vós; e me perguntarem: Qual é o seu nome? que direi? E Eloim disse a Moisés: ego sum qui sum [conforme a Vulgata] Eu sou aquele que sou. O que poderia ser traduzido “eu sou aquele que é” ou “eu serei contigo”.

O ponto central dessa expressão, que sonorizamos Ieouá, é que Deus quer revelar-se a Moisés. Por isso, usa Ieouá. Como Ieouá, ele é o Deus que se torna música aos ouvidos humanos, para que possam conhecer aquele que é Eterno, o único. Por isso, ele diz a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós. Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós: Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. E em Êxodo 6.2-3 encontramos: Eu sou Ieouá. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus todo-poderoso, mas pelo meu nome Ieouá não fui conhecido por eles.

Bem, aqui surge uma pergunta: Por que Deus diz que não foi conhecido por eles como Ieouá, se em Gênesis encontramos o nome Ieouá, assim como em vários outros trechos, inclusive na própria promessa da aliança?

É importante notar que até Moisés nenhum povo tinha conhecimento da revelação pessoalmente dirigida de Deus. Os povos tinham acesso à revelação católica, aquela que o apóstolo Paulo descreve em Romanos 1.19-21. Essa revelação universal é geral e plena, mas silenciosa: está dentro de todos/as, começou na origem, continua a vigir hoje e torna os humanos conhecedores da existência do Criador.

Mas a partir de Moisés, Deus dá aos filhos de Israel um som especial. Através dessa revelação, o povo de Israel toma conhecimento dos atributos pessoais, morais de Deus, como veracidade, benevolência, fidelidade, graça, justiça, misericórdia e santidade. Este Deus que se revela de forma particular, enquanto pessoa é Ieouá.

Vemos isso em Êxodo 34.6 quando a aliança é renovada e o próprio Deus diz de si mesmo: quo transeunte coram eo ait Dominator Domine Deus misericors et clemens patiens et multae miserationis ac verus [ainda segundo a Vulgata]. Assim, Deus apresenta-se como ser inteligente, com autodeterminação plena e consciência moral.

Ieouá nos apresenta outra característica de Deus: a sua unicidade. Encontramos em Êxodo 20.2-3: Eu sou Ieouá, teu Eloim que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros Eloim diante de mim. E em Deuteronômio 6.4 esta declaração é incisiva: audi Israhel Dominus Deus noster Dominus unus est. Esta declaração de Ieouá como o único Eloim será confessada por Davi em 2Samuel 7.22 e por Isaías (41.4; 43.10,11 e 44.6). De fato, é uma confissão que implica em compreensão daquilo que Deus é enquanto único: fundamento da realidade, imutável em suas promessas, aquilo que será. Toda escolha é realizada de conformidade com Sua vontade e prazer.

Pluralidade em Eloim

Só no primeiro capítulo de Gênesis, o nome Eloim aparece 32 vezes. No Antigo Testamento, Eloim ocorre 2.570 vezes. A palavra Eloim é uma derivação de El/Eloá, que transmite a idéia de poder, força, proeminência. Já o nome Eloim traduz uma idéia ampla e precisa, que é a de um criador que tem poder para governar, onipotência e soberania. Isto é indicado em Gênesis 1.1 e 2.4, já que Eloim aparece como o poderoso Deus criador do universo. Ele ordena e do caos o cosmos surge.

Mas há uma peculiaridade no nome Eloim. Ele é plural, na forma usual do masculino plural em hebraico. E em Gênesis 1.1 Eloim está no plural, mas o verbo está no singular. Mais interessante, ainda, é notar que em Gênesis 1.26 encontramos o verbo no plural: Façamos o homem a nossa imagem. Sem dúvida há uma conversa, mas com quem? Na sequência da frase encontramos demut tselem, imagem e semelhança, no singular, concordando com o pronome nossa, que também está no singular. Isto nos leva a deduzir que aquele que fala está se dirigindo a iguais, em imagem e substância. Ora, se quem fala é Deus Supremo, seus interlocutores não são anjos ou seres celestiais, mas Deus. E temos outros textos que nos levam em direção ao mesmo raciocínio: Gênesis 3.22, quando a pessoa desobedece; no castigo aos habitantes de Babel (Gn 11.7); o Salmo 149.2; Salomão em Eclesiastes 12.1; entre outros.

