jeudi 17 janvier 2013

Identidade e eternidade

Uma conversa em tempo, fora do tempo, mas cheia de tempero entre o rabbi Moisés Pinheiro, patriarca, e o fisiologista François Broussais

Por Jorge Pinheiro

Na mesma sala, sentados comodamente, num ambiente nada descontraído, na Paris angustiada mas esperançosa da Revolução de 1830, Moses Pinheiro, rabbi em Livorno, amigo do polêmico messias Shabbetai Zevi, com quem estudou literatura cabalística e talmúdica, discute questões que estão no pano de fundo da revolução com o médico François Joseph Victor Broussais, que pesquisa a relação entre fisiologia e patologia.

O médico se levanta da poltrona, caminha em direção à janela e diz

-- Meu caro Moses, a busca da justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? Se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.

O rabbi, sarcástico, sem abandonar uma certa postura quase sacerdotal, responde

-- François, é gostoso conversar com um gênio da medicina, como você, mas aqui eu fico com algumas informações de seus colegas. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de idéias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.

Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência vai além do corpo ou só existe o corpo e o resto é extensão dele. Mas como combinar uma indigestão com o arrependimento?

Prefiro dizer: somos parte da longa corrente da existência, extensa, seguimos e vamos além do corpo. A existência é essa extensão e cada pessoa tem uma identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una por ser simples e indivisível. Mesmo quando a gente envelhece e o corpo muda, a identidade permanece idêntica a si mesma. Somos um ao longo do tempo e é esta imutabilidade na existência que me confere identidade.

O fisiologista, irritado, como se discursasse para o povo sublevado, retruca

-- Moses, amigo, você defende o princípio da coexistência. Você está dizendo que eu sou dois. Um pedaço de mim envelhece, se desgasta e o outro não muda. Não concordo com isso!

Eu sei muito bem, porque tenho trabalhado com isso, que o cérebro está ligado à vida mental. Se um paciente sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. Embora ainda não se saiba como, o funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.

Era a deixa que o rabbi esperava

-- Espera aí, François, me deixa aprofundar os argumentos. A existência está unida ao corpo e participa da vida do corpo, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também, é independente do corpo nas suas funções intelectuais. Deste modo, a existência pensa e deseja sem a ajuda destes órgãos. Assim, a existência não está imersa no corpo, é independente sob diversos aspectos.

Lembro-me de que Aristóteles dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as idéias? Ser inteligente, pensar são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio.

A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa para se expressar de um cérebro saudável.

Mais calmo, numa tentativa de apaziguar ânimos, o médico desenha pontes no ar

-- Há uma parte do seu argumento que eu gosto, Moses, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do tempo.

O rabbi agora se levanta, dirige-se para uma lousa hipotética, faz sinais cabalísticos diante dela e explicita as diferenças

-- Bem, amigo François, creio que aqui nossos argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a nossa divergência: para mim, o cérebro é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos. E tomo como ponto de partida Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo.

O médico não se dá por vencido. Até agora não se sentou de novo. Caminha devagar, fixa o rabbi, olho no olho, e tece sua argumentação

-- Bem, Moses, já que você citou Aristóteles, quero trazer para esta conversa um exemplo apresentado por John Locke. Ele criou uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O corpo do sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o corpo do sapateiro.

Depois da troca, a pessoa no corpo do sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo?

Mas Locke resolveu complicar um pouco mais a questão: disse que o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que está no corpo do príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa no corpo do sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa no corpo de sapateiro e não a pessoa no corpo do príncipe.

Com essa parábola, Locke quer mostrar que a nossa identidade obedece à continuidade do meu cérebro. De acordo com a teoria proposta por Locke, uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. A teoria de Locke afirma que o príncipe no corpo do sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele corpo do sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Ao que o rabino responde de imediato, como se tivesse descoberto o ponto fraco do argumento do fisiologista

-- Locke é genial, mas eu pergunto: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro.

