mardi 3 novembre 2020

Os limites da existência, primeira parte

os limites da existência

primeira parte


yoffe ben shemtós



o livro de slavoj zizek e john milbank, “a monstruosidade de cristo, paradoxo ou dialética”, editado em 2009, traz um diálogo entre zizek, que discute a possibilidade de um materialismo cristão, a questão a deidade de ieshuah, ou seja a encarnação de deus, e a leitura ortodoxa, podemos dizer tomista de milbank, que faz a defesa do escândalo da encarnação a partir da ontologia. e essa é a viagem que faremos neste diálogo entre existência e eternidade.

em 1967, jean-luc goddard fez um filme inspirado a partir de um artigo sobre donas de casa de um conjunto habitacional no subúrbio de paris, que se prostituíam para alimentar o consumo supérfluo. o título do filme se refere à paris dos anos 60, um retrato da sociedade de consumo, em meio à pobreza das massas e a tragédia da guerra do vietnã. nesta reflexão sobre espiritualidade e alta-modernidade, numa leitura a partir de slavoj zizek e john milbank, quero falar de duas ou três coisas que nascem da referida discussão.

tal abordagem, como o amor de goddard por aquela paris, também parte do coração – é pessoal e emocional, e nasceu em um jovem judeu, marxista, militante, que mais tarde, já com 37 anos reconheceu no rabino de nazaré o mashiah esperado. e é exatamente esse itinerário de construção de vida e teologia que me levam a uma empatia com o materialismo cristão pensado por zizek.

nesta reflexão, há três coisas que penso, quando tratamos de missão e alta-modernidade, numa leitura a partir da monstruosidade do rabino de nazaré. a primeira coisa é que na modernidade colonial e eurocêntrica se conjugava missão a partir do verbo ir. mas neste momento de alta-modernidade em caos e crise se faz necessário pensar o verbo receber. a segunda coisa, é que naquela modernidade referida a lógica da expansão colonial e eurocêntrica era a dialética. mas nesta alta-modernidade somos chamados a pensar a analética. e como terceira coisa que penso sobre ela, é que na modernidade o rabino de nazaré era o logos joanino, mas nesta alta-modernidade o rabino de nazaré precisa ser entendido como aná-logos.

ora, estas três percepções permitem leituras críticas da monstruosidade do cristo, num confronto entre paradoxo e dialética, e colocam preocupações que devem ser levadas em conta quando se pensa missão e alta-modernidade.

como judeu que só aceitou o mashiah na maturidade, vivi e vivo a monstruosidade da encarnação. e o mesmo acontece com todos aqueles não-e discípulos do rabino de nazaré que pensam o cristianismo, quer sejam muçulmanos ou estelares. e essa monstruosidade da encarnação, eterno/humano, humano/eterno, não desafia apenas zizek, está presente no mundo da alta-modernidade, e tem a ver com os excluídos e expropriados do terceiro mundo.

quando pensamos a revolução da espiritualidade a partir da américa latina temos elementos para uma análise do clamor dos excluídos e expropriados a partir do conceito de outro. e vamos fazer isso, a leitura do mesmo -- aquele que se fecha em si, sente-se auto-suficiente, etnocêntrico e não aceita o outro, não aceita a alteridade --, trazendo para o momento presente a discussão entre slavoj zizek e john milbank.

a ontologia, a partir do iluminismo, ou melhor, a partir de hegel, e este é um dos problemas da abordagem tomista de milbank, não se baseou na relação pessoa-pessoa, mas na relação sujeito-objeto. essa ontologia de uma só pessoa levou ao discurso solipsista, onde não há espaço para o outro, pois é não-ser e negatividade. o olhar europeu colocou-se como superioridade em relação ao outro, externo, primitivo e subalterno, o que conduziu à colonização e à expropriação das vidas. tal situação teve justificação espiritual: o outro é revestido da impessoalidade do inimigo, do estranho, do inferior. donde, não há problema se for exterminado, já que este outro está fora da totalidade. nada acrescenta ou diminuiu à totalidade.

este mal é transmitido de geração em geração. a prática histórica ganha característica de lei. por isso, apesar de injusta, a exploração se torna legal. Mas a moralidade não tem como fundamento a legalidade, pois a prática justa vai além do estabelecido, da ontologia da totalidade, além da ordem legal vigente. a origem de uma moralidade justa não está no mesmo, mas no outro, por isso a prática originada no mesmo é uma prática alienante, dominadora e opressora.

no final dos anos 1960, a partir da constatação de que a dialética era limitadora para a formulação de uma teologia da práxis, enrique dussel e juan carlos scannone buscaram uma expansão da dialética hegeliana, que chamaram analética. a expressão traduziu uma releitura da analogia tomista. mas foi scannone quem utilizou o conceito opondo totalidade e alteridade, ao dizer: "tal processo, mais que dialético, para distingui-lo da dialética hegeliana, eu o chamo analético".

assim, dussel e scannone buscaram uma alternativa às dialéticas hegeliana e marxista clássica. o que foi possível pela afirmação da existência de um âmbito antropológico alterativo além da identidade da totalidade, que abria a possibilidade de uma refundação do fundamento, já que o próprio fundamento foi também fundado. mais tarde, dussel dirá que seu método parte de lévinas, mas que tem como pano de fundo a realidade latino-americana. a princípio foi formulado como leitura de uma ética da libertação latino-americana, mas ao definir a ética como filosofia primeira, a analética torna-se, em dussel, a compreensão apropriada a uma filosofia latino-americana de libertação.

em 1976, teólogos reunidos em dar-er-salam afirmaram que o método interdisciplinar na teologia, e por extensão a revolução da espiritualidade, tem que levar em conta a inter-relação entre as teologias e a análise política, psicológica e social. quando se afirma que a criação é fundamentalmente boa e que a presença do espírito no mundo e na história é contínua, é importante ter em mente o mal que se manifesta na alienação do ser humano nas estruturas sócio-econômicas. as desigualdades são diversas e apresentam muitas formas de degradação humana, e por isso exigem fazer do evangelho “um bem novo para o pobre”. são exatamente essas leituras que nos levam a formular a necessidade de uma revolução da espiritualidade que chamamos da libertação.

em américa latina dependência e libertação, dussel afirma que na passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação, pode-se ver que o momento ético é essencial ao método. somente pelo compromisso existencial, pela práxis libertadora no risco, por um fazer próprio, pode-se ter acesso à interpretação, conceituação e verificação da revelação do mundo do outro. dessa maneira, só aparentemente o pensamento europeu antepôs a teoria à práxis, pois o “eu colonizo”, o “eu conquisto” precedem o “ego cogito”. a exploração e a opressão criaram as condições históricas das quais nasceu uma espiritualidade da justificação e do paradoxo, uma falsa consciência da realidade. a práxis da dominação formou a subjetividade do conquistador: o eu moderno é imperial, livre e violento. o pensamento eurocêntrico e sua extensão estadunidense ocultam o conceito emancipador de modernidade como saída do estado de menoridade. o que traduz a justificação da práxis de violência por parte de culturas que se autocompreendem como desenvolvidas. esta superioridade impôs processo civilizatório de via única.

uma afirmação de zizek – “devemos, então, de um ponto de vista materialista radical, pensar destemidamente nas consequências de se rejeitar a ‘a realidade objetiva’: a realidade se dissolve em fragmentos ‘subjetivos’, mas esses fragmentos incidem de volta no ser anônimo, perdendo sua consistência subjetiva”, nos remete à questão do paradoxo.

o esquivar-se da realidade e de uma leitura materialista do cristo, a partir da ontologia do paradoxo nos leva à frase exposta por tertuliano de cartago, escritor cristão do século iii, “credo quia absurdum!”, creio porque é absurdo.

este absurdo paradoxal sobressalta à concretude e nos chama a mergulhar na imensidão do divino/humano. e a fechar os olhos e a dizer como o fez um judeu chamado shaul, que ficou conhecido como paulo, o pequeno: “os estelares pedem sinal e os gregos a sabedoria. mas nós pregamos a cristo crucificado, que é escândalo para os estelares, e loucura para os gregos”.

absurdo, escândalo, paradoxo ... tudo como fundamento da fé, essa mesma fé que justifica abraão em meio à loucura de um pai que deve sacrificar o “filho da promessa”. logo, a fé deixa de ser a emunah hebraica, que define posicionamento militar, e se transforma em paradoxo. não delírio ou devaneio, mas a loucura da confiança do divino, já que somos incapazes de compreender.

ora, desde paul tillich, enquanto herdeiro de hegel e do jovem marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a efetivação do real. esta correlação, que em tillich vai virar método, é a procura da superação das dialéticas anteriores, que tratavam do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. devemos, nesta discussão sobre missão e alta-modernidade também fazer este trânsito, ao construir uma lógica que não será hegeliana, nem marxista no sentido clássico, mas procurará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis da libertação.

essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da espiritualidade da libertação que, por isso, será uma espiritualidade da práxis. desenvolve, pois, o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando das formulações de método que acompanham a superação dos horizontes ontológicos. dessa maneira, coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências da ontologia, fazendo o caminho que leva um cruzamento comum: a ética.

missão na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas abordagens, o outro enquanto revelação de um mistério incompreensível da liberdade e a comunidade de fé enquanto infrestrutura que denuncia o poder excludente. e assim, a fé nasce ato da inteligência, é um modo de ver. quem é ou o que é que realmente ultrapassa o que se vê, que vai além do que se vê? em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revelará concretamente. e é a possibilidade da produção e reprodução da vida o que vai além da visão do rosto. assim, a espiritualidade da libertação significa um pensar sobre um outro, mas um outro que se revela na história, que se revela através do outro, que é o mistério incompreensível de nossa liberdade. crer na revelação do outro é compreender o sentido da história.

para que a espiritualidade liberte é necessário descobrir o sentido do presente histórico. e esse desvelar o sentido do presente histórico chamou-se profecia, o falar diante. mas falar diante de quem? na modernidade, este falar diante levou a leitura formal do ir para falar diante. ora, se profecia é isso: falar do sentido dos acontecimentos presentes através da vida, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é ir, mas receber. vivemos a localidade global, não somos chamados a ir, mas a receber, porque os excluídos e expropriados estão entre nós, conosco. assim, contra a lógica que não aceita a exterioridade, espiritualidade na alta-modernidade é no chão da vida receber e viver a fé.

espiritualidade libertadora reconhece a existência a partir da analética: onde o outro se apresenta como alteridade, pois irrompe como estranho, diferente, excluído, que está fora do sistema e clama por justiça.

ora, a ação libertadora é uma atividade de afrontamento, que diz respeito aquelas pessoas que sabem que é preciso consultar e interpelar, e não situar-se como espectadores passivos.

a analética é uma contribuição à questão metodológica, que parte da exterioridade, que é real devido à existência da liberdade humana, capaz de constituir outras histórias, outras culturas e outros mundos. a lógica hegeliana e por extensão a dialética só chegam até o horizonte do mundo, onde engolfa o outro anulando-o em sua alteridade. porém, além da identidade divina e além da dialética ontológica de heidegger existe um momento antropológico, que afirma uma nova maneira de pensar espiritualidade.

analético é o fato pelo qual o ser humano, comunidade ou povo se situa sempre além do horizonte da totalidade. o momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. entretanto, o ponto de partida do discurso metódico é a exterioridade do outro. como uma alternativa à dialética que trabalha com a contradição, identidade e diferença, o princípio não é o de identidade, mas de distinção. o momento analético segue uma sequência, a totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa do outro. escutar sua palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra interpelante por respeito à pesso. é lançar-se à práxis do excluído e expropriado.

desde o século xvi a américa latina é um continente ontologicamente oprimido por uma “vontade de poder” exercida na totalidade mundial pela europa. “vontade de poder” é uma potência que não somente critica os valores estabelecidos, mas que propõe novos, propõe valores na totalidade a partir do lado dominante da bipolaridade. a américa latina tem então como ideal ser europeia.

na analética se faz necessária a aceitação ética da interpretação do clamor e a mediação da práxis. esta práxis é constitutiva, condição de possibilidade da compreensão: traduz ser levado à exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica. sem o momento analético o método pode se dizer científico, mas se reduz ao fático natural, ao lógico ou matemático.

o momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. é a superação da totalidade a partir da transcendentalidade interna ou da exterioridade daquele que nunca esteve dentro. o momento analético é crítico por isso: é a superação do método dialético negativo, mas não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume e completa, lhe dá seu justo valor. afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema, é ouvir aquilo que surge a partir da liberdade não condicionada. só através da analética é possível comprometer-se com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela libertação desse outro, além do que possibilita a justiça do sistema. como consequência, a analética é prática: é uma economia, uma erótica, uma política que trabalham para a realização da alteridade humana.

a questão pedagógica não é tratada por heidegger porque pensa que o “ser-no-mundo” procede unicamente do homem. mas se esquece que quem dá sentido ao meu mundo é o outro. é no processo pedagógico que se organiza o meu mundo. quando me descubro outro que está no outro, me descubro novo.

a analética, então, não é pura teoria como a ciência e a dialética, mas é prática, porque sua essência constitutiva é a ética. se não há práxis não há analética, porque a prática -- a relação entre pessoalidades -- é a condição para compreender o outro e exercer a plenitude da consciência crítica diante do sistema. o momento chave da leitura analética é o saber ouvir, o saber ser discípulo do outro, para poder interpretá-lo: isto é comprometer-se com sua libertação. isso implica em derrotar a totalidade ontológica divinizada, descer da oligarquia acadêmica e cultural, para expor-se a favor dos excluídos e expropriados pelo sistema.

ao citar o papa bento xvi, de forma crítica, zizek diz: “o papa condenou o ‘secularismo sem deus’ ocidental, no qual o dom divino da razão ‘foi deturpado numa doutrina absolutista’. a conclusão é clara: razão e fé devem ‘se juntar de uma nova maneira’, descobrindo seu fundamento comum no logos divino, e ‘é para esse grande logos, para essa amplitude da razão, que convidamos nossos parceiros no diálogo entre culturas’”.

