mardi 31 mars 2009

Introdução ao estudo do Apocalipse

A apocalíptica, diferente da profecia clássica, tem três objetivos: falar de eventos futuros (cf. Ap 1.3; 22.7 e 10); revelar fatos ocultos ao momento presente (Lc 1.67-79; At 13.6-12); ministrar consolo e exortação, geralmente em linguagem de alto impacto (At 15.32; I Co 14.3, 4 e 31).
Nossa primeira pergunta é se os princípios hermenêuticos utilizados na apocalíptica devem ser os mesmos que se aplicam aos outros gêneros literários encontrados no texto sagrado, ou se necessitamos de um método hermenêutico especial. Os procedimentos tradicionais para a profecia clássica são as análises contextual, histórico-cultural, léxico-gramatical e teológica. Mas o grande problema é saber quando devemos interpretar o texto literalmente e quando deve ser analisado simbolicamente ou analogicamente. É o caso a expressão “et vidi de mare bestiam ascendentem habentem” (Ap 13.1). Esta expressão, besta que sai do mar, não pode ser encarada como uma expressão literal. É uma pessoa, é uma cidade, é um poder? Assim, o problema não está em antepormos um método literalista a outro estritamente simbólico. Um recurso pode ser o método analógico, que toma as declarações literalmente, mas depois as contextualizam.
Outro problema é se a linguagem apocalíptica tem universalidade ou se uma mesma palavra pode ter significados diferentes. Como é o caso dos números, das cores e de conceitos. Mas o maior problema da hermenêutica apocalíptica, no meu entender, é definir se o texto reflete uma contração profética, tem cumprimento evolutivo ou cada passagem tem uma única realização intencional.
Devido a essas dificuldades, opto pela seguinte hermenêutica em relação à literatura apocalíptica:

(1) análise histórica e cultural para definir em que condições o texto foi produzido, e checar se a profecia foi cumprida ou não;
(2) análise léxica e sintática, a fim de determinar que palavras foram utilizadas em sentido simbólico ou analógico;
(3) análise teológica para determinar se há passagens paralelas ou ciclos que se repetem dentro da mesma profecia.

Logicamente, não podemos perder de vista de que estamos diante de um texto figurativo e, por isso, com forte conteúdo simbólico e analógico.
Em relação ao livro do Apocalipse minha posição aproxima-se ao paralelismo progressivo de Hendriksen (1), defendido por Hoekema (2), que considera a existência de sete seções paralelas, que descrevem num crescendo a relação entre a igreja e o mundo, desde o primeiro século até o retorno de Cristo.

Teríamos assim
• Primeiro bloco nos capítulos 1 a 3 -- é a visão do Cristo glorificado, formando uma unidade com as cartas e as igrejas.
• Segundo bloco nos capítulos 4 a 7 -- é o da igreja sofrendo perseguições, tendo ao fundo o Cordeiro vitorioso.
• Terceiro bloco, que vai dos capítulos 8 a 11 -- mostra a igreja vingada, protegida e vitoriosa.
• Quarto bloco, dos capítulos 12 a 14 -- temos a visão de dois auxiliares de Satanás, que fazem oposição à igreja.
• Quinto bloco, nos capítulos 15 e 16 -- mostra a visitação final da ira de Deus sobre os impenitentes.
• Sexto bloco, nos capítulos 17 a 19 -- temos a queda das forças do secularismo e da impiedade que se opõem ao reino de Deus.
• Último bloco do livro -- temos a derrota de Satanás, o juízo e o triunfo final de Cristo e de sua igreja, e o universo restaurado.

