vendredi 16 septembre 2016

Algumas dicas do meu amigo Yeshua ben Sirac

Yeshua, filho de Sirac, por isso chamado Ben Sirac, escreveu reflexões que entraram para a cultura judaica como peças da sabedoria judaica helenizada, escritas entre os anos 190 e 124 antes da Era Comum. Aqui ele fala sobre a amizade e espero que você, como os cristãos dos primeiros séculos, possa fazer bom proveito dessas reflexões. Jorge Pinheiro.

Os textos de Yeshua ben Sirac não fazem parte dos textos sagrados do judaísmo. Professor ligado aristocracia jovem de Jerusalém, fez viagens ao exterior em missões oficiosas, o que nos leva a crer que tenha ocupado cargo de importância junto ao Sinédrio, organismo de governo sob a responsabilidade do sacerdote maior. Por ter vivido em Jerusalém entre os anos 200 e 180 antes da Era Comum, viveu os tempos de transição da dominação complacente dos ptolomeus do Egito em direção à dominação sangrenta dos selêucidas da Síria. Trabalhou com o sacerdote-maior Simão (50.1-24), que ocupava tal função quando Jerusalém foi conquistada por Antíoco III em 198. Viveu a tragédia da deposição e assassinato de Onias III, filho de Simão, em 174, e a perseguição de Antíoco Epífanes (175-163) contra a cultura e religião judaicas. Assim, viveu sob dominções estrangeiras que oscilaram entre a complacência e o terror, e assistiu e possivelmente apoiou a insurreição liderada pelos Macabeus, em 167.

Por isso, ao contrário de estarmos diante de um livro apenas religioso a obra de Jesus ben Sirac traduz uma sabedoria destinada a consolidar a segurança do Estado, frente a inimigos externos e internos. Nesse sentido, despido da linguagem religiosa que possibilitou sua leitura sem censura e perseguições, estamos diante de textos que nos falam sobre os procedimentos do Estado na construção de sua segurança.

Tomemos por exemplo esse bloco de pensamentos e o leiamos como dirigido a elite dos dirigentes Macabeus e a aristocracia jovem que sobe ao poder com eles.

“Palavras amáveis multiplicam os amigos, uma língua afável multiplica as palavras corteses. Sejam numerosos os que te saúdam, mas teus conselheiros, um entre mil! Se queres adquirir um amigo, adquire-o provando-o: não te apresses em confiar nele. Há quem seja amigo na hora que lhe convém, mas não permanece tal no dia da aflição. Há o amigo que se transforma em inimigo e revela as divergências, para tua desonra. Há o amigo, companheiro de mesa, que não permanece tal no dia da aflição. Na tua prosperidade será como tu mesmo, dando ordens com desenvoltura a teus servos. Mas se fores humilhado, estará contra ti e se ocultará da tua vista. Mantêm distância dos inimigos e usa de cautela com os amigos. Amigo fiel é refúgio seguro: quem o tem encontrou um tesouro. Amigo fiel não tem preço: é um bem inestimável. Amigo fiel é um elixir de longa vida: os que temem o Senhor o encontrarão.  Quem teme o Senhor dirige bem sua amizade: como ele é, tal será seu companheiro”. Ben Sirac 6.5-17.

O leitor apenas religioso, de ontem e de hoje, vê apenas um tratado sobre a amizade nas palavras de ben Sirac. Mas se levarmos em conta que as invasões de Alexandre levaram ao Oriente uma nova civilização, globalizada enquanto helenismo, era necessário pensar questões como choque de culturas, religião e ecumenismo que pela força, diplomacia e comércio tendiam a abolir fronteiras e colocar em xeque o judaísmo.
                                                                                                                            
Ben Sirac, homem da inteligência judaica, acolhe aspectos importantes da cultura grega, como a filosofia estóica, mas sabe que a adoção não crítica do helenismo põe em risco a religião judaica (Sr 2.12-14) base da cultura da região. E critica as concessões e entregas de membros do sacerdócio e da aristocracia, conforme denuncia o movimento dos Macabeus (cf. 1Mc 1-2).

