vendredi 29 juin 2018

E se a vida for uma só?

E a vida do Miró vai se esvaziando
São Paulo, 22 de outubro de 2013

E se vida for uma só. E se a morte do Miró for também a minha morte. E se esses dias, quando a vida dele vai se esvaindo, for também um esvair-se da minha vida. E se esses dezessete anos de vida em comum, dividindo a mesma casa, conversando em idiomas diferentes, mas muitas vezes multiplicando emoções e sentimentos, são parte de um todo que eu vejo como caleidoscópio? Claro, eu sei que você vai dizer que não é nada disso. Que ele é apenas um gato e eu sou apenas um humano, não tão racional neste momento. E outros vão me achar bobo, cheio de sentimentos infantis, piegas, porque estou com emoções em desequilíbrio e triste porque o gato do pastor que, na verdade, é o gato da filha do pastor, está a morrer de velhice aos dezenove anos de vida felina. 

E a vida vai deixando ele devagar. Vai morrendo aos minutos, às horas, mas de forma vagarosa. Não está sofrendo, só deixando de viver. O gerúndio aqui é o jeito mais perfeito de dizer, vai deixando de viver. É como se a vida estivesse nele em camadas, e fossem se desfazendo no ar. Ou quem sabe, se de fato tivesse sete vidas que fossem se desprendendo não uma a uma, mas cada uma delas em primeiro lugar formasse uma bolha de vida ao redor dele e essa bolha fosse se esvaziando aos poucos. E é possível que cada uma dessas bolhas dure dias. Dias sem comer, sem beber, sem miar, mas que permitem a ele olhar para mim com olhos fundos, mas fundos mesmo, olhasse de dois buracos, e me dissesse, chefe você falou com o Eterno sobre mim? A vida que ele me deu, as sete, estão a se esvaziar, cada uma delas, mas que quero lá na frente, estar contigo, como companheiro e seu matemático. 

Eu sei Miró, nós falamos sobre isso nesses dezessete anos de convívio, quero você lá comigo. Falei com o Eterno que quero você lá. E como você sabe, e como Ele sabe, quero você como meu matemático. Meu gato matemático, que sabe falar a linguagem do meu coração e sabe fazer todos os cálculos que eu preciso, como por exemplo a equação para se conhecer a hipotenusa, ou outras mais complexas como a equação de Hagen-Poiseuille. E querido Miró, inteligente, falante e matemático, você vai me dizer que esta é a equação do físico francês Jean Louis Marie Poiseuille, que relaciona o caudal Q de um tubo cilíndrico transportando um líquido viscoso com o raio R, comprimento l, pressão P e coeficiente de viscosidade.

que a equação de Hagen-Poiseuille é uma lei da física que descreve um fluxo incompressível de baixa viscosidade através de um tubo de seção transversal circular constante. E eu vou rir porque sei que é isso mesmo, mas eu quero ter você ao meu lado em minhas viagens por essa eternidade do Eterno.

Mas por enquanto estou vendo o seu momento que me parece um momento difícil. As bolhas que se esvaziam devagar, e você quieto conversando com o Eterno. É um momento seu, talvez um momento de sabedoria, de conversa de amigos. E eu só posso olhar e pensar que quero entrar na conversa também. Ontem, como bom protestante, cheio do meu jeito brasil, também conversei com o Eterno. E disse para Ele, que se a minha alienação existencial era a responsável pelo esvair-se de sua vida, que Ele me perdoasse. E Ele disse para eu deixar de ser convencido, pois o esvair-se da vida é o momento mágico do renascimento. E eu calei o meu pensamento, entendendo perfeitamente que você vai continuar comigo, ranzinza, reclamante, mas cheio de matemáticas, ao meu lado, neste cruzar eterno da eternidade sem fim.

Estou saindo agora para minhas lides, e se a última bolha se esvaziar... nos vemos depois. Te amo, Miró. Obrigado pela parceria nesses dezessete anos, que projetam a eternidade no meu coração e em nossas vidas.

Do amigo, Jorge Pinheiro.






Ancestrais















samedi 23 juin 2018

Em Santiago fixo irado


É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final.
                                        
Escrevi: “em Santiago fixo irado”. E disse para a Naira, minha mulher, algum maledetto vai reescrever “em Santiago fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Santiago fixo irado” porque na minha época houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fixo em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre sua amada, era mortal. 

Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor?



Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Santiago fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida. 