Existe a interpretação de que estamos diante de um plural majestático. Sabemos que a utilização dessa forma plural para reis era um costume comum no mundo semítico, mas devemos levar em conta as várias passagens e o contexto de cada uma delas. Sem dúvida, há textos em que a proposta de plural majestático encaixa-se perfeitamente, como é o caso de Juízes 11.24. Mas a generalização do conceito, sem dúvida, leva ao erro. Tal situação levou um estudioso judeu, Parkhurst, há duzentos anos, a afirmar que os cristãos têm razão em ver no nome Eloim uma expressão da trindade, pois o termo não implica apenas na definição daquele que cria, mas em Godhead.

Essa pluralidade da personalidade de Deus, que nós cristãos chamamos trindade, aparece de forma chocante em Josué 22.21-29, quando os filhos de Rubem, os filhos de Gade e da meia tribo de Manassés, em confissão diante de Deus e dos chefes das famílias de Israel, utilizam na mesma frase, juntos, três nomes de Deus: El/Eloá, Eloim, Ieouá. Expressão que, com variáveis, encontramos em Deuteronômio 10.17 e em Gênesis 33.20, 46:3 e Números 16.22, sendo que nas três citações só aparecem El/Eloá e Eloim. Nossos tradutores, usualmente, recorrem ao superlativo, como em Dt 10.17, Pois Ieouá vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de pessoas e não aceita suborno. Mas sem dúvida, aqui se fala da personalidade de Deus, e não nos parece que essa utilização seja acidental, principalmente porque não era costumeira entre os hebreus.

Sabemos que os antigos não entendiam a trindade de Deus. Mas nos parece que através dos nomes de Deus, que traduzem atributos, alguns conhecimentos sobre esta pluralidade de Deus foram transmitidos aos hebreus, já que a própria promessa do Messias foi sendo construída nos corações e mentes dos profetas no correr da história de Israel. O rabino David H. Stern, por exemplo, analisando Romanos 3.29-30, afirma que não há contradição entre a declaração da Shemá e a compreensão de que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, pois em nenhum momento a doutrina da trindade afirma que estamos diante de três deuses .

Claro está que para nós cristãos é mais fácil entender a Trindade, pois contamos com textos do Novo Testamento, como 1Co 8.4-6, 1Tm 1.17; 2.5-6, que falam a respeito do Pai; Rm 8.9, At 5.3-4, Jo 3.8 sobre o Espírito Santo; e Jo 10.30, Tito 2.13, Fp 2.6 sobre o Filho. Além das formas trinitarianas em Mateus 28.19-20, 2Co.1.21-22 e 13.13.

Mas não podemos dizer que esses dois nomes de Deus, Ieouá e Eloim para os antigos hebreus fossem a mesma coisa, simples sinônimos.

A exegese tem exatamente essa finalidade, decifrar, traduzir aquilo que o autor original do texto queria dizer. A distância histórica entre a nossa cultura e aquela dos antigos hebreus é uma realidade draconiana. Além do mais, tecnicamente, podemos dizer que cada palavra carrega mais conteúdo do que é perceptível numa rápida leitura. Isto porque Deus ao revelar-se aos povos utilizou um instrumento humano, a linguagem. Dessa inadequação entre significado e significante nasceu a necessidade da hermenêutica. A tarefa do hermeneuta consiste pois -- a partir da utilização de análises histórico-cultural e léxico-sintática -- na explicitação da mensagem, através de uma metodologia bem dirigida. As conclusões a que chega nada devem acrescentar ao significado do texto, pois já estavam contidas nele. Mas, para o estudioso, essas conclusões são novas, pois estavam gravadas no subsolo do texto interpretado.

Se, de fato, os nomes de Deus revelam a sua personalidade, e isso uma análise léxico-sintática parece confirmar, assim como alguns textos -- um exemplo é Josué 22.21-29 --, então podemos dizer, tecnicamente, que cada novo corte nas expressões estudadas aprofundará o sentido primeiro. Ou seja, ao voltarmos à leitura do chamado de Moisés, depois do estudo que realizamos em Êxodo 3.13-15, temos o horizonte ampliando em relação à unicidade e pluralidade de Deus.