em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além da totalidade ou além do fundamento. e se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. e como em grego “aná” significa mais além, e “logos” significa palavra, análogo toma o sentido de palavra que irrompe no mundo desde um mais além do fundamento. o método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade,. por isso, quando o logos irrompe enquanto interpelante, deixa de ser paradoxo, é análogo.

dialético é um a-través-de. analético é logos que vai além. no logos, um primeiro momento, surge a palavra interpelante, mais além do mundo -- este é o ponto de apoio do método dialético, que passa da ordem antiga à ordem nova. esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o outro como excluído e expropriado que é de fato o ponto de partida. a leitura analética surge desse outro e avança dialeticamente, há uma descontinuidade que surge da liberdade do outro. este método tem em conta a palavra do outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé-posicionamento na palavra histórica, esperando pensar e viver com o outro.

os antecedentes da analética foram colocados pelos pós-hegelianos e por lévinas, não pelos filósofos modernos, nem por heidegger, porque estes incluem tudo na concepção do ser. mas, os verdadeiros críticos do pensamento eurocêntrico são os movimentos de libertação do terceiro mundo, porque escutam o outro, o não-europeu que foi excluído e expropriado. para este, que está mais além, a dialética não basta. é necessário a analética, capaz não de ver, mas de ouvir a palavra crítica do outro, capaz de despertar a consciência ética e aceitar essa palavra, por respeito e fé-posicionamento ao outro, cuja interpelação não é interpretada adequadamente porque sua fundação transcende o nosso horizonte. partimos da crítica de lévinas, mas em lévinas o outro é um outro abstrato, passivo. lévinas ficou no meio do caminho, porque tem uma pedagogia, mas carece de uma política: nunca imaginou que o outro possa ser um muçulmano. seu método se esgota no começo. por isso, há que ir mais além de lévinas e, por suposto, além de hegel e heidegger, que permaneceram numa alteridade equívoca e viveram uma metafísica da passividade.

“‘não há provas – e não pode haver – de que deus existe. em vez de ser motivado por provas, o fiel é motivado apenas pelo desejo de que deus existisse. essa, no entanto, é a melhor prova de que deus não existe, uma vez que só podemos desejar que exista aquilo que não existe. o teísmo é a melhor prova da não existência de deus’. isso, mais uma vez é o que lacan afirma efetivamente: os teólogos são os únicos ateístas verdadeiros”. (zizek, milbank, 2014, p. 384).

depois da questão judaica, marx faz a crítica econômica do cristianismo. essa crítica está dirigida às comunidades de fé, já que para marx elas são a expressão da miséria. mas também faz a crítica da religião quando analisa o "fetichismo da mercadoria", porque a leitura religiosa do mundo real só vai desaparecer quando desaparecerem as condições atuais de vida. mas por que é assim? em que consiste essa leitura do mundo real? porque o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelos seres humanos. mas essa existência independente das relações sociais, essa existência não-real, é reflexo de outro real. essa divisão entre a aparência que encobre a existência e esconde a realidade é o fenômeno do fetichismo. o fetichismo da mercadoria, um modo estranho de fetichismo, consiste nisso: esconde o caráter social do trabalho e se manifesta como se fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. ou seja, em relação à mercadoria, acontece o mesmo que no mundo da religião, a realidade se apresenta separada, alienada, das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto, criando uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse por direito a sua própria estrutura independente.

uma espiritualidade da libertação é uma ética da vida. há aqui uma passagem da razão estratégica, enquanto campo estratégico de forças sem sujeitos, em direção à razão libertadora, situada ao nível da microfísica do poder. e entendo esta questão a partir das barricadas de maio de 1968. será que a razão libertadora, que se dá como síntese da ação crítico-desconstrutiva, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva de normas, subsistemas e sistemas completos, tem um componente que não é razão instrumental, mas razão de mediações a nível prático? se a razão estratégica visa chegar a um fim exitoso é preciso entender que enquanto razão crítica esse fim é uma mediação da própria vida humana, principalmente quando excluídos e expropriados são partícipes dessa ação.

é a partir dos excluídos e expropriados enquanto partícipes que a razão estratégico-crítica realiza a ação transformadora. mas quem é este sujeito das transformações e como se articula a espiritualidade com este sujeito histórico? ora, espiritualidade é a consciência ilustrada do cristianismo. agir pode vir de uma igreja estranha ao excluído e expropriado, mas que adere ao clamor da vida não por sentimentos necessariamente religiosos, mas por superação. por isso, a espiritualidade está sempre exposta às oscilações oportunistas, por não perder o vínculo ideológico com o chão materno e seu messianismo.

ora, a espiritualidade libertadora não é apenas uma razão estratégica que procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. na verdade, não tem as mãos livres. quando se trata de espiritualidade libertadora, em relação aos excluídos e expropriados, o êxito dependerá das condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar teoria e prática. por isso, a espiritualidade da libertação deverá saber integrar os princípios enunciados na escolha de fins, meios e métodos, que levam à práxis crítica e posicionam o outro como análogo.

o sistema-mundo nesta alta-modernidade em caos e crise, ao impossibilitar a produção e reprodução da vida caminha no sentido de aprofundar seu próprio caos e crise ao semear doenças, fome, terror e morte. as vítimas são esses bilhões de seres humanos, cujas dignidades e vidas são permanentemente destruídas. a alta-modernidade e sua globalidade levam a um assassinato em massa e ao suicídio coletivo. são os cavalos do apocalipse. é nesse fetichismo do capital, que se apresenta como sistema formal performático, onde dinheiro produz dinheiro.

cabe por isso à espiritualidade levantar uma ética libertadora enquanto recurso diante de uma humanidade em perigo de extinção. a esta espiritualidade cabe a corresponsabilidade solidária, que parte do critério de vida versus morte, de caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade ética diante de excluídos e expropriados e da paranoia fundamentalista.

aqui estamos diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, que se abrirá com o ir mais além da alta-modernidade, onde o ser humano excluído e expropriado não apenas do sistema, mas do direito à produção e reprodução da vida, colocará na ordem do dia a questão da revolução enquanto promessa escatológica. e a espiritualidade da libertação deve entender que tal ação e postura não nega o análogo do logos, mas que deve deixar de ser apenas hermenêutica teórica e desenvolver-se enquanto presença que fundamenta a transformação prática, já que isso só pode acontecer no sentido estrito de uma ética da libertação, não fundamentalista ou salvacionista.

é por isso que a espiritualidade da libertação deve se esforçar para apresentar um princípio universal: o dever da produção e reprodução da existência de cada ser humano. princípio este que é objetiva e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

e volto ao goddard de duas ou três coisas que eu sei dela, quando cita a frase do tractatus logico-philosophicus de wittgenstein: “os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”. só que em seguida vemos juliette andando por paris e dizendo: “mas o mundo sou eu”.

linguagem e pessoalidade, a espiritualidade libertadora caminha sobre o fio da navalha: de um lado está a negação de presença e recebimento do outro, e de outro o fundamentalismo pró-integração. por isso, estratégia e tática devem partir de critérios claros e de um princípio geral -- o dever da produção e reprodução da vida -- que possibilitem cumprir às mediações existentes. é nesse sentido que receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão tão moderna entre paradoxo e dialética. não há paradoxo porque o cristo é análogo e o método é analético. os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios gerais, a fim de que, com factibilidade ético-crítica a espiritualidade possa negar as causas da negação da vítima. essa é uma luta desconstrutiva, que exige meios proporcionais àqueles contra os quais a luta é travada.

mas se por um lado a espiritualidade traduz uma ação desconstrutiva nesta alta-modernidade de caos e crise, por outro promove transformações construtivas que se projetam na esperança escatológica. e deus existe nesta esperança e possibilidade de produção e reprodução da vida, e cristo já não é monstruosidade ou paradoxo, mas análogo. e é nesse sentido que deus existe e cristo é análogo, pois se projetam no eterno agora, planejado, realizado em progressão, mas nunca totalmente.

e assim, olhando o presente e o passado a partir do futuro, nós os descendentes apresentamos os limites da existência e as senhas do reino, sem dúvida, com o sol entre os dentes.



bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite, abre os portais, modifica os momentos, troca os períodos e organiza as estrelas. bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite.

a primeira chave
o chão firme da liberdade

digo à zlabya, aquela-que-anuncia, que o vento da justiça sopre sobre você, que a paz seja como riachos de águas, e que o fogo do amor traga alegria!

1.

querida zlabya, aquela-que-anuncia, estou escrevendo para você. escrevo do terceiro milênio, um futuro não muito distante, quase presente, para contar as coisas que vão acontecer e, ao mesmo tempo, poder conversar com você pessoalmente. você está no início da sua liberdade como pessoa grande, que pode escolher caminhos e destinos. escrevo sobre as memórias futuras, quando os descendentes darão voltas por este fundão besta, incluindo aí o que escutei e vivi. mas você não pode esquecer que a memória será sempre afetiva e seletiva. na verdade, ela apresentará os fatos que a gente viveu, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos os limites da existência. mas não para aí. a memória fará sempre uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis.

mas se estou no futuro, posso falar do presente e do passado. é por isso que os velhos somos bons contadores de história e olhados pelos descendentes, e aí incluo você, como cavaleiros andantes de um futuro mítico. minhas experiências de amor e vida gerarão flores belíssimas, memórias que se multiplicarão com você.

as memórias são nossa história e minhas leituras, porque discorro sobre acontecimentos e nos levam a pensar o que não está aqui e agora, sobre o que é a eternidade. e quando isso acontece história e leituras se complementam e enriquecem as nossas vidas. o certo é que a memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo de amplidão que lhe dá grandeza. e a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato.

mas, como já disse parcialmente, acima, nossas memórias não se entreluzem apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida. transcende. por isso, essas leituras serão traduções de suas experiências com a eternidade, infinita e sem limites, criadora de todas as coisas, origem e fim do amor e da vida.

na antiga tradição dos longevos, o nome é som e designação que fala da natureza e da história daquele que está a ser nominado. os longevos falavam que a eternidade não poderia ter seu nome profanado porque seria violentar o sem-fim. e por isso somos chamados a calar diante do nome que não se pronuncia, separado para honra sem-fim.

os quatro sons dos longevos falam dessa infinitude, que nos apresentam a identidade e a história da eternidade sem-fim. até o ano de 586 antes da era comum, ou seja, até a destruição do primeiro templo, os longevos cantavam os quatro sons. mas depois optaram, por razões muito justas, em dizer com reverência meu senhor, meu senhor dos senhores. e mais tarde ainda, antes da era comum, meu senhor tornou-se, por causa do shemá aramaico, hashem.

quando estava diante daquele mato bravo que iluminado não pegava fogo, moshé ouviu o vento cantar eheieh acher ehieh. e entendeu que a eternidade dizia que ela era eterna sem-fim. mas, o vento não parou e cantou diferente iaueh acher iihueh, e assim moshé compreendeu que ela é quem dá vida ao que existe.

mas a eternidade sem-fim não é homem, nem mulher. por isso, ela pode ser também elohim, que parece macho e parece muitos. mas esse macho plural canta e diz que a eternidade é sem-fim e mãe de toda a vida, por isso é elohim ieuá. mas eu gosto de saber que essa eternidade linda e sem-fim, que é também macho e plural, é a guardiã das portas do vencedor, shomer daltot israel.

nessas memórias futuras apresento leituras para a sua vida presente, os dias fora e a caminhada em direção à última fronteira, o momento infinito de sermos os anjos que somos. quanta felicidade. esses acontecimentos farão parte da história de gentes e povos. muitos viverão textos parecidos e farão parte dessas memórias. alguns estarão ao seu lado e exercerão uma profunda influência em sua vida. outros apenas passarão. são personagens dos dias fora, e aparecerão com nomes e, às vezes, sobrenomes.

não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que você ainda não atravessou a última fronteira. nesse sentido, nessas memórias os nomes mudarão conforme os lugares e tempos. jamais o nome traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.

quanto aos pesadelos, estarão presentes. é o inconsciente a revelar sua visão do mundo. é difícil dizer qual será maior: o pesadelo ou a realidade da dor. ambos serão terríveis e por isso se complementarão. e ficará mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. é, inclusive, difícil dizer qual virá primeiro, já que o pesadelo poderá ser sentido como futuro que se faz presente, como leitura de um presente ainda não realizado.

ou como cantará um poeta: metade esquecida por mim, quero varar os limites impostos. e, assim, as histórias chegarão através da memória, que afetivamente virará leitura, a fim permitir a travessia da última fronteira.


bendita seja a eternidade, que ama as gentes e a vida plena de sentido, que nos apresenta os limites para que não sejam quebrados com ignorância, mas possibilita a liberdade de ir além. bendita seja a eternidade, que ama as gentes.