Sem dúvida, nessas sete seções há uma progressão escatológica, que nos fornece a cada passo maiores informações sobre a luta de Cristo e de sua igreja com Satanás e as forças da impiedade.
Em Apocalipse 20.2-3 temos o trecho que fala de um período de mil anos. É uma passagem que se divide em duas partes. A primeira que fala do acorrentamento de Satanás (1 a 3) e a segunda de um período de mil anos com Cristo.
Como expus, os capítulos 20 a 22 não descrevem o que se segue à volta de Cristo, mas o versículo 20.1 nos leva, de novo, ao princípio da era cristã. A derrota de Satanás começou com a primeira vinda de Cristo (cf. 12.7-9), e o reinado de mil anos de Ap 20.4-6 acontece antes da volta de Cristo, porque depois (Mt 16.27; 25.31-32; Jd 14-15, 2 Ts 1.7-10) temos o juízo final. E como este juízo está ligado à volta do Rei Jesus, Senhor dos senhores, parece-me claro que o reinado deve acontecer antes e não depois do retorno de Cristo.
Particularmente, dentro da tradição judaica, mil é todo o número que não se conseguia contar. É um período completo, mas de extensão indeterminada. Estamos vivendo a era do Evangelho. Satanás está acorrentado pela verdade da proclamação do Evangelho (Mt 28.19), por isso, e graças a Deus por isso, podemos pregar o Evangelho e fazer discípulos de todas as nações.
É claro que ele pode operar ainda, fazer o mal, mas não pode enganar as nações a ponto de impedi-las de ouvir e aprender a verdade de Deus (Jo 12.31-32). Podemos explicar esta situação com duas constatações: (a) O acorrentamento de Satanás na era do Evangelho significa que ele não pode impedir o crescimento do Evangelho (Mt 13.24-30; 47-50); (b) e que ele não pode reunir todos os inimigos de Cristo para atacar a igreja.
A segunda parte do texto mantém o mesmo período de tempo, mas muda de perspectiva. Se nos versículos 1-3 a ação acontecia na terra, agora João vê o que está acontecendo nos céus. Vê os mártires e todos aqueles que resistiram aos poderes da impiedade e já morreram.
Só há uma ressurreição física (Jo 5.28-29; At 24.15). “Viveram e reinaram com Cristo durante mil anos” fala daqueles que estão com Cristo (Fp 1.23; 2 Co 5.8; Ap 3.21), hoje, sentados em tronos, na glória, participando do reinado de Cristo.
Não temos indicações de que João esteja falando de um reino de mil anos literais aqui na terra. Também não temos nenhuma indicação de que o centro desse reino será a Palestina ou a Jerusalém histórica.

Notas
(1) Hendriksen, William, More Than Conquerors, Grand Rapids, Michigan: Baker Books House, 1939.
(2) Hoekema, Anthony A., "A Interpretação do Livro de Apocalipse", in Milênio, Significado e Interpretações, editor Robert G. Clouse, Campinas, Luz para o Caminho, 1990, pp. 141-170.

mardi 24 mars 2009

Teologia da ortodoxia radical

A teologia da ortodoxia radical é um movimento teológico cristão que surgiu com John Milbank, Catherine Pickstock e Graham Ward, quando editaram uma série de ensaios, publicados pela Routledge em 1999, e que recebeu o título de Radical Orthodoxy, A New Theology.

A ortodoxia radical reúne teólogos de diferentes origens cristãs, mas desde seu começo teve como seus principais pensadores John Milbank, Catherine Pickstock e Graham Ward. John Milbank escreveu Theology and Social Theory, em 1990.

A teologia da ortodoxia radical no campo social faz a crítica do seculaismo e no campo filosófico a crítica da metafísica kantiana. O nome do movimento traduz a proposta de retorno a uma leitura ortodoxa da teologia. Nesse sentido, ortodoxia radical deve ser entendida como fé correta, ou aquele ensino que não deve ser distorcido.

O movimento da teologia ortodoxa radical coloca a arte, ciência, ética, filosofia, política, enfim a cultura da alta modernidade, em diálogo com as fontes da teologia cristã. Sua ontologia resgata as leituras platônicas e neoplatônicas de filósofos e teólogos cristãos.

Entre estes estão Henri de Lubac que, com seu trabalho teológico sobre a distinção entre natureza e graça, influenciou a construção da ontologia do movimento. Assim, como a teologia estética e a crítica literária de Hans Urs von Balthasar também foram determinantes. E os trabalhos de Karl Barth balizam a crítica da ortodoxia radical ao liberalismo na alta modernidade.

O movimento platonista das universidades de Oxford e Cambridge também influenciaram positivamente o movimento.

Dessa maneira, desempenha um papel significativo no desenvolvimento do movimento da ortodoxia radical a releitura de Platão, mas também Agostinho, Tomás de Aquino, Nicolau de Cusa, Meister Eckhart e Duns Scotus, considerado precursor da modernidade.

