Ucrânia, a religião, a guerra e o socialismo
Jorge Pinheiro
Jornalista e cientista da religião
A religião desempenha e pode continuar a desempenhar papéis relevantes na Ucrânia em guerra, influenciando as atitudes e ações de comunidades, líderes e até das nações que se encontram nas polaridades do conflito. Ela é, por exemplo, uma fonte de unidade, uma justificativa ideológica ou até um meio de promover a paz e a reconciliação. E na Ucrânia, a religião tem exercido um papel multifacetado.
Para muitos ucranianos, especialmente para os que pertencem à Igreja Ortodoxa da Ucrânia, a religião serve como um símbolo de independência e identidade nacional. Desde a independência da Igreja Ortodoxa da Ucrânia em 2019, sua fé representa uma ruptura com o controle histórico russo, unindo a população em torno de valores culturais e espirituais específicos, que estão ligados à resistência contra a agressão.
Da mesma forma, a Igreja Greco-Católica, presente principalmente no oeste da Ucrânia, reforça a identidade pró-europeia e anti-Rússia de suas comunidades.
Do lado russo, o Patriarcado de Moscou apoiou a invasão, alegando que a Rússia tem o dever espiritual de proteger os russos ortodoxos e a cultura ortodoxa no território ucraniano. Essa retórica ajuda a moldar a narrativa de que a Rússia estaria protegendo o mundo russo e defendendo valores cristãos tradicionais contra o que o governo russo e alguns líderes religiosos veem como uma influência ocidental decadente. Essa instrumentalização da religião inflama o conflito ao justificar, para parte da população russa, a guerra como uma espécie de "cruzada" cultural e espiritual.
As igrejas ucranianas, independentemente de afiliações, têm, no entanto, desempenhado um papel significativo na ajuda humanitária. Oferecem alimentos, abrigo e apoio psicológico para milhões de refugiados e deslocados internos. Essa assistência reforça o papel das instituições religiosas como protetoras e guias morais, promovendo o apoio entre as comunidades. Esse papel humanitário é crucial não só para a sobrevivência física das pessoas, mas também para manter a resiliência e a esperança em tempos de incerteza.
Em alguns casos, líderes religiosos têm promovido diálogos e mediação. Embora seja raro nas guerras atuais, certos líderes religiosos internacionais, como o Papa Francisco, tentaram promover diálogos de paz e reconciliação. Essas figuras têm a credibilidade para atuar como “pontes” e intermediários, uma vez que muitas religiões enfatizam a paz e o perdão. Líderes religiosos, dentro da Ucrânia, de diferentes denominações também têm procurado unir comunidades com o intuito de promover a paz.
Mas a religião tem sido uma fonte de resistência moral, ajudando as pessoas a encontrar significado e força para resistir às dificuldades. Os ucranianos, através de sua fé, encontram coragem e propósito para enfrentar os horrores da guerra, interpretando a defesa de sua pátria como uma luta não apenas física, mas espiritual. Esse elemento inspira soldados e civis que interpretam a resistência como uma missão sagrada pela preservação de sua cultura e liberdade.
Devemos levar em conta, porém, que a religião na Ucrânia é diversa, com o cristianismo ocupando um lugar central, principalmente através do cristianismo ortodoxo. A maioria dos ucranianos se identifica com o cristianismo ortodoxo, mas como vimos estão divididos entre várias igrejas ortodoxas, com destaque para a Igreja Ortodoxa da Ucrânia (independente, reconhecida em 2019 pelo Patriarcado Ecumênico de Constantinopla) e a Igreja Ortodoxa Ucraniana, subordinada ao Patriarcado de Moscou. A relação entre essas igrejas ortodoxas é complexa e às vezes tensa, especialmente desde o início do conflito com a Rússia em 2014, com implicações políticas e identitárias para o país.
Além das igrejas ortodoxas, a Ucrânia também conta com uma população significativa de católicos de rito oriental, pertencentes principalmente à Igreja Greco-Católica Ucraniana, que segue tradições litúrgicas orientais, mas está em comunhão com o Papa. Esse grupo é mais comum na região oeste da Ucrânia.
Há também comunidades protestantes, muçulmanas e judaicas. Embora em menor número, os protestantes têm crescido nos últimos anos, especialmente em áreas urbanas, enquanto os muçulmanos, em grande parte de origem tártara, concentram-se principalmente na Crimeia e em outras regiões do sul do país. A população judaica, embora menor hoje em comparação ao passado, tem uma presença histórica na Ucrânia e ainda mantém comunidades em cidades como Kiev e Odessa.
Dessa forma, a religião na Ucrânia é marcada por sua diversidade, com a ortodoxia como elemento predominante, mas com presença significativa de outras tradições que refletem a rica história e as influências culturais do país.
