vendredi 26 septembre 2008

JÜRGEN MOLTMANN, um roteiro de estudo

por Jorge Pinheiro

A teologia de Moltmann situa-se entre os campos da teologia dialética de Barth e a teologia existencial de Bultmann. E sua obra mestra será Teologia da Esperança, publicada em 1964. Para entender Moltmann devemos ver os princípios sobre os quais estão baseados sua teologia.

1. Primazia da esperança > A esperança é a esperança da fé. Estruturalmente primeiro vem a fé e depois a esperança, embora a fé possa desenvolver-se sem a esperança. Nesse sentido, a esperança é o “companheiro inseparável” da fé e entrega à fé o horizonte do futuro em Cristo.

Na vida cristã, a prioridade pertence à fé, mas o primado à esperança”. [Teologia della speranza, p.14]. Está é uma formulação dialética. A fé em Cristo, sem esperança, produz um conhecimento efêmero de Cristo. E a esperança, por sua vez, sem fé, transforma-se em utopia, perdendo sua dimensão teológica. Assim, a prioridade pertence à fé [a esperança é esperança de fé], mas o primado pertence à esperança, já que a fé se expande na esperança e é através da esperança que a fé atinge seu horizonte escatológico.

2. Cristologia escatológica > Para formular sua teologia da esperança, Moltmann parte do Antigo Testamento, mostrando que a religião de Israel era uma religião de promessa. Assim, a revelação no Antigo Testamento tem caráter promissório, que abrem novos horizontes históricos e escatológicos. Logicamente, nem toda promessa é escatológica. Ela se torna escatológica quando assume universalização e intensificação.

Escatológico em Moltmann é sinônimo de futuro universal e radical. Um futuro que inclui todos os povos e uma radicalidade que se estende para além do limite extremo da existência. Olhando sobre essa perspectiva o Novo Testamento ratifica as promessas, apontando para a realização do futuro escatológico. A ressurreição de Cristo é a confirmação das promessas ao mesmo tempo em que é promessa escatológica que se cumprirá com a ressurreição dos mortos e o surgimento de uma nova humanidade. As bases do futuro da humanidade estão na ressurreição de Cristo. Isto é Cristologia escatológica.

3. Eclesiologia messiânica > Para Moltmann a promessa leva à missão. Ou como ele diz: “A pro-missio do Reino é o fundamento da missio do amor pelo mundo” [Teologia della speranza, p. 229]. Considera, no entanto, que a igreja moderna está socialmente marginalizada e por isso refugiou-se em funções supletivas, que são traduzidas na privatização do culto.

Para Moltmann, a igreja tem uma função pública, que “está a serviço da adventícia salvação do mundo e é como flecha lançada no mundo para indicar o futuro” [Teologia della speranza, p. 320]. A missão da igreja, enquanto comunidade cristã, é tarefa de todos os cristãos e será desenvolvida por ele nos textos A experiência esperança (1974) e A Igreja na força do Espírito (1975).

Teologia da Esperança e marxismo

Depois de uma criativa ruptura com a modernidade, enquanto pensamento, tradição e história, é necessário sentir de novo a alegria da esperança escatológica, para compreender a natureza do terreno sobre o qual pisamos. Há um momento de cisão no qual modificou-se, de modo essencial, a concepção do que significa teologia. Esse momento foi assinalado a partir dos anos 60, com a teologia da esperança, de Jürgen Moltmann.

Trata-se de uma reflexão prodigiosamente profética, pois enuncia, não somente a queda do muro de Berlim, mas o processo de aglutinação vivido por alemães, em primeiro lugar, por europeus, na seqüência. É sem dúvida, uma das elaborações mais impressionantes, se entendermos sua abordagem epistemológica. Sugere um campo normativo, a ser percorrido pelos movimentos e comunidades que abririam aguerridamente, a golpes de machado, a senda pós-moderna.

