lundi 18 avril 2016

A culpa e os conflitos religiosos

A libertação da culpa

Jorge Pinheiro


Algumas reflexões sobre a relação entre culpa e conflitos religiosos a partir da leitura de Culpa e Graça, de Paul Tounier, Ed. ABU, 1985, onde o autor coloca, no capítulo sete, a questão: “Quem pode se sentir culpado sem o ser? Ou sê-lo sem sentir, sem mesmo saber?

Podemos dizer que existem dois tipos de culpa. A falsa culpa, fruto de algum distúrbio psicológico, de um processo autopunitivo, e a culpa verdadeira. Mas, até mesmo a falsa culpa parece esconder uma culpa verdadeira. Ou seja, quer a autopunição ou qualquer outro processo psicótico, parece esconder uma outra culpa, diferente da obsessão apresentada. É para esconder essa culpa verdadeira, real, que o psicótico constrói uma outra: imaginária e obsessiva.

A questão tem solução no fato de que a culpa existe e é aceita pelo conjunto dos estudiosos que analisaram o tema, cada qual apresentando a perspectiva de sua escola ou visão de mundo. Assim, os freudianos mostrarão a frequência culpa-inferioridade; os jungianos, a recusa de aceitação integral de si mesmo; e Martin Buber, a recusa de aceitação do outro. Mas, para nós cristãos, fica claro que a culpa surge nos homens, quando O Eterno reprova no secreto de seus corações, ações e intenções.

A culpa pode ser observada como um fenômeno ou como a quebra de categorias de valor. Mas a maioria dos estudiosos analisa a culpa como fenômeno ou culpa funcional. A partir deste ponto de vista, a culpa seria sempre resultado da sugestão social, medo de tabus, de perda do amor de outrem, quando em choque com padrões originais. O resultado é um autojulgamento, um diferencial entre duas ordens de fenômenos.

Para os protestantes, sem esquecermos a realidade dos fenômenos analisados, a culpa está ligada a categorias éticas de valor, que remetem ao relacionamento entre o Eterno e o serhumano e hierarquizam-se no relacionamento da pessoa consigo mesma e com o próximo.

Assim, a visão funcional reflete diferentes interpretações de culpa, embora todas admitam a existência psicológica da culpa. As categorias éticas de valor vão além da discussão meramente funcional, pois coloca a questão em outro patamar: o importante não é saber se uma conduta é ou não culpada desde o ponto de vista social, mas se ela é ordenada ou não pelo divino de nossa fé.

É importante que a pessoa se liberte das pressões sociais. Mas, qualquer hierarquização de valores só terá sentido se partir da única oposição real entre a verdadeira e as falsas culpas, aquela que parte dos preceitos do Eterno e não das decisões estritamente humanas, do julgamento do Eterno e não do julgamento dos homens.

Mas a autenticidade de uma pessoa não significa que o seu posicionamento é correto em si. Isto porque não existe culpa sem conflito. Não existem conflitos apenas entre grupos ou interesses opostos. O conflito está presente até mesmo nas sociedades mais homogêneas e, logicamente, no humano. Para eliminar o conflito, é necessário retirar-se da vida.

Um pessoa autêntica é aquela que mantêm uma coerência entre o que pensa e o que faz. Essa autenticidade sem conflitos não existe. Sempre haverá momentos em que as duas coisas não se encaixarão. E aí estaremos diante de conflitos e culpa. Mas, ainda que existisse esse humano sem fissuras éticas, caberia perguntar: Até que ponto essa autenticidade tem uma base libertadora? De que vale ser autêntico, se a base de minha autenticidade é a alienação em relação ao eterno, ao próximo e a mim mesmo?

Donde, qual a correlação entre a subjetividade e a culpa? A culpa é sempre subjetiva, mesmo quando verdadeira. Porque, embora seja uma ruptura da ordem de dependência do humano em relação a Deus, é através do psicológico que Deus fala à alma humana. Assim, quer seja consciente ou não, não encontraremos culpa fora da subjetividade. E a cura da culpa, entendida como perdão e salvação do humano através da ação redentora do Eterno, acontecerá, embora não mecanicamente, também na área da subjetividade.

E como imbricamos conflito e culpa? O conflito faz parte da vida humana. É o choque permanente entre as estruturas mentais do ser e a realidade social. Nem sempre o pensar e o agir são harmônicos. Na maioria das vezes resolvem-se através de tensões e conflitos. E, sempre que a solução violenta as estruturas mentais do ser, temos a culpa. Os conflitos podem levar à culpa, mas culpa e conflito não são sinônimos.

Embora a culpa seja construída ao nível da subjetividade, ela parte de uma relação entre estruturas mentais e realidade social. Ou seja, implica sempre em uma ação, mesmo quando essa ação é mental. Nesse sentido, há uma mediação entre a estrutura mental e realidade social. Essa mediação é interação, produz sempre uma objetividade.

