Roteiro e bases teóricas que permitem uma abordagem teológica do pensamento socialista na formação do Partido dos Trabalhadores
Jorge Pinheiro, PhD
Em 2006,
quando fiz a defesa de minha tese de doutorado, eu disse que meu objetivo era
analisar desde um ponto de vista teológico o pensamento socialista no Partido
dos Trabalhadores. E parti do teólogo Paul Tillich porque em seus escritos,
principalmente na sua fase alemã [1], ele procurou mostrar que, por sua origem,
o pensamento socialista tem base religiosa e mais precisamente cristã. Nesse
sentido, Tillich apresentou um roteiro e bases teóricas que permitem tal
abordagem teológica do pensamento socialista na formação do Partido dos
Trabalhadores.
Agora,
passados treze anos da defesa, quero multiplicar com meus leitores, aquela
análise teológica do socialismo, partindo de questões levantadas por Tillich:
as relações entre ser e consciência; as relações entre massa e mobilização; e
as relações entre mito e utopia. Onde, a partir da história da Europa, mostrou
que no final da Idade Média foram lançadas as bases do socialismo
contemporâneo, quando grupos romperam com as estruturas da sociedade medieval e
começaram a fazer um caminho que teve por base a autonomia.
Em A Decisão Socialista [2], afirmou que o
socialismo é um movimento de oposição, mas também de mão dupla, porque se por
um lado foi um movimento de oposição à sociedade burguesa, por outro, enquanto
mediação, uniu-se à sociedade burguesa na oposição às formas feudais e
patriarcais de sociedade. Entender esta raiz do socialismo ajuda a compreender
as raízes do pensamento político. Assim, na teologia política de Tillich seu primeiro
referencial é o ser.
Nesse
sentido, podemos dizer que Tillich faz uma fenomenologia política quando
analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e
a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento
político conservador. E é a partir da análise do pensamento conservador que
Tillich vai explicar o surgimento da democracia e do socialismo.
O
marxismo: ortodoxia e heterodoxia
Em artigo
publicado em Das neue Deutschland [3],
em 1919, Paul Tillich considera o socialismo como um produto da evolução
espiritual e econômica, que foi lentamente preparado e que se impôs com a
Renascença e a Reforma e, posteriormente, com o desenvolvimento do capitalismo.
O socialismo surgiu como oposição à cultura autoritária e monolítica da Idade
Média e sedimentou suas bases nas criações culturais autônomas dos últimos
séculos.[4]
O
socialismo só pode ser compreendido a partir desta evolução e sua permanência
está ligada diretamente a este desenvolvimento. Deve-se reafirmar, porém, que é
do interior do cristianismo que brota o socialismo e que um socialismo sem
estes pressupostos é uma quimera. Por isso, ao fazer a análise dos fundamentos
do socialismo no Partido dos Trabalhadores devemos, metodologicamente, entender
sobre quais princípios ele repousa.[5]
A
organização espiritual e econômica da Idade Média, afirma Tillich, estava
fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no
sobrenatural, associava a natureza e o supranatural numa unidade poderosa [6],
sujeitando comunidades e povos a tal cosmovisão.
A partir
do Iluminismo, tal postura foi duramente questionada, e no domínio espiritual,
político, econômico, nada deixou de ser pensado, medido e negado, enfim,
confrontado com a consciência pensante. Os sistemas de fé, as formas de governo
e autoridade, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não
teve nenhum respeito pelas autoridades, quer se digam humanas ou divinas [7].
O sistema
de autoridade desabou, para alegria de muito e tristeza de outros. De todas as
maneiras, houve o reconhecimento de que a vida cultural não podia ser pensada
sem autonomia, e o socialismo começou a se fazer presente. Líderes e camponeses
tiveram o mesmo desejo: conquistar a liberdade das mãos do autoritarismo fosse
ele imanente ou transcendente [8].
Assim, a
autonomia iniciou o seu reinado, o reinado da razão [9]. Pela primeira vez,
depois de um milênio e meio, a razão humana não viu limites para seu poder.
Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social,
simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentou um
sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas foram possuídas
por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional [10]. E a vida
econômica também deveria ser formulada racionalmente. Não era para o prazer de
certos indivíduos ou povos que se deveria fazer a lei, mas para a humanidade
inteira, sujeito e objeto dos processos econômicos e quem deveria fazê-lo a
partir de critérios racionais [11].
A mesma
autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um
mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo deve levar em conta [12].
Mas, explicou Tillich, sem dúvida foi Marx quem introduziu o “pensamento
histórico objetivo do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão
precisa ser separada da decisão humana e colocada ao nível das necessidades
objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma
fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e
que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas” [13].
Foi o
processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este
combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que
conhecemos como moderno. Para Tillich, a fé na razão está fundamentada sobre os
resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza
veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade
Média, ela surge com uma força irresistível na Renascença e “conduziu a uma
afirmação alegre deste mundo”, que durante muito tempo foi negado, desdenhado e
rebaixado por um outro onírico e místico [14].
Os outros
mundos empalideceram diante da nova astronomia, diante da validade universal
das leis da natureza, diante da redescoberta da beleza do real na arte, diante
da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza [15].
Foi assim que a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, com
Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se uniu à
consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um
sentimento unitário da vida e do mundo. “Este é o terceiro fato que o
cristianismo deve levar em conta” [16], afirmou Tillich. Se o socialismo é,
nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele tem, no entanto, uma
originalidade que não se restringe aos conceitos, mas à experiência vivida.