Bibliografia
Catherine Pickstock, After Writing, Oxford: Blackwell, 1997 (ISBN 0-631-20672-8).
James KA Smith, Introducing Radical Orthodoxy: Mapping a Post-secular Theology, Grand Rapids: Baker Academic/Bletchley: Paternoster Press, 2004 (ISBN 0-8010-2735-7 ou ISBN 1-84227-350-7).
John Milbank, The Word Made Strange, Oxford: Blackwell, 1997 (ISBN 0-631-20336-2).
_____________, Being Reconciled, London: Routledge, 2003 (ISBN 0-415-30525-X).
John Milbank, Theology and Social Theory (2nd ed.), Oxford: Blackwell, 2006 (ISBN 1-4051-3684-7).
John Milbank, Catherine Pickstock, Graham Ward (eds), Radical Orthodoxy: A New Theology, London: Routledge, 1999 (ISBN 0-415-19699-X).
John Milbank and Catherine Pickstock, Truth in Aquinas, London: Routledge, 2000 (ISBN 0-415-23335-6).
Phillip Blond, Post-Secular Philosophy, London: Routledge 1997 - (ISBN 978-0415097789).
Steven Shakespeare, Radical Orthodoxy: A Critical Introduction, London: SPCK, 2007 (ISBN 978-0-281-05837-2).

mercredi 18 mars 2009

Os caminhos da teologia

Inter pares
Uma breve reflexão sobre os caminhos da teologia

Nessa rápida exposição abordaremos a vol d’oiseaux movimentos fundamentais para entendermos os caminhos da teologia no século vinte e os desafios que procura responder no século que se abre.

O primeiro deles foi a teologia dialética, que teve como expoente principal a Karl Barth e como tema a palavra de Deus.

O segundo movimento foi produto da revolução antropológica que se exprimiu com a teologia existencial de Bultmann, a teologia hermenêutica de Fuchs e Eberling, a teologia da cultura de Tillich e a teologia transcendental de Karl Rahner. De modo geral, esse movimento e seus desdobramentos estiveram preocupados com a historicidade do sujeito, as perguntas existenciais, os contextos culturais e a estrutura apriorística do espírito-no-mundo. Em última instância, estiveram preocupados com aquele que ouve a palavra.

A partir dos anos 1960 o mundo viveu uma revolução não somente antropológica, mas social e política. Os debates se deram a partir da teologia da história, da modernização e da secularização, retomando Bonhoeffer, passando por Gogarten e Moltmann. A teologia continuou preocupada com categorias existenciais ligadas ao ser humano enquanto pessoalidade, mas procurou a dimensão política dessa pessoalidade, sua práxis na história e na sociedade. A teologia se fez política e tivemos como desdobramentos a teologia da libertação na América Latina, a teologia negra e a teologia feminista nos Estados Unidos e desdobramentos que foram surgindo a partir dessas teologias.

O último movimento, fruto já da globalização e do movimento teológico anterior, surgiu a partir das reflexões do mundo não-ocidental, pós-comunista, em sua relação com o Evangelho ocidental. Inculturação versus globalidade é o tema central dessas teologias em construção, que procuram entender e analisar, segundo Johann Baptist Metz o que seria um cristianismo enraizado em muitas culturas “e nesse sentido policêntrico, no qual a herança européia ocidental não está destinada a ser reprimida e sim a ser novamente estimulada e desafiada”.

A Deus toda a glória!

samedi 7 mars 2009

Deus, unicidade e pluralidade

Uma análise dos nomes de Deus: Ieouá e Eloim

Moisés disse a Eloim: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: O Eloim de vossos pais me enviou a vós e me perguntarem: Qual é o seu nome?, que direi? Disse Eloim a Moisés: Eu sou aquele que é. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou até vós. Disse Eloim ainda a Moisés: Assim direis aos filhos de Israel: Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós. Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. Êxodo 3.13-15.

Dentro da Teologia Sistemática um dos temas mais difíceis, sem dúvida, é o estudo da unicidade e pluralidade de Deus. O Antigo Testamento nos dá muitas provas da singularidade de Deus, assim como também o Novo Testamento. Mas, o Senhor Jesus Cristo, e também os apóstolos fizeram questão de anunciar, talvez não tão claramente como desejássemos, que Deus é também pluralidade. E, a partir do século quarto, definimos uma formulação ortodoxa: Uma essência em três pessoas.

