lundi 31 mai 2010

A Igreja na resistência ao Império

Junto com os teólogos Jung Mo Sung, coordenador do curso de Pós Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista do São Paulo, e Joerg Rieger, professor da Perkins School of Theology, dos Estados Unidos, Nestor Miguez acaba de lançar o livro Beyond the
Spirit of Empire
(“Para além do Espírito do Império”, ainda sem tradução em português).

Nesta obra, os autores analisam o império global não apenas em suas dimensões políticas e econômicas, mas também a partir das suas construções simbólicas, que invocam atributos divinos como onipresença e onipotência.

O professor argentino ministrou, no dia 24 de fevereiro, a aula de abertura do ano letivo de 2010 do Programa de Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo.

Pergunta: Você tem escrito sobre a crítica bíblica ao Império, entendendo-se a palavra Império como realidade política. Como explicaria a alunos de uma Escola Dominical o que é esse Império?

Néstor Miguez: O conceito de Império não é só político. É quandodistintos grupos poderosos detêm o poder econômico, político e cultural, com apoio das forças militares. É uma conjunção de forças que, em lugar de se controlarem e equilibrarem mutuamente, unem-se num processo de dominação.

Pergunta: Seriam, então, os governos autoritários?

Néstor Miguez: Governo autoritário é diferente de Império, nem todo governo consegue estabelecer a condição de Império e juntar outras forças em seu projeto. Governos autoritários que encontram oposição em forças econômicas ou sociais não se estabelecem como Império. A democracia é um sistema de controle. O Império se dá quando a vocação autoritária acompanha-se sem controle.

Pergunta: É o caso da economia de mercado nos dias atuais?

Néstor Miguez: A economia de mercado é uma forma de economia tão boa e tão pecadora quanto qualquer outra. O problema é quando ela se impõe como única forma de gestão econômica e começa a regular todas as relações sociais, aliando-se ao poder militar, político, à indústria cultural... É o império pós-moderno que estamos vivendo. Quando a economia de mercado é limitada pela economia solidária e formas de benefício estatal, ela não tem poder de controlar as decisões políticas e as forças militares e, então, ainda não há situação de
império.

A América Latina é um dos lugares onde se consegue limitar com mais eficiência algumas dessas imposições imperiais. Um ponto crucial foi a reunião de Mar del Plata, em 2005, na qual presidentes latino-americanos se negaram a entrar na ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas (acordo proposto pelos Estados Unidos, pelo qual se criaria uma zona sem barreiras alfandegárias, facilitando a entrada de produtos norte-americanos nas Américas Central e Sul). Como o Império não conseguiu reunir no seu projeto forças políticas da
América Latina, rompeu-se essa hegemonia do conceito de livre mercado total.

Pergunta: Você afirma que o Império cria comportamentos e formas de pensar. A colonização da mente é, portanto, mais do que resignação, é a reprodução do comportamento imperial. Você pode dar exemplos de como a Igreja hoje reproduz a mentalidade do Império?

Néstor Miguez: Os exemplos abundam na história. Podemos citar o acompanhamento missionário a projetos imperiais ingleses e europeus do século 19. Ou o catolicismo como empresa de conquista e invasão nos séculos 16 e 17. A configuração imperial exige uma construção cultural, a necessidade de criar sujeitos que aceitem ser súditos. Sujeitos sujeitos ao Império... No mundo de hoje (moderno e pós-moderno) a indústria cultural atua na construção da subjetividade imperial. E igrejas também criam teologias afins ao conceito imperial, como a teologia da prosperidade.

Muito mais sutis são as teologias da paz, ou seja, todos os conceitos que tentam incutir a idéia de que o conflito em si é pecado, que qualquer manifestação do conflito contraria o sentido cristão de amor ao próximo. A contribuição da teologia da paz no esquema imperial é difícil de detectar, mas efetiva. Todo Império se constrói sobre a anulação do outro. Quando se elimina o conflito elimina-se a possibilidade da reclamação, da negação, elimina-se a voz do oprimido.

Jesus diz: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mateus 6.33), inclusive a paz, pois a paz resulta da justiça, como também nos lembra a Bíblia: “O efeito da justiça será paz, e o fruto da justiça, repouso e segurança, para sempre” (Isaías 32.17).

Pergunta: Imagino que, quando você fala do Império e de suas formas de opressão, ouça comentários do tipo “isto é teologia da libertação; é uma ideologia ultrapassada”. Esse é mais um mecanismo de colonização mental ou, de fato, a teologia da libertação não é mais uma boa ferramenta para se pensar os dias de hoje?

Néstor Miguez: A teologia da libertação foi um momento teológico que surgiu em virtude de um contexto. Aquela teologia está vinculada com um momento do passado; o que não significa que o momento atual não exija uma teologia da libertação vinculada com o presente.

É necessário manter o conceito liberador da busca da plenitude da vida humana, da necessidade de justiça (incluindo-se questões de gênero e étnicas) diante do atual contexto econômico do capitalismo financeiro. A teologia da libertação encontrará, portanto, novos desafios para seguir sendo teologia da libertação. Em fidelidade ao passado, mas não como uma reprodução do passado.

Pergunta: Em um de seus artigos você diz que é impossível resistir ao Império que está ao redor e dentro de nós. Mas você fala também da confiança na ressurreição como possibilidade para uma nova realidade, a “esperança escatológica”: “Nossa esperança não está o passado, mas no futuro”. Você não está falando apenas da vida eterna. Que esperança temos para os que estão sofrendo hoje? Que caminhos existem para que a Igreja seja significativa para a sociedade de hoje?