Como vimos, a guerra na Ucrânia tem intensificado as divisões religiosas e também as tensões políticas entre comunidades religiosas. A religião se entrelaça com questões de identidade nacional, influências estrangeiras e lealdades políticas, especialmente entre as igrejas ortodoxas, o que afeta diretamente o conflito.
Desde que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia recebeu sua independência do Patriarcado de Constantinopla em 2019, ela se tornou um símbolo de independência nacional. Para muitos ucranianos, apoiar essa igreja representa uma rejeição da influência russa.
Em contraste, a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou é vista com desconfiança por parte da população, que a considera uma extensão da influência política russa. Durante o conflito, houve pressões e ataques contra essa igreja em algumas áreas, sob alegações de que ela favorecia ou colaborava com interesses russos. A guerra fez com que algumas paróquias da Igreja ligada a Moscou optassem por se alinhar à Igreja Ortodoxa da Ucrânia, declarando-se independentes de Moscou.
A Igreja Greco-Católica Ucraniana tem uma presença forte no oeste do país e está em comunhão com o Papa. Para muitos na Ucrânia ocidental, esta igreja representa uma ponte com o Ocidente e a Europa, o que alimenta sentimentos pró-europeus e de integração com a União Europeia. Durante a guerra, a Igreja Greco-Católica tem desempenhado um papel de apoio humanitário e moral à resistência ucraniana, ajudando refugiados, e suprindo com alimentos e recursos muitas das suas comunidades.
Mas também as comunidades protestantes, judaicas e muçulmanas estão envolvidas na assistência humanitária e oferecem apoio às pessoas afetadas pela guerra, mantendo, em grande parte, uma posição de neutralidade política. No entanto, muitos líderes dessas comunidades condenaram abertamente a presença militar russa e a guerra.
Os tártaros da Crimeia, que são muçulmanos e predominantemente anti-Rússia devido ao histórico de repressões e deportações, são particularmente afetados, especialmente após a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014. Eles têm enfrentado perseguições e restrições religiosas sob a ocupação russa.
A guerra fez com que muitos ucranianos vissem suas igrejas como símbolos de resiliência nacional, e a espiritualidade ganhou um novo significado, ligada à luta pela sobrevivência e soberania. O apoio das igrejas ortodoxas e católicas aos refugiados e soldados reforça o sentimento de união nacional.
Além disso, a guerra criou uma divisão entre ucranianos e russos também no plano religioso, com algumas igrejas na Ucrânia se distanciando fortemente de Moscou e condenando a postura de neutralidade ou até apoio velado do Patriarcado de Moscou à invasão.
Portanto, o papel das igrejas e comunidades religiosas na guerra da Ucrânia é complexo, envolvendo ajuda humanitária, disputas por independência e fortes divisões identitárias. Essas tensões mostram como, além de uma luta militar, o conflito também é uma batalha por identidade e lealdade espiritual na região.
Os dois pesos da balança
Podemos dizer que uma positividade nessa dialética dos pesos, que são, na maioria dos casos, efeitos colaterais positivos, mas não representam ganhos diretos ou desejáveis de um conflito devastador. O conflito uniu a população ucraniana em torno de uma identidade mais forte e coesa, fortalecendo o desejo de soberania. Esse sentimento nacional também fortaleceu as instituições e a sociedade civil , que se mobilizou em torno da resistência.
A Ucrânia recebeu um enorme apoio de países ocidentais, como ajuda financeira, humanitária e militar. Aparentemente, esse apoio pode, no futuro, contribuir para o desenvolvimento de infraestrutura, defesa e economia do país. A guerra aproximou a Ucrânia da União Europeia, resultando em avanços diplomáticos e benefícios para a integração europeia do país.
Mas a negatividade nessa dialética dos pesos são numerosos, pois a guerra trouxe consequências devastadoras em diversos níveis. A guerra resultou em dezenas de milhares de mortes e milhões de refugiados, além de deslocamentos internos. A população civil ucraniana sofre com bombardeios, falta de recursos e destruição de infraestrutura básica, como hospitais e escolas.
A economia ucraniana sofreu, com grande parte da infraestrutura destruída. Indústrias, cidades e infraestrutura foram danificadas, e a reconstrução levará anos, exigindo bilhões de dólares. A agricultura, um dos setores mais importantes do país, também foi afetada, com impactos na segurança alimentar de muitos países.
O conflito aumentou os preços globais de alimentos e energia, especialmente gás natural, e causou inflação em várias partes do mundo. Países em desenvolvimento, que dependem de importações de alimentos, especialmente grãos, enfrentaram dificuldades financeiras.
A guerra causou incidentes em torno da Usina Nuclear de Zaporizhzhia, gerando preocupações sobre a possibilidade de acidentes nucleares. Além disso, a ameaça nuclear russa elevou os temores globais sobre a segurança e o risco de um conflito nuclear.
