lundi 16 avril 2012

O punhal de Abraão e o sentido da vida

Gênesis 22 é um dos textos mais desnorteadores do Antigo Testamento. Abraão, em obediência a Deus, se prepara para sacrificar seu filho. Mas o texto apresenta lições preciosas sobre o sentido da vida.


A teologia relaciona conhecimento e experiência e estabelece entre elas correlações. É através das correlações que percebemos as dimensões da vida: estética, ética e a dimensão da fé.

A dimensão da alegria, emoção e prazer

"Abrão respondeu: - Ó SENHOR, meu Deus! De que vale a tua recompensa se eu continuo sem filhos? Eliézer, de Damasco, é quem vai herdar tudo o que tenho" (15.2). 

A dimensão da alegria, afetiva, emocional e do prazer é básica na realidade humana. Essa experiência é diversificada, mas tem uma característica comum: o desejo. O sentido estético da existência traduz-se na busca da realização profissional, do consumo e posse de bens. Abraão fez essa experiência estética, mas ela não bastou. Por isso disse a Deus:

"Ó SENHOR, meu Deus! De que vale a tua recompensa se eu continuo sem filhos? Eliézer, de Damasco, é quem vai herdar tudo o que tenho".

O desejo produz satisfação afetiva, emocional e material, e a principal experiência estética é o desejo erótico.

A dimensão do compromisso, do direito e da lei 

A dimensão estética não nos realiza plenamente. Muitas vezes, os objetivos não são claros e se perdem por não haver plena satisfação. Há uma outra dimensão humana que, ao contrário da experiência estética, é de mais fácil definição: a dimensão ética, que traduz compromissos, deveres e as leis que governam a vida. E o herói dessa dimensão ética é o cônjuge fiel.

O casamento cristão, indissolúvel, pleno de companheirismo, é um discurso de exaltação ao amor. O casamento é o meio através do qual homem e mulher fazem uma opção, tendo Deus como testemunha. É aqui que se evidencia a experiência ética: os dois terão que resistir aos dias maus para manter a vida conjugal.

O homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher e os dois serão uma só pessoa, de modo que não são dois mais um só”. Marcos 10.7-8.

O casamento é a mais profunda experiência para se atingir tal sentido ético de vida. O casal deve entender que o heroísmo moral da vida cotidiana é a única forma de desviá-los dos caminhos que comprometem a relação conjugal. Só o heroísmo ético, aliado à ajuda de Deus, pode salvar a vida conjugal e a vida moral. Mas o casamento não é a única e derradeira experiência ética humana. A experiência da escolha e do posicionamento diante de Deus é uma fonte de inspiração e um espaço de reflexão e vida.

A dimensão da fé

O sentido ético na vida de Abraão não foi dado por sua relação com Sara, pois não foi um marido exemplar...

"Diga, então, que você é minha irmã. Assim, por sua causa, eles me deixarão viver e me tratarão bem". (12.13).

"Abraão dizia que Sara era sua irmã. Então Abimeleque, rei de Gerar, mandou que trouxessem Sara para o seu palácio". (20.2).

... foi dado pelo nascimento de Isaque. O filho prometido possibilitou a Abraão essa experiência ética mas, ainda assim, faltava ao patriarca o desafio da fé, a entrega a Deus daquilo que lhe era mais caro.

Pensemos: Caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão não teria como justificá-lo à luz da ética humana. Seria o assassino de seu filho. Permaneceria toda a vida indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida seria permanente.

Abraão sofreu, mas posicionou-se. Ou como diria Habacuque (2.4), séculos depois, o homem de más intenções não sobrevive, mas o justo tem fé, está posicionado em Deus e vive. A fé fez com que ele saltasse das dimensões da alegria, afetividade e prazer, e da própria razão ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na sua radicalidade o desafio da fé. A fé representa um salto, a ausência de mediação humana, porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A fé é inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor. Por isso, o escritor de Hebreus (11.1.) dirá que a fé é a certeza de que vamos receber o que Deus prometeu e a prova de que existem coisas que nossos olhos e razão não conseguem ver.