Muitos teólogos descartam qualquer possibilidade que o Antigo Testamento tenha deixado pistas sobre a pluralidade de Deus. Acreditam que essa revelação só nos é data no Novo Testamento. Sabemos que qualquer abordagem do tema implica em enfrentar dificuldades as mais variadas, mas nos parece que uma análise lingüística aliada a um estudo epistemológico da doutrina de Deus entre os antigos hebreus podem nos levar a uma compreensão mais plástica da discussão.

Nas traduções brasileiras o nome Eloim aparece como Deus. Simplesmente. Ora, sabemos que no Antigo Testamento aparecem diversos nomes para Deus: Eloim, Ieouá, El/Eloá, entre outros. Neste estudo analisaremos apenas dois desses nomes de Deus, Eloim e Ieouá, que acreditamos nos dão elementos para pesquisarmos dois aspectos teológicos da divindade, sua unicidade e sua pluralidade intrínseca. E tomamos como ponto de partida o texto de Êxodo 3.13-15.

A essência em Ieouá

O nome Ieouá ocorre no Antigo Testamento 6.823 vezes. Na verbalização do tetragrama optamos pela sonorização que remete à uma musicalidade ritualística apta para o culto coletivo, para a invocação e para o estado contemplativo. Assim, Ieouá parece pela primeira vez em Gênesis 2.4, junto a outro nome de Deus, Eloim como Eloim-Ieouá. No correr dos segundo e terceiro capítulos continua aparecendo, com exceção da história da tentação, quando aparece apenas Eloim. Na sequência, vamos ver que o nome Ieouá aparece sozinho ou combinado a Eloim, além de termos também apenas Eloim.

Essa situação acaba sendo um problema para os críticos. Afinal, porque Deus haveria de se revelar aos homens, em textos diferentes ou às vezes na mesma frase, ora como Ieouá, ora Eloim-Ieouá, ou apenas como Eloim? Por exemplo, em Gênesis 28.13, quando Jacó sonha, encontramos: Eu sou Ieouá, o Eloim de Abraão, teu pai, e o Eloim de Isaque.

A aparente dificuldade pode nos encaminhar a uma questão fundamental: a da personalidade ou atributos de Deus. Sem, dúvida, a personalidade de Deus está ligada à sua transcendência, mas também à sua imanência e é, em parte, traduzida nesses dois nomes de Deus.

O nome Ieouá deriva do substantivo hebraico hai, vida, que em português também pode ser traduzido por ser e estar. Assim quando balbuciamos, cantamos ou ouvimos o nome Ieouá, devemos pensar nos termos vida, ser, existência, entendendo que Ieouá é o único que possui vida em essência e existência eterna.

É importante observar, também, a conexão e semelhança existente entre o pronome ele em hebraico e hai. Em passagens como Isaías 43.10-11, o pronome é equivalente ao nome do Eterno Deus. No citado trecho de Isaías lemos: Eu sou a vida; antes de mim nenhum Eloim se formou, e depois de mim não haverá nenhum. Eu, eu mesmo sou Ieouá, e fora de mim não há nenhum salvador. E no salmo 102.27 encontramos: mas tu és a vida, e os teus anos jamais findarão.

Em hebraico, a palavra hai aparece muitas vezes como ser, equivalente ao “o mesmo”, aquele que não tem começo, nem fim.

Segundo Moshe Maimonides, erudito judeu da Idade Média, os nomes de Deus que encontramos nas Escrituras estão relacionados com suas ações, com apenas uma exceção, que é Ieouá. E este é considerado o nome por excelência, porque ele mostra em toda a sua extensão a substância de Deus. E na sequência acrescenta que no nome Ieouá, a personalidade do Eterno é expressada claramente. É sempre um nome próprio que traduz a pessoa de Deus.

A origem e o uso do nome Ieouá está ligado a Israel. Quando Moisés pergunta a Deus: Quando eu for aos filhos de Israel e disser: o Eloim de vossos pais me enviou a vós; e me perguntarem: Qual é o seu nome? que direi? E Eloim disse a Moisés: ego sum qui sum [conforme a Vulgata] Eu sou aquele que sou. O que poderia ser traduzido “eu sou aquele que é” ou “eu serei contigo”.