Naira comprou cerejas numa banca de frutas. É tempo de cerejas e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.


Veja como é estranho. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Jean Baptist Clément e Antoine Renard. Foi escrita e musicada em 1866, antes de explodir a Comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses, de 26 de março a 28 de maio de 1871. Mudou a maneira de se pensar o socialismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. 

O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher
serviu o sangue da virgem num cálice
cada gole tem o sabor da vida derramada
mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras
a rua está perfumada
a alameda é atravessada.

Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela Mistral e Pablo Neruda de lado. São monstros sagrados da literatura universal. Neruda tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira companheira, Matilde Urrutia. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Paloma no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante comunista. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, prêmio Nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta comunista. 





vendredi 22 juin 2018

O sol entres dentes .2


As palavras mudam de sentido, e podem dizer coisas diferentes, quando as usamos sobre uma perspectiva diferente. Palavras. Você já pensou na importância delas? É, sem dúvida, um dos limites da vida. Os descendentes devem acreditar que o universo foi feito pela palavra eterna. Acreditar que a palavra tem poder, por isso deve ter uma palavra só, cheia de sentido, ou seja, quando você disser sim, que seja sim mesmo, e quando disser não, que seja não. Mas a sabedoria nos diz que a vida se faz também por outras palavras. Dessa maneira, o ato de criação e o fazer humanos não são iguais porque as palavras são diferentes. 

Ah! Embora as palavras sejam diferentes, os temas da vida são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino. A diferença, porém, é que se faz, sempre, por outras palavras. E tudo muda...

Sou grato à eternidade, mas sem pieguices. Diga você também muito obrigado porque as contingências da vida não fumegaram o pavio. Lá na frente, eu serei o garoto que andava pela ruas sem saber que a vida vai além do meio fio, que há fronteiras. E lá ao longe, mas para mim perto, estará o mar. O veleiro. A liberdade, aprendida com Moran, será negociar com os ventos e a maré. Diante das mareações, a marinharia me fará, junto do tio, um menino livre. 

Por isso, a Zlabya, apresento a leitura humana da convicção e do posicionamento, onde se aprende a degustar prazeres. Não se faz às correrias, com sofreguidão. É um ato delicado, um caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.

Nesse sentido, eu e você, todos somos poemas da eternidade. Somos projetos de uma artesã, daí que a poesia e a razão andam juntas. Por isso, a paixão aproxima porque é sempre poesia e razão nos diferentes momentos. Quero que você, descendência, curta com prazer em cada ser humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.

É, agradeço à eternidade porque fazer leitura virou destino. O menino lá da frente atravessou o tempo, os jeans, as camisetas, os cabelos arrepiados e caiu aqui, do outro lado da vida. Tempo de poesia e razão, o garoto de depois olha a plenitude, mas o homem de antes entende que o dó, o ré, e o mi solitários não são importantes, mas sim as notas do meu amigo Murá, compositor dos bons, e os parabéns e sorrisos que a eternidade montou para você.

E volto às palavras, afirmativas, compostas, decoradas, sussurradas, que se bebem, que reboam, secas, vulgares... A identidade não pode ser definida facilmente, mas isso não significa que essa identidade não exista. Aliás, a maioria das identidades não podem ser definidas facilmente. Daí que tais identidades são também comunidades imaginadas, unidas por leituras historicamente sem exatidão precisa. Os uns não são diferentes dos outros, qualquer etnia e sua identidade não é facilmente definível, pois tais conceitos dependem dos descendentes.

Assim, Zlabya, lembre-se: a aparente simplicidade engana. Eis uma lição de mestre, traduzir o humano com simplicidade, sabendo que o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. E esse é o recado. Fazer leitura é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poesia. Ou seja, fazer leitura é desconstruir e na imaginação construir de novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. E é assim que, sem estardalhaço, a leitura ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.

Digo à eternidade: obrigado pelo agradável, bom e doce que expressará em letras a liberdade do marujo. E se o ontem é um dia importante, é bom lembrar que o remédio para a enfermidade da segregação de gênero e raça é a construção social da cidadania e da justiça. A via para a liberdade estará numa trilha aberta aos diferentes, comprometida com os direitos humanos, mesmo quando sua identidade pessoal relacione diferenças e contradições.

O sondar daquele menino lá na frente ajuda. O olhar deslumbrado porque a vida será a praça, os jardins e os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que comporão o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. E o mar... Uau! A humanidade coroa a glória. Aceite o prescrito com convicção.





