samedi 31 octobre 2015

Nosso futuro roubado

Para meus alunos que vão prestar o ENADE 

Teologia índia
“O Reino de Deus passa também pela construção de utopias ou sonhos de futuro”.

Publicado no site IHU On-Line em 16 de setembro de 2014

Um dos primeiros teólogos indígenas a trabalhar com a teologia índia na América Latina, Eleazar López Fernández à IHU On-Line comenta que, entre suas primeiras iniciativas, papa Francisco “eliminou as desconfianças que a cúria romana tinha em relação ao processo inculturador da Igreja de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, e está garantindo a continuidade do processo com um pastor que conhece e apoia e com a ordenação de novos diáconos indígenas”.

“O diálogo com a Congregação para a Doutrina da Fé sobre os ‘pontos nevrálgicos’ da teologia indígena continua aberto e esperamos que logo seja concluído com posições mais flexíveis, que permitam avançar rumo ao seu reconhecimento como verdadeira teologia dentro da Igreja”, diz o teólogo.

“O Papa Francisco não chegou ao papado com um conhecimento amplo da realidade indígena da América Latina e do mundo. Mas muito rapidamente abriu-se a esta realidade e está tomando posição frente a ela”, diz Eleazar López Fernández à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Eleazar López faz uma análise da repercussão da teologia índia no continente e sua relação com o cristianismo. Na avaliação dele, ela “está tendo um impacto muito grande nas Igrejas cristãs”, porque “foi tema de diálogo praticamente das últimas três Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e do Caribe daIgreja católica (Puebla, Santo Domingo e Aparecida); também da última assembleia geral do Conselho Mundial de Igrejas, em 2013, e de muitos congressos, simpósios, encontros, seminários e fóruns de cristãos comprometidos com a luta dos pobres”. Nesse sentido, pontua, Equador,Guatemala e México “distinguiram-se recentemente como os maiores impulsionadores da recuperação da força e sabedoria indígena que inspira as lutas atuais pelos plenos direitos dos povos, da humanidade e da terra”.

O teólogo explica que o “núcleo” central das teologias indígenas consiste em permitir “a maneira de entender e relacionar-se com Deus como Mãe-Pai de tudo o que existe; a maneira de entender e relacionar-se com os seres humanos como colaboradores de Deus e irmãos entre nós; a maneira de entender a natureza como expressão tangível de Deus e como o grande receptáculo ou matriz da vida, onde os humanos desfrutam desta vida em solidariedade e responsabilidade com os demais seres da criação”. Assim, a teologia indígena “distingue-se de outras vertentes teológicas cristãs porque tem sua raiz e origem antes e fora do cristianismo, e pode prosseguir seu caminho sem relação com a fé cristã. Mas ela foi introduzida nas Igrejas por indígenas cristãos para interagir com a proposta teológica que existe nas Igrejas, uma vez que, com a teologia indígena, muitos membros dos povos indígenas receberam a fé cristã e com ela refletem esta nossa fé em Cristo”.

Eleazar López Hernández destaca ainda o papel político, econômico e social a ser desempenhado pela teologia índia, como “uma proposta que os indígenas fazem para o resto da sociedade e das Igrejas, assinalando que a cosmovisão e os valores dos povos podem ser uma alternativa de vida para toda a humanidade; com estes valores, que já foram vividos pelos antepassados, podemos projetar juntos — indígenas e não indígenas — sociedades que superem as causas estruturais da crise atual”. E acrescenta: “A contribuição maior das teologias indígenas tem a ver com o futuro que é preciso construir. É aqui que as utopias de futuro (como a Terra sem Males dos guarani ou o Sumak Kawsay dos andinos) têm uma força muito grande para inspirar os contornos desse outro mundo possível que muitos desejam e que de muitas maneiras os povos indígenas ainda vivem em seus redutos de vida”.

Eleazar López Hernández une seus estudos teológicos à prática indígena. Nasceu em Juchitán, Oaxaca, no México, ingressou no seminário em 1961 e formou-se em Filosofia e Teologia. Também participou do primeiro curso de pastoral indigenista em Caracas, da primeira Conferência dos Povos Indígenas, em 1975, em Vancouver, da contribuição indígena para o Encontro de Puebla e de Santo Domingo, como conselheiro. Atualmente, trabalha no Centro Nacional de Ayuda a las Misiones Indígenas – CENAMI, no México, participa da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo e da equipe teológica Ameríndia.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que é a teologia indígena, como e por que ela surgiu na América Latina?

Eleazar López Fernández – A chamada “teologia indígena”na América Latina é o que resta das teologias originárias dos povos que habitavam este continente antes da chegada dos europeus, os quais, ao conquistar e dominar estes povos, chamaram-nos de “índios”, como sinônimo de vencidos que deviam ser sujeitados à lógica do vencedor. De modo que estamos falando de algo que não é novo, mas muito antigo nestas terras.

Durante toda a época colonial, esta teologia dos povos ameríndios foi atacada sistematicamente para erradicá-la e, assim, implantar o cristianismo. Mas ela sobreviveu nos redutos de vida destes povos. E, nos últimos 50 anos, indígenas convertidos à fé cristã a retomamos, em um primeiro momento reconhecendo e enfatizando sua situação “indígena” para, a partir daí, ir libertando-a deste condicionamento negativo a fim de que mostre para o futuro toda a sua vitalidade de teologia da vida para a vida. Este esforço intraeclesial leva-nos a exigir que seja valorizada e que se dê a ela o lugar que merece tanto em sua expressão autônoma fora das Igrejas como também dentro delas. E que aceite o desafio e a oportunidade de reparar erros do passado e construir outros modos de ser Igreja com a capacidade de incorporar em seu interior a diversidade humana e teológica, assumindo as novas contribuições dos povos mais antigos deste continente.

 “A teologia indígena está se tornando um assunto não exclusivamente de indígenas, mas algo que pode converter-se em patrimônio do conjunto da Igreja e da humanidade”

IHU On-Line – Qual é o núcleo da teologia indígena?

Eleazar López Fernández – Não é fácil responder a essa pergunta, pois a diversidade de povos que sobrevivem ao impacto, primeiro, do modelo colonial, depois do capitalista e agora da globalização neoliberal é muito grande e cada um tem acentos particulares em sua luta para sobreviver e construir possibilidades de futuro digno. No entanto, em base aos encontros amplos que tivemos recentemente para compartilhar experiências e ideias, nos damos conta de que existem certos elementos que podem ser considerados como núcleo das teologias indígenas de hoje e que são compartilhados com os demais, dentro e fora das Igrejas, e que são como as flores de nossos povos: a maneira de entender e relacionar-se com Deus como Mãe-Pai de tudo o que existe; a maneira de entender e relacionar-se com os seres humanos como colaboradores de Deus e irmãos entre nós; a maneira de entender a natureza como expressão tangível de Deus e como o grande receptáculo ou matriz da vida, onde os humanos desfrutam desta vida em solidariedade e responsabilidade com os demais seres da criação.

As teologias indígenas de hoje incluem tanto um enfoque de libertação de qualquer estrutura que oprime as pessoas e povos, e que continua a fazer indígenas os descendentes dos povos mais antigos e também outros, como uma proposta de construção de novas sociedades, onde caibam todos com as suas identidades particulares e, sobretudo, com a dignidade que todos merecem como filhos de Deus e irmãos entre nós.

IHU On-Line – Como a teologia indígena se distingue da teologia em geral? Há diferenças teológicas nas duas posições?
Eleazar López Fernández – A vertente chamada “Teologia Indígena” distingue-se de outras vertentes teológicas cristãs porque tem sua raiz e origem antes e fora do cristianismo, e pode prosseguir seu caminho sem relação com a fé cristã. Mas ela foi introduzida nas Igrejas por indígenas cristãos para interagir com a proposta teológica que existe nas Igrejas, uma vez que, com a teologia indígena, muitos membros dos povos indígenas receberam a fé cristã e com ela refletem esta nossa fé em Cristo. De modo que isso dá à nossa teologia e à vivência cristã um caráter especial como compreensão e vivência da fé com as categorias próprias dos povos indígenas. Esta teologia pode enquadrar-se no que agora se chama de inculturação do Evangelho de Cristo.

Mas a teologia indígena é também uma proposta que os indígenas fazem para o resto da sociedade e das Igrejas assinalando que a cosmovisão e os valores dos povos podem ser uma alternativa de vida para toda a humanidade; com estes valores, que já foram vividos pelos antepassados, podemos projetar juntos — indígenas e não indígenas — sociedades que superem as causas estruturais da crise atual. E também Igrejas que vão além do esquema colonial monocultural, em que se encontram atualmente, para serem verdadeiramente inculturadas e interculturais, onde as periferias tenham espaço sem que sua dignidade e identidade própria sejam menosprezadas.

IHU On-Line – Qual é a compreensão da teologia indígena sobre Deus?

Eleazar López Fernández – Reitero o que já disse antes: Deus, na maioria das teologias indígenas do continente, desde antes do cristianismo, é pensado como Pai-Mãe ou Mãe-Pai. O que quer dizer que Deus é a origem da vida ou que Ele nos dá e nos mantém com vida. E para expressar esta percepção profunda lançam mão de todos os nomes relacionados com a vida humana, a terra e o universo. A teologia dos povos originários toca facetas de Deus que, embora possam estar presentes também na proposta judaico-cristã, não estão suficientemente desenvolvidas ou enfatizadas, como o aspecto feminino e maternal e a relação profunda de Deus com a Mãe Terra.

IHU On-Line – Que leitura a teologia indígena faz da Bíblia?

Eleazar López Fernández – O tema da minha apresentação neste congresso teológico é precisamente a leitura que os indígenas fazem ou podem fazer da Bíblia. Reconhecendo que a Bíblia não apenas esteve longe dos povos indígenas durante estes 500 anos de contato, mas que foi utilizada para justificar a opressão dos indígenas e, consequentemente, como arma para agredir estes povos em suas crenças ancestrais, os indígenas cristãos assumem a tarefa de mudar esta relação mediante a implementação de um novo encontro com a Bíblia ao modo como as nossas avós e avôs se encontravam no passado com os mitos e crenças fundantes de outros povos, ou seja, como caminhos diversos e inovadores de relação com o mesmo Deus de todos os povos, Aquele que nos dá a Vida. E assim a Bíblia se converte em um espelho onde vemos o nosso próprio rosto e coração. De modo que a história da salvação contida na Bíblia converte-se também em história de salvação do nosso povo, sem a necessidade de negar a nossa realidade ou alienar-nos para assumir concepções vindas de fora. Só assim superamos o problema da estrangeiridade da Bíblia e da nossa possível alienação ao incorporá-la no mundo indígena. Pois, com a Bíblia, os indígenas reencontram-se com a sua identidade originária mais profunda e a consolidam plenificando-a em Cristo. Também para os indígenas Jesus não veio para abolir a lei e os profetas, mas para dar-lhes pleno cumprimento.