O ponto central dessa expressão, que sonorizamos Ieouá, é que Deus quer revelar-se a Moisés. Por isso, usa Ieouá. Como Ieouá, ele é o Deus que se torna música aos ouvidos humanos, para que possam conhecer aquele que é Eterno, o único. Por isso, ele diz a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós. Ieouá, o Eloim de vossos pais, o Eloim de Abraão, o Eloim de Isaque e o Eloim de Jacó me enviou até vós: Este é o meu nome para sempre, e esta será a minha lembrança de geração em geração. E em Êxodo 6.2-3 encontramos: Eu sou Ieouá. Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus todo-poderoso, mas pelo meu nome Ieouá não fui conhecido por eles.

Bem, aqui surge uma pergunta: Por que Deus diz que não foi conhecido por eles como Ieouá, se em Gênesis encontramos o nome Ieouá, assim como em vários outros trechos, inclusive na própria promessa da aliança?

É importante notar que até Moisés nenhum povo tinha conhecimento da revelação pessoalmente dirigida de Deus. Os povos tinham acesso à revelação católica, aquela que o apóstolo Paulo descreve em Romanos 1.19-21. Essa revelação universal é geral e plena, mas silenciosa: está dentro de todos/as, começou na origem, continua a vigir hoje e torna os humanos conhecedores da existência do Criador.

Mas a partir de Moisés, Deus dá aos filhos de Israel um som especial. Através dessa revelação, o povo de Israel toma conhecimento dos atributos pessoais, morais de Deus, como veracidade, benevolência, fidelidade, graça, justiça, misericórdia e santidade. Este Deus que se revela de forma particular, enquanto pessoa é Ieouá.

Vemos isso em Êxodo 34.6 quando a aliança é renovada e o próprio Deus diz de si mesmo: quo transeunte coram eo ait Dominator Domine Deus misericors et clemens patiens et multae miserationis ac verus [ainda segundo a Vulgata]. Assim, Deus apresenta-se como ser inteligente, com autodeterminação plena e consciência moral.

Ieouá nos apresenta outra característica de Deus: a sua unicidade. Encontramos em Êxodo 20.2-3: Eu sou Ieouá, teu Eloim que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros Eloim diante de mim. E em Deuteronômio 6.4 esta declaração é incisiva: audi Israhel Dominus Deus noster Dominus unus est. Esta declaração de Ieouá como o único Eloim será confessada por Davi em 2Samuel 7.22 e por Isaías (41.4; 43.10,11 e 44.6). De fato, é uma confissão que implica em compreensão daquilo que Deus é enquanto único: fundamento da realidade, imutável em suas promessas, aquilo que será. Toda escolha é realizada de conformidade com Sua vontade e prazer.

Pluralidade em Eloim

Só no primeiro capítulo de Gênesis, o nome Eloim aparece 32 vezes. No Antigo Testamento, Eloim ocorre 2.570 vezes. A palavra Eloim é uma derivação de El/Eloá, que transmite a idéia de poder, força, proeminência. Já o nome Eloim traduz uma idéia ampla e precisa, que é a de um criador que tem poder para governar, onipotência e soberania. Isto é indicado em Gênesis 1.1 e 2.4, já que Eloim aparece como o poderoso Deus criador do universo. Ele ordena e do caos o cosmos surge.

Mas há uma peculiaridade no nome Eloim. Ele é plural, na forma usual do masculino plural em hebraico. E em Gênesis 1.1 Eloim está no plural, mas o verbo está no singular. Mais interessante, ainda, é notar que em Gênesis 1.26 encontramos o verbo no plural: Façamos o homem a nossa imagem. Sem dúvida há uma conversa, mas com quem? Na sequência da frase encontramos demut tselem, imagem e semelhança, no singular, concordando com o pronome nossa, que também está no singular. Isto nos leva a deduzir que aquele que fala está se dirigindo a iguais, em imagem e substância. Ora, se quem fala é Deus Supremo, seus interlocutores não são anjos ou seres celestiais, mas Deus. E temos outros textos que nos levam em direção ao mesmo raciocínio: Gênesis 3.22, quando a pessoa desobedece; no castigo aos habitantes de Babel (Gn 11.7); o Salmo 149.2; Salomão em Eclesiastes 12.1; entre outros.