2.

o ontem é um dia importante

eu me chamo yoffe ben shemtós e minha mulher, sua avó, brianda nisi. estamos fazendo uma pequena viagem. Hoje eu sei que estavam conosco três limites da existência, que pousaram com doçura e violência sobre a minha vida adara, ahava e sharon. a pick-up é uma land rover defender 65, placa 420amw60, uma réplica daquelas do milênio passado, só que movida a energia solar. quem me deu esta máquina foi meu amigo de jornadas antoine leroy, como presente de aniversário pelos meus quatrocentos e oitenta anos, completados no dia três de janeiro. como você sabe somos uma nova espécie, longeva. tudo indica que aparecemos fazem uns dois mil e quinhentos anos. e não foi num lugar específico, mas em regiões diferentes deste vasto mundo. continuamos aparecendo e estamos todos vivos. sabemos, porém, que aos seiscentos anos viramos anjos. depois eu conto com mais detalhes. por ora, vou dizer apenas que os anjos são os guardiões e guardiãs da nossa longevidade. por isso, não há ancestrais entre nós, apenas descendência.

partimos de montpellier, no litoral do mediterrâneo francês em direção ao parque nacional de cèvennes, às oito da manhã de sábado, chegamos em anduze, cidade que dá entrada à região de cèvennes, por volta das dez da manhã. depois de dois cafezinhos e três chás, para pais e filhas, para esquentar o frio, começamos a atravessar o parque, construindo ziguezagues pelo vale, a margear o rio gard. cenário de campo da região de languedoc, com seus castelos, não muitos, suas fazendas e vinhas.

arquitetura medieval em pedra, cidades que se cruza em minutos. estradas secundárias, mas em ótimas condições. uma delas com um aviso, atenção pista com lombada, para dizer que a estrada não era muito boa. fiquei esperando buracos e desníveis, mas nada, apenas não era lisa como as anteriores.

quando o vale ficou para trás e iniciamos a subida da montanha numa estrada sinuosa com precipícios à esquerda, adara, ahava e sharon, limites da vida, moças do frio, realizaram peripécias naquele inverno. nevava levemente. mas, conforme subíamos, maior umidade e neve mais forte. não houve como resistir, descemos do carro e fizemos nossa primeira guerra na neve. foi a glória. brianda e os três limites, que não víamos mas lá estavam, pareciam crianças. a maior farra. preocupado com a possibilidade das quatro se resfriarem, coisa boba, impossível para quem viveu sob temperaturas de menos trinta centígrados, fiz as quatro voltarem para a pick-up. a alegria é a prova dos nove...

seguimos viagem debaixo de neve e da beleza das estradas emolduradas pelos pinheiros verdes, cobertos... como nos cartões postais de natal. chegamos a florac, já lá em cima, no meio de uma nevada que caía quase forte. segundo a tradição, os gauleses viviam na região, mas o nome da cidade veio dos romanos, algo assim como flor da água ou coisa pelo estilo. e eu me lembro de quando a reforma dos protestantes chegou a cèvennes trazida pelos mascates de genebra. eles trouxeram em suas malas, o livro antigo da tradição judaica-cristã traduzida para o francês. e as gentes de florac amaram as novas ideias de reforma. a primeira comunidade protestante surgiu em 1560 e o primeiro anunciador foi antoine coppier. mas depois disso correu muito sangue debaixo da ponte. mas essa história eu conto depois.

entramos num restaurante muito simpático, la source du pécher, cheio de hippies, o que parecia estranho e fora de época. tomamos chocolate quente e voltamos para o carro. estacionei numa pequena praça e almoçamos dentro da pick-up. brianda tinha preparado coxa de peru assado com batatas, suco de maça e pão, que aqui é sempre um capítulo à parte. amamos as baguettes, principalmente as traditions.

depois do almoço, fomos visitar o castelo de florac, reconstruído em cima dos escombros do velho castelo, destruído várias vezes. essas destruições e reconstruções estão presentes em minhas memórias, assim como o sangue derramado. de todas maneiras, não podemos esquecer que toda a região de cèvennes foi um polo das lutas pela liberdade de expressão e de pensamento, com a presença dos primeiros huguenotes.

nevava forte e a história cedeu lugar a uma nova e aguerrida batalha na neve, agora sem armistício ou mediação. brianda, a mãe, foi atacada sem dó nem piedade. e em nenhum momento reclamou das boladas recebidas. reagiu à altura, sem complacência. por fim, voltamos à pick-up e seguimos viagem para barre de cèvennes, outra região histórica, onde o protestantismo nascente produziu guerrilheiros e profetas.

mas aí tivemos o prazer de entrar na cidade debaixo de uma nevasca. em poucos minutos a neve cobriu o carro. descemos e fomos visitar uma velha igreja protestante. eu estava emocionado pelo momento sublime do encontro com a heróica convicção protestante que eu quase vi nascer, mas também, com brianda, adara, ahava e sharon, limites que são irmãs e destino da existência, inebriadas pela beleza da nevasca, soprada por ventos fortes.

assim como a neve... a cidade inteira estava branca. tudo branco. guerra de neve era pouco, o momento exigia algo mais grandioso. lembrei-me que a eternidade dirá sempre que assim como desce a neve e não volta, mas rega a terra, a faz brotar, dar semente ao semeador e pão ao que come, assim é a palavra eterna, que não volta, mas faz o que a eternidade quer e prospera no seu objetivo. agradecemos à eternidade pela vida.

um grupo de jovens passou por nós, no meio da rua, cantando, gritando, alucinados pelo momento. foi difícil deixar barre de cèvennes. mas tivemos que fazê-lo. eu não queria dirigir nas montanhas, à noite, debaixo de neve.

no caminho, brianda viu um mirante, grande, que se debruçava sobre o vale. paramos mais uma vez.

desta vez, adara, ahava e sharon fizeram anjos. para quem não sabe, consiste em se jogar de costas na neve de braços abertos e deitado fazer movimentos com os braços para marcar a neve. depois, de pé, olhar e ver no branco, em branco, um anjo com suas asas abertas. e fizeram outros anjos... e por fim num gesto solidário, como sombras, juntos, fizemos um boneco de neve. na verdade, boneca, porque vestiu o gorro e o cachecol rosa da sharon. não era uma boneca enorme, mas muito simpática.

e lá seguimos nós, parando mais uma vez num pequeno hotel e depois fazendo o caminho de volta. retornamos ao vale, passamos de novo por anduze, e seguimos para nîmes, cidade construída pelos romanos, que tem no centro uma arena, um coliseu, onde ainda se realizam corridas de touro. quando chegamos estava acontecendo uma. mas levei as meninas a nîmes só para uma rápida olhada. voltamos, já à noite para montpellier.

chegamos. e como li a placa da pick-up como, ao bater os olhos nela, tenha um maravilhoso final de semana, agradeci à eternidade pelo gostoso sábado branco de meus quatrocentos e oitenta anos, que, tocado pelos anjos nevados de adara, ahava e sharon, antoine nos proporcionou com o presente. e ao eterno, glória, pois diz que aqueles que esperam nele renovam as forças, voam como águias, caminham, correm e não se cansam.

atente para isso, a descendência é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. é na construção da vida, escolhida ou imposta, mas aceita, e na sequência dela, que a descendência se faz comunidade humana. as realidades da terra e do céu são vaidade e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. por isso, deve fazer a crítica do clerical e chamar as pessoas à liberdade do espírito, para que pense a vida, que é construída para além das aparências das coisas da terra e do céu.

as palavras mudam de sentido, e podem dizer coisas diferentes, quando as usamos sobre uma perspectiva diferente. palavras. você já pensou na importância delas? é, sem dúvida, um dos limites da vida. os descendentes devem acreditar que o universo foi feito pela palavra eterna. acreditar que a palavra tem poder, por isso deve ter uma palavra só, cheia de sentido, ou seja, quando você disser sim, que seja sim mesmo, e quando disser não, que seja não. mas a sabedoria nos diz que a vida se faz também por outras palavras. dessa maneira, o ato de criação e o fazer humanos não são iguais porque as palavras são diferentes.

ah! embora as palavras sejam diferentes, os temas da vida são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino. a diferença, porém, é que se faz, sempre, por outras palavras. e tudo muda...

sou grato à eternidade, mas sem pieguices. diga você também muito obrigado porque as contingências da vida não fumegaram o pavio. lá na frente, eu serei o garoto que andava pela ruas sem saber que a vida vai além do meio fio, que há fronteiras. e lá ao longe, mas para mim perto, estará o mar. o veleiro. a liberdade, aprendida com moran, será negociar com os ventos e a maré. diante das mareações, a marinharia me fará, junto do tio, um menino livre.

por isso, a zlabya, apresento a leitura humana da convicção e do posicionamento, onde se aprende a degustar prazeres. não se faz às correrias, com sofreguidão. é um ato delicado, um caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.

nesse sentido, eu e você, todos somos poemas da eternidade. somos projetos de uma artesã, daí que a poesia e a razão andam juntas. por isso, a paixão aproxima porque é sempre poesia e razão nos diferentes momentos. quero que você, descendência, curta com prazer em cada ser humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.

é, agradeço à eternidade porque fazer leitura virou destino. o menino lá da frente atravessou o tempo, os jeans, as camisetas, os cabelos arrepiados e caiu aqui, do outro lado da vida. tempo de poesia e razão, o garoto de depois olha a plenitude, mas o homem de antes entende que o dó, o ré, e o mi solitários não são importantes, mas sim as notas do meu amigo murá, compositor, e os parabéns e sorrisos que a eternidade montou para você.

e volto às palavras, afirmativas, compostas, decoradas, sussurradas, que se bebem, que reboam, secas, vulgares... a identidade não pode ser definida facilmente, mas isso não significa que essa identidade não exista. aliás, a maioria das identidades não podem ser definidas facilmente. daí que tais identidades são também comunidades imaginadas, unidas por leituras historicamente sem exatidão precisa. os uns não são diferentes dos outros, qualquer etnia e sua identidade não é facilmente definível, pois tais conceitos dependem dos descendentes.

assim, zlabya, lembre-se: a aparente simplicidade engana. eis uma lição de mestre, traduzir o humano com simplicidade, sabendo que o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. e esse é o recado. fazer leitura é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poesia. ou seja, fazer leitura é descontrair e na imaginação construir novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. e é assim que, sem estardalhaço, a leitura ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.

digo à eternidade: obrigado pelo agradável, bom e doce que expressará em letras a liberdade do marujo. e se o ontem é um dia importante, é bom lembrar que o remédio para a enfermidade da segregação de gênero e raça é a construção social da cidadania e da justiça. a via para a liberdade estará numa trilha aberta aos diferentes, comprometida com os direitos humanos, mesmo quando sua identidade pessoal relacione diferenças e contradições.

o sondar daquele menino lá na frente ajuda. o olhar deslumbrado porque a vida será a praça, os jardins e os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que comporão o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. e o mar... uai! a humanidade coroa a glória. aceite o prescrito com convicção.


ouçam gentes, a eternidade é uma. bendita a glória do seu reino, que é sem tempo e sem limites. amemos a eternidade de alma, coração e força... e por que amar o eterno e o estado de ser eterno eternamente, a eternidade? porque é tempo infinito, sem tempo, fora do tempo, e porque é fora do espaço, sem limites, ilimitado. e porque a eternidade é o estado do eterno, e o tempo duração com alterações, sucessão de momentos, a eternidade é duração sem sucessões, nela não há alienação. a eternidade especializa a existência.

3.

brianda, bela e rebelde

tirei o pé do acelerador. o carro deslizou de lado e bateu forte no barranco. por alguns momentos, ninguém entendeu o que estava acontecendo. alexei estava com o rosto sangrando, o corpo amolecido pelo impacto. no banco de trás, brianda e reyna se recuperaram rápido do susto e saltaram do carro. juntos, os três agarraram alexei pelos braços e o puxaram para fora. estava pálido demais, cor de cera, a não ser pelo vermelho que continuava a lhe escorrer pela cara.

está morto, disse brianda. não, não está, respondeu reyna. e cada uma olhou para a outra, numa troca de olhares que todos conhecemos bem. são irmãs, se amam muito, mas de vez em quando se testam. e quando isso acontece, sai de perto. pensei, essas duas vão começar a brigar aqui, enquanto o alexei se esvai em sangue. ele está com a cabeça machucada. se for alguma coisa grave, a gente só vai saber depois. não dá para chamar o médico, agora.

as duas olharam para mim como se estivessem diante de um extraterrestre. pegaram uma estopa velha e suja de óleo, a única que havia na hora, limparam a cabeça de alexei e fizeram uma bandagem com uns trapos que estavam jogados no fundo do land rover defender, pau pra toda obra.

encostaram meu irmão no barranco e, então, voltaram ao mundo real. eram duas e trinta da madrugada. ali estavam quatro anunciadores clandestinos com uma van cheia de livros, tombado junto a um barranco da rua que nos separa... expropriados, expulsos, sob o domínio sutil, divididos em medo. as gentes dormem nas ruas, as casas estão vazias, a cidade não é povo, a guerra é dos pobres. na verdade, brianda tinha me avisado, cuidado que esses trilhos, escorregam. cuidado com essa curva perto do castelo, cuidado. mas, eu não escutava. estava preocupado com os livros, carga perigosa. não ouvi a voz no banco de trás. estamos perto de casa. uns cinquenta metros. o problema é se passa alguém.

recomposta da ira inoportuna, reyna ajeitou a blusa e a saia, que tinha subido até o alto da coxa. ela combinara a cor da saia com a cor da calcinha. e agora dava para ver isso. sacudiu a cabeça, passou a mão pelo cabelo, como se, de repente, estivesse acordando para a vida. vamos à luta, antes que alguém nos veja.

e mais uma vez os três voltaram a trabalhar juntos. eu abracei alexei o melhor que pude, agarrando-o como se fosse um bêbado e o arrastei até o prédio. as duas mulheres, cheias de pacotes, tentavam andar rápido na frente. não corriam. os livros formavam volumes pesados. era só o que faltava, serem agarrados agora, depois de uma viagem tão longa.

eu sabia que este era um trabalho de formiga. cansativo, suado e longo. a medida era a história. sorte que a história marchava a favor. na rua que nos separa, o apartamento de dois quartos e sala ampla, com rede, o grande charme da casa, e uma biblioteca impressionante, subversiva, não tanto pelos títulos, mas pelos próprios livros. deitei alexei na rede. ele gemeu. a testa e a cara estavam roxas. é, não é desta vez que ele vai empacotar. que bom. se ele morresse agora ia ser um deus nos sacuda.

brianda passou em direção à cozinha. já de pijama de seda preto com flores amarelas e rosas. elegante até para dormir. os pacotes estavam arrumados ao lado do oratório barroco italiano. peça de museu. eis aí um bom símbolo para a revolução eterna. o futuro encontra suas bases nos sonhos da piedade medieval. que loucura a permanência de uma peça de artesão, símbolo de vidas reclusas, de convicções que dormem nos museus.

brianda é italiana de abruzzo, terra do azeite mais gostoso de toda a itália. professora de sociologia na universidade de paris. é bem mais nova que eu, tem trezentos e sessenta anos bem vividos, com direito a ter conhecido augusto comte e émile durkheim, mas sobretudo ver maria antonieta perder a cabeça. postura perfeita, sempre desafiadora nas discussões, que ama não importa o assunto.