Uma leitura intercultural da Bíblia, desde os povos indígenas, permite-nos entender a proposta bíblica como um caminho paradigmático e privilegiado feito por um povo similar ao nosso que nos anima a fazer, também nós, o nosso caminho de encontro pleno com a proposta de vida que vem do mesmo Deus dos nossos antepassados, que é Criador e Formador, Aquele que, sendo Intangível e Impalpável (Yóhuali-Ehécatl), se coloca Perto e Junto de nós (Tloque-Nahuaque) porque une céu e terra ao ser Quetzalcóatl ou Coração do Céu-Coração da Terra. Um encontro assim com a Bíblia não destrói nem desqualifica a nossa caminhada, mas a assume e a leva à sua plenitude.

 “Países como o Brasil, que tem uma porcentagem muito pequena de indígenas e, no entanto, reconhece que o motor da vida destes povos é sua experiência e reflexão teológica, que pode inspirar também a luta dos demais empobrecidos”
 
IHU On-Line – Qual é o impacto da teologia indígena na América Latina? Quem são os partidários desta teologia? Em que países a teologia indígena tem maior representação?

Eleazar López Fernández – Numericamente, a população indígena do continente é reduzida, porque quase foi dizimada no passado; somos apenas cerca de 60 milhões em relação a 120 milhões de afrodescendentes e uma quantidade muito maior de mestiços. No entanto, a voz soterrada dos povos indígenas, antes negada e silenciada, está se levantando agora com uma força muito grande e com uma carga de conteúdos que suscita o interesse não apenas dos indígenas, mas também dos não indígenas. E, por esse motivo, a teologia indígena está tendo um impacto muito grande nas Igrejas cristãs. Ela foi tema de diálogo praticamente das últimas três Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e do Caribe da Igreja católica (Puebla, Santo Domingo e Aparecida); também da última assembleia geral do Conselho Mundial de Igrejas, em 2013, e de muitos congressos, simpósios, encontros, seminários e fóruns de cristãos comprometidos com a luta dos pobres. A teologia indígena está se tornando um assunto não exclusivamente de indígenas, mas algo que pode converter-se em patrimônio do conjunto da Igreja e da humanidade.

Os partidários da teologia indígena são muitas irmãs e irmãos indígenas que vão compreendendo que ela é uma riqueza nossa que podemos oferecer aos demais; mas também muitos não indígenas se somaram a esta perspectiva porque descobrem a grandiosidade de suas proposições como buscas legítimas e enriquecedoras, que não somente não se opõem à proposta de Jesus e da Bíblia, mas que a enriquecem e a enraízam nas realidades humanas concretas de nossos tempos.

Países como o Equador, Guatemala e México distinguiram-se recentemente como os maiores impulsionadores da recuperação da força e sabedoria indígena que inspira as lutas atuais pelos plenos direitos dos povos, da humanidade e da terra; mas também países menores como El Salvador, Panamá, Belize, na América Central, estão impulsionando o desenvolvimento da sua teologia indígena; ou países como o Brasil, que tem uma porcentagem muito pequena de indígenas e, no entanto, reconhece que o motor da vida destes povos é sua experiência e reflexão teológica, que pode inspirar também a luta dos demais empobrecidos. Por isso, buscam e conseguem importantes alianças.

IHU On-Line – Qual é a relação da teologia índia com questões políticas e econômicas na América Latina? Qual é o significado de assumir uma postura crítica no momento político atual?

Eleazar López Fernández – As teologias indígenas de hoje não têm sua origem imediata na consciência crítica sobre a realidade de opressão sofrida pelos pobres, uma vez que elas existiram em contextos que não são de opressão. No entanto, enquanto atualmente são teologias marcadas pelo “índio” como categoria colonial que persiste, elas se ativam agora com uma carga forte de libertação, por serem teologias de resistência ao mal que se impôs há mais de 500 anos. No entanto, a contribuição maior das teologias indígenas tem a ver com o futuro que é preciso construir. É aqui que as utopias de futuro (como a Terra sem Males dos guarani ou o Sumak Kawsay dos andinos) têm uma força muito grande para inspirar os contornos desse outro mundo possível que muitos desejam e que de muitas maneiras os povos indígenas ainda vivem em seus redutos de vida.

A salvação que Cristo ganhou para nós com sua morte e ressurreição e que se concretiza na proposta do Reino ouReinado de Deus coincide maravilhosamente com os sonhos de futuro de muitos povos indígenas. De modo que, para os povos indígenas identificados com sua cultura e convertidos à fé cristã, construir o Reino de Deus passa também pela construção de suas utopias ou de sonhos de futuro.

 “A história da salvação contida na Bíblia converte-se também em história de salvação do nosso povo, sem a necessidade de negar a nossa realidade ou alienar-nos para assumir concepções vindas de fora. Só assim superamos o problema da estrangeiridade da Bíblia e da nossa possível alienação ao incorporá-la no mundo indígena”

IHU On-Line – Como a teologia indígena e o conceito de bem-viver podem ser aplicados na América Latina, dada a situação política e econômica atual?

Eleazar López Fernández – Muitos irmãos indígenas chegam à mesma conclusão de que utopias indígenas como o Sumak Kawsay ou o Bem-Viver dos andinos têm viabilidade histórica nos tempos atuais porque são paradigmas sociais que já funcionaram no passado dos nossos povos, mas, sobretudo, porque cada vez as maiorias do mundo estão mais convencidas de que o modelo econômico, político e social que agora impera na globalização não tem sustentabilidade para o futuro imediato. Em poucos anos serão necessários ao menos dois planetas Terra para serem devorados pela lógica do crescimento econômico e do consumo que esse modelo impulsiona.
A austeridade dos povos nômades, a relação harmoniosa com a natureza e a economia mais humana dos povos indígenas certamente poderão inspirar modelos mais adequados de desenvolvimento e que sejam sustentáveis. Como isso pode se dar concretamente? Será preciso sentar-se e projetar os caminhos; mas as ideias-chave estão nas utopias indígenas.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios que a teologia indígena se propõe atualmente?

Eleazar López Fernández – São muitos os desafios que a teologia indígena enfrenta como vertente teológica dentro e fora das Igrejas. A agressão aos povos originários aumentou muito, porque a globalização do mercado cobiça os recursos naturais (terra, florestas, petróleo, minerais, água, vento) que se encontram em territórios indígenas. Isto colocou novamente os povos no olho do furacão da avançada colonial e neoliberal e não parece haver poder humano que possa deter este avanço. Em consequência, a luta indígena atual está marcada por esse desejo dos poderosos para exterminar os povos a fim de se apoderar de seus bens. E a única força maior que estes povos têm para enfrentar este avanço é precisamente sua teologia, que lhes serviu no passado para superar as crises que tiveram. Com esta teologia, tanto em sua vertente inteiramente indígena como em sua vertente cristã, os povos abrem caminho para si e abrem caminhos na sociedade envolvente e nas Igrejas pensando não apenas no bem do seu grupo humano particular, mas no bem de toda a humanidade e do planeta.

IHU On-Line – Como é a relação entre a teologia indígena e a teologia da Igreja católica no México?

Eleazar López Fernández – No México encontra-se uma das Igrejas que historicamente fez um caminho paradigmático do lado dos povos indígenas: a Igreja de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas. Aí a luta indígena dentro da Igreja adquiriu a característica de impulsionar o surgimento de “Igrejas autóctones”, assistidas por diáconos indígenas que são formados na teologia clássica cristã e também na teologia indígena sob a supervisão das próprias comunidades. No âmbito civil, o levantamento zapatista colocou-se à recuperação dos direitos humanos e dos direitos específicos dos povos indígenas. Ambos os processos têm, certamente, uma inspiração que tem a ver com o que chamamos de“teologia indígena”: alguns, repensando os mitos fundantes na matriz cristã, e outros, colocando-os na matriz da luta civil para ganhar o lugar que merecemos na sociedade globalizada.

 “Para os povos indígenas identificados com sua cultura e convertidos à fé cristã, construir o Reino de Deus passa também pela construção de suas utopias ou de sonhos de futuro”
 
IHU On-Line – Qual é a sua avaliação do pontificado de Francisco? Quais são as reações ao pontificado de Francisco na Igreja mexicana?

Eleazar López Fernández – O Papa Francisco não chegou ao papado com um conhecimento amplo da realidade indígena daAmérica Latina e do mundo. Mas muito rapidamente abriu-se a esta realidade e está tomando posição frente a ela. Imediatamente eliminou as desconfianças que a cúria romana tinha em relação ao processo inculturador da Igreja de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, e está garantindo a continuidade do processo com um pastor que conhece e apoia e com a ordenação de novos diáconos indígenas. O diálogo com a Congregação para a Doutrina da Fé sobre os “pontos nevrálgicos” da teologia indígena continua aberto e esperamos que logo seja concluído com posições mais flexíveis que permitam avançar rumo ao seu reconhecimento como verdadeira teologia dentro da Igreja.

IHU On-Line – Como avalia os partidos progressistas da América Latina? Houve avanços ou retrocessos em relação à questão indígena?

Eleazar López Fernández – Em geral, os partidos de esquerda da América Latina foram esquecendo suas propostas ideológicas e tornaram-se muito pragmáticos em relação à globalização neoliberal. Isto os levou a diferenciar-se muito pouco dos outros partidos. Nós vemos isso, sobretudo, quando tratam do assunto indígena que, para eles, têm um valor mínimo e estão dispostos a sacrificar estes povos para que os investimentos cheguem e façam a economia crescer.

PARA LER MAIS:

02/04/2014 – Cuidar da Mãe Terra e amar todos os seres
14/10/2010 – Missa Terra Sem Males: “memória, remorso, compromisso”
26/01/2012 – Peregrinação Ciclística Popular em Busca da ”Terra Sem Males”
28/03/2011 – A Terra sem Mal para o fortalecimento da Nação Guarani
18/12/2013 – Chiapas, no México, pede ao Papa novos diáconos permanentes
23/08/2010 – Sumak Kawsa, Suma Qamaña, Teko Porã. O Bem-Viver
03/12/2010 – Elementos para a busca do bem viver – Sumak Kawsay – para todos e sempre
18/01/2013 – A desmistificação do desenvolvimento e as lições do Sumak Kawsay
15/07/2011 – “Nós, indígenas, somos parte da solução”, afirmou o zapoteca Eleazar López

Fonte
IHU On-Line
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/teologia-india-construir-o-reino-de-deus-passa-tambem-pela-construcao-de-utopias-ou-de-sonhos-de-futuro-entrevista-com-eleazar-lopez-fernandez/
 

jeudi 29 octobre 2015

Teologia na Ásia

Para os meus alunos que vão prestar o ENADE.

Teologia da Ásia
Leitura e adaptação de Jorge Pinheiro, PhD, a partir de Asian Theology / BELIEVE.


Há muito tempo, missionários na Ásia tentaram introduzir e desenvolver na Ásia um cristianismo na forma familiar na América, mas que se apresentou  desagradável à compreensão dos povos asiáticos. E, por isso, tiveram  pouco sucesso.

Alguns esforços recentes têm tentado compreender a cultura oriental e os sistemas de crenças. A partir deste fundamento tem sido possível desenvolver uma comunicação mais profunda com os povos asiáticos, o que tem permitido uma compreensão mútua. O que permitiu uma maior eficácia no esforço missionário.

A fim de entender a teologia asiática deve-se examinar as diferenças entre as culturas orientais e ocidentais. Desde o fim da II Guerra Mundial, os teólogos asiáticos vêm buscando uma libertação das teologias ocidentais, a fim de tornar o evangelho mais relevante para as suas próprias realidades de vida.