Quando chegaram ao local que Deus havia indicado, Abraão fez um altar e arrumou a lenha em cima dele. Depois amarrou Isaque e o colocou no altar, em cima da lenha. Em seguida pegou o punhal para matá-lo”. 22.9-10.

O punhal de Abraão é o símbolo do salto. É  angústia desespero. Mas o movimento da lâmina que aparentemente antecede a morte, conduz ao grito de Deus: Abraão! O movimento da lâmina leva a um novo sentido da vida, ao encontro com o filho amado. 

Abraão não hesitou em sacrificar Isaque e esta entrega lhe deu o filho de volta. A dimensão da fé é entrega ao Deus que não vemos e comunica-se através do silêncio. As duas primeiras dimensões, estética e ética, perdem sentido sem a dimensão da fé. A fé deve estar presente tanto na dimensão estética quanto na ética. A fé é uma dimensão que desestrutura experiências e possibilita o encontro com o sentido real da vida.

Fé implica em fazer escolha e permanecer nela, é posicionamento, já que é solitude e colocar-se sob o olhar de Deus. Esse estar só no sofrimento nos leva a certeza de que Deus cumpre suas promessas e, assim, dá sentido a subjetividade e à vida.

Os movimentos do infinito

Quando nos colocamos diante da miserabilidade humana e de nosso destino, nos situamos diante de uma realidade que nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é substituição afetiva provisória que dura enquanto não se fortalecem as luzes da razão. É um modo de existir. E esse modo nos situa em relação ao absurdo e ao paradoxo. O  absurdo de Deus feito ser humano e o paradoxo das circunstâncias do advento de Cristo.

Deus tornado ser humano, Cristo é o mediador. É por meio de Cristo que o ser humano se situa existencialmente perante Deus. Cristo é o fato primordial para a compreensão que o ser humano tem de si. Não há mediação conceitual, prova racional, que nos transporte à compreensão da divindade. A mediação é o Cristo, é o fato do sacrifício do cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

Aqui se situam as circunstâncias que fazem da encarnação de Cristo um absurdo: a verdade não nos foi revelada com as pompas da lógica e da razão. Ela chegou a nós através de uma virgem que dá a luz, de uma criança que é Filho de Deus, mas nasce entre animais e, mais tarde, morre numa cruz como criminoso.

Sem riscos não há fé. Por isso, a fé caminha ao lado do amor. É por amor que Deus decide agir, mas como seu amor é a causa, seu amor também é o fim. Deus quer estabelecer relações com o ser humano. O amor de Deus ensina, mas também leva à dimensão da fé, quando passamos do “não somos” àquilo que “devemos ser”.

"Abraão olhou em volta e viu um carneiro preso pelos chifres, no meio de uma moita. Abraão foi, pegou o carneiro e o ofereceu como sacrifício em lugar do seu filho" (13).

"Abraão pôs naquele lugar o nome de "O SENHOR Deus dará o que for preciso”. É por isso que até hoje o povo diz: "Na sua montanha o SENHOR Deus dá o que é preciso” (14).

Caso permanecesse a distância infinita que separa Deus e o ser humano, jamais teríamos acesso à verdade. É a mediação do absurdo e do paradoxo que nos coloca em comunicação com Deus. Por isso devemos dizer: creio porque é absurdo. Este é o caminho do encontro com Deus. 

Assim, estamos diante de um movimento absurdo e paradoxal do infinito, que nos leva a romper com o imediato da vida, mas possibilita, por meio da fé, recuperá-lo. É possível tornar a vida compatível com o amor de Deus. A renúncia nos conduz a uma aparente e radical ruptura com o mundo, mas a fé nos traz para uma nova relação com o mundo, positiva, que reafirma numa nova dimensão a alegria e a lei, agora plenas de sentido! Por isso, posicionados, caminhemos com o Mestre, sabedores de que neste espaço de fé ele dará o que for preciso e nos fará sobrevoar alturas que as afetividades e a razão desconhecem (Hebreus 12.2).

Texto recomendado
Soren Kierkegaard, Temor e tremor, Editora Hemus, 2008.