-- onde eu durmo? perguntou reyna. no dos hóspedes?

-- não quer comer alguma coisa antes? tem espaguete ao frutos do ma. agente acompanha com cava e depois tem tiramisù de sobremesa. vem também, yoffe, levanta dessa cama e vamos fazer um lanche porque o dia foi duro.

-- tiramisù?

-- é claro, reyna. e foi você quem me deu a receita, se lembra? aquele clássico, 500 gr di mascarpone, 400 gr di savoiardi, 100 gr di zucchero, 6 uova, caffè (12 tazze), cacao amaro, e scaglie di cioccolato. topo, per prima cosa preparate il caffè, se volete dare un sapore più leggero di caffè ai savoiardi, diluitelo con acqua, versatelo in una ciotola o comunque in un recipiente largo, zuccheratelo e lasciatelo raffreddare.

para quem não conhece esse doce afrodisíaco, maravilhoso, eu explico. ninguém sabe direito a origem do tiramisù, porque as mais diferentes regiões da itália afirmam terem inventado essa delicada sobremesa. mas as pistas remontam a três regiões, toscana, piemonte e veneto. de todas as maneiras, sabemos da existência de uma receita que foi guardada pelo cosimo de medici, grão-duque de toscana. por isso, durante muito tempo, o doce foi conhecido como "zuppa del duca". e de lá, contam os longevos, cosimo de medici fez chegar a receita a outras regiões da itália.

os sonhos mais lindos sonhei, de quimeras mil um castelo ergui. brianda, toda alegre, veio me imitando, a cantar a canção de nossa eternidade. desde que nos conhecemos nas terras dos brasis, a beira mar, ela cria estórias maravilhosas, de como lá aportaram bantos, gêges e nagôs vindos de um futuro sem fim para criar uma nova humanidade. e conta de uma bisavó que dançou uma triste melodia, de gritos e sussurros, ao vender seus filhos como grumetes para um navio das terras de nanquim. sempre que conta essa estória fica triste e eu posso ver aquela velha mulher da cor da noite, a se despedir dos filhos: vão meninos, porque o sol precisa do entardecer para descansar. vão meninos porque o carvão escreve bonito sobre o amarelo. vão meninos gerar a dinastia dos cabelos crespos com olhos rasgados. um dia ela conta esta estória com detalhes para você.

e a mãe... ah! a mãe! abruzezza das abruzezzas. ninguém em toda a terra dos brasis faz uma massa como ela. quando brianda canta, tem-se a nítida impressão que ele nasceu por aqui. é como se ela falasse de conhecidos, de um desses vizinhos que frequenta o mesmo bar e divide com a gente um sambinha que acabou de sair do forno. eu sempre estive apaixonado por brianda, desde que a vi pela primeira vez, num baile do paulistano da glória. tem gênio. é brava, doce e brilhante. é, esta é a palavra exata para defini-la, brilhante.

eu e brianda somos um doce paradoxo. sou rico em defeitos humanos e virtuoso como os longevos. penso sete desafios ao mesmo tempo e dou vinte e uma respostas na sequência. sou protestante, troco ideias na contra mão e não gasto tostão com o óbvio. e vai por aí.

glauber rocha, guimarães rosa, nélson rodrigues, gosto de rir. na verdade, gargalho. mas o que dá o maior tesão mesmo é ver brianda concentrada em suas produções teóricas. fico eletricamente contagiado.

-- yoffe, para de escrever nas nuvens. larga o alexei aí nessa rede e vem comer. afinal foi você quem deu a ideia.

qoh é o meu apelido. quem me deu foi sara, uma amiga poeta. é uma mulher impressionante, especialista na obra de sua xará sara copia sullam. talvez o nome a tenha levado a descobrir a original poeta italiana do século 17. de quem gosta de citar o poema que escreveu sobre hadassa.

la bela ebrea, che con devoti accenti gracia impetrò, da’piu sublimi cori; sicche fra stelle in ciel nei sacri ardori. felice gode le superne menti; al suon, che l’alme, dai maggior tormenti sotragge, ansaldo, onde te stesso onori spiegar sentendo i suoi più casti amori, i mondi tiene alle tue rime intenti; quindi l’immortal dio, che nacque in delo ala tua gloria, la sua gloria acheta; nè la consumerà caldo, nè gelo; colei ancor, che già ti fe poeta, reggendo questa, dall’empireo cielo porrà per sempre, ai carmi tuoi la meta.

sabe combinar tradição e utopia. e o meu apelido veio acompanhado de uma exposição impressionante. e disse o seguinte:

-- o sábio procurou entender o estar e o não-estar, a existência e aquilo que está fora e além dele, no jogo de seus movimentos. percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

mas não foi o único a pensar nessas coisas. a pergunta pelo não-estar, presente na história humana desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do estar. qohelet é aquele que sabe, e de forma magnífica trabalhou o tema da vida, de seus limites, e nos leva a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. o sábio numa abordagem existencial discute o estar, sua integridade e potencialidades. por isso, eu te batizo qoh meu amigo yoffe.

mas qohelet não foi o único a pensar a existência e seu limite último. o grego górgias traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. disse que se houvesse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. e se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. para górgias, o não-ser não existe. mas prefiro pensar no conceito de estar, que é estado da existência, e não de ser que é essência do único que é, o eterno.

é interessante que qohelet apresentou o não-estar, aquilo que é limite, além da existência, de uma maneira que nos lembra górgias. disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também serão esquecidas. que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos estaremos esquecidos. há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo tempo, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.

disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. e considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. o amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. e nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

agora pense comigo meu amigo qoh: é a consciência do não-estar que remete ao sentido do estar. e aqui há uma diferença básica com górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, constatou que não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros. temos então o ceticismo geórgico.

já o argumento de qohelet, a partir do não-estar, afirma o sentido do estar, único conhecido. a negação do não-estar do sábio expressa o desejo de estar em abundância, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. o estar existe, mas tem espaço e tempo, ou seja, é existencial e histórico. por isso, é melhor o sentido do estar, a intensidade das ações do estar do que ficar na espera do não-estar. assim, quando o não-estar sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter estado plenamente, com intensidade, de forma abundante.

e, por isso, o sábio nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. a comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. sejamos felizes, diz o-que-sabe. enquanto vivermos na fumaça deste mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. e o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-estar é nada e no nada não se faz, e no não-estar não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. e depois do estar, vamos repousar no nada.

o fazer da existência vale a pena. o eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada pessoa na história dos fazeres humanos. é por isso que bereshit, o primeiro texto na torá, apresenta um ponto zero. o tempo zero vai do entardecer à meia-noite. é quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. o tempo do não-estar não é uma fratura do tempo, é tempo da história. o sábio não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. o tempo significa nada ou pouco para o eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. a conclusão do sábio é que temos de estar no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-estar.

-- falou e disse, sara! e aceito o qoh que você me oferece.

lembro-me que certa vez perguntei a ele como encarava a questão da violência, mais especificamente da violência revolucionária. e veja, zlabya, a resposta do poeta.

-- meu caro qoh, no rolo do bereshit, o eterno disse para a vida que o sofrimento seria a regra e a humanidade cresceria na dor. a violência estabelece uma proposição, um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana, parece estar além da razão: é impensável. podemos, no entanto, partir do postulado de que a violência é em primeiro lugar ontológica, que nós chamamos de cruz. ela antecede toda violência manifesta. dizemos que entre os atributos da eternidade estão a justiça e o poder, entendemos então que a violência nasce do exercício desses predicados eternos. nesse sentido, a violência é ontológica. esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. é a violência que é e está além da razão de ser violento.

o que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. a consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. tal aspecto da violência é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. este axioma fundador da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.

a natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.

espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. ela parte da alienação existencial e por isso separa e une, distancia e aproxima, fomenta a injusta e estabelece a justiça. tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.

a correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundadora da existência enquanto violência manifesta. a ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato de distanciamento e aproximação, de iniquidade e justiça, que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. a violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação distanciamento e aproximação, iniquidade e justiça, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.

as correlações entre violência-manifesta e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifestado da violência. essa correlação, distanciamento e aproximação, iniquidade e justiça, é alienação existencial, a ponte através da qual as ideias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e no contrato social, essencial para a sobrevivência do humano. a alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação.

ou como disse lameque, conforme o relato mítico do ciclo da violência, quando não há contrato social: “ada e zilá, ouçam a minha voz. escutem, mulheres de lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. e um jovem, porque me pisou. se são mortas sete pessoas para pagar pela morte de caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.

assim, a consciência humana procede também da ideação da violência, e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. a alienação em suas manifestações é o elo entre a existência humana e a matéria da violência, presença e paradoxo que equilibra vida e morte, permanência e destruição. por isso, o rabino de tarso, disse que o homem novo constrói a paz, porque derribou a parede da separação que estava no meio, a inimizade e aboliu a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para criar, nele próprio, o novo humano, fazendo a paz. essa á a boa notícia para todos os que estão mergulhados na violência da iniquidade da sociedade de classes, opressora do humano: propomos a violência dos excluídos de bens e possibilidades como justiça que constrói a paz.

e eu completei: sem poder não há justiça. e o que é o oposto da justiça? podemos dizer, iniquidade. certo, mas o oposto da justiça é também exclusão de bens e possibilidades, é a escravidão. por isso, muitas pessoas fogem da violência manifesta que se impõe a partir da justiça e do poder, porque buscam conforto e segurança. ora, o conforto e a segurança podem ser bons, mas não são de fato o bem maior. uma pessoa que passa a vida à procura de conforto e segurança no final pode se dar mal, porque quando se evita a dor, se evita construções mais profundas.

por mais que muita gente fuja temerosa diante da violência manifesta, mesmo daquela que nasce da justiça, a violência é inevitável, pois é fruto dos limites quebrados. há tempo para tudo, como disse o meu amigo qohelet, tempo de matar e tempo de curar, tempo de guerra e tempo de paz. portanto, se quisermos ter justiça e, consequentemente, paz, a chave não é eliminar a violência da justiça, mas ao contrário ser agente do poder que nasce da justiça.

o preço da justiça é o poder que se manifesta na proporção dos limites quebrados, quando a exclusão de bens e direitos exclui a possibilidade de cidadania e liberdade. nesse sentido, a violência manifesta, mesmo aquela que nasce da justiça, causa dor. a conquista e construção da liberdade se dá com dor. mas o que chamamos dor é muitas vezes esforço. o parto e o trabalhar a terra, metáforas da expansão humana, como disse o eterno para o casal que se lançava ao mundo, implicam em dor, em esforço. a partir daí podemos entender a relação entre violência e dor, e que, embora o esforço possa ser doloroso, diante da justiça não se pode fugir dessa realidade. quem deseja uma viagem confortável e segura vai perder as mais impressionantes conquistas da vida.

-- puxa, qoh, acho que nos entendemos.


tudo isso é verdade e uma convicção. e está estabelecido para nós que é o eterno e não há outro, e que nós somos as suas gentes. ele nos redimiu das mãos dos reis.

4.

morro porque não morro

zlabya, quero que imagine uma conversa transversa entre o sonho, a vigília e o pesadelo. não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a espiritualidade, a razão e a paixão. assim, o sonho diz: vivo sem viver em mim, e de tal maneira espero, que morro porque não morro

a vigília considera a leitura, um pensar sobre a eternidade que nasceu com os longevos, uma reflexão primeira, que se justifica enquanto construção precária da realidade. acha que o encontro das últimas causas não acrescenta nada à compreensão da natureza. e, que, só quando a humanidade para de olhar para cima e olha para si própria e ao seu redor pode pensar o conhecimento. acho que você vai gostar da vigília, mas penso que ela está enganada ao colocar a leitura fora do conhecimento. na verdade, se olharmos a leitura e, por extensão, o sonhar apenas como formas de um super-naturismo, eles se mostram, sem dúvida, superficiais.

-- vivo já fora de mim depois que morro de amor; porque vivo no eterno, que me quis para ele; quando lhe dei o coração coloquei nele um letreiro: morro porque não morro.

há algo no pensar da vigília que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento do humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. e a partir daí vai fundo, radicaliza: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. o fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. mas, o que isso significa, amigo que vigia?

-- esta divina prisão do amor com que eu vivo fez do eterno meu cativo, e livre meu coração; e causa em mim tal paixão ver ao eterno meu prisioneiro, que morro porque não morro.

gostaria que aquele que vigia lesse as confissões do sonho, traduzidas na vida de uma jovem monja carmelita, teresa d'ávila, no livro de sua vida, onde contou seus momentos de êxtase: vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor do eterno. a dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... a dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. é uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e o eterno, que rogo ao eterno em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo.

vamos ouvir agora o pesadelo, que vem traduzido no pensar de um maldito, george bataille. para o pesadelo a espiritualidade está marcada pelo prazer. o prazer de viver. e é esse tropismo ao prazer que leva à superação da ideia acentuada de separação, com sua culpa infindável. mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu um fundador. de todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência do pesadelo recupera o prazer de viver e nos leva ao êxtase, através do prazer de saborear as frutas que a vida oferece, amargas e doces.

-- ai, que longa é esta vida! que duros estes desterros, esta cárcere, estes ferros em que a alma está metida! só esperar a saída me causa dor lancinante, que morro porque não morro.