Historicamente, o desenvolvimento da teologia da Ásia está intimamente relacionada com o desenvolvimento da nacionalização do início do século XX e do desenvolvimento recente do conceito de contextualização em missões. O Conselho Missionário Internacional em Jerusalém, em 1930, sublinhou que a mensagem cristã deve ser expressa em padrões nacionais e culturais tanto na liturgia, como na música da igreja, na dança e no teatro, a fim de  construir estruturas que acentuem as características nacionais. Esta ênfase nas artes nacionais usando formas e estruturas, foi levada para a teologia, também.

O efeito desta leitura missiológica é que o cristianismo do Oriente tem absorvido aspectos da cultura local, e até mesmo aspectos menores dos sistemas de crenças dominantes. Assim, o crescimento do cristianismo na Ásia tem sido espetacular nas últimas décadas.

E como se diz, "idéias teológicas foram criados no continente europeu, adaptadas na Inglaterra, corrompidas na América e lançadas na Ásia". E, por causa do crescente nacionalismo e reafirmação dos valores tradicionais na Ásia, tentar empurrar "o cristianismo do homem branco " sobre os asiáticos não é aconselhável.

Kanzo Uchimura, fundador do movimento da igreja não assimilada, no Japão, disse que assim como há teologias alemães, teologias inglesas, holandesas e americanas, o Japão deveria ter uma teologia japonesa. Ele quer um cristianismo que expresse a cultura e tradição milenar dos japoneses, queria uma teologia japonesa.

No início de 1970 o Fundo de Educação Teológica introduziu um novo termo, "contextualização", durante o Período de terceiro mandato (1972 - 77). O conceito de indigenização foi sendo deixado de lado a favor do conceito de contextualização, que passou a ser aplicado na na área de missão, na abordagem teológica, e nos métodos pedagógicos. Contextualização leva em conta os processos de laicidade, a tecnologia e as lutas pela justiça que caracterizam a história das nações da Ásia. Teólogos asiáticos, portanto, têm utilizado os conceitos de indigenização e contextualização para justificar o desenvolvimento das teologias asiáticas.

Muitos teólogos afirmam que a revelação de Deus veio a nós nas Escrituras através de um formulário específico cultural, como no NT, quando Deus usou as culturas judaica e helenística para gravar sua revelação. Portanto, o evangelho deve também ser traduzido hoje em particular as formas das culturas asiáticas, e conseqüentemente numerosas teológicas asiáticas passaram a trabalhar com temas como a teologia da dor de Deus teologia (Japão), a teologia do búfalo na água (Tailândia), a teologia do terceiro olho (China), a teologia minjung (Coreia), a teologia da mudança (Taiwan), assim como outras teologias nacionais, como a indiana, e as teologias da Birmânia e Sri Lanka. A proliferação de teologias na Ásia aumenta significativamente desde a década de 1960 e continuarão a se multiplicar no futuro. Este fenômeno terá, sem dúvida, um enorme impacto na produção, mas também nos choques doutrinários em instituições teológicas e igrejas cristãs na Ásia.

Devido à existência de culturas religiosas muito diferentes, os conteúdos das teologias asiáticas também são diversificados. Mas de forma geral podem ser classificadas em quatro áreas principais: 

teologia sincrética, 
teologia do alojamento
teologia situacional
teologia bíblica para as necessidades asiáticas.

Teologia sincrética

Alguns teólogos e outros pensadores procuram sincretizar o cristianismo com as religiões nacionais, como o hinduísmo, budismo, ou islamismo, numa tentativa de contextualizar a teologia com as situação nacional. O Programa Unidade de Fé e Testemunho do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), tem promovido uma série de diálogos religiosos com os líderes das religiões presentes nas diferentes regiões asiáticas. Muitos desses diálogos resultaram em uma aceitação mútua das respectivas crenças.

O escopo do hinduísmo e do budismo é grande o suficiente para acomodar todas as outras religiões, incluindo o cristianismo. Sri Ramakrishna, fundador da Missão Ramakrishna, estudou a Cristologia e reconheceu a divindade de Cristo como um avatar (encarnação) do Ser Supremo como Krishna e Buda, e encoraja seus discípulos a adorarem a Cristo.

A idéia do Cristo cósmico enfatizada durante a Assembléia do CMI, em Nova Délhi, em 1961 tornou-se proeminente entre os teólogos liberais na Índia. Raymond Panikkar, em seu livro O Cristo desconhecido do hinduísmo salienta que Cristo já habita o coração do hindu e que a missão da Igreja não é levar Cristo para os hindus, mas trazer Cristo para fora dele.

Klaus Klostermaier, um teólogo alemão, católico romano, visitou Vrindaban, um dos lugares sagrados na Índia, a manteve um diálogo com os gurus hindus. Depois de suas experiências espirituais com estudiosos hindus, ele testemunhou: "Quanto aprendi o Hinduísmo, o que mais me surpreendeu é que nossa teologia não oferece nada de novo para o essencialmente hindu."

M. M. Thomas, um proeminente líder da Igreja na Índia e no CMI, fez do Cristo o cósmico uma forma de humanismo secular. Ele interpretou a salvação como o encontro do ser humano com sua verdadeira natureza humana, de modo que ele não é mais oprimido pela injustiça social, pela guerra e pela pobreza. Thomas disse: "Eu não consigo ver nenhuma diferença entre a meta missionária de uma igreja cristã expressando Cristo em termos do pensamento contemporâneo hindu e padrões de vida, e o hinduísmo o quando apresenta o pensamento e os padrões do hinduísmo como vida interior."

Teologia do alojamento

A acomodação é um outra tentativa de contextualizar a teologia na Ásia. Assim como uma família acomoda um convidado, teologia do alojamento considera que costumes e práticas religiosas de uma outra cultura pode ser acomodada  pelas religiões asiáticas. Tentativas cristãs para acomodar outras idéias religiosas são estão presentes principalmente nos países que cultuam o budismo.

A Sociedade Bíblica da Tailândia escolheu a palavra dharma (lei, direito, força, ensino) como tradução da palavra Logos em João 1:1, porque o dharma na cultura budista tailandesa é tão significativo quanto o Logos no mundo helênico de tempos do NT. Da mesma forma Matteo Ricci, missionário jesuíta católico  na  China no século XVI, escolheu as palavras Tien Chu como o nome de Deus, porque esse era o conceito budista popular para expressar Deus na China.

Kosume Koyama, um professor japonês ex-missionário no Seminário Teológico da Tailândia, em sua Teologia do búfalo na água, se opôs ao sincretismo por crer que este não fazia justiça a ambas as religiões. defendeu a teologia do alojamento. Koyama acredita que não se pode misturar o tempero aristotélico da teologia ocidental com os temperos da religiosidade da Tailândia. É preciso, portanto, ressaltar bom que existe na fraternidade e não ater-se exclusivamente na cristologia, Koyama, acredita que cada religião tem pontos positivos, bem como pontos negativos, e que os cristãos tailandeses devem reconhecer os elementos positivos do budismo na Tailândia, a fim de mudar seu estilo de vida.

Choan-Seng de Taiwan propõe uma "teologia da terceira dimensão", olhada a partir de uma perspectiva asiática. Diz, por exemplo, que, assim como o Espírito Santo trabalha na consciência um ocidental para levá-lo à conversão cristã, ele trabalha nos Zen budistas do Japão para levá-los ao Satori, à iluminação da mente. Uma vez que o mesmo Espírito está trabalhando em ambas as religiões, o objetivo das missões cristãs não deve ser evangelização, mas sim a integração da espiritualidade cristã com a espiritualidade asiática.

Dois teólogos do Sri Lanka tiveram um interesse semelhante no alojamento de terminologias budistas e conceitos da teologia cristã. D. T. Niles, um dos principais líderes da Conferência Cristã da Ásia, usou os conceitos dharma e sangha para falar de "doutrinas" e do "corpo de Cristo". Lyn de Shiva, um pastor metodista no Sri Lanka, acredita que o ensino do budismo sobre as três características básicas da existência, anicca, impermanência, dukkha, sofrimento, e anatta, não-self, fornece uma análise abrangente do ser humano que pode se tornar uma base para a teologia cristã. Anicca afirma o estado de constante decmudança de todas as coisas; dukkha afirma que o apego é a causa do sofrimento humano, e anatta significa que não há alma ou qualquer entidade permanente no ser humano. Os conceitos anicca e dukkha podem ser facilmente acomodados à teologia cristã, mas anatta é um pouco mais difícil devido à ideia de imortalidade no cristianismo.

O alojamento dos conceitos e expressões das religiões asiáticas, como dharma, Chu Tien, anicca, dukkha e annatta podem ser aceitos por muitos cristãos, quando acrescentados nos significados da interpretação bíblica. No entanto, a questão de como traçar a linha de demarcação entre sincretismo e alojamento depende se o teólogo aceita ou não revelação de Deus em Jesus Cristo como particular e única. A resposta à pergunta "os budistas têm de ser convertidos a Jesus Cristo para o perdão dos seus pecados?" irá revelar se aceita Jesus Cristo como o único caminho para Deus.

Teologia situacional

Outro tipo de teologia asiática deriva diretamente da situação particular. Esta teologia situacional pode não estar de acordo com as doutrinas bíblicas e históricas da igreja cristã, mas fala de situações concretas na Ásia. 

A ecologia da dor de Deus, de Kazoh Kitamori, no Japão, é uma excelente
ilustração. Ele tentou demonstrar para as pessoas que sofreram no Japão após a derrota na Segunda Guerra Mundial que o Deus revelado na Bíblia é o Deus do sofrimento e da dor que se identifica com o sofrimento japonês.

A teologia minjung, teologia da massa do povo, é outro exemplo típico. O principal impulso da teologia ecumênica hoje na Ásia aponta na direção da libertação das pessoas da injustiça social, exploração econômica, opressão política e discriminação racial. A teologia minjung é uma versão coreana da teologia da libertação e ensina que Jesus Cristo é o libertador dos povos oprimidos. Os textos Conferência sobre a teologia minjung, de 22 de outubro de 1979, foram editados por Yong-Bock Kim, diretor do Instituto Cristão de Estudos da Justiça e Desenvolvimento, em Seul, e publicados como compendio de  Teologia Minjung.

A Teologia na Ásia têm sido apresentada por missionários ocidentais. O Ocidente tem suas próprias formulações teológicas derivadas de seu próprio contexto cultural, como as discussões sobre calvinismo, arminianismo, morte de Deus, etc. Na Ásia as circunstâncias que enfrentam os cristãos diferem do Ocidente. Cristãos asiáticos devem fazer suas teologias relevantes para situações de vida na Ásia. Algumas das principais questões que os cristãos na Ásia enfrentam são o comunismo, pobreza, sofrimento, guerra, idolatria, suborno e corrupção.

A maioria dos teólogos evangélicos vêem o valor de teologia asiática ao permitir que os asiáticos possam expressar seus pensamentos teológicos em seus próprios contextos. No entanto, ficam apreensivos diante do sincretismo e da minimização dos ensinos fundamentais das Escrituras no processo de contextualização.