O conceito
de humanidade, disse ainda Tillich, que manifesta a vitória da idéia de
tolerância, não teve na evolução da burguesia mais que uma realização
acidental. A consciência da humanidade foi neutralizada pela consciência de
classe, educação e de dependência nacional [17]. A humanidade se colocou antes
de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias a idéia de
uma transformação racional do mundo. Foi somente pela pressão sobre os
trabalhadores nos primeiros decênios do moderno capitalismo, explicou Tillich,
que nasceu uma “consciência solidária, no coração do qual está presente o
sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê no homem um meio
e não um fim” [18].
O combate
contra o feudalismo, contra o capitalismo, contra o nacionalismo e contra o
confessionalismo constitui a expressão negativa da consciência incondicional de
humanidade, que derruba barreiras e reconhece o humano em cada pessoa. “Este é
o quarto fato que o cristianismo deve levar em conta” [19], concluiu Tillich.
O que fica
claro em Tillich é que autonomia e socialismo são processos históricos que se
complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela
sociedade europeia no período que se abriu a partir do Iluminismo e que pôs em
xeque a tradição e o autoritarismo, serviria de base para a ação socialista.
Autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o
socialismo construiu um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua
originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência vivida.
A luta dos
trabalhadores contra a alienação e exclusão social gerou consciência solidária
e sentimento universal de humanidade. Mas, ainda assim, ao se limitar ao campo
da autonomia, sem uma atitude que permita à incondicionalidade apoderar-se da
própria autonomia, o socialismo deixa aberto o caminho para o autoritarismo e o
arbítrio.
Quando
olhamos o socialismo latino-americano a partir da crítica ao eurocentrismo,
podemos dizer que hoje se repete o que sucedeu há quinhentos anos com a
conquista da América: o homem europeu, e por extensão estadunidense, constituiu
o sentido do ser latino-americano e do brasileiro, encontrado a partir da
totalidade de sentido europeia. Na verdade, o
habitante da América índia, negra e mestiça não foi descoberto como
outro, mas como o mesmo já conhecido e, em seguida negado, ocultado e
transformado em objeto do ego moderno.
O ponto
fundamental dessa crítica é que a Europa, num primeiro momento, e os Estados
Unidos depois descobriram um novo espaço geográfico, compreendeu-o como
horizonte fundamental do ser do centro, campo de batalha no qual exerce uma
práxis de dominação [20]. Tal formulação desconstrói o sistema ontológico da
dominação, a partir da exterioridade do outro como sujeito ético, como rosto e
como corporeidade, que grita e reclama justiça. Os excluídos do sistema
cultural ocidental devem ser tomados como centro de um novo modelo de
racionalidade, ético-crítica.
Diante das
massas crescentes de deserdados que tomam consciência de sua negação originária
como subjetividade excluída ou objetivada dentro do sistema dominante, os
poderosos utilizam a guerra e, se admitem o diálogo, é no interior de sua
comunidade de comunicação hegemônica, que não garante a reprodução e o
desenvolvimento da vida humana. A teologia deve pensar a realidade mundial além
da fronteira do centro, que distingue entre populações dotadas de direitos e
poderes e populações excluídas e utilizadas como instrumentos manipuláveis.
Se
entendermos esse processo de construção da dominação, podemos analisar o
processo de gestação do Partido dos Trabalhadores a partir da exposição que
Tillich faz acerca da passagem da heteronomia à autonomia e, posteriormente, à
teonomia, enquanto ciclos que procuram romper a lógica de ferro da dominação.
Para ele, os movimentos de massa são encontrados em movimentos religiosos, nos
movimentos políticos e raciais de imigrantes e nos movimentos econômicos do
socialismo [21]. Embora esses movimentos possam ser encontrados em diversas
épocas, também o são em diferentes esferas da cultura. Mas sempre são
movimentos de libertação: já que é parteira de escravos, de povos excluídos, ou
de escravos livres, trabalhadores assalariados, que a industrialização levou a
uma dinâmica de massa que transbordou a história [22].
Notas[1] Paul Tillich, La dimension religieuse de la culture, 1919-1926, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1990; Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands, 1919-1931, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992; Écrits contre les nazis, 1932-1935, Paris, Géneve, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1994.
[2] Introdução: As duas raízes do pensamento político, Potsdam 1933, Gesammelte Werke, II, pp. 219-365.
[3] Publicado posteriormente em Christianisme et Socialisme I in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp.23-30.
[4] Idem, op.cit., p.23.
[5] Idem, op.cit., p.23.
[6] Idem, op.cit., p.24.
[7] Idem, op.cit., p. 24.
[8] Idem, op.cit., p.24.
[9] Idem, op.cit., p.24.
[10] Idem, op.cit. pp.24-25.
[11] Idem, op.cit, p. 25.
[12] Idem, op.cit. p.25.
[13] Idem, op.cit, p. 25.
[14] Idem, op.cit., p.25.
[15] Idem, op.cit., p.25.
[16] Idem, op.cit.,p. 26.
[17] Idem, op.cit., p.26.
[18] Idem, op.cit., p.26.
[19] Idem, op.cit., p.26.
[20] Alessia Ansaloni, A nova Conquista: análise de um filósofo periférico, Universidade de Bolonha.
[21] Idem, op.cit., p. 81.
[22] Idem, op. cit., p.81.
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