é por isso que o sonho, em meio à solidão da cela, fala da liberdade do êxtase: durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. isto ocorria algumas vezes, quando o senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar.

e o pesadelo, ao falar do sonho, que está presente em todos os movimentos da vida, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada dos transares, o erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. e dá como exemplos as noites dos shabats, ou da solidão das celas, onde, por exemplo, o divino marquês escreveu os dias de sodoma: a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.

-- ai, que vida tão amarga de quem não goza a eternidade! porque se é doce o amor, não é a esperança longa. tira-me o eterno esta carga, mais pesada que o aço, que morro porque não morro.

se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase do sonho que não produz culpa? e aí é onde o pesadelo dá um show de bola, e completa aquele que vigia, quando critica o pensar da leitura. para o pesadelo, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. o mal leva a errar o alvo e isso é o que chamamos de separação. e será do errar o alvo que poetas futuros falarão. da mesma maneira, as narrações dos shabbats falam de uma procura pelo alvo errado. mas, o poeta maldito e o sonho negam o mal e a separação, embora trabalhem com a ideia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa.

-- só com a confiança vivo de que hei de morrer, porque morrendo, o viver assegura minha esperança. morte do viver se alcança, no tardes, te espero, que morro porque não morro.

o fundamento nega o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. e os que sonham negam a negação desses fundamentos. nessa negação, os fundamentos, com o tempo, perdem então o poder de evocar a presença demoníaca: perdem-na na medida em que o inimigo deixou de estar na base de qualquer perturbação. hoje, os movimentos de poder estão a fazer o caminho inverso. mas, o certo é que aqueles que sonham, aqueles que são marcados pela experiência da leitura do êxtase, deixam de acreditar no mal. desse modo, encaminham-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser uma separação, deixa de ser uma certeza de fazer o mal. na experiência da vigília, somos chamados à atenção: o erotismo é pura mecânica animal. mas, a partir dos sonhos, como aqueles de teresa de ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida.

-- olha que o amor é forte, vida, não me seja molesta; olha que só me resta para ganhar-te, perder-te. venha já a doce morte, o morrer venha ligeiro, que morro porque não morro.

e por quê? porque, nos explica bataille, aquele que traduz o pesadelo, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição nossa voltada para nós mesmos. as ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis. veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. e voltamos aos versos nascidos no fogo do amor.

-- vida, que posso eu dar meu ao eterno, que vive em mim, se não é o perder-te a ti para melhor a ele gozar? quero morrendo alcançá-lo, pois tanto a meu amado quero, que morro porque no morro.

ou como diz a canção de um poeta da torá, o desejo é poderoso como a morte, e a paixão é forte como a sepultura. o desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso.


faz com que nos deitemos em paz, eternidade, e que nos levantemos plenos de vida boa e para a paz. estende sobre nós a tenda a paz e favorece-nos com bons conselhos.

5.

o limite das onze horas

estamos no presente, não muito distante, quase um futuro. o lugar, uma terra florida, um campo de lavanda, um paraíso construído pela paz e pelo trabalho. o primeiro limite preparou um panelão de moules frites, devidamente acompanhado de vinho branco bem frio. comemos e nos refastelamos, naquela sala ampla, iluminada pelo sol da primavera, ao som dos beatles. tomamos café e eu acendi um cachimbo que foi presente de meu tio aeyal. depois, desci e fui até o parque. o primeiro limite me acompanhou e esticou-se embaixo da velha figueira. a tarde era leve e excessivamente suave, como só aquela terra sabe ser. o das onze horas virou-se para um segundo limite e comentou: ah! como é bom ser um limite, querida mestra de sonhos e palavras.

deu uma risadinha e terminou a frase, meio melancólica. como eu gosto de trabalhar com meu terceiro limite.

o limite primeiro, misturado no verde, contando nuvens, gosta de ouvir sua irmã. gosta de passar as tardes no loire florido, somando pássaros, perdidos de suas rotas, que costumam arribar aqui. o segundo limite entende perfeitamente a empatia angelical que o das onze horas nutre pelo terceiro limite.

o terceiro é um limite da origem. tenho várias leituras para esse limite: a fertilidade mágica da terra umedecida pelo orvalho, a lua branca que repousa no horizonte de montanhas no meio do azulão besta, o amor do algodão doce no entardecer na praça matriz, conforme as vivências que tenho com ela. shlomo edificou um castelo para ela nos arredores da cidade da paz. sharon palestina, hálito de rosas e mente feminina, usa tiara de flor d'enamorats, como símbolo de seu limite. voa por cima das videiras brotadas, despertando na irmã ahava uma doçura especial, um sabor de mel, um desejo de mesa farta, quando há muito tempo se está a esperar.

adara, que se diz o limite das onze horas, abriu a leffe radieuse, encheu a taça grande, de forma a destacar a espuma, e sorveu um gole comedido, mascado, como se comesse uma especiaria. depois disse para o limite que a ouvia: ahava, minha agraciada irmã, há anos futuros fui amiga de um humano sem limites. foi uma experiência inesquecível. viajemos no tempo e quem sabe talvez você entenda a lógica dos meus amores.

tudo começou num dia de inverno. havia esse humano duro de coração. perverso para nenhum limite colocar defeitos. nós nos conhecíamos, conversávamos pelas madrugadas e ele sempre me ouvia. uma noite ele se entregou a mim. queria a minha sabedoria e eu não lhe neguei. mais tarde, deu o seguinte depoimento aos libertadores que o interrogavam: havia uma sem limites, uma sem miolos, uma sei lá. já tinha trombado várias pessoas. uma coisa incômoda, sempre igual. as pessoas eram trombadas de madrugada e saiam desnorteadas, sem rumo, nem eira. sim. era exatamente assim. tocadas nos olhos, no rosto, e perdiam a visão do caminho. e tudo em apenas um mês. mas as pessoas fecharam os olhos e abriram os seus corações para a festa do dia de reis. e o castelo ficou encantado. eu, porque sou curiosa e creio em transformações, vibrei. e comigo ficou a frase de um jovem italiano, bom de pensamento: vecchio, perché il destino ci ha fatto nato nella vecchiaia.

dez da manhã. a uiraçu jovem usava branco e cinza. convidei-a para conhecer o castelo. ela piou, nervosa, e entramos. sem proferir palavras, eu cantava. va', pensiero, sull'ali dorate, va', ti posa sui clivi, sui coll, ove olezzano tepide e molli, l'aure dolci del suolo natal! sempre gostei de verdi. é a nostalgia, ela me agarra e não me solta mais. atravessamos o salão de entrada do castelo. a cutucurim a voar na frente e eu atrás. comecei a subir as escadas. del giordano le rive saluta, di sionne le torri atterrate. só minha respiração quebrava o silêncio. cheguei ao primeiro andar. continuei. íamos para o segundo... o mia patria, sì bella e perduta! o membranza sì cara e fatal!

ela rodopiou no ar. arpa d'or dei fatidici vati, perché muta dal salice pendi? e num movimento sublime saltou. senti uma dor no rosto. ela me arranhou uma, duas, três vezes. caí, sem rumo, nem eira. senti a dor das costelas na batida com os degraus.

não senti medo. só o mergulho. adara, você sempre diz que não há lugar tranquilo na cidade das gentes. mas o mundo estava silente. essa é a paz prometida. o hálito de outro, rasgar, sentir o branco e o cinza. passos. subia as escadas. como se tateasse os degraus. chegou bem à frente e perguntou: quem está aí?

segurava o corrimão. a que não via. o que estaria fazendo ali, ela e seus sons? estendi a mão direita. ela a tocou e subiu alguns degraus. a harpia voou. a menina de olhos blindados subiu e sentou-se quase à altura da minha cabeça, ao meu lado. brinquei de dedos com os dedos. ela quieta, parecia estar presa no tato. que sensação pode ser tão profunda? formigas e espelhos. eu sentia dor, o peso da harpia que voou, a respiração em compasso de espera.

dizem que sou a crítica da razão pura. não sou, não. lembro-me perfeitamente. o castelo foi se enchendo de gente, afinal era dia de reis, que deslizava do chão e do teto. primeiro, apareceram guerreiros em seus trajes de gala, que subiram as escadas e queriam ir para o segundo andar. pediram licença e seguiram seus caminhos. uma senhora grande e bonita desceu do lustre, será que foi isso mesmo? eu já não sabia quem era quem, mas isso não me incomodou.

a vida voltou ao velho castelo. havia burburinho, gente feliz, cantando e muitas cores. mas ninguém importunava. e eu ali, quieta, sentindo aquela paz de formigas. um guerreiro, quase um príncipe, tinha ficado bem em frente à escada. a uirurete desceu suave em sua direção, pousou como fada, sem fazer ruído. momento mágico de almas gêmeas.

eu e a menina blindada ficamos juntas. no meio da festa, deslizávamos pelos campos, eu na minha ancestralidade longeva e ela nas miríades de sons...

é necessário reconstruir o caminho do diálogo da convicção com a relação, já que somos a potência de ser, mesmo em seu sentido metafórico. e o poder da ancestralidade longeva supõe um objeto sobre o qual possa exercer seu poder. assim, a relação tem uma essência: o uso do poder. e o poder determina os caminhos da sociedade. e esse poder político recorre à autoridade social instituída e possibilita ao estado exercer coerção em nome do direito dos cidadãos. mas as convicções pessoais sobre a eternidade e sua soberania têm implicações no pensar a relação. ao optar por uma convicção espiritual privatizada, ofusca-se caminhos e mascaram-se práticas, às vezes, não éticas, mas de atitudes aparentemente piedosas. e dessa maneira, a relação não é por essa espiritualidade negativa, que apresenta propostas de uma ordem relação onde o amor sem poder supere o poder sem amor.

quando se propõe uma teoria social que contrapõe as relações de poder ao amor, é impossível integrar relação e estilo de vida. então, as comunidades de convicção rejeitam qualquer forma de poder representado na ordem econômica e relação sob o poder do estado. mas ao rejeitarem as relações de poder da sociedade, aceitam, por exclusão, já que a relação também se faz por omissão, o uso do poder que está instituído, pois, ao não defenderem uma retirada do mundo, colocam-se sob o poder presente. neste sentido, diferem do separatismo radical, que historicamente propôs a separação entre as comunidades de convicção e o estado em nome da liberdade de consciência. este separatismo acreditava que o fracasso das relações de poder são impedimentos para a manifestação da eternidade. era um fundamento de cunho liberal, fazia a crítica da relação e propunha o distanciamento físico dos poderes do mundo. o que nos obriga a admitir que traduzia uma atitude relação consciente.

hoje, a espiritualidade dos brasis não é separatista e não foge do mundo: acredita ter uma missão moral de transformação, mas, muitas vezes, nega a possibilidade de real envolvimento político, por temer o poder político. ora, se a comunidade dos discípulos do rabino de nazaré tem uma ética relação, deve utilizar os meios que possibilitam chegar aos fins que busca. rejeitar o poder é rejeitar relações. tal rejeição pode até ser aceita, desde que seus agentes tenham consciência do que estão fazendo e, coerentemente, proponham o abandono do mundo. quando uma comunidade acredita que a omissão diante da relação e do poder favorece à instalação do reino do eterno, tem-se a negação da relação como relação cristã, o que fortalece aqueles grupos que buscam o poder em benefício próprio. e, ao contrário do que crê o negativismo, tal postura não estabelece o reino da eternidade.

se não é possível falar de relação sem falar de poder, outra questão se coloca: amor e poder são compatíveis? a pergunta procede porque a espiritualidade remete à prática do serviço ao próximo, mas, em nome da espiritualidade e do amor ao próximo, comunidades do mashiah negam a possibilidade de todo e qualquer poder. tal postura apresenta-se como equívoco, pois o poder não é uma identidade morta, mas um movimento reflexivo, onde o ser se separa dele para depois retornar a ele de novo. o poder, dessa maneira, é tão maior quanto maior for a separação vencida. e o movimento que reúne aquilo que estava separado é o amor. mas se há um amor unificador, há o não-ser vencido e há o poder de ser, por isso, o amor é a base e não a negação do poder. tal amor é um ato da vontade, porém, não se pode forçar uma pessoa a amar alguém. já os atos políticos contêm elementos não voluntários, porque o poder do estado está associado a ações que podem estar fora da vontade da pessoa, enquanto o ato de amor está associado a ações do querer. outro fato importante é que o amor deve ser mediado pessoalmente. como a natureza voluntária do amor necessita da existência de uma pessoa que o ative, o amor sempre necessita de um agente moral livre. o estado, como qualquer outra ordem social instituída, tem uma existência objetiva e alcança seus fins indiscriminadamente. a relação da pessoa com o estado é uma relação cidadão/instituição, em lugar da relação eu/você, que possibilita a mediação pessoal que ativa o amor. além disso, o amor tem um caráter sacrificial. ou seja, possibilita ações que a despeito dos interesses particulares, imediatos, responde ao bem-estar do outro. conscientemente, é um perder para que outro ganhe. sacrificam-se direitos, sem estar forçados por obrigação legal, para que o outro seja beneficiado.

por ser livremente determinado, o amor vai além de uma obrigação moral ordinária. cumprir obrigação moral é responder à necessidade moral, é um ato de dever em lugar de um testemunho moral livre. é importante entender que esse processo de ir além da obrigação moral envolve, como paradoxo, uma vontade moral implícita. é por isso que o amor pode se transformar segundo as exigências concretas das pessoas e das instituições sociais, sem perder a dignidade incondicional. assim, podemos dizer que o amor é voluntário e livremente entregue, que envolve volição moral, deve ser mediado pessoalmente, é sacrificial. e, finalmente, que o amor vai além do dever ou da obrigação moral, embora implique, paradoxalmente, em obrigação moral ou realização de um dever de origem.