Existe a interpretação de que estamos diante de um plural majestático. Sabemos que a utilização dessa forma plural para reis era um costume comum no mundo semítico, mas devemos levar em conta as várias passagens e o contexto de cada uma delas. Sem dúvida, há textos em que a proposta de plural majestático encaixa-se perfeitamente, como é o caso de Juízes 11.24. Mas a generalização do conceito, sem dúvida, leva ao erro. Tal situação levou um estudioso judeu, Parkhurst, há duzentos anos, a afirmar que os cristãos têm razão em ver no nome Eloim uma expressão da trindade, pois o termo não implica apenas na definição daquele que cria, mas em Godhead.

Essa pluralidade da personalidade de Deus, que nós cristãos chamamos trindade, aparece de forma chocante em Josué 22.21-29, quando os filhos de Rubem, os filhos de Gade e da meia tribo de Manassés, em confissão diante de Deus e dos chefes das famílias de Israel, utilizam na mesma frase, juntos, três nomes de Deus: El/Eloá, Eloim, Ieouá. Expressão que, com variáveis, encontramos em Deuteronômio 10.17 e em Gênesis 33.20, 46:3 e Números 16.22, sendo que nas três citações só aparecem El/Eloá e Eloim. Nossos tradutores, usualmente, recorrem ao superlativo, como em Dt 10.17, Pois Ieouá vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de pessoas e não aceita suborno. Mas sem dúvida, aqui se fala da personalidade de Deus, e não nos parece que essa utilização seja acidental, principalmente porque não era costumeira entre os hebreus.

Sabemos que os antigos não entendiam a trindade de Deus. Mas nos parece que através dos nomes de Deus, que traduzem atributos, alguns conhecimentos sobre esta pluralidade de Deus foram transmitidos aos hebreus, já que a própria promessa do Messias foi sendo construída nos corações e mentes dos profetas no correr da história de Israel. O rabino David H. Stern, por exemplo, analisando Romanos 3.29-30, afirma que não há contradição entre a declaração da Shemá e a compreensão de que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, pois em nenhum momento a doutrina da trindade afirma que estamos diante de três deuses .

Claro está que para nós cristãos é mais fácil entender a Trindade, pois contamos com textos do Novo Testamento, como 1Co 8.4-6, 1Tm 1.17; 2.5-6, que falam a respeito do Pai; Rm 8.9, At 5.3-4, Jo 3.8 sobre o Espírito Santo; e Jo 10.30, Tito 2.13, Fp 2.6 sobre o Filho. Além das formas trinitarianas em Mateus 28.19-20, 2Co.1.21-22 e 13.13.

Mas não podemos dizer que esses dois nomes de Deus, Ieouá e Eloim para os antigos hebreus fossem a mesma coisa, simples sinônimos.

A exegese tem exatamente essa finalidade, decifrar, traduzir aquilo que o autor original do texto queria dizer. A distância histórica entre a nossa cultura e aquela dos antigos hebreus é uma realidade draconiana. Além do mais, tecnicamente, podemos dizer que cada palavra carrega mais conteúdo do que é perceptível numa rápida leitura. Isto porque Deus ao revelar-se aos povos utilizou um instrumento humano, a linguagem. Dessa inadequação entre significado e significante nasceu a necessidade da hermenêutica. A tarefa do hermeneuta consiste pois -- a partir da utilização de análises histórico-cultural e léxico-sintática -- na explicitação da mensagem, através de uma metodologia bem dirigida. As conclusões a que chega nada devem acrescentar ao significado do texto, pois já estavam contidas nele. Mas, para o estudioso, essas conclusões são novas, pois estavam gravadas no subsolo do texto interpretado.

Se, de fato, os nomes de Deus revelam a sua personalidade, e isso uma análise léxico-sintática parece confirmar, assim como alguns textos -- um exemplo é Josué 22.21-29 --, então podemos dizer, tecnicamente, que cada novo corte nas expressões estudadas aprofundará o sentido primeiro. Ou seja, ao voltarmos à leitura do chamado de Moisés, depois do estudo que realizamos em Êxodo 3.13-15, temos o horizonte ampliando em relação à unicidade e pluralidade de Deus.

mardi 3 mars 2009

O ser humano. Antropologia bíblica

Antropologia bíblica [Teologia Sistemática II]. Questões para serem discutidas em sala de aula.