É François, talvez aí haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja a nefeche raiá soprada em nossas narinas, que será construção no caminhar de nossas experiências, sentimentos, emoções. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

O médico caminha devagar em direção à poltrona. Senta-se. Procura uma posição confortável, coloca calmamente tabaco no cachimbo e ouve com atenção, quase com deleite o discurso do rabino

-- O meu amigo Shabbetai Zevi analisou as possibilidades do midrash do Rav nazareno sobre o Lázaro e o homem rico e constatou que é uma das passagens mais marcantes referente ao estado do ser humano após a morte. Nela se evoca imagens ilustrativas de recompensa e juízo. É interessante notar que o Rav de Nazaré construiu esse midrash para os prushim e não para os seduqim. Os seduqim não pensavam existir uma vida além-túmulo no sentido de céu e inferno, apoiando-se nos conceitos mais tradicionais do judaísmo do Sheol como o lugar de todos os mortos, sem diferenciação. O midrash, como todo o texto maior do Rav Lucas, discípulo do nazareno, desde o capítulo quatorze, parece estar bem dirigida aos prushim, que tinham expectativas messiânicas e escatológicas desenvolvidas. O ensino, portanto, tem uma audiência específica. Parece que o tratamento do reino dado pelo Rav para os seduqim teria uma ótica e ênfase diferente.

O Rav de Nazaré coloca mais ênfase no ensino referente ao inferno do que propriamente no ensino referente ao céu. Deve-se lembrar, porém, que o inferno não é o contraponto ou oposto do céu, mas do reino. Nestes termos, o ensino do Rav é também dirigido à inclusão dos seduqim. O reinar já chegou e começa no aqui e no agora. Esta vida no reinar é a vida das eternidades, conforme diz Shabbetai, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o Um Eterno reine no pessoa e no corpo, o céu é a continuação do reinar do Adonai Echad, mesmo após a morte.

A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano continua após a morte o seu relacionamento com o Um Eterno, seja como for o mesmo -- na intimidade do reinar do Ain Soph ou na separação dele, o inferno.

O midrash de Lázaro e o homem rico está inserido no contexto maior do texto do Rav Lucas, desde o início do capítulo quatorze. Em geral, um midrash é dirigido a alguém para evocar uma resposta. Assim, é necessário compreender o contexto a quem o midrash estava sendo dirigido e com que motivo foi empregado pelo Rav. Também algumas questões devem ser colocadas de antemão.

O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos prushim e a forma de vida do reinar que o Rav pregava. Desde pelo menos o capítulo quatorze, o Rav lança uma série de críticas aos Cohanim do seu dia. Com esta crítica, enfatiza o tipo de vida do reinar do Adon Olam, a vida das eternidades, por sua qualidade.

A crítica do Rav de Nazaré questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete escatológico: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.

François Broussais salta e começa a falar

-- Entendo, entendo. Seu argumento, querido rabbi, é: Se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, segundo você, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.

O rabbi Moses Pinheiro sorri o sorriso dos sábios

-- Só que não estou só. Aristóteles, todos os cabalistas e eu também não vejo nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmamos que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência é o único princípio de toda a atividade vital do homem, da sua vida vegetativa e sensitiva e, também, de sua vida propriamente espiritual.

A correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, sensibilidade, inteligência e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações psicológicas e as funções orgânicas.

O fisiologista, quase à maneira de dueto, acrescenta

-- Uma comoção violenta da existência faz parar a circulação do sangue, o medo paralisa, e a confiança sustenta as forças físicas, o trabalho intelectual intenso retarda a digestão, poder-se-ia citar fatos que provam a influência do físico no moral, e reciprocamente. Mas, seguindo seu raciocínio, você ainda deve me explicar. Demonstrada a união da existência e do corpo, como se faz esta união?

Moses Pinheiro volta às suas construções diante da lousa imaginária. E aceita o desafio do fisiologista

-- O corpo não existe antes da sua união com a existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele ser humano.

Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida que existirá separadamente do corpo, vivendo a sua vida espiritual mas, sem o corpo, não mais poderá exercer as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a sensibilidade, a percepção externa e a imaginação.

Deste modo eu considero, com Aristóteles, que o corpo é a matéria, e a existência é a forma, e que a união do corpo com a existência faz um todo verdadeiro e substancial. A diferença de forma é o meio através do qual somos separados de nosso Criador. Assim, como nos ensina o Sefer haZohar, podemos entender que desde que foi colocado no existir o desejo de receber, o que não é encontrado de nenhuma forma no El-Shaddai -- pois de quem Ele poderia receber? --, foi estabelecida a diferença de forma, que nos separa do Criador. Mas se há diferença de forma, há imagem e semelhança: é a união no Criador que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência. É este o princípio eterno que coloca em cheque o racionalismo de Descartes.


Talvez por não ter tantas oportunidades de um diálogo com o rabbi, em meio à revolução que estilhaça corações e vidas, François Broussais se mostra curioso diante dos argumentos do judeu

-- É certo, entendo, com a morte, o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a eternidade?

Moses Pinheiro vê a pergunta do cientista como um clamor da existência. E responde docemente, cheio de carinho

-- A eternidade consiste na sobrevivência substancial e pessoal do eu, na identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. Após a morte, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do seu passado, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem castigo: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça divina. Como disse anteriormente, o Sefer haZohar diz que o que não existia na essência do Um Eterno, mas que poderia ser chamado de completamente novo criado é a vontade de receber. Este algo novo, que não estava contido na essência do El-Shaddai, é o pensamento da Criação, cujo propósito é dar alegria aqueles que Ele criou, gerado a partir da necessidade da vontade de receber Dele todo o bem e prazer que Ele imaginou para nós. Temos aí a base da existência e de seu caminhar eterno. A razão para a sua sobrevivência após a morte do corpo é demonstrada pelo argumento moral.

O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência ao ser como é, simples e espiritual, não pode decompor-se nem se desagregar -- não morre, pois, com o corpo. Este é o argumento metafísico da existência cuja eternidade repousa no pensamento da Criação.

Há o Adonai Echad e a lei moral, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a comunidade, nem a própria consciência dispõem de sanções suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício; é necessário, portanto, que haja outra vida onde a justiça seja plenamente satisfeita, e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a sobrevivência da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração.

O argumento moral se assenta sobre o princípio de que o Um Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.

O ser humano aspira a um objeto infinito, a uma verdade, beleza e bondade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não se pode satisfazer fora deste bem infinito, que não é outro senão o próprio Eterno.

Mas, o que encontramos neste mundo que apague esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o infinito? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades.

Hades é a expressão grega utilizada na Torá dos setenta para traduzir o termo hebraico sheol, lugar de continuidade daqueles que deixaram o mundo dos vivos. Na Torá, sheol é uma expressão de origem incerta, mas que aparece 65 vezes no testamento hebraico-judaico. A mishná do sheol cresceu ao longo da história da religião judaica. No rolo de Eclesiastes, por exemplo, nem entra em cogitação a possibilidade de uma vida além-túmulo. Quando, porém, aparece na religião de Israel a construção da mishná da vida além-túmulo, surge como lugar de silêncio. A mishná do sheol, aparece, no entanto, ao lado de outros, como abadon, cujo primeiro significado é destruição, mas vai ser lido também como reino dos mortos. As duas expressões, porém, são imprecisas e estão muito vinculadas ao midrash em que estão inseridas. A idéia geral mais ampla seria de lugar dos que dormem. No rolo do patriarca Jó, abadon é a personificação do lugar de destruição. E o tehom, que pode ser traduzido por profundezas, abismo e, inclusive, pela idéia de deserto são símbolos da religião antiga de Israel para o mundo dos mortos. E uma das passagens mais ilustrativas do conceito de sheol está no rolo do profeta Isaías.