A expressão abordagem epistemológica não é exagerada. Refere-se ao projeto teológico, herdadas das estruturas hegelianas e marxistas, relidas e traduzidas por ele e Ernest Bloch. É sobre a questão da identidade histórica, entendida como processo a realizar-se, que recai a crítica da teologia realizada por Moltmann. É justamente a experiência de viver, enquanto comunidade que se realiza no futuro, que é realçada por ele. No nível antropológico, trabalha os elementos dessa esperança, a partir da qual se produz saber e práxis cristã. Suas heranças são translúcidas:

Por meio de subverter e demolir todas as barreiras -- sejam da religião, da raça, da educação, ou da classe -- a comunidade dos cristãos comprova que é a comunidade de Cristo. Esta, na realidade, poderia tornar-se a nova marca identificadora da igreja no mundo, por ser composta, não de homens iguais e de mentalidade igual, mas, sim, de homens dessemelhantes, e, na realidade, daqueles que tinham sido inimigos. O caminho para este alvo de uma nova comunidade humanista que envolve todas as nações e línguas é, porém, um caminho revolucionário”.

Como num laboratório, o teólogo da esperança extrai o fato teológico de sua contingência histórica, tratada sob condições de extrema pureza escatológica. Muito claramente afirma a escatologia como essência da história da redenção e leva à conclusão de que essa mesma essência seja a expressão maior da ressurreição, enquanto metáfora da cruz de Cristo. Essa cruz repousa sobre o esvaziamento da desesperança, enquanto praesumptio e desperatio, na relação que mantém com o mundo.

A teologia, vida cristã em movimento, numa permanente autoformação, advém das pulsações criadoras da própria esperança, cujo sentido volta-se para ela própria. Essa construção, que se nos apresenta como caleidoscópio, belo, mas aparentemente ilógico, traz em si a força combinatória do devir cristão. Assim, a teologia de Moltmann quebra os grilhões do presente eterno da neo-ortodoxia, e nos oferece um conceito realista da história, que tem por base um futuro real, lançando dessa maneira as bases para uma teologia que responda às reais necessidades do homem pós-moderno.

A teologia de Moltmann nasce enquanto reação ao existencialismo e absorção do revisionismo de Bloch. A descontrução do marxismo, realizada por aquele filósofo, não agradou ao mundo comunista, mas estabeleceu uma ponte, diferente daquela da teologia da libertação, entre o hegelianismo de esquerda e o cristianismo. Substituiu a dialética pelo ainda-não, enquanto espaço que não está fechado diante de nós, e definiu uma antropologia que não mais está calcada no império dos fenômenos econômicos, mas na esperança.

Os escritos filosóficos do jovem Marx serviram de ponto de partida para o vôo de Bloch. A alienação do homem é um fato inquestionável, não como determinação econômica, mas enquanto determinação ontológica. Afinal, o universo em que vive é essencialmente incompleto. Mas a importância do incompleto é que é susceptível de complemento. Por isso, o possível, o ainda-não, o futuro traduz de fato a realidade.

Nesse processo estão presentes a subjetividade humana e sua potência inacabada e permanente em busca de solução e a mutabilidade do mundo no quadro de suas leis. Dessa maneira, o ainda-não do subjetivo e do objetivo é a matriz da esperança e da utopia. A esperança traduz a certeza da busca e a utopia nos dá as figuras concretas desse possível.

O homem é impelido, assim, ao esforço permanente de transcender a alienação presente, em busca de uma ‘pátria de identidade’. É no ‘vermelho quente’ do futuro que está a razão fundamental da existência humana.

Nenhum marxista chegou tão próximo da escatologia cristã!

Deus -- enquanto problema do radicalmente novo, do absoluto libertador, do fenômeno da nossa liberdade e do nosso verdadeiro conteúdo -- torna-se-nos presente somente como um evento opaco, não objetivo, somente como conjunto da obscuridade do momento vivido e do símbolo não acabado da questão suprema. O que significa que o Deus supremo, verdadeiro, desconhecido, superior a todas as outras divindades, revelador de todo o nosso ser, ‘vive’ desde já, embora ainda não coroado, ainda não objetivado. Aparece claro e seguro agora que a esperança é exatamente aquilo em que o elemento obscuro vem à luz. Ela também imerge no elemento obscuro e participa da sua invisibilidade. E como o obscuro e o misterioso estão sempre unidos, a esperança ameaça desaparecer quando alguém se avizinha muito dela ou põe em discussão, de modo muito presunçoso, este elemento obscuro”.