E podemos alcançar liberdade de culpa verdadeira, sem limpar primeiro as culpas psicológicas? Bem, a culpa verdadeira, que poderíamos chamar de culpa primordial, aquela que nasce da alienação do ser em relação a Deus, só pode ser curada por um ato do Eterno. Um ato da imanência do Eterno, que vem até ao humano para resgatá-lo de sua culpa. A libertação existencial da culpa real não necessariamente elimina culpas psicológicas. 

A consciência universal da culpa leva todos os homens, quer acreditem ou não em Deus, a tentarem exercer o papel que cabe exclusivamente ao Eterno: julgar o erro. O julgamento humano leva a falsas culpas, o julgamento do Eterno à culpa verdadeira. Quando o humano julga essas duas justiças se confundem perigosamente.

A relação Pater noster / imago Dei produz juízo de valores. Se é assim produz também sentimento de culpa. Na verdade, a relação entre pais e filhos produz juízos de valor. Isto porque a criança vê o mundo através dos pais. E os pais não transmitem às crianças apenas informações isentas de valor e normatização, mas julgamentos e culpas. Ao mesmo tempo, as crianças vivem num mundo imaginário onde, impossibilitadas de modificar a realidade através da práxis, o fazem através do sonho. Logicamente, haverá choques e conflitos entre a realidade da percepção de mundo adulta e esse imaginário infantil.

Os pais plasmam em seus filhos, através de julgamentos, uma série de culpas que chamamos infantis. Essas culpas impedem as crianças de ver e entender a culpa verdadeira. Diante do Eterno essas culpas infantis não pesam, e sim a culpa verdadeira.

Os pais julgam a conduta de seus filhos segundo a ótica dos adultos, com a experiência de vida que têm e seus filhos não. Quando acusam seus filhos de mentirosos, porque contam como verdadeiras as histórias que inventam, os pais não estão entendendo o mundo imaginário da criança. Para a criança o sonho é real. Mas a suspeita pode levá-la àquilo que desconfia. Poderá ser uma adulta mentirosa. Pois os pais construíram culpas na criança. Na verdade, o julgamento dos pais abafa o julgamento do Eterno, impede a criança de ouvir o que Deus está dizendo.

O pais devem educar a criança levando-a a ter um relacionamento pessoal, dela própria, com o Eterno. Devem educar, ou seja, mostrar a culpa verdadeira que todos temos e que só o Eterno cura, e assim afastá-la das culpas infantis, do medo da perda de estima e amor dos outros.  

Como entender o que o apóstolo Paulo escreveu em sua primeira carta aos coríntios (4.1-6), comparando seus argumentos com o conceito de julgamento, de sentimento de culpa, e a culpa real?

O texto é claro. Pouco importa ser julgado por terceiros ou por um tribunal humano. Ele próprio, Paulo, não julga a si mesmo. Sua consciência em nada o acusa, mas nem por isso está justificado. O Senhor é o juiz. Donde, ninguém deve julgar prematuramente, antes que o Senhor venha.

A palavra consciência exprime nas cartas do apóstolo valores propriamente cristãos. Quaisquer que sejam as normas exteriores, o comportamento do humano realiza-se ao nível de duas instâncias: o julgamento dele próprio (Atos dos apóstolos 23.1; 24.16; carta aos romanos 2.14-15; 9.1: 13.5; segunda carta aos coríntios 1.12; e o julgamento do Eterno, ao qual o primeiro julgamento está sujeito, conforme I Co 8.7-12; 10.25-29; e II Co 4.2.

Como enfrentar sentimento de culpa e o sentimento de culpa do próximo? O desafio é resolver a culpa real. Metanóia, perdão e liberdade em Jesus, o Cristo. A partir da liberdade todas as culpas funcionais estão cobertas pelo sacrifício vicário do Messias e somos “verdadeiramente livres”. Nenhuma culpa pesa sobre nós. Mas se nossa consciência continua nos acusando, se os cacoetes do passado permanecem, é bom procurar um profissional da área de Psicologia.

E para terminarmos estas reflexões sobre a libertação da culpa, cabe perguntar o que é saúde psicológica e o que é saúde espiritual?

Ora, saúde psicológica é a relação de equilíbrio entre as ações interiorizadas do humano e as exigências da realidade social. É a sua capacidade de resolver problemas com o menor grau de stress e culpa funcional, respeitando seus julgamentos pessoais.

Já saúde espiritual é aquela relação que nasce do relacionamento do humano que reconhece sua culpa real, liberto pela graça, com o Eterno. É o humano novo, que cresce no Espírito do Eterno, e produz frutos que se projetam na eternidade.