mardi 13 avril 2021

Tempo quente em Buenos Aires



Tempo quente em Buenos Aires

As tradições coloniais espanholas e portuguesas herdadas e depois recicladas pelas repúblicas autoritárias fizeram das ruas das grandes cidades latino-americanas espaços de trânsito do tripalium e do sofrimento, e dos lares, casamatas de refúgio.

Na Argentina a melhor teologia foi construída pela classe trabalhadora. Desde o início do século XX e, depois, no correr dele, com a participação do movimento anarquista e da presença crescente do trotskismo, os trabalhadores descobriram e aprenderam que a liberdade é construída nas ruas, quando se torna espaço de liberdade. 

Muitos podem achar que estou falando de política e não de teologia, mas esta, numa definição de trincheira, é a experiência com a transcendência, que nos faz humanos e existencialmente livres. Nesses dias de Buenos Aires, acompanhei um caso do que estou apresentando teoricamente. Vou contar para vocês.

A primeira semana da primavera foi invadida por uma frente polar que derrubou os termômetros. As madrugadas beiraram zero grau, ao menos na sensação térmica, e um vento sudoeste nos fazia andar rápido em busca de abrigo, um café, no mínimo. 

Mas, no dia 25 de setembro de 2009, um acontecimento inesperado começou a elevar a temperatura social. Naquela sexta-feira, os trabalhadores que ocupavam uma planta da Kraft Foods, no bairro de General Pacheco, e exigiam a reintegração de 156 operários despedidos em agosto, enfrentaram a polícia. Foi um choque violento e os operários entrincheirados na fábrica foram desalojados. O saldo foi de 10 feridos e 70 presos. 

Diante do desemprego consumado, de pessoas hospitalizadas e dezenas de presos, o que fazer? A teologia operária brotou naturalmente e entusiástica. A Corrente Sindical Combativa, que tinha liderado a ocupação operária da fábrica, levantou a necessidade, agora, de ir às ruas. Uniram-se os partidos de esquerda, ditos radicais, Movimento Socialista dos Trabalhadores, Partido Operário, Partido dos Trabalhadores Socialistas, Movimento ao Socialismo, Socialismo Revolucionário, as organizações anarquistas, a Comissão Pastoral Social católica, e os maoístas do Partido Comunista Revolucionário. 

As palavras de ordem foram rapidamente unificadas ao redor de um dos pontos centrais da teologia operária, a questão da liberdade, concreta, de vida. Assim, as faixas preparadas para as manifestações exigiam liberdade para os operários presos e reintegração dos trabalhadores despedidos. 

No dia 28 de outubro, centenas de trabalhadores, ativistas de sindicatos e partidos de esquerda e estudantes ocuparam o quilômetro 35 da rodovia Pan-americana e as avenidas Santa Fé e Mayo, numa marcha decidida, guerreira, em direção ao palácio do governo, a Casa Rosada. 

Na teologia construída pela classe operária, a rua se torna um espaço de liberdade, que apesar de ser percorrido em algumas horas, pode criar um tempo de liberdade. E essa liberdade, que nasce do percurso das ruas, rompendo a tradição colonial e republicana autoritária do tripalium, resgata a vida. E como toda boa teologia, não é feita para ser rezada, mas para fazer agir e pensar, extrapola o espaço e a classe que está a lhe dar origem. Envolve toda a sociedade numa discussão sobre a liberdade e a vida. 

E assim foi. A embaixadora dos Estados Unidos, Vilma Socorro Martinez, disse que ela e seus pares estavam preocupados com a situação da Kraft e desejavam a plena aplicação dos direitos dos trabalhadores, mas também o respeito ao direito de propriedade. 

É bom lembrar que a Kraft Foods (antiga Terrabusi) é uma indústria de capital norte-americano e gera cerca de 160 mil empregos na Argentina. 

Os empresários também não ficaram calados, pois o conflito foi considerado, por sua repercussão e extensão, inclusive internacional, um estopim que poderia explodir em outras mobilizações. A União das Indústrias Argentinas e a Coordenação das Indústrias de Produtos Alimentícios se expressaram, ora alertando para o perigo de se optar por demissões em massa, como fez Kraft, ora afirmando que também não se pode permitir que as fábricas sejam ocupadas pelos trabalhadores. 

O certo é que Buenos Aires esteve isolada pelas mobilizações, que bloquearam ruas, avenidas e os principais acessos à capital argentina. E o coordenador do Movimento Bairros em Pé, Roberto Baigorria, disse que através dos protestos os trabalhadores reivindicam participação nos planos sociais e nas cooperativas do governo. 

É a primeira vez, desde 2001, que os trabalhadores, sindicalistas combativos e partidos de esquerda ocupam as ruas do país. 

Na teologia da rua, o espaço pode ser percorrido com vistas à liberdade para os operários presos e reintegração dos trabalhadores despedidos, mas também à alegria e à festa: com fanfarra, bumbos e dança. E assim foi na Plaza de Mayo. Cheios de esperança, nas últimas semanas os trabalhadores argentinos levaram às ruas a promessa de Miquéias: “Ele nos ensinará o que devemos fazer, e nós andaremos nos seus caminhos. Os povos transformarão as suas espadas em arados e as suas lanças em foices. Todos viverão seguros, e cada um descansará calmamente debaixo das suas figueiras e das suas parreiras”. Quando a teologia ocupa as ruas, renasce nas vidas a possibilidade da justiça.