lundi 25 février 2013

O tempo das cerejas

Ou, para que não sejamos covardes! 
Jorge Pinheiro 


Ontem, já em São Paulo, eu cometi um crime. Não, não foi um crime, fui uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalização e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faz sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido. 

É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com alguns revisores. Afinal, alguns se dão ao direito de dizer que errei ao grafar esta ou aquela palavra. 

Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai dizer que “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo, porque fico é do verbo ficar e fixo é do verbo fixar. Escrevo em Santiago fixo irado, porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer tiro certeiro, mas que eu sempre li e entendi tiro-fixo, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Santiago fico irado. Não fico irado não, fixo irado. 

Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor? 

Trabalhei e ainda trabalho como editor. Ou seja, um editor tem a obrigação de revisar. Então, me coloco ao lado de todos os colegas revisores, como jornalista e editor. Mas não perdi a mania de construir frases sem nexo. Estou enfermo de sentido. É possível mexer em poemas de cordel? Ou em letras da MPB, linguísticas e politicamente incorretas? Na minha área, o que não falta é gente futucando textos antigos e clássicos das religiões. Até a Bíblia sofre ataques, em tentativas de adequar seus textos as compreensões contemporâneas e excluir deles conceitos e preconceitos não corretos para a maneira de pensar atual. 

Sendo autor, reconheço que careço de revisor, principalmente porque escrevo muito. Grafias defeituosas, pontuações erradas mesmo, não por intenção, mas por descuido podem ser corrigidas e melhoradas por um revisor. Diante disso, tenho hoje três revisoras, todas ótimas profissionais. Duas delas, obsessivas -- atenção, são minhas amigas e sempre as apresento como adoráveis perseguidoras e, por isso, não as dispenso --, devolvem meus textos com marcas em vermelho. E passam tardes comigo analisando cada detalhe que não entenderam ou acham errado. Explico minhas razões e objetivos e, muitas vezes, concordo com elas. 

Aos finalmentes: meus sofrimentos em nada desautorizam o trabalho dos profissionais, apenas alertam para a necessidade de diálogo entre autor e equipe de edição, quando logicamente isso for possível. Quando não for, amiúde, estaremos diante de gatos sem saco, digo, saco de gatos. 

Por isso, quero conversar com você leitor, que é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare porque! O autor é o momento primeiro da criação, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalização e muitos, mas muito pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas você, leitor, é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E você tem esse direito, porque ao possuir o texto, ao fazê-lo seu, você é quem de fato lhe dá vida. 

Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Santiago, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a democracia, a liberdade e o pensamento. 

Naira comprou cerejas numa banca de frutas em frente a Universidade do Chile. É tempo de cerejas no Chile e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas. 

Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. Le temps des cerises, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o Hotel Residencial Londres, que fica na calle Londres, em Santiago. O prédio foi construído entre 1923 e 1929, e em 1964 transformado em hotel por Ilic e Adela Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na calle Londres, no Hotel Residencial Londres fui preso em setembro de 1973, no terceiro dia do golpe militar.

O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher 
serviu o sangue da virgem num cálice 
cada gole tem o sabor da vida derramada 
mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras 
a rua está perfumada 
a alameda é atravessada. 

Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista. 

De 1953 até 1973, viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a democracia, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do Cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Paloma descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Naira desaparecida a fotografar. 

O tempo das cerejas fugirá para outras bandas 
miró mia nas minhas lembranças 
rabisco no la chascona ao poeta 
bardo brado 
por onde anda a ode? 
flagelo e sal 
sangue e semente 
formigas desfilam sobre o açúcar derramado 
você e eu descarrilados 
por poemar instantes 
beleza é água na garganta seca. 

Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Naira? Veja como é gostoso, Paloma? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, a moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Santiago. 

Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu Hotel Residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no Brasil, mas rapidamente escafedeu-se. 

Essas ruas, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, Martin Luther King Jr. Herói dos 300 milhões de negros espalhados pelo mundo e do novo presidente estadunidense. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal Versus: 

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido. 

Liderados pelo jovem ministro batista Martin Luther King, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase á bancarrota, submeteu-se ás exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o Sul dos Estados Unidos, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária. 

Também foi em 1955 que King finalizou sua tese -- A Comparison of the Conceptions of God in the Thinking of Paul Tillich and Henry Nelson Wieman. King conhecia o pensamento do teólogo teuto-americano e, por isso, sua ação militante vai dever muito ao pensamento socialista de Tillich. 

Tanto para King como para Tillich, o poder autêntico é a verdade. Entretanto, esta verdade não é uma norma abstrata que se impõe à realidade. É, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só tem poder se ela é uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder. 

Treze anos mais tarde, no dia 4 de abril de 1968, King preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, quando foi atingido por tiros. Versus clamou: 

Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o grande líder negro era inevitável. Todavia, a América branca não podia antecipar a reação da América negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte de Martin Luther King sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Descanse em paz, Dr. Martin Luther King! 

Tanto para Tillich como para King, a conquista violenta dos instrumentos de poder social não decide a vitória de uma revolução. Isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. É um erro pensar, afirmava Tillich, que amparar a revolução no aparelho do poder garante a vitória. O aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução ruirá, mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele que era possível em épocas não desenvolvidas. 

Mas do que palavras, a ação política de King traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética socialista. 

londres-fixo
aranhas sopradas pelo vento norte 
lugar de sonhos desperdiçados 
picadas na carne nova 
matinais de 11 de setembro 
o azul cede ao cinza 
morcegos desconstroem flores 
palavras duras decretam o fim da esperança 
olhos mareados 
a porta esmurrada 
a fronte torturada 
o corpo desfilado 
olho perdido na esquina. 

Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e se chama Libertador Bernardo O’Higgins, mas é conhecida como Alameda, apenas. Ali perto, a poucas quadras há um palácio, o La Moneda. 

E me lembro de um político socialista, Salvador Allende, que depois três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais em 1970. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e comunistas. Acreditava que poderia levar o Chile ao socialismo através do processo democrático, sem enfrentamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e os Estados Unidos viam Allende como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas cristãos, se reorganizaram e com apoio dos militares, se lançaram ao golpe. Allende foi derrubado. O Palácio La Moneda e fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina. 

londres-fixo
nem caetano 
nem gil 
é ilha no nada 
lagartos da inexistência 
tristeza, espanto, perplexidade 
tiago não tem salvador 
coturnos abundam! 

Os demônios estão mortos. Curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole neoliberal, segundo o modelo dos Chicago Boys, liderados pelo economista Milton Friedman. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade. Ignavi ne simus