Em 1982, oitenta teólogos evangélicos reunidos em Seul, na sexta consulta sobre a teologia na Ásia, produziram uma declaração onde afirmaram: 

(1) A Bíblia é a única, infalível e inerrante Palavra de Deus. (2) Jesus Cristo é o único e encarnado Filho de Deus. (3) A teologia da missão centrada em Cristo, com o objetivo de comunicar o evangelho aos perdidos, é a melhor proteção contra o sincretismo. (4) O amor deve ser a parte essencial de uma teologia da Ásia e apenas como cristãos podemos identificar-nos com os necessitados a quem desejamos contextualizar o evangelho.

Conclusão

A questão-chave em todo o argumento em torno de desenvolver ou não uma teologia da Ásia é se no processo de contextualização as doutrinas bíblicas e históricas da igreja cristã podem ser preservadas. Uma analogia pode ser feita: a arca da aliança no AT foi transportada por carro de boi. Hoje, em vários países asiáticos, a Arca seria transportado por riquixá, cavalo, moto ou carro. No entanto, o significado da arca não deve ser alterado.

Cristãos asiáticos devem ouvir, avaliar e ter a mente aberta para diferentes leituras teológicas sobre contextualização, mas ainda permanecerem fiéis ao evangelho e proclamá-lo em amor, como o apóstolo Paulo exorta: "Fiquem alertas, fique firme na fé, sejam forte e que tudo o que vocês fizerem, façam com  amor" (1 Coríntios 16:13 p-14).

Bibliografia

G H Anderson, ed., Asian Voices in Christian Theology; D J Elwood, ed., What Asian Christians Are Thinking; D J Elwood and E P Nakpil, eds., The Human and the Holy; K Kitamori, Theology of the Pain of God; K Klostermaier, Hindu and Christian in Vrindaban; C Michalson, Japanese Contributions to Christian Theology.

Fonte
Asian Theology - - is at http://mb-soft.com/believe/txo/asian.htm 
This subject presentation was last updated on - - 09/23/2015 16:11:15



lundi 26 octobre 2015

As brasilidades afros, por Jorge Pinheiro

É impossível pensar o Brasil se negarmos a presença criadora da intelectualidade negra

A Terra é sempre a tua negra algema 

"Tu és o louco da imortal loucura,/ o louco da loucura mais suprema./ A Terra é sempre a tua negra algema,/ prende-te nela a extrema Desventura./ Mas essa mesma algema de amargura,/ Mas essa mesma Desventura extrema/ Faz que tu’alma suplicando gema/ E rebente em estrelas de ternura". (“O assinalado”, Cruz e Souza, primeira e segunda estrofes). 

Ao percorrer os caminhos das brasilidades ao longo dos últimos três séculos encontramos as raízes que explicam a miséria da nação. As bandeiras da emancipação, da democracia e da justiça social continuam urgentes hoje tanto quanto em épocas passadas. Essas bandeiras, sociais e políticas, traduzem a fragilidade do protestantismo evangélico no Brasil, que, no correr das últimas décadas, parece ter crescido muito, mas pouco tem feito em relação aos excluídos. Embora o princípio da liberdade religiosa tenha sido parte integrante da fé dos primeiros batistas ingleses e a luta pela liberdade vista como um direito humano, é importante lembrar que o protestantismo histórico brasileiro, herdeiro das tradições sulistas norte-americanas, se não foi abertamente escravista, foi condescendente e omitiu-se diante da exclusão forçada dos negros africanos seqüestrados para o Brasil e seus descendentes, os afrobrasileiros. 

Passados quase cento e vinte anos do decreto que reconheceu o direito do povo negro à liberdade, a ideologia do ocultamento ainda se faz presente no pensamento protestante. Assim, Oliveira constata que “os negros nas denominações evangélicas são colocados no devido lugar da animação da comunidade de fé, onde seus dons e talentos são usados para a motivação dos cultos e das celebrações, mas poucos negros ocupam os cargos de liderança e as comissões de ponta das matrizes. Essa constatação pode provocar uma discussão interessante e, ao mesmo tempo, levantar a seguinte questão: a divisão já não está presente no universo evangélico nacional? Os negros têm, de fato, os mesmo direitos que os brancos na Igreja brasileira?”135 

Leituras das culturalidades 

Para se compreender a cultura afrobrasileira é importante entender a religiosidade africana dos orixás. Apesar, de sua diversidade regional, a matriz africana da religião dos orixás traduz, em seu conjunto, a cultura da família clânica, originária de um mesmo antepassado, que engloba vivos e mortos. 

O orixá é o ancestral divinizado, que em vida estabeleceu vínculos que lhe garantiram controle sobre determinadas forças da natureza. O poder desse ancestral, após sua morte, pode encarnar, por um curto período, em um de seus descendentes através de possessão provocada. É interessante notar que a morte desses antepassados não acontecia de forma natural, mas em meio a acontecimentos que envolviam paixão ou ira. 

Nesse momento de crise emocional provocado por cólera e outros sentimentos violentos, sofriam metamorfoses, seus corpos eram consumidos pela paixão, restando deles apenas o poder. Mas, para que esse poder pudesse ser apropriado por seus descendentes, era necessário que membros da família enterrassem um vaso no chão, com cerca de três quartos de sua altura. Nesse vaso recolheriam o poder do orixá, que passaria a receber oferendas e o sangue de holocaustos. Esse culto unia homens e mulheres ao orixá, e suas emanações eram representadas por uma pedra, um seixo de rio ou por símbolos como ferramentas ou arco e flechas. Assim, o poder do orixá só se tornava perceptível através da incorporação, o que possibilitava ao orixá voltar à terra para receber provas de respeito dos que o evocavam. 

Nos cultos ao ancestral, ao incorporar-se o orixá recebia sua personalidade de volta com qualidades e defeitos, gostos, tendências, caráter agradável ou agressivo. Durante as cerimônias, os orixás dançavam com seus descendentes, ouviam suas queixas, resolviam desavenças e consolavam seus infortúnios. Dessa maneira, o mundo dos orixás não estava distante do fiel, nem era superior. 

Em religiosidades na África, os orixás estavam ligados às comunidades e às nações e os cultos eram regionais e mesmo nacionais. Os cultos eram assegurados pelos sacerdotes, e os demais membros da família ou comunidade não tinham outros deveres senão o de contribuir com a manutenção e custeio do culto, podendo participar nos cantos, danças e festas que acompanhavam as celebrações. Deviam, porém, respeitar as proibições alimentares e outras ligadas ao culto do seu orixá. 

Com o tráfico de escravos, os orixás foram trazidos para o Brasil com seus descendentes e permaneceram ligados às famílias que vieram para cá ou aqui se formaram. E os sacerdotes dos orixás passaram a manter o culto para essas famílias e comunidades. 

Hoje, embora os não afrodescendentes não possam reivindicar laços de sangue com os orixás, podem existir afinidades que favorecem o culto. Afrodescendentes e não afrodescendentes, para os sacerdotes dos cultos aos orixás, têm arquétipos comuns, 136 como a virilidade, feminilidade, sensualidade, independência ou desejo de expiação, que correspondem àquele de um orixá. E, assim, essa religiosidade ancestral passou a ocupar seu espaço nos terreiros e comunidades de descendência negra, marcando presença definitiva na multiculturalidade brasileira. 

Joaquim Nabuco foi o primeiro brasileiro a apresentar uma visão globalizadora da formação histórica e do papel da africanidade no Brasil. E o fez numa pequena obra de propaganda: O Abolicionismo. Nela, ele mostrou que a escravidão, que durou três séculos, não constituía um fenômeno a mais, de modo que deveria ser analisado em igualdade de condições com a monocultura e a grande propriedade agrária. 

Para Nabuco, foi a escravidão que formou o Brasil como nação. Ela é a instituição que ilumina a compreensão do passado. E é a partir dela que se definiram entre nós a economia, a organização social, a estrutura de classes, o Estado, o poder político e a própria cultura. A escravidão foi a protagonista por excelência da história brasileira. Historiadores, sociólogos e antropólogos começam a entender assim; porém, como representantes de comunidades de fé, os protestantes, raramente reconheceram essa dívida intelectual, cultural e social. O autoritarismo tão típico da elite, a dificuldade na construção da cidadania e a exclusão social estão intimamente ligadas a esses trezentos e setenta anos de escravidão e são as heranças trágicas da brasilidade. Assim, a escravidão gerou miséria e exclusão. 

Devemos entender que nossas culturas são relacionais, o que significa que as relações entre as classes aparecem de forma difusa, sobre a base de relações sociais aparentemente pouco intervencionistas diante de uma sociedade civil incipiente, onde a interação entre o público e o privado se figura flexível e amorfa. Por isso, nessas culturas, as relações dentro das classes e, muitas vezes, entre elas se mostram mais gratificantes do que os motivos e fins que deram origem a essas relações. Em nossas culturas relacionais, os códigos devem ser entendidos a partir de uma chave dupla: é necessário partir das matrizes antropológicas, mas não se podem esquecer as pressões globalizadoras. E as matrizes antropológicas foram construídas a partir da polaridade de dois mundos e de duas realidades que têm suas origens com a escravidão: a casa, enquanto dimensão social permeada de valores, de espaços exclusivos e lugar moral, e a rua, enquanto movimento, trabalho, tripalium. O tripalium dá origem à palavra trabalho. É um instrumento de três piquetes usado para fixar animais quando se pretendia fazer intervenções veterinárias ou marcá- los a ferro. Foi utilizado pelos romanos, depois na Idade Média e posteriormente importado pelos colonizadores portugueses. Era utilizado nas fazendas brasileiras para conter os escravos quando castigados ou marcados a fogo. Essa situação traduz a relação existente entre senhores e escravos. A afirmação antropológica do padre Antonil, nosso primeiro economista, no século dezoito, de que “o Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos” não é uma constatação biológica.137 Era um inferno para os negros porque para estes não havia esperança a não ser a morte, geralmente prematura. Para os portugueses era o purgatório porque estes acreditavam na possibilidade de fazer fortuna e voltar a Portugal. E era um paraíso para os mulatos porque estes, já livres da escravidão, podiam transitar entre brancos e negros, crescendo em importância social pelo papel mediador que lhes era confiado. 

Assim, o paraíso aqui é definido como resultante de um relacionamento cultural. Locus do mulato ou mulo, animal ambíguo, híbrido, incapaz de reproduzir-se enquanto tal. Apesar da grosseria racista do termo, serão estes homens e mulheres mestiços que aqui romperão a dualidade cultural, tão típica das comunidades protestantes e calvinistas da outra América, que opunham bem e mal, deus e diabo. 

A expressão mulato, racista e colonialista, levou à expressão pardo, que foi adotada oficialmente no censo do ano de 1872 com o intuito de contabilizar de forma separada os negros cativos, não importando se africanos ou descendentes, dos negros nascidos livres ou alforriados, não importando se negros ou descendentes. E assim o termo entrou para a linguagem oficial, associada à identidade mestiça, mas não necessariamente associada à afrodescendência. 

Tal classificação, que por sua origem racista e colonial, gerou descontentamento entre os brasileiros descendentes de negros africanos, foi abandonada em nosso trabalho, assim como a expressão mulato/a. Optamos pelas expressões afrobrasileiro/a e afrodescendente por serem estes conceitos não depreciativos, sugeridos pelos estudiosos negros e por apresentarem estes concidadãos como brasileiros-de-origem-africana. 