“O sheol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste semelhante a nós. Está derrubada até o sheol a tua pompa, o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas do Eterno exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao sheol, ao mais profundo abismo.”

O contraste entre o desespero que se agarrava às existências dos homens no sheol, e a alegria que surgia pela esperança da tehhiyáth hammethím, a revivificação dos mortos, está expressa no apocalipse do profeta Isaías. Ele diz com respeito aos ímpios:

“Os falecidos não tornarão a viver; os mortos não serão revivificados; por isso os visitastes e destruístes, e fizeste perecer toda a sua memória”. E tomado pela esperança declara que “os teus mortos viverão, os seus corpos serão revivificados. Despertai e exultai, vós que habitais no pó, porque o teu orvalho é orvalho de luz”.

O ser levantado para a vida é realidade do Adon Olam e do coração reto humano diante dele. No texto cristão do Apocalipse, a morte e o hades são jogados no lago de fogo e sua força sobre a existência é aniquilada, de forma que tais poderes ficam sob o domínio do Adonai Echad.

Ao retratar o conceito de inferno, com o emprego de termos como sheol e hades, os limites da mishná estão determinados pelas conotações das cosmologias antigas de nosso povo: o sheol fazia parte do mundo subterrâneo. O Rav de Nazaré trabalha a partir dessa cosmovisão, mas sua intenção no midrash não é realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, inferno não é tanto dimensão espaço-temporal, mas estado de solidão, separação do Adonai da vida. A nossa leitura realça o conceito normativo de retribuição. O justo recebe recompensa material, e o injusto carece de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados pelo Um Eterno e dignos do reino do Messias. Mas o Rav de Nazaré desconstrói essa normatização e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.

Lázaro é Eliezer, aquele a quem Adonai Echad ajuda. É grego transliterado. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. Naquela comunidade o rico tinha destaque, e atuava com desprezo frente ao mendigo. O Um Eterno, porém, o socorre. O Rav de Nazaré faz, assim, críticas às práticas dos prushim: a negligência para com os despossuídos de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. O ensino do Rav nos últimos capítulos do midrash do rabbi Lucas está claro.

O Rav de Nazaré fala da vida e embora trabalhe dentro da cosmologia hebraica antiga, levanta questões que direcionam o pensar além-túmulo: há consciência do estado, memória, juízo imediato, mesmo que intermediário, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei e nos profetas. Assim, o Um Eterno se preocupa com aqueles descartados pela comunidade. Não há retorno para esta vida terrestre após a morte. A confiança no Ain Soph é o único mérito de Lázaro, que se expressa no nome que tem. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão além-túmulo.

Uma pergunta que provém do estudo do midrash pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta do Rav aos prushim através desta e outras palavras de ensino. Em outra passagem se registra as palavras do Rav em reação à preocupação de ter um corpo inteiro na tehhiyáth hammethím, na revivificação dos mortos -- para tal queriam guardar qualquer parte do corpo que fosse amputado para ser incluído com o resto do corpo no sepultamento. Nesse contexto, o Rav de Nazaré diz que é melhor arrancar e jogar o olho fora se fizer a diferença no ingressar no reinar do Ain Soph. Muito melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.

O fisiologista solta uma baforada, olha para seu novo amigo, e diz

-- Eu não concordo, o povo está nas ruas, clama por liberdade e justiça e você lança a questão para as calendas. Mas entendi o seu argumento: a questão da justica, por relacionar identidade e eternidade se resolve numa equação: há o Um Eterno sábio e justo; nenhuma contradiçao é definitiva; temos então uma dimensão onde se estabelece o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos. E por ser ilimitada a duração dessa existência, a eternidade constitui o elemento essencial da felicidade completa, já que não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perdê-lo.

Ao que o rabbi completa

-- É, amigo, por isso os sábios afirmam, a existência futura, a eternidade, é infinita e ilimitada, e a sua realização é a justiça e a liberdade, em conformidade com os desígnios do Criador, Adonai Echad.