a relação implica em servidão não voluntária, já que sua natureza baseia-se no uso da coerção e da força para alcançar seus fins. é organização formal e opera impessoalmente, e os políticos, mesmo quando são trabalhadores e solidários, se ocupam de ações que levam terceiros ao sacrifício, por isso a necessidade da força e da coerção e, em última instância, do próprio estado. nessas condições, a maioria da população geralmente se considera satisfeita quando vive sob uma ordem relação, seja ela dirigida por trabalhadores e solidários ou não, que responde às exigências de sua obrigação moral. e quando isso não acontece podem levantar um chamado à rebelião contra o estado, a fim de exigir dele a realização daquilo que é sua obrigação moral. fazendo assim atuam no sentido de que não se torne totalitário, ou seja, negue os limites de seu poder de estado ou passe por cima das obrigações que tem com as pessoas. não obstante, mesmo para um governo dos trabalhadores, usar o poder do estado como meio de realizar o amor entre as pessoas é um contra sentido, pois moralmente não se pode coagir ninguém ao amor. tal coerção destruiria também a obrigação moral do estado, que baliza a diferença entre poder limitado e governo totalitário.

dado a dualidade entre poder e amor e o conflito aparente entre poder sem amor e amor sem poder, como a comunidade cristã, evangélica ou não, deve se situar frente à relação? colocada a questão nestes termos, de fato é difícil escolher entre ser massa, mas cidadão do reino, e ser um militante atuante à margem da salvação. como seguir o caminho cristão sem rebaixar a nobreza do amor no altar do poder político? a alternativa de reconciliação entre poder sem amor e amor sem poder é o conceito de justiça. e justiça, num sentido amplo, significa dar às pessoas aquilo que por direito lhes pertence. mas aqui outra questão se levanta: o que por direito lhes pertence? uma possibilidade de resposta é entender a justiça como a maneira através da qual o poder deve ser realizado. nesse caso, a justiça deve estar em sintonia com o movimento do poder, deve ser capaz de dar forma ao encontro da pessoa com outra pessoa. o problema da justiça no encontro surge do fato de que é impossível dizer como se organizará a relação de forças nesses encontros. a cada momento existem inúmeras possibilidades. e cada uma dessas possibilidades exige uma forma particular de justiça. assim, as reivindicações da justiça só podem ser operacionais numa comunidade se forem definidas com um grau significante de particularidade, pois a justiça requer julgamentos diferentes diante de reivindicações contraditórias. donde, não basta justiça como generalidade. é necessário trabalhar a compreensão de justiça no particular, para não cair no moral/mente, quando não se tem nada a oferecer por se falar de forma idêntica em tempos, espaços e situações particulares diferentes.

muitas vezes a rede das transformações, em especial sua corrente cristã, considerou que fazer justiça significava dar a cada pessoa aquilo que lhe é por direito, mas essa afirmação colocava algumas questões: se todas as pessoas têm igualdade moral, então essa igualdade deve se estender a todo grupo social, às relações econômicas e relações em que se fazem presentes. e se as pessoas são desiguais nas contribuições que fazem à sociedade, então essas desigualdades devem se traduzir nos grupos sociais e nas relações econômicas e relações. ambos os argumentos, sem dúvida, têm suas razões de ser. e fazem parte dos debates políticos entre os e discípulos do rabino de nazaré e o solidarismo das redes de transformação.

por encontrar dificuldades na formulação prática do conceito de justiça, as correntes do mashiah fundamentalistas têm rejeitado o conceito de justiça enquanto ordem possível na humanidade. a justiça enquanto ordem possível na humanidade traduz a idéia de que o ser humano tem um conhecimento universal do bem e por isso compreende a necessidade de justiça. o novo conceito defendido pelas comunidades fundamentalistas é o de que a justiça é uma ordem apenas possível através da redenção e, por isso, não existiria um conhecimento seguro de justiça fora da revelação. dentro dessa leitura teológica, só houve justiça na origem. assim, ao rejeitar a possibilidade de uma ordem universal fora da revelação, tal compreensão teológica leva a um problema de episteme, pois afirma que a razão não tem nada a dizer fora da revelação. essa visão teve e tem consequências práticas na elaboração de estratégias para a ação relação, porque define que só a partir da fé se pode falar com autoridade sobre justiça. ou seja, os e discípulos do rabino de nazaré não poderiam, como consequência, militar politicamente com não-e discípulos do rabino de nazaré, pois não há base secular para o envolvimento político dos e discípulos do rabino de nazaré. desse modo, ao negar o conhecimento natural do bem político, a única alternativa é omitir-se, porque relação é coisa mundana, ou estabelecer uma relação cristã sectária. 

por isso, o fundamento nas terras dos brasis buscou impor normas retentivas, favorecendo o distanciamento dos fiéis da relação, ao contrário daqueles que defendem uma teologia do conhecimento universal do bem, que rechaça o negativo das ordenanças da redenção por isolar, alienar e separar a pessoa e a comunidade da prática relação. ora, numa leitura teológica do conhecimento universal do bem, a justiça deve estar baseada em reivindicações universais de direito, pois estabelecer justiça em base de autoridade sectária é violentar a compreensão de que todas as pessoas têm um conhecimento do bem: donde, todas as pessoas compreendem a necessidade de justiça. assim, a justiça deve ser definida dentro do contexto de uma determinada ordem social e deve ser aplicada em termos de particulares, pois fundamentar o argumento da justiça apenas na pessoa não é o bastante. e devido à universalidade das normas de justiça e à universalidade da consciência de justiça, uma pessoa pode ter procedimentos e práticas que aprofundem relações e programas que favorecem a justiça. é exatamente isso que os direitos cidadãos buscaram trazer para as alegrias representativas. é o reconhecimento de que os meios empregados não devem violentar os fins procurados. é necessário, ainda, reconhecer que as normas de justiça são objetivas e que existem independentemente da volição humana. consequentemente, podem ser feitas reivindicações em nome da justiça e podem ser rejeitadas reivindicações em nome da justiça.

considerando que o amor deve ser querência entregue, justiça exige reconhecimento independente da vontade humana. essa discussão sobre a justiça, nos leva à questão da alegria. a partir da revolução dos francos de 1789, as declarações de direitos passaram a se abrir com o enunciado de que os seres humanos são livres e iguais. foi assim que a terra dos euros assumiu a realidade da dimensão universal do direito à liberdade e à igualdade, que mobilizou os movimentos de libertação de escravos, mulheres e povos. a constatação desse direito à liberdade e à igualdade legitimou as revoluções burguesas, e a alegria representativa apresentou-se como a forma relação através da qual essas liberdades se exprimiriam. mas, a alegria representativa enquanto expressão da justiça entrou em crise, porque cultura da modernidade burguesa se encontrava em crise. na terra dos brasis, recentemente, tal situação foi presenciada e mobilizou milhões de pessoas em atos e tratos. mas, diante do possível desmoronamento iniciou-se um processo onde a alegria representativa funcionou não como forma relação de expressão dos direitos à liberdade e igualdade, mas como elemento de controle e restrição dessas liberdades. e as eleições surgiram, então, como alternativa para que o fim do regime militar não desembocasse numa derrocada de fragores e a mobilização das gentes levasse a uma ampliação da alegria participativa. essa alegria de amplo espectro, participativa, que surge à galope do movimento das gentes dinâmicas, é o que chamamos de revolução democrática. e nas terras dos brasis a revolução democrática, entendida como etapa anterior ao solidarismo e defendida pelos democratas radicais e reformistas, já tinha sido abortada, e o foi de novo, quando ficou claro que as mobilizações conduziriam à extinção do autoritarismo.

as terras dos brasis arrancaram na direção da alegria de participação. no entanto, voltaram a surgir condições para uma expansão da alegria de participação, onde a classe trabalhadora, com as redes de transformação, poderia marchar em direção ao governo, já que a constituição abrira essa possibilidade, e as mobilizações das massas, surgidas a partir da deterioração da ordem legal, davam às pessoas e aos movimentos o lugar de atores sociais. de fato, as eleições possibilitaram a conquista de espaços democráticos representativos, e permitiram que a voz social e relação dos trabalhadores fosse ouvida nacionalmente. e, possibilitou também que as intervenções dos trabalhadores fossem num crescendo diante do enfraquecimento da relação liberal. assim, os trabalhadores começaram a enfrentar seus adversários no próprio campo da luta eleitoral, conquistando espaços democráticos representativos, mas essas vitórias foram aos poucos, junto às redes sociais, fortalecendo as teses de que o objetivo era a revolução democrática, nesta etapa da democrático-burguesa da revolução, e não a conquista do poder e a construção de uma nova sociedade solidária.

a alegria representativa não é fim em si, mas instrumento de mediação das relações de poder. isto pode ser compreendido quanto se constata que a alegria representativa enquanto objetivo da revolução burguesa encontra-se em crise, porque se tornou escrava das leis de mercado. assim, como toda a sociedade burguesa, ela está submetida à economia. essa enfermidade crônica da alegria representativa levou os trabalhadores a viverem num mundo sem garantias. logicamente, se há crise cabe perguntar se pode haver transformação, embora se saiba que transformar não signifique necessariamente restaurar valores que já não respondem às necessidades de trabalhadores e excluídos. fazer assim seria heteronomia, que só reafirma o autoritarismo. transformar o princípio de liberdade e igualdade significa reinventar a alegria, o que se traduz na idéia solidária do incondicional da justiça. os valores podem ser reinventados, mas isso significa dizer que as gentes em movimento, autônomas, devem tomar essa alegria representativa de assalto, pois ela só permanecerá se mudar, porque não é um estado natural da sociedade, é sempre um ensaio.

por isso, necessita ser reinventada sempre, e diante da ditadura das leis do mercado, dos fundamentos e das mídias controladas pelos grandes grupos, a alegria tem que ser liberdade e igualdade para aquela maioria que não tem voz e vez. se a alegria é mediadora, embora não seja um fim em si, não basta que as pessoas votem, elejam governantes, e permaneçam distante das ações do poder: a alegria reinventada implica em participação. mas a alegria não pode ser recriada se partir daquilo que é pré-estabelecido. dizer que a alegria é uma mediação fundamental nas relações entre classes e redes, não significa que em todos os lugares ela será igual. se os seres humanos podem ser livres e iguais, as sociedades têm que se articular para a maioria excluída, e está é a realidade global, os direitos à liberdade devem levar aos direitos sociais, à igualdade. mas se não existirem as mesmas condições de possibilidade não pode funcionar a alegria, pois se não garante a realização da liberdade não se pode esperar que funcione enquanto mediação fundada sobre os princípios da justiça social. e não basta os mitos fundadores da alegria afirmarem o caráter universal de que todos os seres humanos são livres e iguais: esta só pode se realizar enquanto comunidade global ativamente participante. essa é a base da globalidade defendida pelos trabalhadores e solidários e tem sido uma das bandeiras levantadas pelas redes de transformações. e tal discussão nos remete, mais uma vez, à questão da eternidade da justiça.

se a eternidade da justiça está correlacionada à eternidade do amor, em termos teológicos amor e justiça não podem ser contrapostos. o amor pode ir além da justiça, mas nunca pode buscar menos que a justiça. o amor pode inspirar reverência à justiça, mas nunca pode ser desculpa para esquecer as reivindicações da justiça. e se a justiça é uma qualidade objetiva que estabelece direitos e obrigações, projetos podem e devem ser desenvolvidos pelas pessoas e comunidades para criar ações que sirvam às reivindicações da justiça. dado o fato que nem todas as pessoas buscam a justiça de boa vontade, o poder pode ser usado legitimamente quando serve à causa de justiça. isso significa dizer que o amor não pode usar o poder para alcançar seus fins, mas que a justiça têm que usar o poder para alcançar seus fins. tais distinções são necessárias porque não se pode dizer a um governo dos trabalhadores que ame, porque suas ações têm por base o poder, e porque as reivindicações do amor estão arraigadas em reconhecimento pessoal e particular ao invés de normas universais de justiça.

mas como os e discípulos do rabino de nazaré sociais proclamam, dentro e fora das redes de transformações, as boas notícias da autonomia, sensibilizam as comunidades para as demandas da justiça. consequentemente, permanece a justiça enquanto serviço de amor. assim, usar o estado como um instrumento de amor está fora do objetivo d a rede de transformações, pois levaria a um estado sectário, quando não totalitário. por causa disso, as normas distintivas da justiça serão usadas pela rede para delimitar o que é meu e o que é teu. negar a justiça em nome do amor seria negar os direitos das pessoas, que são a base de qualquer alegria representativa e participativa. o conceito de justiça, então, aliado aos de amor e poder apresentam as alternativas para as comunidades do mashiah ao pensar a ação relação n a rede de transformações. a relação, com base no poder, cumpre uma função legítima quando serve as reivindicações da justiça. amar, sem rejeitar o poder, indo além dos direitos e deveres estabelecidos pela justiça, possibilita um testemunho de justiça e uma motivação moral que coroam o ato justo. amar, através da mediação pessoal, complementa a justiça em suas demandas objetivas. por isso, podemos como síntese dizer que fome é exclusão da cidadania, da economia, da educação, da renda, do salário, da terra, da vida. porque, quando uma pessoa chega a não ter o que comer, tudo o mais já lhe foi negado. ou seja, é morte em vida. nesse sentido, a alma da fome é relação e o ato solidário é um movimento no sentido oposto a tudo o que se produziu até agora, é uma mudança de paradigma: olhar vesgo, diverso, para todas as relações, bases da construção radical. a exclusão produziu, a união destruiu, a cidadania será geral e irrestrita.

