jeudi 9 octobre 2014

Fome Zero e os evangélicos -- 2003

A FAO vai realizar uma missão conjunta com o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID, para analisar o Projeto Fome Zero, anunciado como prioridade pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva.

A chefia da missão ficará a cargo de Andrew McMillan, diretor de divisão da FAO em Roma, que comandará uma equipe a ser integrada também por técnicos brasileiros. Durante dez dias, de 1 a 10 de dezembro, a comitiva vai analisar pontos do programa, além de realizar visitas ao Nordeste e Sul brasileiros, para observar in loco o drama da fome e o desenvolvimento da agricultura familiar. 


“A FAO vai financiar a contratação de consultorias nesse período. Elas ajudarão a identificar questões ainda não suficientemente aprofundadas do programa”, explicou o coordenador do projeto, José Graziano da Silva,[1] que retornou de Washington, onde debateu o Projeto Fome Zero em reunião da FAO.

O Projeto Fome Zero traz para nós evangélicos a questão da relação entre nossas igrejas e a sociedade, assim como a questão de nosso potencial para impulsionar o cumprimento integral da missão da igreja.

Há um quase consenso na teologia de que existe uma estreita relação entre religião e sociedade. Na teologia de missão e no pentecostalismo, que predominam em nosso país, é comum acreditar que uma mudança na crença de uma pessoa muda a sua maneira de agir. Assim, a conversão teria a capacidade de renovar a sociedade. Já para a esquerda clássica, que parte de Marx, a religião é um reflexo da situação econômica.

Talvez, sociologicamente, Max Weber possa ser um ponto de equilíbrio, pois via que entre o cristianismo e a sociedade existem afinidades eletivas, interações de características que geram atração recíproca, desenvolvem alguns traços e relativizam outros.

Outra questão, é que o catolicismo de corte tridentino influenciou nossa sociedade produzindo efeitos de longo prazo. Assim, determinados interesses inibiram transformações abrangentes, durante a Colônia e o Império, principalmente no que se refere à escravidão e ao principal fruto dela: a exclusão do povo negro..

Por isso, nós evangélicos devemos aprender com o erro alheio e olhar o Projeto Fome Zero e a luta pelo fim da exclusão social como oportunidades para a realização de uma ampla ação transformadora.

Segundo o economista mexicano Gustavo Gordillo de Anda, representante regional da FAO para América Latina e Caribe:

“O Projeto Fome Zero é um programa referência por contemplar três requisitos: a produção de alimentos, o acesso a eles e a disponibilidade de estoques”.

Segundo Gustavo Gordillo de Anda há no BID, Banco Mundial e FAO diversos programas voltados para a área social, já assinados com o governo brasileiro, que poderiam eventualmente sofrer uma reciclagem para reforçar o caixa do Fome Zero.

Para o coordenador do Projeto Fome Zero do futuro governo Lula, José Graziano da Silva, “não podemos dizer quais seriam esses programas, nem estabelecer valores. Isso tudo será objeto de análise”.

Para a igreja evangélica, que quer ser sal da terra e luz do mundo, esta questão não pode ser irrelevante, porque nela se expressa a pergunta pelo serviço que presta a seus conterrâneos. Na verdade, aliar-se ao programa responde a pergunta: a serviço de que forças sociais nossas denominações estão? Atuar no campo concreto da cidadania é uma forma de a igreja cumprir com sua responsabilidade e produzir efeito duradouro.

Em seu livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber constatou de que na região estudada por ele, no vale do Ruhr, na Alemanha, os filhos dos católicos escolhiam carreiras profissionais na área de Humanas, enquanto os protestantes as carreiras técnicas. Assim, os protestantes se fizeram representar entre os industriais e técnicos de nível superior. A partir daí, Weber desenvolveu uma pesquisa, na qual concluiu que denominações do protestantismo, como calvinismo, pietismo, metodismo e batistas, por causa da fé e da ética que desenvolveram, contribuíram para a formação do espírito que impulsiona a moderna economia capitalista.