Culto da Manhã - 16/07/2017 - Pr. Jorge Pinheiro

Homenagem ao Prof. Dr. Jorge Pinheiro

Pr Jorge envio para França - Projeto Croix Huguenote

mercredi 20 juin 2018

O sol entre os dentes .1

A neve, nevada, nevasca



Bendita seja a eternidade, que ama as gentes e a vida plena de sentido, que nos apresenta os limites para que não sejam quebrados com ignorância, mas possibilita a liberdade de ir além. Bendita seja a eternidade, que ama as gentes.

Eu me chamo Yoffe e minha mulher, sua avó, Brianda. Estamos fazendo uma pequena viagem. Vão conosco suas duas tias, Adara, Ahava e sua mãe, Sharon. A pick-up é uma Land Rover Defender 2065, placa 420AMW60, uma réplica daquelas do início do século vigésimo primeiro, só que movida a energia solar. Quem me deu esta máquina foi meu amigo de jornadas Antoine LeRoy, como presente de aniversário pelos meus quatrocentos e oitenta anos, completados no dia três de janeiro. Como você sabe somos uma nova espécie, longeva. Tudo indica que aparecemos fazem uns dois mil e quinhentos anos. E não foi num lugar específico, mas em regiões diferentes deste vasto mundo. Continuamos aparecendo e estamos todos vivos. Sabemos, porém, que aos seiscentos anos viramos anjos. Depois eu conto com mais detalhes. Por ora, vou dizer apenas que os anjos são os guardiães e guardiãs da nossa longevidade. Por isso, não há ancestrais entre nós, apenas descendência.

Partimos de Montpellier, no litoral do Mediterrâneo francês em direção ao Parque Nacional de Cèvennes, às oito da manhã de sábado, chegamos em Anduze, cidade que dá entrada à região de Cèvennes, por volta das dez da manhã. Depois de dois cafezinhos e três chás, para pais e filhas, para esquentar o frio, começamos a atravessar o parque, construindo ziguezagues pelo vale, a margear o rio Gard. Cenário de campo da região de Languedoc, com seus castelos, não muitos, suas fazendas e vinhas. 

Arquitetura medieval em pedra, cidades que se cruza em minutos. Estradas secundárias, mas em ótimas condições. Uma delas com um aviso, atenção pista com lombada, para dizer que a estrada não era muito boa. Fiquei esperando buracos e desníveis, mas nada, apenas não era lisa como as anteriores. 

Quando o vale ficou para trás e iniciamos a subida da montanha numa estrada sinuosa com precipícios à esquerda, Adara, Ahava e Sharon, moças do frio, tiveram sua primeira experiência de neve neste inverno. Nevava levemente. Mas, conforme subíamos, maior umidade e neve mais forte. Não houve como resistir, descemos do carro e fizemos nossa primeira guerra na neve. Foi a glória. Brianda e as três pareciam crianças. A maior farra. Preocupado com a possibilidade das quatro se resfriarem, coisa boba, impossível para quem viveu sob temperaturas de menos trinta centígrados, fiz as quatro voltarem para a pick-up. A alegria é a prova dos nove... 

Seguimos viagem debaixo de neve e da beleza das estradas emolduradas pelos pinheiros verdes, cobertos... Como nos cartões postais de Natal. Chegamos a Florac, já lá em cima, no meio de uma nevada que caía quase forte. Segundo a tradição, os gauleses viviam na região, mas o nome da cidade veio dos romanos, algo assim como flor da água ou coisa pelo estilo. E eu me lembro de quando a reforma dos protestantes chegou a Cèvennes trazida pelos mascates de Genebra. Eles trouxeram em suas malas, o livro antigo da tradição judaica-cristã traduzida para o francês. E as gentes de Florac amaram as novas ideias de reforma. A primeira comunidade protestante surgiu em 1560 e o primeiro anunciador foi Antoine Coppier. Mas depois disso correu muito sangue debaixo da ponte. Mas essa história eu conto depois.

Entramos num restaurante muito simpático, La source du pécher, cheio de hippies, o que parecia estranho e fora de época, afinal estamos em 2065. Tomamos chocolate quente e voltamos para o carro. Estacionei numa pequena praça e almoçamos dentro da pick-up. Brianda tinha preparado coxa de peru assado com batatas, suco de maça e pão, que aqui é sempre um capítulo à parte. Amamos as baguettes. 