quando a justiça é negada, a relação torna-se escrava do poder. perde o eixo da vida da ação relação, já que a injustiça só será vencida pelo reconhecimento da dignidade da pessoa, e essa é uma tarefa relação. para conquistar tal dignidade, o poder deve ser exercido. assim, a síntese deste diálogo pertinente entre relação e religião é a justiça. esta é razão de ser da rede de transformações. mas para entender tal relação é necessário compreender o mito fundador e o que ele representa para o futuro da rede. o mito de origem da rede de transformações é o solidarismo, traduzido principalmente na experiência da revolução. essa realidade pode ser vista na preocupação sempre presente de defesa da revolução, de seus líderes e de suas ações relações, mesmo as mais discutíveis.

a origem é o que faz emergir. este aparecimento dá lugar a algo que não existia antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. a realidade daquilo que a rede de transformações é está colocado, mas também é algo que lhe é próprio. é uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio, já que a origem não liberta. não se pode dizer que a rede de transformações era e que não é mais. isto porque, a origem puxa, faz emergir, segura firme: é ela que estabelece a rede de transformações como algo, mas ser-posto no mundo significa amadurecer, envelhecer e, inclusive, morrer.

o comando já havia informado que haveria nova chuvas de estrelas. na segunda semana de abril foi lindo e triste. bem de manhã, uma névoa cobria o campo e as casas dos superiores, que não ficavam muito distante do castelo. todos gritavam. junto com a garoa fina caiam as bombas. de uma das rampas da casa, por entre o verde, corriam meus irmãos, vivos e mortos, com estrelas no coração.

fogos de artifício de carne e sangue desenhavam flores no céu. eu e aquela que não via, de mãos dadas, ouvíamos o dum-dum dos tambores e a festa vermelha do fim dos dias. de repente, veio a ordem de debandar. saíram os carros negros, limpos, fugindo para não sei onde. os guerreiros corriam e desapareciam, como se fossem névoa, apenas névoa. e aqui no castelo, eu e aquela que não via caminhávamos no vazio. mais uma vez estávamos sós. fomos caminhando devagar para longe do prédio. era melhor deixá-lo morrer sozinho, comido pelo mato, vendo suas paredes caírem de cansaço e de velhice. igual a mim, eu acho.

não, valorosos guerreiros, não sei o nome de ninguém. nunca me preocupei com nomes. nunca me lembrei de guardá-los. do comandante-em-chefe sei que era imponente, mas triste. gostava de ouvir os pássaros de manhã e à tarde escutava uma ninfa tocar cítara. era triste e só. ah! o meu monstro. foi meu apenas durante algumas horas. também não sei dos meus irmãos. ouvi dizer que os piedosos subiram aos céus, mas disso não há fala. não sei. é muito difícil saber dessas coisas, embora eu seja uma longeva sábia.


as pessoas são tocadas pelo amor. nada sensibiliza mais o humano, talvez por isso o rolo dos cânticos compare a paixão à força da morte, já que os dois estados se nos apresentem como definitivos. caso você já tenha estado apaixonada sabe como é.

6.

vou seduzir a minha amada

num domingo de janeiro preparei está leitura de manhã a partir daquilo que chamei lições de amor. foi um pensar na gratidão ao eterno, um jeito de dizer a ele que o amo. e pensando, me remeti a um filme, uma lição de amor, que conta a história de um pai com deficiência mental e uma filha, de sete anos, que começa a ultrapassá-lo intelectualmente. no filme, uma assistente social quer levar a menina para um orfanato, alegando que o pai não tem condições de criar a filha. foi nesse momento que me deparei com dois textos, o dos cânticos, e outro, também belíssimo, de um profeta mal compreendido e meio abandonado, oseias.

minha leitura da eternidade como um delírio, não faz o efeito que o materialismo esperava. na verdade, me leva a uma outra leitura: faço uma ponte entre as lições de amor da eternidade e a minha paixão por ela. e foi assim que surgiu esse pensar, num discurso sobre as minhas provas da existência da eternidade, que divido em três: o “noturno opus 9, no. 2” de chopin, a roda e a raiz quadrada de menos 1. talvez, você esteja achando que estou louco, o que pode não ser mentira, mas se tiver curiosidade e paciência, vai entender o caminho que trilhei. e esse caminho, que vai na contramão do que o materialismo diz, nos ajuda a entender porque estamos enamorados pelos temas centrais da fé cristã, criação, alienação e essencialização da vida. enfim, as lições de amor e essas minhas provas da existência da eternidade se correlacionaram e levam a uma teoria da existência.

eternidade e amor estão entrelaçados, e vejo isso quando sou obrigado a pensar uma teoria da existência. e, metodologicamente, a primeira coisa que devo me perguntar é se uma coisa existe ou não existe. e isso significa trabalhar com variáveis: uma coisa existe; uma coisa não existe; uma coisa não existe, mas já existiu, deixou de existir e não existe mais, porém poderia existir.

devo pensar também, e essa questão é um pouco mais complexa, que a existência existe. e ainda que eu diga que existência é espaço/tempo, como não temos espaço apenas, ou tempo apenas, a existência existe. não dá para dizer que a existência não existe, ela é realidade no cosmo, produz diferença no mundo. caso não existisse a existência, então, nada existiria.

mas, outra questão deve ser colocada: se posso falar numa teoria da existência, preciso entender que posso apreendê-la enquanto atos de conhecimento. e ato de conhecimento é uma ação consciente sobre algo que existe ou uma realidade. por isso, os atos de conhecimento nos remetem a pessoas que são conscientes e podem conhecer a existência através de seus processos e modos.

as pessoas são tocadas pelo amor. nada sensibiliza mais o ser humano do que o amor, como dissemos acima. e, por isso, o amor e a morte se nos apresentam como estados definitivos. caso você já tenha estado apaixonado ou apaixonada sabe como é.

e oseias contou que o eterno disse: “vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor. ali, eu devolverei a ela as suas plantações de uvas e transformarei o vale da desgraça em porta de esperança. então ela falará comigo como fazia no tempo em que era moça, quando saiu do egito. mais uma vez ela me chamará de “meu marido”, em vez de me chamar “meu senhor”, meu baal. nunca mais deixarei que ela diga o nome baal, nunca mais ela falará desse deus. sou eu o senhor quem está falando. naquele dia, farei a favor dela uma aliança com os animais selvagens, com as aves, com as cobras, para que não ataquem a minha amada. quebrarei as armas de guerra, os arcos e as espadas. não haverá mais guerra e o meu povo viverá em paz e segurança. israel, eu casarei com você, e para sempre você será minha legítima esposa. eu tratarei você com amor e carinho, e serei um marido fiel. então, você se dedicará a mim, o senhor. naquele dia, serei o eterno que atende: atenderei o pedido dos céus, os céus atenderão o pedido da terra, dando-lhe chuvas. e a terra responderá produzindo trigo, uvas e azeitonas. assim, eu atenderei as orações do meu povo da terra da estrela. plantarei o meu povo na terra prometida para que eles sejam a minha própria plantação. e eu amarei aquela que se chama não-amada, e para aquele que se chama não-meu-povo eu direi: “você é meu povo” e ele responderá: “tu és o meu eterno”.

agora, vamos descontrair o texto de oseias e relacioná-lo com a teoria da existência. deslumbrar e fascinar são desafios da existência e isso está expresso do texto de oseias, quando o eterno diz: “vou seduzir a minha amada e levá-la de novo para o deserto, onde lhe falarei do meu amor”. a travessia do deserto, quando os hebreus fugiram do egito, foi um tempo de intimidade com a eternidade, uma porta de esperança, diferente do vale da desgraça, onde o soldado acã foi condenado à morte por traição.

assim, nessa correlação entre eternidade e amor, podemos discutir a existência a partir dos noturnos de frederico francisco chopin. esses noturnos eram cantos livres, que traduziam as experiências pessoais de chopin e expressavam sua espiritualidade. diria que os noturnos desse músico são o deserto do profeta oséias, espaço/tempo de intimidade com a eternidade.

particularmente, sou apaixonado pelo noturno opus 9 no. 2, que tem a propriedade de ser uma obra de criação e pertença de um humano sensível. é peculiar, diria inédita e exclusiva. e ao dizer essas coisas, afirmo não apenas que existe, mas sou obrigado a falar de sua natureza, de sua essência. ou seja, saber que o noturno opus 9 no. 2 de chopin existe, significa dizer que não existem outros noturnos opus 9 no. 2. só existe esse.

baal e îche são outros dois desafios da existência. e as lições de amor nos trazem de volta a oseias, quando o eterno diz: “ela me chamará de meu marido”. e isaías conta que o eterno disse: “não temas, porque não serás envergonhada; não te envergonhes, porque não sofrerás humilhação; pois te esquecerás da vergonha da tua mocidade e não mais te lembrarás do opróbrio da tua viuvez. porque o teu criador é o teu marido; o senhor dos exércitos é o seu nome; e o santo da terra da estrela é o teu redentor; ele é chamado o eterno de toda a terra”.

e mais uma vez a correlação entre amor e eternidade me remeteu a outro processo da existência, que vou analisar a partir de uma das mais simples máquinas que construímos: a roda. todos conhecemos as suas aplicações e sabemos que crescem a cada dia: vão do uso nos transportes à utilização nas mais diferentes máquinas mecânicas. mas é simples: caracteriza-se pelo movimento de rotação em seu interior. em mecânica diz-se que o seu fato mais importante é determinado pela a transmissão de força, velocidade e distância, que se dá pela relação entre o diâmetro da borda da roda e o diâmetro do eixo.

ora, a roda nos remete ao trocadilho que oseias fez com a palavra baal, que era o deus da fertilidade dos cananeus, mas cuja palavra significava também senhor e marido. oseias não quer que sua amada o chame de baal, mas de îche, homem, que por extensão poderia significar também marido e herói.

esse exemplo, o da roda, nos ajuda a entender a questão da existência, que não é uma propriedade que pertence, mas é o pertencimento a uma propriedade. pense na roda, no conceito roda e em todas que existem ou podem existir. a existência da roda consiste em participar de relações de predicados. assim, a existência da roda significa que pertence a propriedades ou é parte de propriedades. nesse sentido, a existência é sempre participação na relação de predicados. como baal ou îche.

celebrar a imagem que transcende é o desafio fundador da existência. “e para sempre você será minha legítima esposa”, disse o eterno sobre sua amada. oseias utiliza esse recurso para falar de uma aliança que transcende os predicados definidos pela existência.

ou como o eterno disse ao profeta jeremias: “quando esse tempo chegar, farei com o povo da estrela esta aliança: eu porei a minha lei na mente deles e no coração deles a escreverei; eu serei o eterno deles, e eles serão o meu povo. sou eu, o senhor, quem está falando. ninguém vai precisar ensinar o seu patrício nem o seu parente, dizendo: “procure conhecer a eterno, o senhor.” porque todos me conhecerão, tanto as pessoas mais importantes como as mais humildes. pois eu perdoarei os seus pecados e nunca mais lembrarei das suas maldades. eu, o senhor, estou falando”.

aqui entra o meu terceiro exemplo dessa correlação entre eternidade e amor e os desafios de uma teoria da existência: a raiz quadrada de menos 1 (√-1). como vimos, as coisas que existem tem suas propriedades. quando alguma coisa não tem condições de ter existência comprovada ou não tem pertença/predicados, ela fica fora das leis fundamentais da lógica e da existência dos atos de conhecimento. por isso, em matemática falamos em unidade imaginária i, enquanto solução da equação quadrática: x2+1=0, da qual decorre x2=−1.

ou, dessa séria questão existencial x=√-1, onde a unidade imaginária é i=√-1. dentro da lógica matemática não posso dizer que este número exista, ele é imaginário porque é um recurso da minha imaginação, pois não há número real cujo quadrado seja negativo. é isso é um fato. imagina-se, então, que haja números especiais, dotados de propriedades que satisfaçam essa exigência da imaginação. e assim a matemática criou uma classe de números: os imaginários, que não são reais.

e, agora, voltemos ao filme. o que os amigos do pai deficiente mental entendiam, e a assistente social não, era que havia entre o pai e a filha uma aliança maior, que transcendia em muito suas deficiências intelectuais, uma aliança de amor.

dessa maneira, nessa correlação tresloucada entre eternidade e amor digo que uma teoria da existência parte de três fundamentos: a diferença entre existir e não existir, e que essa diferença não é um atributo, não é uma propriedade; a existência não faz parte da essência de cada coisa, mas cada coisa, todas as coisas mostram diferenças entre natureza e existência; a mente transcende, produz representações que agregam conhecimento e constroem sentido para a existência. é o que o materialismo não entende, já que é carência, e que, por isso, no esfacelar-se do caminhar devemos deixar que a própria eternidade testemunhe amor e paciência.

assim, na correlação eternidade/amor, a existência deslumbra e fascina; é baal e îche; transcende e cria a imagem que alucina. e como adara disse: e a que não via? fiquei com medo. sei que o chefe de vocês é diferente, que acredita no que faz e no que diz e pretende fazer com que o país volte às normas da legalidade absoluta, com a supressão do arbítrio e dos sonhos. e eu fiquei com medo. chovia. era difícil andar. eu por causa da velhice e ela porque tropeçava nas raízes. o mergulho, era isso que eu tinha na cabeça. nem mais, nem menos. paramos ao lado de uma poça. o longe roncava como fera. não sabia se o futuro começava ou se o passado cochilava. devagar, segurei sua cabeça e enfiei na lama. ela deixou. seu corpo se contorceu um pouco, com arrancos. meu medo foi passando. levantei seu rosto. éramos iguais os dois, mortos, com máscaras de lama.

segui sozinho, sentindo uma paz esquisita. acho que é a mesma paz que sentia o velho castelo depois da chuva de estrelas. não sei. sinceramente, valorosos guerreiros, não sei mais nada. o seu nome... não me lembro bem, mas parece que era dores. é, só poderia ser dores.

e assim, conta adara, o corpo que eu consegui a duras penas, e que me deu tantos prazeres, foi fuzilado numa tarde de setembro. e como você pode ver, esse limite infernal só apareceu para bagunçar o coreto. com o fim da guerra e sem corpo em que me agarrar, resolvi mudar de ares. cheguei aqui como ave de arribação, sem eira, nem beira, agarrado num mestre de artes marciais, mas logo encontrei quem eu procurava.

uai! que sonho estranho. é isso que dá brigar com brianda. sinto uma culpa danada e depois fico sonhando essas loucuras. e é tão fora de propósito que não dá para contar para ninguém. e para quem haveria de contar? estamos em pleno voo. eu disse que gosto dos portenhos, quero ver uns tangos, bailar. é nenhum exílio nos impede de curtir tangos.


enaltecido, exaltado, honrado seja o nome do eterno de toda a terra, pois dele emanam as bênçãos e louvores. ele conforta e guia, é redentor por toda a eternidade.