Néstor Miguez: Vida eterna é afirmação de fé cristã que não vou negar. Nego que seja apenas depois da morte. Começa no corpo que hoje habitamos. Portanto, é esperança presente já, ainda que seja de uma forma parcial. Temos o desafio de descolonizar a mente, de nos desfazermos das lógicas imperiais e buscarmos relações humanas não mediadas pelo poder imperial do dinheiro e dos meios de comunicação. Somos desafiados a sermos donos do nosso próprio desejo.

Neste processo, as igrejas podem ser parcialmente (com mais dificuldade em sua face institucional) um espaço para pensar e viver modos alternativos de relação social, não regidos pela dinâmica da concepção imperial.

Isto é Paulo! Vários filósofos políticos seculares (alguns não cristãos e até ateus) estão estudando hoje a teologia de Paulo. Eles estudam como o apóstolo Paulo foi capaz de construir comunidades contra-imperiais em meio ao Império; com que símbolos e dinâmicas ele consegue ir contra o poder dos deuses imperiais.

Hoje precisamos fazer o que Paulo fez, apoiados no poder de um Deus crucificado que ressuscita. O filósofo neomarxista Alan Badiou diz que não há grito mais revolucionário que “viva a vida eterna”, diante do grito de morte eterna do Império. O Império não controla a vida mediante a morte porque a ressurreição estabelece outra dinâmica de vida. “Onde está, ó morte, a sua vitória?”, diz Paulo (1 Coríntios 15.55).

Pergunta: Mas os textos do apóstolo Paulo também já foram usados para justificar situações de opressão e escravidão...

Néstor Miguez: Paulo visava proteger a vida cotidiana. Se ele aconselhasse os escravos a se rebelarem, ele os estaria mandando à morte. No entanto, nas comunidades cristãs, “não há escravo, nem livre”. É o que se vê, por exemplo, na carta a Filemon. Paulo defende outra forma de relação humana não marcada pela lógica do império nas comunidades.

Pergunta: O número de igrejas evangélicas nas periferias brasileiras está crescendo. Também estão crescendo, nestes lugares, os índices de violência, especialmente entre os jovens, e os casos de gravidez na adolescência, reproduzindo o ciclo de miséria. Onde a Igreja está falhando?

Néstor Miguez: As igrejas criaram um espaço do religioso separado da vida cotidiana. É uma espécie de esquizofrenia que permite aplacar certas angústias da vida cotidiana. Era o que o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer chamava de “graça barata”, a graça que elimina a responsabilidade pelo pecado, permitindo que os(as) cristãos(ãs) sigam vivendo a vida normal de todas as pessoas.

“A graça barata é o inimigo mortal de nossa igreja”, dizia ele. A verdadeira graça não apenas perdoa os pecados, mas restitui o pecador e o transforma. É esse o tipo de evangelização que precisamos recuperar, o anúncio de boas novas capazes de criar novas formas de relações humanas.

Há algumas comunidades que conseguem, em nível pessoal, resgatar algumas situações de vida, como a recuperação do alcoolismo ou da violência familiar; mas não têm peso suficiente para transformar o entorno. A ação individual não alcança a comunidade, se não se transforma em ação política. Mas a maioria das igrejas diz: “Não nos metemos em política”.

Pergunta: Você está integrando um dos grupos de estudo da Conferência de Edimburgo 2010 (de 2 a 6 de junho), em comemoração ao centenário da conferência que se considera o início do movimento ecumênico mundial. Você está justamente no grupo que estuda “missão”. No Brasil, existe grande resistência ao ecumenismo porque se diz que ele é contrário à missão, compreendendo-se a palavra missão como evangelização ou, mais especificamente, a busca de novos adeptos para a Igreja. Qual é sua compreensão de missão? E em que medida ela está relacionada ao ecumenismo?

Néstor Miguez: De fato, grupos ecumênicos têm sido vistos como contrários à concepção de missão, e a missão como contrária ao diálogo ecumênico. É preciso, portanto, revisar tanto o conceito de missão quanto o conceito de ecumenismo. A evangelização não visa a ganhar adeptos que mantenham a mesma mentalidade de antes. Missão é processo de anúncio do Evangelho que põe a Igreja em busca de transformação do mundo e de si mesma. É como o apóstolo Paulo a estabelece. Neste sentido, a missão é uma empresa ecumênica.

Contudo, se o ecumenismo significa uma política de bom entendimento pelo qual eu renego minhas convicções e espírito crítico, não é ecumenismo. Sou totalmente ecumênico em minha história e prática de vida. Parte da missão da Igreja é justamente proclamar a absoluta
igualdade dos seres humanos. Mas o diálogo ecumênico não é ocultamento das diferenças. Conflito é parte da missão. Se suspendo minhas convicções, não sou sincero no diálogo. Se entro refratário, também não sou sincero, porque não quero dialogar.

Este é o resultado dos absolutismos da verdade. Jesus foi mais sutildo que isso. Em João, ele promete que o Espírito Santo nos “guiará a toda verdade”. (João 16.13). Então, eu não tenho a verdade, essa é uma busca guiada pelo Espírito Santo. Nessa busca compartilho, dialogo. E o Espírito Santo acompanha estes encontros. “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mateus 18.20). Jesus está presente no encontro com o outro.

Fonte
http://alcnoticias.com/interior.php?codigo=16448&format=entrevista&lang=689