Assim, com a construção da multicultura afrobrasileira e com os afrodescendentes dá-se momentos de sínteses que traduzem culturas relacionais. Ótimo exemplo é Macunaíma, um herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade. Nos países de cultura protestante burguesa, o negativo é o que está no meio. Aqui, o que está no meio é a virtude. 

Manzatto 138 analisa a antropologia dos personagens amadianos. Para ele, Jorge Amado vai além do regionalismo e realiza uma síntese magistral das identidades do brasileiro, extrapolando os marcos estéticos da literatura, para formalizar as bases das culturas relacionais brasilíndias e afrobrasileiras, embora não faça a crítica do que se esconde atrás e por baixo da aparente cordialidade do brasileiro. As culturas relacionais escondem a injustiça social 139 e a opressão sexual. Afirmamos que o Brasil foi formado por matrizes culturais: brancos, índios e negros, o que filtrado pelas culturas relacionais leva a uma ilusão, a uma mentira, como se brancos, índios e negros tivessem optado pela construção do país. A verdade é que portugueses brancos e aristocráticos exterminaram indígenas e escravizaram negros. Mas dessa maceração de povos, etnias, cores e culturas surgiram as brasilidades presentes em cada canto deste país, com riquezas particulares, diversidades que formam a multiculturalidade brasileira. 

Lévi-Strauss em O cru e o cozido nos leva a conhecer, por meio de uma abordagem estruturalista, como foi determinante no desenvolvimento da humanidade a passagem da alimentação crua para a cozida. A partir do título de inspiração culinária, Lévi-Strauss refere-se às exigências do corpo e aos laços elementares que o ser humano mantém com o mundo. Assim, através da oposição aparentemente trivial entre o cru e o cozido, apresenta a força lógica de uma mitologia da cozinha, tal como concebida pelos indígenas sul-americanos. Depois, traz a tona as propriedades gerais do pensamento mítico, onde descobrimos uma filosofia da sociedade e do espírito. E é interessante que este pensamento mítico vai empapar a multicultura relacional brasileira. No Brasil há códigos relacionais que traduzem equivalência entre comida e sexualidade, que têm como fundamento o prazer, e apresenta novos parâmetros para cru e cozido, que relaciona alimento, comida e sexo. Para a multicultura brasileira, alimento é o que mantém os seres vivos, a comida, aquilo que dá prazer, e o sexo é sempre um tipo de comida. O alimento é geral e universal, mas a comida dá identidade e, como conseqüência, quem come tem o controle. O alimento cru por excelência é a salada, algo de pouco sabor, sem maiores atrativos, diferente da comida que é bem cozida, como papa ou pirão. O alimento é aquilo que é difícil de engolir, já a comida é arroz com feijão, uma das sínteses das brasilidades. Herdeiros que somos das culturas das várias comunidades indígenas e de angolanos, benguelas, jejes, nagôs e outras, onde o cuidado pela preservação da vida da comunidade cabia à mulher, na multicultura brasileira é ela quem faz a mistura e quem dá a comida. Por isso, para Amado, mulher é dona Flor, moquequeira, articuladora de temperos, de cama e mesa. Ou Gabriela, de cravo e canela. 

Na multicultura relacional brasileira, o tempo vivido disputa com tempo lembrado. O tempo vivido é a rua, o movimento, é o tripalium. O tempo lembrado é o sonho, é o que foi e que deveria continua a ser. O tempo vivido é o suor e o cansaço. E a festa é a ruptura do tempo vivido. É o momento em que o corpo deixa de ser gasto pelo tripalium e é gasto pelo prazer. Talvez por isso, o maior acontecimento relacional da afrobrasilidade é o carnaval. É o momento do contrário. Troca-se o dia pela noite, a casa pela rua. A regra é o excesso. Não é uma festa de máscaras, mas de fantasias. É uma leitura da liberdade considerada fim das regras e convenções. Vive-se o fim da miséria, o fim da escravidão, o fim do pelourinho. É a utopia socialista em versão brasileira, onde todos somos iguais diante da possibilidade do prazer. Ou como canta Ney Matogrosso: 

“Não existe pecado do lado de baixo do Equador/ vamos fazer um pecado rasgado/ suado/ a todo vapor/ me deixa ser teu escracho/ capacho/ teu cacho/ diacho/ riacho de amor/ Vê se me usa/ abusa/ lambuza/ que a tua cafusa não pode esperar/ quando a lição é de escracho/ olha aí/ sai de baixo/ que eu sou professor/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá/ vê se me esgota/ me bota na mesa/ que a tua holandesa não pode esperar/ deixa a tristeza pra lá/ vem comer/ vem jantar/ sarapatel/ caruru/ tucupi/ tacacá”. 140 

Esses códigos das brasilidades caminham ao lado da questão racial. A solução relacional para a injustiça social foi a miscigenação e para a opressão sexual, o sincretismo. A oposição entre as culturas latinas, as culturas indígenas e as culturas negras não se tornaram irreconciliáveis, mas deram origem a uma diversidade de sínteses, à multicultura popular brasileira. Essa multicultura mestiça é entendida como a maneira de o brasileiro viver a vida, seu gosto pela festa, pela música, pela dança, pela comida e pelo sexo. Mostra uma forma de viver em que a vida não é algo acabado e definido, mas que se vai construindo no concreto do cotidiano vivido. Essa é uma característica muito especial da multicultura relacional brasileira, na qual a vida tem de ser reelaborada a cada dia. Não são formas multiculturais fixas, mas vão-se modificando conforme se vai vivendo. Esses dados são fundamentais para se entender a questão da identidade do brasileiro. Sua identidade não existe como algo dado. Também a identidade vai sendo construída e os elementos externos e as pressões mais novas, isto é, globalizadoras vão sendo deglutidas e vividas no hoje que se vive. 

O concreto e imediato da vida do brasileiro o leva a ser um ser relacional. Mais do que estar situado diante das coisas e da natureza, o realizar-se do brasileiro como ser dá-se através do relacionar-se. Assim, não se considera prisioneiro do destino, das forças das coisas ou da natureza. É um ser que procura aliados, quer para a realização de seus prazeres, quer para enfrentar os desafios impostos por elementos ou realidades alheias a seu cotidiano. A essa procura de alianças, o brasileiro chama de amizade e companheirismo. E se ele pode relacionar-se com seus pares, também o pode fazer com a transcendência. Para o brasileiro, o relacionar-se com o transcendente jamais significa uma negação do humano. Daí a intimidade que aparenta ter com a divindade. E as religiosidades brasilíndias e afrobrasileiras, que nasceram do sincretismo, são mais do que “um simples mecanismo de adaptação de migrantes pobres ao meio urbano, uma religião como a Umbanda, que tem crescido não somente entre as classes baixas, mas também entre as médias, deve ser vista como uma síncrese das tradições afrobrasileiras e espíritas. É por isso que a verdadeira chave da compreensão da Umbanda reside na própria sociedade brasileira, já que essa religião é fruto de transformações sociais e econômicas que ocorreram no país”, 141 e são traduções antropológicas da multiculturalidade brasileira, inclusive de seus códigos relacionais. Dessa maneira, “a adesão das massas urbanas à umbanda e ao pentecostalismo são freqüentemente explicados em termos de exposição às relações de produção nas cidades. Assim, as pessoas que não podem recorrer aos relacionamentos familiares existentes no campo entre camponês ou trabalhador rural e seu patrão (os quais embora extremamente exploradores pelo menos propiciam um tipo mais pessoal de contato e algum tipo de ‘proteção’) buscariam substitutos em cidades onde as relações capitalistas de trabalho deixam menos margem para contatos pessoais e nos quais os empregadores não têm obrigações morais em relação aos seus empregados. Pentecostalismo e umbanda são religiões de massa importantes no Brasil. Para certos setores da população elas têm funções sociais e psicológicas significantes”.142 

Dessa maneira, tanto o ideal de liberdade como outras características do brasileiro traduzem uma profunda dimensão coletiva. Isso não elimina ou massacra sua pessoalidade, mas, na maioria dos casos, lhe permite reafirmá-la. E o massacre não acontece porque o brasileiro é coletivo e comunitário, mas porque não sobrevaloriza as estruturas sociais. Assim, ao desprezar as estruturas, ao negar qualquer redução ao papel de simples engrenagem, reafirma a amizade e a solidariedade como formadoras do coletivo. Para ele, a liberdade, a amizade e a solidariedade acontecem na comunidade. É difícil imaginar o brasileiro solitário. Ao contrário, a imagem cultural e social que temos dele, e que toda a multicultura popular reflete, é a do homem e mulher cercados de amigos, conhecidos e parentes. A sua religiosidade é sempre coletiva. E sua espiritualidade tem um forte matiz comunitário, quer falemos da Umbanda ou do pentecostalismo popular. Para o brasileiro, a religião não pode ser vivida individualmente. A idéia de que a religião é questão de foro íntimo é uma abstração branca, calvinista ou tridentina. Ao contrário, na multicultura brasileira todos discutem a religião do outro, opinam e querem vê-lo junto na mesma comunidade. E em relação às festas não poderia ser diferente. E festa implica comida, música e dança. Em condições normais, o brasileiro não come, nem bebe sozinho. A comunidade é o espaço onde sua pessoalidade e criatividade atingem os níveis mais altos. 

Razões geográficas, históricas e raciais, nos últimos três séculos, levaram ao mergulho no desconhecido e plasmaram no brasileiro essa atração pela aventura e pelo risco. O brasileiro ama o desafio, não como futuro planejado, mas como espaço para a criatividade. Para ele, desafio é sempre se lançar à aventura da ruptura de regras, é dizer não às convenções e sobreviver pela coragem. Quando enfrenta esses desafios, que vai da sobrevivência no trapézio da economia informal ao transformar-se em Mané Garrincha nos gramados do mundo, está de fato modelando sua identidade. Brasilíndio143 ou afrobrasileiro,144 não teme mergulhar nos desafios da cultura branca e mundializada. Aventura implica a possibilidade do fracasso. E fracasso faz parte do risco. Mas ao viver a dialética desse movimento, o brasileiro constrói sua identidade, ainda que a um preço muito alto. Na verdade, é fazendo assim que ele sente-se livre e dá asas à sua criatividade, sem se preocupar com a construção do futuro. E se não fosse assim não estaríamos diante do brasileiro. A dificuldade em globalizar o brasileiro repousa aí: na cosmovisão de que a vida humana deve ser entendida como aventura e risco. Como algo que não pode ser planejado, organizado, dimensionado, mas vivido. Dessa maneira, viver é estar aberto ao novo, ao desafio, ao que ainda não foi vivido, nem mesmo se planejou viver. A ação antropológica do afrobrasileiro nasce da possibilidade de escolher a vida que sonha viver, que ele tem liberdade para escolher viver. Nesse sentido, quer viver a cada dia um novo sonho. E como para ele ficção e realidade se entrelaçam, sua maior construção é o carnaval, já que gira ao redor da festa e do prazer. Comida e sexo, futebol e carnaval surgem, então, como expressões maiores da possibilidade da utopia.

dimanche 25 octobre 2015

História e religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, por Jorge Pinheiro. Introdução...