O SER HUMANO
Façamos o ser humano segundo a nossa imagem, semelhante a nós”. Gn 1.26

Toda a criação de Deus é o mundo do ser humano. Assim afirmam os dois relatos da criação e o Salmo 8. Mas em que sentido o ser humano é a imagem de Deus? Como Deus confere ao ser humano essa correspondência? A partir da antropologia bíblica podemos ver que:
[1] Em primeiro lugar o ser humano é fruto de uma intervenção de Deus. Há uma concessão de encargo que diferencia o ser humano do resto da criação. Ele é apresentado como um momento especial que coroa a ação criadora de Deus (Sl 8.6). Ele recebe responsabilidade (Gn 2.15-17) e poder de decisão (2.18-23).
[2] Em segundo lugar, Deus deixa claro a finalidade da decisão de criar um ser pessoal, segundo sua imagem. Tal ser deverá ter uma relação especial com o restante da criação (1.26). Deus cria e entrega ao ser humano sua criação. Este ser pessoal deverá estar sobre ela, numa relação de administração, cuidado e produção (2.15,16,19). O ser humano relaciona-se com a criação e através do uso dela e de suas descobertas em relação a ela, mantém uma permanente relação com Deus.
[3] Em terceiro lugar, a imagem de Deus é traduzida na relação que mantém com as criaturas, já que é uma relação de domínio. Ele reina sobre o universo produzido pelo poder criador de Deus. Mas aqui há um detalhe importante: este direito de domínio não lhe é próprio, ele reina enquanto imagem de Deus. Ele não é proprietário, nem tem autonomia irrestrita sobre a criação.
[4] Mas imagem de Deus traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte da humanidade o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto, do sobrenatural e do mistério. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade factual.
E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que o ser humano enquanto imagem de Deus pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, ao ser feito imagem de Deus, o próprio Deus transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com Ele.

UM SER PLURAL
[5] Esse ser humano de que fala Gn 1.26, que deve ser uma imagem de Deus, não é uma pessoa em particular, pois a continuação do texto fala que eles dominem. Estamos diante da criação da humanidade e o domínio do universo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos seres humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio dada por Deus à humanidade.
Da mesma maneira, em Gn 1.27 temos uma outra característica fundamental dessa mesma humanidade: ela é formada por conjuntos pares. Para alguns teólogos, como Karl Barth, tal explicação de Gn 1.27b, de uma humanidade formada por pares, é apresentada por Deus “quase à maneira de definição”.
Logicamente, há uma intenção para que o texto bíblico aprofunde-se em tais minúcias. É a de apresentar como o universo criado deveria ser administrado: através da convivência de seres que se completam e se amam. Ou seja, esse ser plural só poderia exercer o domínio através da comunidade, completando-se como homem e mulher.

Para onde aponta o domínio?
Se toda a criação de Deus é o mundo do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há astros divinos, terra divina, animais divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do ser humano, seu espaço, que ele pode adaptar às suas necessidades e administrar.
E como ele consegue isso? Através da cultura, enquanto processo social e objetivo de sujeição da natureza, e através dessa necessidade de expansão e domínio, pessoal e subjetivo, que é peculiar a todo homem e mulher livres.
O afastamento de Deus fez com que a humanidade perdesse sua capacidade de ser imagem de Deus viva e eficaz. Seu caráter inicial está distorcido e o mal perpassa todas suas ações. Assim, o ser humano lançou-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiu o equilíbrio e a mútua ajuda entre homem e mulher; mitificou a ciência e técnica; e lançou-se à destruição da própria natureza.
Cristo é “a verdadeira imagem do Deus invisível” (Cl 1.15 cf. 2Co 4.4) e a Ele cabe fazer, a nível escatológico, aquilo que à humanidade tornou-se impossível. “Foi-me dado todo o poder no céu e na terra, por isso, indo, fazei discípulos em todas as nações” (Mt 28.18).