Bloch realiza uma penetrante releitura da cosmovisão judaico-cristã. Entende o clamor profético do mundo bíblico e da proclamação cristã não como alienação e ópio, mas como fermentos explosivos de esperança, protestos contra o presente em nome da realidade futuro, a utopia.

Talvez por isso possamos dizer que nos anos 60, os caminhos de Moltmann e Bloch não apenas cruzaram-se na Universidade de Tübingen, mas abriram espaço para o mais enriquecedor diálogo cristão-marxista que conhecemos. É interessante lembrar que em 1968, quando manifestações estudantis varriam Tübingen, Heldelberg, Münster e Berlim Ocidental, grande parte dos líderes estudantis eram oriundos das faculdades de teologia. Sua Theologie der Hoffnung, publicada no início da década na Alemanha, estava na oitava edição, e no ano seguinte, ele lançaria Religion, Revolution and the Future nos Estados Unidos.

Assim, em síntese, a Teologia da Esperança surgiu para revigorar, teológica, social e politicamente, a esperança cristã através de “projetos de esperança”, que levem a igreja a tornar-se responsável pelo futuro da humanidade. Esse futuro nos foi entregue por Deus, como promessa, mas é conhecido por antecipação no advento e ressurreição de Cristo. Nosso Cristo é o fim da utopia, é certeza escatológica amparada pela fé.

Notas

1Ao homem que se lamenta: ‘Não consigo ver significado na história, e portanto minha vida, entrelaçada com ela, também é destituída de significado’, respondemos: não fiques olhando ao redor de ti, para a história universal, mas olha para tua história pessoal. O sentido da história sempre está contigo no teu presente, e tu não podes vê-lo como mero espectador, mas somente em tuas decisões responsáveis. Em cada momento dorme a possibilidade de vir a ser o momento escatológico, Cabe a ti despertá-la”. R. Bultmann, Storia ed escatologia, Milão, Bompiani, 1962, p. 176.

2A universalização da promessa atinge seu escathon na promessa do senhorio de Iaveh sobre todos os povos. A intensificação da promessa encaminha-se para a realidade escatológica mediante a negação da morte”. J. Moltmann, Teologia della speranza, pp. 133-134.

3Os filósofos justamente conscientes do poder de coordenação das funções espirituais consideram suficiente uma mediação deste pensamento coordenado, sem se preocupar muito com o pluralismo e a variedade dos fatos (...). Não se é filósofo se não se tomar consciência, num determinado momento da reflexão, da coerência e da unidade do pensamento, se não se formularem as condições de síntese do saber. E é sempre em função desta unidade, desta síntese, que o filósofo coloca o problema geral do conhecimento”. G. Bachelard, Filosofia do Novo Espírito Científico, Lisboa, Presença, 1972, pp. 8-9.

4A história arqueológica nem é evolutiva, nem retrospectiva, nem mesmo recorrente; ela é epistêmica; nem postula a existência de um progresso contínuo, nem de um progresso descontínuo; pensa a descontinuidade neutralizando a questão do progresso, o que é possível na medida em que abole a atualidade da ciência como critério de um saber do passado”. Roberto Machado, Ciência e saber. A trajetória arqueológica de Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 152.

5 Jürgen Moltmann, “God in Revolution”, em Religion, Revolution and the Future, Nova York, Scribner, 1969, p. 141.

6O passado e o futuro não estão dissolvidos num presente eterno. A realidade contém mais do que o presente. Ao desenvolver sua teologia futurista, Moltmann realmente tem o peso considerável da história bíblica do lado dele, e faz bom uso dela. (...) Ao enfatizar o futuro, desenvolveu um pensamento bíblico legítimo que jazia profundamente enterrado na teologia ética e existencial dos séculos XIX e XX”. Stanley Gundry, Teologia Contemporânea, São Paulo, Mundo Cristão, 1987, p.167.

7 Ernst Bloch, "Geist der Utopie", Franckfurt, 1964, p. 254 in Battista Mondin, Curso de Filosofia, São Paulo, Paulinas, 1987, vl. 3, pp. 246-7.

8 Jürgen Moltmann, Teologia della Speranza, Queriniana, Bréscia, 1969.