Como resultado, a guerra aumentou as tensões entre o Ocidente e a Rússia, trazendo uma nova era de rivalidade entre as grandes potências e incentivando outros países a fortalecerem suas capacidades militares. Isso contribui para uma situação geopolítica mais volátil e perigosa.
O conflito também tem um impacto ambiental, com poluição por armas e destruição de ecossistemas locais. A recuperação desses danos ambientais será demorada e exigirá grandes esforços.
A guerra incentivou regimes autoritários a agir com mais liberdade, como no caso de Belarus, que tem apoiado a Rússia e reprimido vozes contrárias. Esse clima reduz o espaço para a democracia em países aliados da Rússia.
Vamos pensar juntos
A religião, como vimos, está sendo explorada para justificar o conflito, e tem criado divisões sectárias. A rivalidade entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana e a Igreja ligada ao Patriarcado de Moscou, por exemplo, reflete a divisão política e ideológica do país, que também se manifesta de maneira religiosa. Esse sectarismo amplia as tensões, dificultando a reconciliação a longo prazo.
Assim, a religião na guerra da Ucrânia tem servido tanto como uma ferramenta de unidade e resistência moral quanto de divisão e justificação do conflito. Mas, tem o potencial de ajudar na reconstrução e reconciliação futuras, embora, para isso, será necessário um esforço para despolitizar o papel religioso e buscar valores universais de paz e reconciliação, presentes nas tradições religiosas.
Apesar da ofensiva da extrema direita, que procura se apoiar nas religiões históricas da Ucrânia, a construção de uma política socialista é possível, mas enfrenta desafios substanciais e deve ser cuidadosamente adaptada ao contexto político, social e econômico da região. Historicamente, o socialismo na Ucrânia esteve associado à época soviética, uma experiência marcada por repressão política, falta de liberdades civis e uma economia centralizada rígida, que moldou percepções complexas e, em muitos casos, desfavoráveis sobre o socialismo no país. Assim, uma moderna política socialista precisa se diferenciar das experiências passadas e apresentar-se como uma proposta nova, inclusiva e democrática.
Um dos principais problemas do socialismo soviético foi o centralismo extremo e a falta de democracia interna. Um socialismo moderno e aplicável na Ucrânia poderia enfatizar a democracia participativa, onde os cidadãos têm um papel ativo na tomada de decisões. A descentralização, com mais autonomia para regiões e comunidades, pode ajudar a evitar a concentração de poder, permitindo que as políticas sejam adaptadas às realidades locais.
A desigualdade econômica aumentou consideravelmente na Ucrânia desde a independência, com o surgimento de oligarquias e uma concentração significativa de riqueza. Uma política socialista poderia propor uma reforma tributária progressiva, com impostos sobre grandes fortunas e a implementação de programas sociais robustos para reduzir as disparidades sociais. Esse tipo de programa precisaria de forte apoio público e transparência para evitar acusações de corrupção.
Em vez de buscar uma economia totalmente centralizada, uma política socialista moderna na Ucrânia poderia buscar um modelo de economia mista, onde setores estratégicos (como energia, saúde e educação) são estatais ou de gestão pública, enquanto outros setores permanecem no setor privado. Esse modelo pode dar segurança e estabilidade econômica, além de proporcionar serviços essenciais para a população sem depender totalmente do mercado.
Dada a situação geopolítica da Ucrânia, uma política socialista precisaria lidar cuidadosamente com as tensões entre o Ocidente e a Rússia. A busca pela neutralidade, se possível, poderia ser uma estratégia para reduzir as pressões externas. Isso exigiria um esforço diplomático significativo e uma política externa independente que se concentrasse no bem-estar do povo ucraniano em vez de se alinhar a blocos de poder.
A corrupção é um problema grave na Ucrânia, que impacta diretamente a economia e o bem-estar dos cidadãos. Um modelo socialista teria que incluir mecanismos rigorosos de transparência e prestação de contas para combater práticas corruptas. O fortalecimento das instituições democráticas seria essencial para que qualquer política de inspiração socialista pudesse ser implementada de maneira eficaz e sustentável.
Em um modelo socialista, os direitos dos trabalhadores estariam no centro das preocupações, garantindo salários dignos, condições de trabalho seguras e oportunidades de participação nos lucros. Além disso, uma política ambiental responsável, com foco na sustentabilidade e na transição para uma economia verde, seria essencial para lidar com os desafios climáticos e econômicos de longo prazo.
Implementar uma política socialista na Ucrânia é possível, mas exige um modelo renovado, descentralizado e adaptado às necessidades contemporâneas da população. A chave é evitar os erros do passado, construir uma base de apoio público e focar no bem-estar social, na justiça econômica e no fortalecimento democrático do país. E nisso, muito possivelmente, a política terá como aliado a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, entre outras.