mardi 4 juin 2019

Religião e socialismo na formação do Partido dos Trabalhadores

Roteiro e bases teóricas que permitem uma abordagem teológica do pensamento socialista na formação do Partido dos Trabalhadores


Jorge Pinheiro, PhD


Em 2006, quando fiz a defesa de minha tese de doutorado, eu disse que meu objetivo era analisar desde um ponto de vista teológico o pensamento socialista no Partido dos Trabalhadores. E parti do teólogo Paul Tillich porque em seus escritos, principalmente na sua fase alemã [1], ele procurou mostrar que, por sua origem, o pensamento socialista tem base religiosa e mais precisamente cristã. Nesse sentido, Tillich apresentou um roteiro e bases teóricas que permitem tal abordagem teológica do pensamento socialista na formação do Partido dos Trabalhadores.

Agora, passados treze anos da defesa, quero multiplicar com meus leitores, aquela análise teológica do socialismo, partindo de questões levantadas por Tillich: as relações entre ser e consciência; as relações entre massa e mobilização; e as relações entre mito e utopia. Onde, a partir da história da Europa, mostrou que no final da Idade Média foram lançadas as bases do socialismo contemporâneo, quando grupos romperam com as estruturas da sociedade medieval e começaram a fazer um caminho que teve por base a autonomia.

Em A Decisão Socialista [2], afirmou que o socialismo é um movimento de oposição, mas também de mão dupla, porque se por um lado foi um movimento de oposição à sociedade burguesa, por outro, enquanto mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajuda a compreender as raízes do pensamento político. Assim, na teologia política de Tillich seu primeiro referencial é o ser.

Nesse sentido, podemos dizer que Tillich faz uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político conservador. E é a partir da análise do pensamento conservador que Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo.                                                                           

O marxismo: ortodoxia e heterodoxia

Em artigo publicado em Das neue Deutschland [3], em 1919, Paul Tillich considera o socialismo como um produto da evolução espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impôs com a Renascença e a Reforma e, posteriormente, com o desenvolvimento do capitalismo. O socialismo surgiu como oposição à cultura autoritária e monolítica da Idade Média e sedimentou suas bases nas criações culturais autônomas dos últimos séculos.[4]

O socialismo só pode ser compreendido a partir desta evolução e sua permanência está ligada diretamente a este desenvolvimento. Deve-se reafirmar, porém, que é do interior do cristianismo que brota o socialismo e que um socialismo sem estes pressupostos é uma quimera. Por isso, ao fazer a análise dos fundamentos do socialismo no Partido dos Trabalhadores devemos, metodologicamente, entender sobre quais princípios ele repousa.[5]

A organização espiritual e econômica da Idade Média, afirma Tillich, estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e o supranatural numa unidade poderosa [6], sujeitando comunidades e povos a tal cosmovisão.

A partir do Iluminismo, tal postura foi duramente questionada, e no domínio espiritual, político, econômico, nada deixou de ser pensado, medido e negado, enfim, confrontado com a consciência pensante. Os sistemas de fé, as formas de governo e autoridade, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não teve nenhum respeito pelas autoridades, quer se digam humanas ou divinas [7].

O sistema de autoridade desabou, para alegria de muito e tristeza de outros. De todas as maneiras, houve o reconhecimento de que a vida cultural não podia ser pensada sem autonomia, e o socialismo começou a se fazer presente. Líderes e camponeses tiveram o mesmo desejo: conquistar a liberdade das mãos do autoritarismo fosse ele imanente ou transcendente [8].

Assim, a autonomia iniciou o seu reinado, o reinado da razão [9]. Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não viu limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentou um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas foram possuídas por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional [10]. E a vida econômica também deveria ser formulada racionalmente. Não era para o prazer de certos indivíduos ou povos que se deveria fazer a lei, mas para a humanidade inteira, sujeito e objeto dos processos econômicos e quem deveria fazê-lo a partir de critérios racionais [11].

A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo deve levar em conta [12]. Mas, explicou Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o “pensamento histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas” [13].

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surge com uma força irresistível na Renascença e “conduziu a uma afirmação alegre deste mundo”, que durante muito tempo foi negado, desdenhado e rebaixado por um outro onírico e místico [14].

Os outros mundos empalideceram diante da nova astronomia, diante da validade universal das leis da natureza, diante da redescoberta da beleza do real na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza [15]. Foi assim que a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se uniu à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. “Este é o terceiro fato que o cristianismo deve levar em conta” [16], afirmou Tillich. Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele tem, no entanto, uma originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida.