7.

eles vão morrer

violência, tema recorrente dos tempos bicudos da pós-modernidade. tal realidade midiática nos leva a pensar e a viver como se a vida não tivesse a menor importância ou valor. e em nome de doutrinas, relações e religiões muitos são transformados em bombas humanas, assassinos seriais, legais ou não, que espalham a dor, o sofrimento e a morte. nesse clima de ódio e violência, é importante dizer que o primeiro pensar das escrituras estelares e as do mashiah, construído para o ser humano no bojo dos relatos da criação, é a leitura da vida.

a eternidade construiu o humano como semelhante, cheio de parecença, para curtir o fundão criado, fazer sexo, ter filhos, produzir criativamente. e a eternidade contou isso aos humanos e um dia isso foi registrado lá em bereshit, o livro primeiro das escrituras judaicas. e é interessante que quem registrou a história que ouviu dos antepassados disse que a eternidade curtiu a beça tudo aquilo. achou genial o que tinha feito, tanto que deu por terminado o seu trabalho e foi descansar.

as histórias se multiplicam. há histórias que falam da importância da vida nas escrituras judaicas, e há histórias sobre a vida e sua singularidade nas tradições de gentes e povos. na tradição judaica, conta-se que quando os escravos fugiram do egito com os soldados egípcios correndo atrás deles e já estavam atravessando o mar vermelho, anjos resolveram cantar um hino de gratidão, mas a eternidade não permitiu e disse: eu criei o ser humano, cada um deles é criação minha, como poderei cantar se muitos vão se afogar neste mar? eis a universalidade da vida: todos fomos construídos pelo eterno, todos somos parecença, quer escravos hebreus ou soldados egípcios. as leituras judaicas da vida nos levam a isso: a vida é direito universal porque a eternidade ama a vida de pessoa, de todas as pessoas -- foram feitas por ela e têm o jeitão dela.

nesse sentido, a partir das leituras da vida podemos dizer que há não diferença entre as gentes, cada pessoa ocupa um lugar especial no coração da eternidade, para ela é como se todos fôssemos únicos. o respeito pela vida de cada um e de todos e a negação do ódio e da violência dirigem a leitura da vida. criar e educar pessoas traduz-se em ensinar, em primeiro lugar, que quem destrói uma única vida destrói todas e a própria criação. e quem cuida e salva uma única vida salva o mundo. cuidar e salvar uma única pessoa é semear a paz para que ela reine entre os seres humanos. para o ninguém possa dizer: o meu pai é maior do que o teu pai.

o homem do mau da maldade antíoco introduziu a cultura grega na cidade de david e impôs o culto olímpico na terra e no santuário dos estelares. o santuário foi assolado. porcos e outros animais foram ofertados no altar. estabeleceu-se um tempo abominável de desolação. à semelhança de babilônia, foi estabelecido um decreto de morte para o povo. fabricaram estátuas, aboliram o culto a ieuá e o pacto da circuncisão foi abolido. as mulheres que circuncidavam seus filhos eram mortas, segundo a ordem do rei, e penduravam os meninos pelo pescoço em todas as casas onde os achavam, e trucidavam os que os tinham circuncidado.

e os habitantes da cidade de david fugiram por causa deles, e a cidade tornou-se morada dos estrangeiros, tornou-se estranha aos seus naturais, e seus próprios filhos a abandonaram. o seu santuário ficou desolado como um ermo, os seus dias de festa transformaram-se em pranto, e os seus sábados em opróbrio, as suas honras em nada.

havia sete irmãos que foram um dia presos com sua mãe, e que o homem do mau da maldade por meio de golpes de azorrague e de nervos de boi, quis coagir a comerem a imunda carne de porco. um dentre eles tomou a palavra e falou assim em nome de todos. que nos pretendes perguntar e saber de nós? estamos prontos a morrer antes de violar as leis de nossos pais. o rei, fora de si, ordenou que aquecessem até a brasa sertãs e caldeirões. logo que ficaram em brasa ordenou cortar a língua do que falara primeiro e, depois, lhe arrancar a pele da cabeça, e lhe cortar também as extremidades, tudo isso à vista de seus irmãos e de sua mãe.

em seguida, mandou conduzi-lo ao fogo, inerte e mal respirando, para assá-lo na sertã. enquanto o vapor da panela se espalhava em profusão, os outros com sua mãe, exortavam-se mutuamente a morrer com coragem. o eterno nos vê, diziam, e certamente terá compaixão de nós, como o diz claramente moisés no seu cântico de admoestações: ele terá compaixão de seus servos. morto desse modo o primeiro, conduziram o segundo ao suplício. escalpelaram-no e perguntaram depois: comerás carne de porco ou preferes que teu corpo seja torturado membro por membro? ele respondeu: não! -- no idioma de seu país. e padeceu então os mesmos tormentos do primeiro. prestes a dar o último suspiro, disse:

-- homem mau da maldade, tu nos arrebatas a vida presente, mas o rei do universo nos levantará para a vida eterna, se morrermos por fidelidade às suas leis. a eternidade pergunta por que, às vezes, olhamos o mundo com raiva. por que andamos de cara fechada? quando fazemos o bom da bondade, sorrimos. quando frutificamos no mau da maldade, a fração e o distanciamento se colocam à espreita. e esse é o desafio à nossa liberdade, que deve construir alegria, justiça e paz. mas o bom e bonito não estão sempre em nós. é quando dançam a comunhão e a solidariedade e reinam os desejos e paixões do ego humano. dentro de nós a vontade de fazer o bem bom é sempre capenga. nem sempre fazemos o bem bom bolado, mas justamente o mau da maldade que não maquinamos fazer. mas, se fazemos o que não queremos, já não somos o humano pleno de sentido, mas o humano capenga. assim sabemos que o que acontece é isto: às vezes, queremos fazer o bem bom, mas só fazemos o mau da maldade. é como se existisse um estado diferente agindo naquilo que fazemos, um estado que pugna contra os planos que a mente bola. esse estado de alienação nos torna cativos da fração e da separação que age em nossas vidas. e ficamos frustrados, raivosos, tristes! quem pode nos livrar da alienação e da fração? que a eternidade seja louvada, pois ela derrama sobre nós o novo ser que dá sentido pleno à vida e vence a estado que me faz distante e separado. somos o desafio: viver a vida de sentido no novo ser, transformados por completa mudança de mente, a realizar a vontade eterna do que é agradável, bom e perfeito.

após este, torturaram o terceiro. reclamada a língua, ele a apresentou logo, e estendeu as mãos corajosamente. pronunciou em seguida estas nobres palavras: do céu recebi estes membros, mas eu os desprezo por amor às suas leis, e dele espero recebê-los um dia de novo. o próprio homem do mau da maldade e os que o rodeavam ficaram admirados com o heroísmo desse jovem, que reputava por nada os sofrimentos.

após a morte deste, os carrascos aplicaram os mesmos suplícios ao quarto, e este disse, quando estava a ponto de expirar declarou:

-- é uma sorte desejável perecer pela mão humana com a esperança de que ieuá nos levante; mas, para ti, certamente não haverá levantar para a vida.

arrastaram em seguida o quinto e torturaram-no. mas ele, encarando o rei, disse:

-- ainda que mortal, tens poder sobre os homens, e fazes o que queres. não penses, todavia, que nosso povo é abandonado por ieuá! espera, verás quão grande é a sua potência e como ele te castigará a ti e à tua raça.

depois deste, fizeram achegar-se o sexto, que disse antes de morrer:

-- não te iludas; nós mesmos merecemos estes sofrimentos, porque pecamos contra nosso ieuá, e em consequência recebemos estes flagelos surpreendentes. mas não creias tu que ficarás impune, após haveres ousado combater contra ieuá.

particularmente admirável e digna de elogios foi a mãe que viu perecer seus sete filhos no espaço de um só dia e o suportou com heroísmo, porque sua esperança repousava em ieuá. ela exortava cada um no seu idioma materno e, cheia de nobres sentimentos, com uma coragem exemplar, realçava seu temperamento de mulher.

-- ignoro, dizia-lhes ela, como crescestes em meu seio, porque não fui eu quem vos deu nem a existência, nem a vida, e nem fui eu mesma quem ajuntou vossos membros. mas o criador do mundo, que formou o homem na sua origem e deu existência a todas as coisas, vos restituirá, em sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco caso de vós mesmos por amor às suas leis.

receando, todavia, o desprezo e temendo o insulto, antíoco solicitou em termos insistentes o mais jovem, que ainda restava, prometendo-lhe com juramento torná-lo rico e feliz, se abandonasse as tradições de seus antepassados, tratá-lo como amigo, e confiar-lhe cargos. como o jovem não deu importância alguma, o homem do mau da maldade mandou que a mãe se aproximasse e o exortasse com seus conselhos, para que o adolescente salvasse sua vida. como ele insistiu, ela consentiu em persuadir o filho. inclinou-se sobre ele e, zombando do cruel tirano, disse-lhe na língua materna:

-- meu filho, compadece-te de tua mãe, que te trouxe nove meses no seio, que te amamentou durante três anos, que te nutriu, te conduziu e te educou até esta idade. eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra, reflete bem: tudo o que vês, ieuá criou do nada, assim como todos os homens. não temas, pois, este algoz, mas sê digno de teus irmãos e aceita a morte, para que no dia da misericórdia eu te encontre no meio deles.

logo que ela acabou de falar, o jovem disse:

-- que estais a esperar? não atenderei às ordens do rei; eu obedeço àquele que deu a lei a nossos pais por intermédio de moisés. mas tu, que és o inventor dessa perseguição contra os estelares, não escaparás à mão de ieuá. quanto a nós é por causa de nossos pecados que sofremos e se, para nos punir e corrigir, o eterno vivo e senhor nosso se irou por pouco tempo contra nós, ele há de se reconciliar de novo com seus servos. ímpio, não te exaltes sem razão, embalando-te em vãs esperanças, enquanto levantas a mão sobre os servos do céu; tu ainda não escapaste ao julgamento do eterno todo-poderoso que tudo vê! enquanto meus irmãos participam agora da vida eterna, em virtude do sinal da aliança, após terem padecido um instante, tu sofrerás o justo castigo de teu orgulho, pelo julgamento do eterno. seguindo o exemplo de meus irmãos, entrego meu corpo e minha vida em defesa das leis de nossos pais e suplico ao eterno que ele não se demore em apiedar-se de seu povo. tomara que tu, em meio aos sofrimentos e provações, reconheças nele o eterno único. enfim, que se detenha em mim e em meus irmãos a cólera do todo-poderoso que se desencadeou sobre toda a nossa raça.

abrasado de ira e enraivecido pela zombaria, o homem do mau da maldade maltratou este com maior crueldade do que os outros. morreu, pois, o jovem purificado de toda mancha e completamente entregue ao senhor. seguindo as pegadas de todos os seus filhos, a mãe pereceu por último.

voltando ao primeiro livro das escrituras judaicas, vemos que ele se descreve como o livro da história humana. e é interessante o que esse livro fala da criação e da história de um primeiro casal: ele era o da-terra e ela a-vida. este é sentido dos nomes hadam e hawah. a construção dessas duas pessoas, da-terra e a-vida, ao se dar no final da construção do universo, mostra o valor que têm para o eterno e sua eternidade: são menores, aparentemente pequenos, mas valem mais, pesam tanto quanto todo o universo. a história humana é a história de uma pessoa, de duas pessoas, de todas as pessoas.

e será que eu posso fazer da minha mulher, escrava. ou, em outras palavras, posso explorá-la? não, não posso. será que posso fazer dos meus pais, escravos. ou, em outras palavras, posso explorá-los? não, não posso. será que posso fazer de meus filhos escravos. ou, em outras palavras, posso explorá-los? não, não posso. e por que? porque devo amar o humano como semelhante, como igual. esteja ele ao lado ou distante, é sempre próximo. este princípio é fundamental na leitura da vida. as relações humanas implicam em reciprocidade, deve levar ao companheirismo, ao fundamento de origem: da-terra e a-vida estão por trás de toda a humanidade.

as escrituras estelares nos falam da obrigação de amar o estrangeiro, ou seja, aquele que nos parece diferente. esse é o princípio da paz entre os povos. por isso, as leituras estelares e as do mashiah da vida propõem que a paz prevaleça, seja formulada como lei a obrigação de cuidar e proteger os diferentes e as minorias. este é o sentido maior da justiça.

assim, se perguntarem: um homem pode explorar pai, mãe, mulher, filhos? sabemos que a resposta é não. e de novo a pergunta: um homem pode explorar aquele que é diferente dele por credo, raça, sexo ou sob qualquer outro aspecto? muitos acharão que sim. mas quando tenho em minha frente uma pessoa, tenho um igual e, por mais diferente que seja, é meu irmão. ser justo é reconhecer a liberdade dele, seus direitos e cuidar para que tenha uma vida digna, como humano que é.

o respeito e o cuidado por tudo aquilo que é humano, pelo ser e por sua terra e vida, é leitura da existência, que nasce da compreensão de que somos semelhantes, cheios de parecença com o eterno. a imagem está em um, em dois, em todas as gentes.