Algo assim deve acontecer no Brasil, mas em sentido social. Na sociedade brasileira é impossível testemunhar o evangelho e não partilhar com as pessoas a boa nova na vida do dia-a-dia. Por isso, a igreja deve lançar mão de mediações sociais e políticas. As mediações, como escolas, artes, participação política, fazem a ponte entre a igreja e seus objetivos..

A igreja precisa fazer uma leitura brasileira de sua missão que, além do contexto social-cultural, político e econômico, traduzirá um combate declarado à fome e à exclusão social.

“Todos os programas negociados com a FAO e dirigidos ao combate à pobreza poderão ser canalizados para a fome. É dinheiro a ser sacado”, observou Gordillo de Anda. 

Graziano explicou que o empréstimo de US$ 9 bilhões, anunciado pelo presidente do Bird, Enrique Iglesias, refere-se à soma de desembolsos anuais para projetos do futuro governo na área social, que tem no Projeto Fome Zero sua prioridade.

O coordenador do projeto disse que “duas coisas precisam ficar claras, quando o presidente eleito diz que deseja assegurar três refeições a cada brasileiro. Ele está se propondo a implantar uma política de segurança alimentar no Brasil. O Projeto Fome Zero é isso: um programa de segurança alimentar. Queremos acabar com a fome e com a insegurança no acesso à comida”.

Quando ao problema da fome aqui tratado, há a certeza de que a igreja pode ajudar, ao potencializar sua influência e aproveitar ao máximo a capacidade de suas próprias estruturas.

Nossos laços de unidade no trabalho missionário e de evangelização do Brasil devem aproveitar o potencial que o trabalho em redes e ONGs possibilitam. Pequenas comunidades locais em movimento, que criam organizações na medida necessária para manter estabilizada a mobilização de seus recursos, mas que estão entrelaçadas com outras, têm condições de fazer a diferença.

O modelo é a imagem da rede, que é flexível, essencialmente igualitária e tem orientação integral. A rede é adequada a sociedade e à igreja, complexas e pluralistas.

Mas voltemos a Gordillo de Anda e Graziano, que assim explicaram seus sonhos:

“Nós gostaríamos de acabar com a pobreza no país e assegurar uma renda mínima a todo cidadão, mas não há recursos para isso. O Projeto Fome Zero não exclui os demais quarenta e um programas destinados ao combate à pobreza. Porém, fizemos uma escolha. Definimos uma prioridade: implantar um programa de segurança alimentar. Assim, vamos eleger mecanismos que vinculem os recursos aos gastos com alimentos”.

A igreja é a instituição de salvação equipada para a obra redentora, que pode acolher as massas e viver o mundo porque tem o tesouro objetivo da graça. Sua missão é a associação livre de cristãos conscientes, que se unem enquanto renascidos, e que colocam em prática o modo cristão de vida baseada no amor. A mística desse projeto é a internalização do ideário cristalizado no culto e na doutrina como embasamento histórico da fé cristã.[2]

Mas muitas vezes, por miopia, corremos o risco de não entendermos o papel que nos cabe enquanto corpo de Cristo, e acabamos por priorizar as mobilizações em detrimento das ações. Corremos o risco de recebermos de Deus, por graça, grandes e sofisticados recursos e encantarmo-nos com eles, sem ter o ânimo necessário para usá-los nas ações que podem salvar o próximo faminto e excluído. Exemplos típicos podem ser o empenho na construção de templos, altos custos de organização e investimentos desmedidos em equipamentos.

Por isso, que fique conosco o chamado à ação que Jesus nos faz na parábola do Bom Samaritano:

-- Vá e faça a mesma coisa.

Fontes
[1] Missão internacional analisa o Fome Zero, 14/11/2002 [PT: Equipe técnica de transição] www.pt.org.br
[2] Emil Albert Sobottka, As estruturas eclesiais e as estruturas da sociedade na América Latina. Fraternidade Teológica Latino-Americana: www.fratela.org/ponencias/Emil60.doc