O conceito de humanidade, disse ainda Tillich, que manifesta a vitória da idéia de tolerância, não teve na evolução da burguesia mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade foi neutralizada pela consciência de classe, educação e de dependência nacional [17]. A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. Foi somente pela pressão sobre os trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo, explicou Tillich, que nasceu uma “consciência solidária, no coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê no homem um meio e não um fim” [18].

O combate contra o feudalismo, contra o capitalismo, contra o nacionalismo e contra o confessionalismo constitui a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece o humano em cada pessoa. “Este é o quarto fato que o cristianismo deve levar em conta” [19], concluiu Tillich.

O que fica claro em Tillich é que autonomia e socialismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade europeia no período que se abriu a partir do Iluminismo e que pôs em xeque a tradição e o autoritarismo, serviria de base para a ação socialista. Autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o socialismo construiu um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida.

A luta dos trabalhadores contra a alienação e exclusão social gerou consciência solidária e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o arbítrio.

Quando olhamos o socialismo latino-americano a partir da crítica ao eurocentrismo, podemos dizer que hoje se repete o que sucedeu há quinhentos anos com a conquista da América: o homem europeu, e por extensão estadunidense, constituiu o sentido do ser latino-americano e do brasileiro, encontrado a partir da totalidade de sentido europeia. Na verdade, o  habitante da América índia, negra e mestiça não foi descoberto como outro, mas como o mesmo já conhecido e, em seguida negado, ocultado e transformado em objeto do ego moderno.

O ponto fundamental dessa crítica é que a Europa, num primeiro momento, e os Estados Unidos depois descobriram um novo espaço geográfico, compreendeu-o como horizonte fundamental do ser do centro, campo de batalha no qual exerce uma práxis de dominação [20]. Tal formulação desconstrói o sistema ontológico da dominação, a partir da exterioridade do outro como sujeito ético, como rosto e como corporeidade, que grita e reclama justiça. Os excluídos do sistema cultural ocidental devem ser tomados como centro de um novo modelo de racionalidade, ético-crítica.

Diante das massas crescentes de deserdados que tomam consciência de sua negação originária como subjetividade excluída ou objetivada dentro do sistema dominante, os poderosos utilizam a guerra e, se admitem o diálogo, é no interior de sua comunidade de comunicação hegemônica, que não garante a reprodução e o desenvolvimento da vida humana. A teologia deve pensar a realidade mundial além da fronteira do centro, que distingue entre populações dotadas de direitos e poderes e populações excluídas e utilizadas como instrumentos manipuláveis.

Se entendermos esse processo de construção da dominação, podemos analisar o processo de gestação do Partido dos Trabalhadores a partir da exposição que Tillich faz acerca da passagem da heteronomia à autonomia e, posteriormente, à teonomia, enquanto ciclos que procuram romper a lógica de ferro da dominação. Para ele, os movimentos de massa são encontrados em movimentos religiosos, nos movimentos políticos e raciais de imigrantes e nos movimentos econômicos do socialismo [21]. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas sempre são movimentos de libertação: já que é parteira de escravos, de povos excluídos, ou de escravos livres, trabalhadores assalariados, que a industrialização levou a uma dinâmica de massa que transbordou a história [22].
Notas
[1] Paul Tillich, La dimension religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990; Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992; Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994.
[2] Introdução: As duas raízes do pensamento político, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, pp. 219-365.
[3] Publicado posteriormente em Christianisme et Socialisme I in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp.23-30.
[4] Idem, op.cit., p.23.
[5] Idem, op.cit., p.23.
[6] Idem, op.cit., p.24.
[7] Idem, op.cit., p. 24.
[8] Idem, op.cit., p.24.
[9] Idem, op.cit., p.24.
[10] Idem, op.cit. pp.24-25.
[11] Idem, op.cit, p. 25.
[12] Idem, op.cit. p.25.
[13] Idem, op.cit, p. 25.
[14] Idem, op.cit., p.25.
[15] Idem, op.cit., p.25.
[16] Idem, op.cit.,p. 26.
[17] Idem, op.cit., p.26.
[18] Idem, op.cit., p.26.
[19] Idem, op.cit., p.26.
[20] Alessia Ansaloni, A nova Conquista: análise de um filósofo periférico, Universidade de Bolonha.
[21] Idem, op.cit., p. 81.
[22] Idem, op. cit., p.81.