História e religião de Israel
Origens e crise do pensamento judaico
Jorge Pinheiro



Introdução 

Nesta introdução, queremos fazer uma pequena homenagem ao intelectual judeu Franz Rosenzweig (1886-1929), que foi filósofo, conhecedor da teologia da Reforma protestante alemã, e que soube, durante toda sua vida, dialogar com o cristianismo. Em 1920, juntando-se a Martin Buber, ele fundou uma escola livre de estudos judaicos, que ficou conhecida como Lehrhaus. Essa escola marcou época. E ainda está presente na memória da intelectualidade judaica: abarcava filosofia e política, lei e ética, arte e metafísica, a experiência com Deus na vida diária e a experiência da liberdade pessoal. Rosenzweig escreveu um trabalho precioso, A estrela da redenção, publicado em 1921. 

Entendendo o legado de Rosenzweig, podemos dizer que a teologia judaica transmitiu ao mundo a noção de revelação, perpetuamente em fluxo, simbolizada no rolo de Torah [LJ1] . A idéia é que cada palavra revelada remete a outra palavra revelada, pois as Escrituras são uma estrutura de coerência, significado e unidade: a Palavra de Deus. 

Assim, como nos ensinam os Midrash [LJ2] , os pergaminhos da Torah mostram como a realidade está interligada. Por isso, devemos retornar às Escrituras, pois elas possibilitam a experiência espiritual de que necessitamos para enfrentar o mundo. As pessoas, sejam estudiosas ou fiéis, precisam ser encorajadas a voltar sua reflexão para a história e para a religião de Israel, buscando as raízes que fundaram a religião cristã no patrimônio do judaísmo antigo. 

Quando desejamos conhecer a importância da cosmovisão judaica, devemos entender, como disse Rosenzweig, que um novo aprendizado está nascendo, um aprendizado em ordem inversa, que não se inicia necessariamente nas Escrituras e nos conduz para a vida, mas que deve partir da vida em direção às Escrituras. E deve ser assim porque é assim que sentem, pensam e vivem os homens e as mulheres de nosso tempo. Nesse processo, segundo Rosenzweig, os mais aptos carregam aqueles que estão alienados, que estão procurando o caminho de casa. 

Este, portanto, é o espírito de nossa abordagem e o roteiro do presente estudo da história e da religião de Israel: de mãos dadas, fazer o caminho de volta para o coração de nossa vida. 

Como usar este livro

De modo bastante resumido, podemos dizer que o objetivo desta obra é apresentar o judaísmo em sua historicidade, abrindo o diálogo entre ele e o cristianismo naquilo em que têm em comum: sua origem, para o estudo teológico que parte da vida em direção às Escrituras.

Escrevemos sobretudo pensando no aluno de teologia, nas dificuldades de encontrar material sistematicamente organizado e reunido para seus estudos. Mas, ao mesmo tempo, pensamos no professor, que encontrará aqui propostas de metodologia para o ensino. O leitor autodidata também será muito bem-vindo às páginas de História e religião de Israel.

Ao planejar este livro, tivemos em mente a seguinte estrutura, para cada capítulo: apresentar um resumo histórico sobre o período e um mapa ilustrativo sobre a localização do tema em pauta, sugerir questões para reflexão e debate, além oferecer bibliografia complementar diretamente relacionada ao tema para o aprofundamento do assunto. 

Para aqueles que desejarem ampliar ainda mais essa perspectiva, a bibliografia integral estará à disposição, no fim do livro, em Anexos. 

Também em Anexos, o leitor encontrará a cronologia mais importante entre o Antigo e o Novo Testamentos, reunida de forma didática e pontual, para facilitar a rápida localização dos fatos históricos. 

No fim da leitura deste roteiro de estudos, como bem pode ser chamado, esperamos que tenha sido lançada uma luz sobre o judaísmo, suas raízes e história; que se frutifique o desejo de conhecer mais profundamente a diversidade cultural e religiosa que nos fez chegar ao século XXI; e que o leitor, em última análise, tenha sido instigado ao prazer do estudo continuado e permanente da Palavra.

Algumas questões de método

Quando se estuda a religião de Israel, questões referentes à revelação e ao processo epistemológico parecem difíceis de compreender. Duas macrocorrentes do pensamento teológico apresentaram respostas para essas questões nos últimos dois séculos. Uma que parece evidente e coloca a ênfase na revelação; outra vê a religião de Israel como inflexão da experiência cultural e religiosa dos povos vizinhos.

Essas duas correntes, apesar do arsenal considerável de informações reunidas, que não pode ser descartado, pecam no que se refere à metodologia. Não levam em conta que todo conhecimento pressupõe elaboração nova e exige que o estudioso jamais esqueça a dialética de qualquer processo social e histórico; apresenta-se diretamente ligado ao ser humano como sujeito, dá-se no terreno formal e só se torna necessário depois de elaborado. Mas, também, acontece no terreno do real e possibilita a conquista da objetividade.

É um erro afirmar que uma nova estrutura pode ser fruto único de um processo exclusivo apriorístico, revelado ou inato; ou, por oposição, que repousa exclusivamente em características preexistentes do objeto. Em ambos os casos, o erro consiste em definir o conhecimento como predeterminado, quer por estruturas internas ao sujeito, quer por características preexistentes no objeto. Descarta-se, assim, o conhecimento como construção efetiva e contínua. 

O conhecimento não começa com um sujeito plenamente consciente de seu ato histórico, nem de realidades definidas a priori. Resulta, sim, de interações que surgem da combinação de fatores múltiplos, que vão criando dependência e novas relações. Não é um intercâmbio entre formas diferentes, mas a construção de realidades com plasticidades. A esse processo de surgimento de novas estruturas chamamos de revolução, pois elas são construções de conhecimento e não crescença ou reforma de uma estrutura já conhecida. Aqui, temos crise e ruptura de estruturas e de conhecimentos anteriores gerando fatores que criam novas relações e novos equilíbrios. Nesse processo, haverá sempre um ou vários desequilíbrios iniciais, uma crise epistemológica, que rompe esquemas definidos, gerando movimentos que parecem estar fora do controle do sujeito.

Em relação à religião de Israel, assistimos a essa revolução epistemológica em dois momentos. Em primeiro lugar, em seu próprio surgimento, ou seja, com a aliança abraâmica. E, posteriormente, durante o processo que se abre com a guerra dos macabeus. Nesses dois momentos, movimentos no âmbito do indivíduo e sociais desencadearam processos diferentes que revolucionaram o próprio conceito de religião e, por extensão, mudaram a face da fé em todo o mundo. Ou como diz Schillebeeckx: 

Não existe uma experiência da Revelação sem mediação histórico-social; além disso, a Revelação tem também, na realidade, um papel de mediação com relação à autocompreensão das comunidades, de modo que a Revelação tem, inclusive, uma função ideológica. Este fato é analisado de duas formas: de maneira histórico-crítica e de maneira temática; em ambos os casos constata-se que a experiência da Revelação implica sempre uma teologia política, seja no sentido afirmativo (e renovador), seja em sentido pioneiro (abrindo o futuro).[1]

Metodologicamente, com a aliança abraâmica e com a guerra dos macabeus, temos o surgimento de novas estruturas epistemológicas na história e na religião de Israel. 

A aliança sinaítica é um fenômeno de consolidação em relação à aliança anterior. É uma normatização. E o movimento liderado por Esdras, no período pós-exílico, é um momento de reforma, partenogênese do judaísmo. A revolução virá depois, no bojo da guerra dos macabeus. Entender esse processo é definir uma metodologia para a compreensão da história da religião de Israel e, por extensão, dos fenômenos sociais e históricos que eclodiram com o surgimento do cristianismo.

A tradição bíblica apresenta os pais da humanidade e os patriarcas como monoteístas. Adão, Sete, Noé, Abraão e seus descendentes conheciam Elohim,[2] o Deus único, e guardavam seus preceitos. O henoteísmo surge como excrescência e o politeísmo como degeneração. Essa visão prevalece ainda hoje no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, e era hegemônica em toda a cultura ocidental até duzentos anos atrás. No entanto, a partir de Darwin e do desenvolvimento das ciências naturais no século XIX, tal crença foi seriamente abalada.

A visão clássica da crítica bíblica, da qual Karl Graf, Abraham Kuenen e J. Wellhausen são expoentes, parte de uma construção progressiva do desenvolvimento da profecia clássica que caminha em direção ao monoteísmo ético. A estrutura construída por Wellhausen, por exemplo, é persuasiva, tem coesão interna e ajusta pormenores antes difíceis no texto das Escrituras hebraicas. Wellhausen estabeleceu a teoria sobre estrutura do Pentateuco que se tornou padrão acadêmico para o estudo dos primeiros cinco livros das Escrituras hebraicas. Segundo ele, tais textos foram editados a partir de duas fontes, a Javista (J), originária do reino do Sul, Judá; e a Eloísta (E), originária do reino do Norte, Israel, articuladas por redatores javistas e eloístas em torno do século décimo antes da era comum. Há uma terceira fonte cujo núcleo é a lei ritual (conforme Levítico 17-26), chamada sacerdotal (P, em inglês). E uma quarta fonte, a Deuteronômica (D). Como a narrativa no Deuteronômio mostra semelhanças com J e E, mas não com P, o livro deve ter sido editado a partir de fontes antigas antes de ser articulada com P. A seqüência histórica da construção definitiva desses textos seria JEDP. Levando em conta as características presentes nos livros dos Reis e na literatura do pós-exílio, acredita-se que o texto final do Pentateuco, este que conhecemos, foi redigido no tempo de Esdras, já no período persa, no século quinto antes da era comum. A datação dessa edição final do Pentateuco no período pós-exílico pode se apoiar também no texto de 2Reis 22.8 que afirma, durante o reinado de Josias, em 621 antes da EC, cerca de oitocentos anos após o Êxodo, ter sido descoberto o “livro da lei no templo do Senhor”. Tal afirmação refere-se ao Deuteronômio. E o livro de Neemias conta como a população de Jerusalém recebeu a leitura pública da lei, feita por Esdras (Neemias 8). Dessa maneira, para Wellhausen, o Pentateuco possui edições complexas e não lineares de seus textos. Assim, apesar dos avanços da crítica posterior, sua visão do desenvolvimento e da datação das fontes continua sendo importante para os estudos modernos. A partir daí, podemos tirar três referências da teoria de Wellhausen, que devem ser consideradas: 

1. A análise das três fontes primárias: JE, narrativas javista e da tradição do Reino do Norte, combinadas e editadas nos séculos IX e VIII a.EC.; P, narrativa histórica expandida, interessada na origem e nos regulamentos das instituições de Israel, presente no período do exílio e da restauração; e D [LJ3] , material que forma o núcleo do livro de Deuteronômio, composto na época de Josias, com suas leis e arcabouço narrativo. 

2. O atual livro da Torah não era canônico e obrigatório para a nação nos tempos pré-exílicos. A literatura que seria incorporada à Torah existia em vários documentos e versões. Um único livro ainda não fora cristalizado. Antes, houve um período extenso de criação literária por parte de sacerdotes e escritores religiosos. 

