mardi 24 janvier 2012

O menino e o rifle


 

Gaviões e Passarinhos, filme de Pier Paolo Pasolini

Fomos chamados à liberdade. O que significa isso? Bem, talvez falar de corvos, gaviões e passarinhos ajude... 

Em 1965, Pier Paolo Pasolini, um dos gênios do cinema italiano, filmou Gaviões e passarinhos, história que vi como metáfora sobre liberdade e consciência política. Numa estrada vazia, um senhor (Totó) e seu filho (Ninetto Davoli) encontram um corvo que fala. O corvo os transforma em dois monges franciscanos e eles são obrigados a pregar para gaviões e passarinhos. O próprio Pasolini diria: 

Nunca criei um filme tão desarmado, frágil e delicado como esse. Ele não se parece com meus filmes anteriores e não se parece com nenhum outro filme... Seu surrealismo tem pouco a ver com o surrealismo histórico, mas fundamentalmente com o surrealismo das fábulas”. 

O filme é uma parábola sobre a crise do socialismo, representada pelo corvo, na Itália dos anos 1950. “Totó e Ninetto representam os italianos inocentes, que não se envolvem na história, que conquistam a primeira noção de consciência ao encontrar o marxismo no semblante do corvo”, afirmou Pasolini. 

Ter vivido parte da infância em fazenda, no sul de Minas, foi um privilégio que marcou minha vida, não somente fornecendo memórias para a velhice, mas plasmando conteúdo que amo e defendo: a liberdade. 

Talvez seja essa compreensão telúrica da liberdade, que fez de mim, já na alta maturidade, batista, e me permitiu construir uma ponte entre o pensamento liberal inglês e o socialismo religioso de Paul Tillich. 

Voltemos à minha infância. Meu tio Ary tinha uma Winchester 44 na casa da fazenda. E eu olhava para aquela arma com respeito e paixão. Eu e milhares de pessoas mundo afora. 

Os rifles Winchester 44, conhecidos como papo amarelo, foram populares no interior do Brasil e nos Estados Unidos: símbolo de uma época, como a pistola Colt e os cavalos quarto de milha. 

Conta-se que Lampião, quando começou sua vida guerrilheira, usava uma Winchester 44, que os sertanejos chamavam de cruzeta. Segundo o historiador Frederico Pernambucano de Mello: 

"Lampião tinha uma paixão pelo rifle cruzeta, não somente por ser arma de estréia, mas também por ter permitido criar um processo de aceleração de tiros. Ele conseguiu transformar a arma em um modelo automático. A transformação permitia que o rifle, quando usado, produzisse um clarão que, segundo os sertanejos, alumiava como um lampião". 

A Winchester era mágica e eu amava ver meu tio usando-a contra alvos imóveis: latas velhas e garrafas. Mas, certa tarde, um gavião começou a piar e a fazer círculos no céu. O gavião, accipiter nisus, é uma ave de rapina pequena, de cauda comprida e vôo certeiro. Pia forte, assustando suas presas, geralmente pequenos pássaros e pintos soltos na pastagem. 

E era isso mesmo que aquele gavião estava planejando: atacar os pintinhos que, juntos com a galinha, corriam de um lado para o outro, em pânico. 

Meu tio pegou a Winchester, que reinava numa das paredes da sala, e me chamou. Fomos para a varanda e ele começou a seguir os círculos do gavião. Esperou. Quando o gavião mergulhou em direção aos pintos ele atirou. 

E eu vi o gavião explodir em penas. 

Onde nos leva a liberdade quando não temos consciência do que ela significa? A vida em liberdade significa a aceitação da exigência incondicional de realizar a verdade e fazer o bem. 

Ao reconhecer a existência de uma situação-limite, de ameaça à vida e à existência, devemos entender que: 

(1) não podemos virar as costas ao mundo; (2) aquilo que é eterno deve ser expresso em relação à situação presente; (3) a realidade da graça deve ser expressa com ousadia e risco; (4) e o poder transformador do Evangelho deve expressar uma fé não superficial, que vai à raiz. 

Por isso, como na parábola de Pasolini, somos chamados a pregar para gaviões e passarinhos. Somos livres em Cristo: chamados a viver o desafio incondicional de realizar a verdade e fazer o bem.