Assim, ben Sirac trabalha com um paradoxo, a busca da liberdade e a presença do mal, traduzida na presença imperial. O ser humano foi criado livre (15.14), e o mal não se encontra na divindade, mas na ação humana (15.11-13). Aí está a fonte do mal (21.27; 25,24). Mas é possível enfrentar as forças da destruição (31.10).

Por isso, sua religião se aproxima de uma antropologia política, e aqui quero destacar alguns desses elementos. Faz uma apologia do nacionalismo judaico através do resgate da tradição dos antepassados (44.1-49,16). Opõe a Lei outorgada a Israel no Sinai (24.23), ou seja, a jurisprudência judaica, ao helenismo. E diante da nova racionalidade da filosofia grega reivindica a sabedoria judaica que fala do temor de Deus, enquanto aplicação da Torá escrita (1.26; 6.37). Dessa maneira, como professor e homem da inteligência chama ao estudo da Lei como tarefa para a sobrevivência nacional. E defende a fé tradicional: Deus é eterno e único (18.1; 36.4; 42.21); é o autor da criação (42.21.24), conhece todas as coisas (42.18-25).

E como homem da inteligência defende um futuro nacional, político, para a nação viável e soberano. Isso pode ser visto, em linguagem religiosa na oração que faz pela libertação e restauração de Israel (36,1-17), quando diz “glorifica tua mão e teu braço direito. Excita o teu furor e derrama tua cólera. Suprime o adversário e aniquila o inimigo. Apressa o tempo, lembra-te do momento fixado e divulguem-se as tuas façanhas. Por um fogo vingador seja devorado o que sobreviver, e os que maltratam teu povo encontrem sua ruína. Esmaga as cabeças dos chefes inimigos que dizem: "Não há ninguém como nós!” 

Essa oração poderia ser eco do messianismo que começa a crescer no período macabeu, mas sua interpretação permanece discutida.

A atitude do Sirácida em face de uma crença na ressurreição, o seu amor do culto, sua veneração pelo sacerdócio sadoquita (cf. 51,12 no hebraico) e, por outro lado, a falta de referência explícita às idéias messiânicas que se desenvolverão nos meios fariseus fizeram-no relacionar-se com uma espécie de pré-saduceísmo. De fato, pode-se situá-lo na linha desse movimento conservador, nacionalista, ligado à Lei escrita. Mas seria um erro assimilá-lo pura e simplesmente aos saduceus que conhecemos pelos evangelhos e por Flávio Josefo: ele viveu antes da diferenciação do judaísmo em seitas caracterizadas.

Em relação às nações pagãs, Ben Sirac manifesta uma atitude já tipicamente judaica. Após certa abertura universalista nos profetas, as dificuldades do período pós-exílico levaram Israel a um particularismo pouco a pouco reforçado pela idéia da eleição bem como pelas exigências práticas da vida segundo a Lei: circuncisão, sábado, regras de pureza alimentar e ritual. A concepção helenista do homem cidadão do universo, então em voga, não arrefeceu a ufania do autor de pertencer à raça escolhida no meio da qual a própria Sabedoria estabeleceu sua residência privilegiada (24,7ss). 

Ele recomenda separar-se, principalmente dos ímpios (11,33; 12,14; 13,17), atitude dos essênios de Qumran, que dará aos fariseus essa designação característica: "os separados". O mundo aparece, pois, dividido em duas categorias, a dos bons e a dos maus ou, equivalentemente, a dos sábios e a dos insensatos (21,11-28). Contudo, há traços reveladores de uma sensibilidade nova no judaísmo, e certos desenvolvimentos sobre o perdão (27,30-28,7) encontrarão paralelos nos Evangelhos. Talvez mesmo a concepção do "semelhante" que é "carne" como cada ser humano (28,4-5) anuncie já a idéia de que todos os homens são irmãos. Aliás, a exegese judaica antiga compreendeu às vezes Lv 19,18 da seguinte maneira: "Amarás o teu próximo como a outro tu mesmo".