3. O livro de Deuteronômio foi promulgado no reinado de Josias, e a Torah, como um todo, foi fixada na época de Esdras e Neemias.

Para os defensores da hipótese graf-wellhausiana, os profetas literários criaram o monoteísmo ético, e a Torah é a formulação sacerdotal-popular posterior do pensamento profético. Essa hermenêutica analisa as Escrituras como documento histórico-textual, à luz de outros textos religiosos, da história, da poesia e dos mitos dos povos vizinhos a Israel. Preocupado com questões de autoria, data, circunstância, estilo e desenvolvimento do pensamento, o conteúdo da Revelação [LJ4] tem valor secundário. Como conseqüência, tal postura leva a dois problemas: nega a história bíblica como está apresentada no texto sagrado e propõe alterações em sua mensagem, a fim de refletir o desenvolvimento do pensamento religioso. Assim, nossa divergência com Wellhausen se dá em relação à datação da parte principal do Pentateuco, o Código Sacerdotal, e à conexão do Pentateuco com a profecia clássica. E a pergunta que fazemos é: até que ponto a Torah pode ser usada como fonte da fase mais antiga da religião de Israel? Ou, o monoteísmo da Torah é pré-profético? A tradição bíblica nos conta que os pais da raça humana e os patriarcas de Israel eram monoteístas. A idolatria, então, teria surgido como degeneração posterior. Essa compreensão prevalece nas principais cosmovisões teístas: no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Por isso, afirmamos que o monoteísmo de Israel é anterior ao profetismo clássico e ao próprio surgimento do Pentateuco.

Duas questões são pertinentes nessa discussão com a crítica bíblica: memória e oralidade.[3] A construção da memória dos clãs de Deus deve ser vista como fenômeno dinâmico e não como conhecimento apriorístico e externo à vida desses clãs. A memória é atividade, imaginação, lembrança e esquecimento, ou seja, um trabalho de criação coletiva.

Diante da ameaça de extermínio, de escravidão e exclusão em meio à civilização egípcia, e sem documentação formal que comprovasse suas origens e chamado por parte de Deus, surgiu a necessidade de construção de uma história após a fuga do Egito e a travessia do mar Vermelho. E será essa necessidade que levará o aglomerado de gentes a fazer a transição da memória da oralidade étnica, oriunda dos tempos imemoriais do Pai Alto [LJ5] (ab ram [LJ6] ), em direção a um longo período em que oralidade e escrita começaram a conviver. A escrita surgiu no deserto como tentativa de assenhoreamento da memória, ferramenta reveladora de um passado épico, de uma história grande, com heróis forjados nas experiências com o Deus eterno. Nesse enredo que busca as origens, estarão presentes as memórias pessoais e coletivas.

As relações entre memória, oralidade e escrita na história de Israel são complexas e dificultam uma leitura simples de sua religião. Por isso, consideramos que podemos falar de três grandes ciclos, que caminham da memória oral à memória escrita. Podemos dizer que de Abraão até Moisés e a fuga do Egito temos memória oral, cujos liames são a identidade étnica individual e coletiva. Do deslocamento no deserto até a monarquia, temos um ciclo que combina oralidade com memória escrita. Nesse ciclo, as lembranças e as histórias são contadas, as idéias que estão na cabeça são gravadas. Começa, assim, a nascer, de fato, uma história com suas peculiaridades, mas não há uma linearidade na produção dessa história, já que é registro de lembrança dos fatos do passado, vividos por pessoas e comunidades em diferentes tempos, mas também da oralidade profética, que vão sendo registrados, muitos deles, em sua contemporaneidade. A partir da volta da diáspora babilônica, com Esdras e Neemias, até o surgimento do cristianismo, estamos diante de um terceiro ciclo, no qual predominou a memória escrita, com sinagogas, escribas e leituras semanais dos rolos da Torah. A memória, matéria-prima da História, é produzida durante esse último ciclo como campo de poder, evidenciado claramente na construção do judaísmo em sua disputa com o helenismo, mas também no deslocamento da pregação profética. Tal memória escrita produziu dois fenômenos na história de Israel: matou a oralidade profética e possibilitou o assenhoreamento da História pela hierarquia político-religiosa. Dessa maneira, podemos dizer que memória, oralidade e escrita na história de Israel são construções que ocorreram num campo de disputas culturais e ideológicas, em que pessoas e comunidades, com seus interesses, apresentaram releituras do passado. 

Para refletir sobre essa questão, sugerimos a leitura da história do levita, sua concubina e a guerra contra Benjamim, no livro de Juízes (caps. 19—21), que reproduz antigas tradições sobre a migração danita e a fundação do santuário de Dã, e que nos fala das tradições dos santuários de Masfá [LJ7] e de Betel, possivelmente de origem benjamita. A edição que temos do livro de Juízes é de origem monárquica, apresenta um relato hostil à realeza de Saul em Gibeá e faz a defesa da monarquia davídica na repetição da declaração: “Naquela época não havia rei em Israel” (Jz 17.6; 18.1; 19.1; 21.25). 

Se levarmos em conta o ciclo da memória oral, porém, qualquer análise do surgimento da religião de Israel deve partir do homem Abraão, como personagem transistórico,[4] e de seu contexto histórico e social. O mundo de Abraão é um mundo real, e a aliança com o Senhor,[5] o Eterno, a chave para entender o processo. A questão da aliança coloca em pauta a relação entre o conhecimento formal de Abraão e sua realidade histórico-social e leva a um ponto de partida comum: o processo revelatório. Essa participação revelatória deve ser entendida como diferente das características inatas do sujeito, que estão ligadas aos sentidos, ao sistema nervoso e à ordem estrutural da pessoa. Já o processo revelatório, que abre caminho para um conhecimento novo, se realiza no âmbito da organização funcional, caracteriza-se por ser ilimitado em sua possibilidade de construir noções e, acima de tudo, sobrepassa, vai além das informações sensíveis.

Apesar de seu reducionismo, a crítica bíblica fornece material importante no campo da história, arqueologia, lingüística, sociologia e religião para entender o relato sagrado em seu contexto, historicidade e revelação progressiva. Tomemos um exemplo: Meneptá II, o faraó do Êxodo. Ramsés II é o terceiro rei da décima nona dinastia, filho de Seti I. Guerreiro, ele realizou uma grande expedição contra Cades, a capital dos hititas, em parte fracassada, porque não conseguiu tomar a cidade. Foi um grande administrador e desenvolveu projetos arquitetônicos às margens do Nilo, como as cidades-celeiros de Ramessés e Pitom, conforme estão descritas em Êxodo 1.11. Seu décimo terceiro filho, Meneptá II, enfrentou uma invasão dos líbios, vencida por seu exército mercenário. Mas em que se baseia toda essa história? Em documentos, dentre os quais numa estela de vitória composta que diz: 

Os chefes curvam-se fazendo saudações de paz/ nenhum dos povos inimigos ousou erguer a cabeça/ a terra dos líbios está vencida/ está em paz a terra dos hititas/ o lugar de Pa-Canana, ao sul da Palestina, foi devastado com grande violência/ o lugar de Ascalom foi levado para longe/ aniquilado está o lugar de Gazer/ o lugar de Inuã, perto de Tiro foi reduzido a nada/ o povo isiraalu foi aniquilado, sem deixar semente/ lugar de Car, a Palestina do sul, fez-se qual viúva do Egito/ o mundo inteiro está em paz/ tudo quanto era rebelião caiu subjugado pela mão do rei Meneptá.[6]

É interessante notar que esse povo isiraalu é mencionado em estreita ligação com as regiões ocupadas por hititas, cananeus, filisteus e fenícios. Sem estar determinado, o termo isiraalu não define um país ou uma cidade, querendo, antes, significar uma tribo nômade. Assim, partindo da arqueologia e da história, vemos que o berço da nação isiraalu foi o Egito, e que esses eventos aconteceram, muito possivelmente, no fim do século XIII a.C., durante o reinado de Meneptá II (1235-1227 a.C.). Mostramos a historicidade do surgimento da nação de Israel como exemplo metodológico que nos ajuda a definir o processo vivido.

O conhecimento que se origina na atividade reflexa do sujeito recebe com a Revelação essa organização funcional que o torna possível. Convém notar que no conhecimento que tem por base o processo revelatório a organização funcional sempre se mantém invariável. Ou seja, essa organização funcional se mantém em equilíbrio, apesar dos processos vividos nas estruturas. E, mais do que isso, se impõe a eles como necessárias.

Podemos dizer que a matriz do Pentateuco se encontra na aliança feita por Deus com Abraão, conforme encontramos em Gênesis 15. A consolidação dessa aliança acontecerá com Moisés, descrita em Êxodo 24 e reiterada em Deuteronômio 5, numa das montanhas do deserto do istmo, entre o Egito e Madiã-Seir. Essa é a idéia força [LJ8] de toda a religião de Israel. Um acordo que implica salvação. Berit, aliança, tem o sentido de obrigação, mas também de segurança. É um acordo entre duas pessoas, celebrado solenemente, com o derramamento de sangue. A parte mais forte fornece a segurança ou a salvação, e a mais fraca se obriga a determinados compromissos. Dessa maneira, a aliança impôs um relacionamento especial entre Deus e o povo. E os mandamentos e as leis, dados no período da consolidação, transportam toda conotação legal e externa para uma perspectiva de acordo maior. O centro da aliança está no primeiro mandamento do decálogo (as dez palavras, em hebraico), que proíbe a adoração de outros deuses, da milícia do céu e dos ídolos. 

Mas a aliança é também um pacto moral. Só que o fundamental desse pacto, que perpassa toda a Torah, não é sua mera formalização, já que outros povos também tinham noções desenvolvidas de lei e moralidade. O assassinato, o roubo, o adultério e o falso testemunho eram condenados não apenas pela lei moral universal, mas também duramente punidos pelos códigos de Ur-Nammu, de Lipit-Ishtar e de Hamurabi,[7] para citar os mais representativos. Agora, no entanto, pela primeira vez a moralidade é apresentada pelo próprio Deus como fruto de um relacionamento entre ele e o povo, com normas para o estabelecimento de um reino de um novo tipo. É uma aliança com toda a nação. A consolidação sinaítica, fruto da aliança abraâmica, vai além das sabedorias babilônica e egípcia, que lidam com o indivíduo. A moralidade apresentada no Gênesis, por exemplo, que é individual, ganha aqui uma roupagem nova, passando a ser coletiva e nacional. Assim, para Kaufman, Deus não elegeu Israel para fundar um novo culto mágico em benefício dele; elegeu-o para ser seu povo, para realizar nele o seu arbítrio. Portanto, por sua natureza, também a aliança religiosa foi uma aliança moral-legal, envolvendo não apenas o culto, mas também a estrutura e os regulamentos da sociedade. Assim, colocou-se o alicerce da religião da Torah, incluindo tanto o culto como a moralidade e concebendo a ambos como expressões da vontade divina.[8]

Na verdade, a aliança que Deus faz com Abraão em Gênesis 15, historicamente, tem seu cumprimento em outra estrutura, no Sinai. Dessa maneira, literariamente, Gênesis não só prepara o roteiro de Pentateuco, mas faz parte intrínseca dele. É bereshit [9] não apenas como saga da origem, mas como alicerce de todo o Pentateuco.

Em relação à segunda parte deste livro, que trata da diáspora, do helenismo e da guerra, é importante precisar que o conhecimento é sempre um processo de interação e organização, de construção de novas estruturas, que se inserem nas já existentes. Todo conhecimento é um padrão, uma medida de relação entre o sujeito e o objeto. Ou, se preferirmos, entre a nossa existência e o mundo. É impossível compreender a revolução do período macabaico se não visualizarmos a dinâmica interior, que rasgou corações e mentes, assim como os fatores externos que, combinados, geraram crise e ruptura nessa relação entre interação e organização.

O período histórico aberto com a reforma de Esdras, sob a dominação persa, levou Israel a um profundo equilíbrio. Havia interação entre a reforma religiosa e o momento histórico. Prevalecia a organização. Colocamos os conceitos nessa ordem, porque interagir e organizar são aspectos de um mesmo processo. Interagir é sempre o equilíbrio necessário que resulta da relação entre a inteligência e o ambiente. É a resposta que damos às novas questões, quer de forma reflexiva, a partir do sujeito, quer de maneira dinâmica, procurando adaptar a realidade a nossos desejos e necessidades. Só que acontece em primeiro lugar no âmbito do objetivo, formalizando-se a posteriori. Interagir implica transformar a realidade circundante. Por isso, podemos dizer que a face objetiva da interação é a mudança, a reforma ou mesmo a revolução, e a subjetiva é a organização.

A organização tem como finalidade restabelecer um equilíbrio e para isso trabalha na esfera daquilo que se deseja. Procura-se uma meta, um fim, que coloque as coisas em seus devidos lugares e nos mostre a razão de ser das coisas. Quando desejamos alguma coisa, é porque não temos essa coisa. Assim, organizar é definir como alcançar o objetivo. Só que a organização está em constante movimento. Não se estabiliza. Aponta sempre para uma organização nova e para uma nova construção. É claro que a organização é um processo formal, que se resolve no âmbito do pensamento intelectual; por isso, quando as condições sociais são desequilibradas com violência, esse processo nunca é plenamente consciente. Ele se realiza como processo histórico. E é esse fenômeno, riquíssimo, construtor de novas estruturas e conhecimentos, que vemos acontecer em todo o processo da revolução dos macabeus. 

Nossa abordagem da história e da religião de Israel quebra alguns paradigmas por considerarmos que o conhecimento não começa com certezas, mas com questionamentos. Nessa leitura quase judaica das Escrituras, queremos dizer que o leitor não deve esquecer os três fundamentos da Guemará[10] [LJ9] babilônica, que afirma haver apenas um Deus verdadeiro, justo e bom; que a Torah, dada por Deus, contém toda a verdade e justiça; e que o ser humano deve fazer o possível para caminhar com ele e ser também verdadeiro, justo e bom. A melhor maneira de realizar essa meta é investigar e viver a Torah. As histórias, os contos, as biografias, os provérbios e as profecias que encontramos nela podem e devem servir como fonte inesgotável de inspiração para a multiculturalidade brasileira. Afinal, essa tradição milenar da história e da religião de Israel ainda serve aos estudiosos e aos fiéis, como roteiro de vida, mesmo nos momentos mais sombrios da História.



Questões para reflexão e debate

Leia os capítulos 19 a 21 do livro de Juízes, mas dê atenção especial aos versículos reproduzidos a seguir.

Juízes 19.1,12-14,16,18,30: 

1Naquela época não havia rei em Israel. Aconteceu que um levita que vivia nos montes de Efraim, numa região afastada, tomou para si uma concubina, que era de Belém de Judá.

12O seu senhor respondeu: “Não. Não vamos entrar numa cidade estrangeira, cujo povo não é israelita. Iremos para Gibeá”.

13E acrescentou: “Ande! Vamos tentar chegar a Gibeá ou a Ramá e passar a noite num desses lugares”.

14Então prosseguiram, e o sol se pôs quando se aproximavam de Gibeá de Benjamim.

16Naquela noite um homem idoso procedente dos montes de Efraim e que estava morando em Gibeá (os homens do lugar eram benjamitas) voltava de seu trabalho no campo.

18Ele respondeu: “Estamos de viagem, indo de Belém de Judá para uma região afastada, nos montes de Efraim, onde moro. Fui a Belém de Judá, e agora estou indo ao santuário do Senhor. Mas aqui ninguém me recebeu em casa”.

30Todos os que viram isso disseram: “Nunca se viu nem se fez uma coisa dessas desde o dia em que os israelitas saíram do Egito. Pensem! Reflitam! Digam o que se deve fazer!”

Juízes 20.1-5,9,10 [LJ10] ,12: 

1Então todos os israelitas, de Dã a Berseba, e de Gileade, saíram como um só homem e se reuniram em assembléia perante o Senhor, em Mispá.

2Os líderes de todo o povo das tribos de Israel tomaram seus lugares na assembléia do povo de Deus, quatrocentos mil soldados armados de espada.

3(Os benjamitas souberam que os israelitas haviam subido a Mispá.) Os israelitas perguntaram: “Como aconteceu essa perversidade?”

4Então o levita, marido da mulher assassinada, disse: “Eu e a minha concubina chegamos a Gibeá de Benjamim para passar a noite.

5Durante a noite os homens de Gibeá vieram para atacar-me e cercaram a casa, com a intenção de matar-me. Então violentaram minha concubina, e ela morreu.

9Mas é isto que faremos agora contra Gibeá: separaremos, por sorteio, de todas as tribos de Israel,

10de cada cem homens dez, de cada mil homens cem, de cada dez mil homens mil, para conseguirem provisões para o exército poder chegar a Gibeá de Benjamim e dar a eles o que merecem por esse ato vergonhoso cometido em Israel”. 

12As tribos de Israel enviaram homens a toda a tribo de Benjamim, dizendo: “O que vocês dizem dessa maldade terrível que foi cometida no meio de vocês?

Juízes 21.25: “Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo”.

Compare com 1Samuel 10.10; 11.14,15: 

10 Chegando a Gibeá, um grupo veio em sua direção [de Saul] [LJ11] ; o Espírito de Deus se apossou dele, e ele profetizou no meio deles.

14Então Samuel disse ao povo: “Venham, vamos a Gilgal e reafirmemos ali o reino”.

15Assim, todo o povo foi a Gilgal e proclamou Saul como rei na presença do Senhor. Ali ofereceram sacrifícios de comunhão ao Senhor, e Saul e todos os israelitas tiveram momentos de grande alegria.

A partir da correlação dos textos lidos, explique como se dão as relações entre memória, oralidade e escrita na construção da historicidade do período de Juízes.

Por que a edição do livro de Juízes pode ser datada do período monárquico davídico?

E o que significa no texto de Juízes a afirmação que abre e fecha o relato: “Naquela época não havia rei em Israel”?



Leituras complementares

Epstein, Isidore. Judaísmo. Lisboa/Rio de Janeiro: Ulisséia/Pelicano, 1975.
Kaufmann, Yehezkel. A religião de Israel. São Paulo: Perspectiva, 1989.
LaSor, William S.; Hubbard, David A.; Bush, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
Schillebeeckx, E. & Iersel, B. van. Revelação e experiência. Petrópolis (RJ): Vozes, 1978.

Notas e correções no original


[1]E. Schillebeeckx & B. van Iersel, Revelação e experiência , p. 5. 
[2]Em hebraico, El, Elah, Eloah, Elohim; em grego, Theós. O nome mais geral da Divindade (Gn 1.1). No Antigo Testamento, é o ser supremo, único, infinito, criador e mantenedor do Universo. 
[3]Cf. Jacques Le Gof, Memória, in: Enciclopédia Einaudi, v. 1, p. 11-50. 
[4]Consideramos transistórico o conhecimento que é transmitido oralmente por mais de uma pessoa ou comunidade, às vezes por muitas gerações, que funcionam como amplificadoras do relato, antes que ele venha a ser, posteriormente, registrado de forma escrita. 
[5]Em hebraico, YHVH, o tetragrama, o nome de Deus impronunciável, cuja tradução mais provável é “o Eterno” ou “o Senhor Eterno”. O Senhor é Deus que existe por si mesmo, que não tem princípio nem fim (Êx 3.14; 6.3). Seguindo o costume que começou com a Septuaginta, a maioria das traduções contemporâneas usa “Senhor” como equivalente de YHVH (Deus). A forma Iaveh é a mais aceita entre os eruditos. A forma Jeovah, que só aparece a partir de 1518, não é recomendável por ser híbrida, isto é, por ser produto da mistura das consoantes de YHVH (o Eterno) com as vogais de Adonai (meu Senhor). 
[6]Estela “Israel”, Museu do Cairo, Egito. Alguns estudiosos, que defendem uma data anterior para o Êxodo, entre 1450 e 1420 a.C., quando Amenotep II era faraó, consideram que a estela “Israel” se refere a uma incursão de Meneptá contra a Palestina, quando os israelitas já estavam estabelecidos na região: duzentos anos depois do Êxodo 
[7]Cf. León Epsztein, A justiça social no antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, p. 11-26. 
[8]A religião de Israel, p. 232. 
[9]“O exegeta Rashi quer que o primeiro versículo do Gênesis seja traduzido da seguinte maneira: No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã, etc., pois a Escritura Sagrada não quer mostrar aqui a ordem da criação. A prova disso é que o fim do segundo versículo dá a entender que as águas já existiam antes dos céus e da terra.” (Haroldo de Campos, Bere’shitth, a cena da origem, p. 24.) 
[10] O Talmude é formado por dois livros: a Mishná, um livro sobre a lei judaica, escrito em hebraico; e a Guemará, comentário e elucidação da Mishná, escrito em hebraico e aramaico. 


[LJ1] Existe a opção para a grafia desta palavra em português: Torá. OK, adotar grafia em português. 
[LJ2] O dicionário Houaiss diz que esta palavra é substantivo masculino plural. Seguir a orientação de Houaiss. 
[LJ3] Será que deveríamos explicar ao leitor o que são essas letras? Veja acréscimo em vermelho sublinhado. 
[LJ4] O autor usa a palavra em caixa-alta aqui e nas páginas 12 e 38. Manter? Rever as demais ocorrências? É com manter e rever as demais ocirrências. 
[LJ5] Ver a outra ocorrência de pai alto, ou pai exaltado, Abrão. Não, basta este comentário sobre a origem do substantivo próprio Abrão. 
[LJ6] Em minúsculas mesmo? Em minúscula mesmo, pois aqui a intenção é mostrar como um apelido se transforma em nome. 
[LJ7] Seria Mispá? Depende da versão. Mas, na NVI é Mispá. Favor, então, utilizar Mispá. 
[LJ8] Locução, sem hífen, de acordo com Dicionário Houaiss. Seguir, sempre que possível, o padrão Houaiss. 
[LJ9] Esta palavra não é dicionarizada. Seria bom inserir um esclarecimento ao leitor? Coloquei uma nota de rodapé. 
[LJ10] Substituindo o texto bíblico anterior pelo da NVI, senti necessidade de reproduzir também o v. 10, para dar o mesmo sentido de antes. Peço que o autor observe a alteração. De acordo. 
[LJ11] Fiz este acréscimo, para esclarecimento. De acordo.