Depois do almoço, fomos visitar o castelo de Florac, reconstruído em 1652 em cima dos escombros do velho castelo, destruído várias vezes. Essas destruições e reconstruções estão presentes em minhas memórias, assim como o sangue derramado. De todas maneiras, não podemos esquecer que toda a região de Cèvennes foi um polo das lutas pela liberdade de expressão e de pensamento, com a presença dos primeiros huguenotes.

Nevava forte e a história cedeu lugar a uma nova e aguerrida batalha na neve, agora sem armistício ou mediação. Brianda, a mãe, foi atacada sem dó nem piedade. E em nenhum momento reclamou das boladas recebidas. Reagiu à altura, sem complacência. Por fim, voltamos à pick-up e seguimos viagem para Barre de Cèvennes, outra região histórica, onde o protestantismo nascente produziu guerrilheiros e profetas. 

Mas aí tivemos o prazer de entrar na cidade debaixo de uma nevasca. Em poucos minutos a neve cobriu o carro. Descemos e fomos visitar uma velha igreja protestante. Eu estava emocionado pelo momento sublime do encontro com a heróica convicção protestante que praticamente vi nascer, mas também, com Brianda, Adara, Ahava e Sharon, inebriadas pela beleza da nevasca, soprada por ventos fortes.

Assim como a neve... A cidade inteira estava branca. Tudo branco. Guerra de neve era pouco, o momento exigia algo mais grandioso. Lembrei-me que a eternidade dirá sempre que assim como desce a neve e não volta, mas rega a terra, a faz brotar, dar semente ao semeador e pão ao que come, assim é a palavra eterna, que não volta, mas faz o que a eternidade quer e prospera no seu objetivo. Agradecemos à eternidade pela vida.

Um grupo de jovens passou por nós, no meio da rua, cantando, gritando, alucinados pelo momento. Foi difícil deixar Barre de Cèvennes. Mas tivemos que fazê-lo. Eu não queria dirigir nas montanhas, à noite, debaixo de neve.

No caminho, Brianda viu um mirante, grande, que se debruçava sobre o vale. Paramos mais uma vez.

Desta vez, Adara, Ahava e Sharon fizeram anjos. Para quem não sabe, consiste em se jogar de costas na neve de braços abertos e deitado fazer movimentos com os braços para marcar a neve. Depois, de pé, olhar e ver no branco, em branco, um anjo com suas asas abertas. E fizeram outros anjos... e por fim num gesto solidário, juntos, fizemos um boneco de neve. Na verdade, boneca, porque vestiu o gorro e o cachecol rosa da Sharon. Não era uma boneca enorme, mas muito simpática.

E lá seguimos nós, parando mais uma vez num pequeno hotel e depois fazendo o caminho de volta. Retornamos ao vale, passamos de novo por Anduze, e seguimos para Nîmes, cidade construída pelos romanos, que tem no centro uma arena, um coliseu. Levei as meninas a Nîmes só para uma rápida olhada. Voltamos, já à noite para Montpellier.

Chegamos. E li a placa da pick-up como, ao bater os olhos nela, tenha um maravilhosos final de semana. Agradeci à eternidade pelo gostoso sábado branco de meus quatrocentos e oitenta anos, tocado pelos anjos nevados de Adara, Ahava e Sharon. E agradeci à eternidade, pois diz que aqueles que esperam nela renovam as forças, voam como águias, caminham, correm e não se cansam.

Atente para isso, a descendência é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. É na construção da vida, escolhida ou imposta, mas aceita, e na sequência dela, que a descendência se faz comunidade humana. As realidades da terra e do céu são vaidade e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. Por isso, deve fazer a crítica do clericalismo e chamar as pessoas à liberdade do espírito, para que pense a vida, que é construída para além das aparências das coisas da terra e do céu.










mardi 19 juin 2018

A senha da justiça na construção do Reino

O SOL ENTRE OS DENTES
Ou, a senha da justiça na construção do Reino
Por Jorge Pinheiro


Digo à Zlabya, aquela-que-anuncia, que o vento da justiça sopre sobre você, que a paz seja como riachos de águas, e que o fogo do amor traga alegria!

Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite, abre os portais, modifica os momentos, troca os períodos e organiza as estrelas. Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite.


Querida Zlabya, aquela-que-anuncia, estou escrevendo para você. Escrevo de um futuro não muito distante, quase presente, para contar as coisas que vão acontecer e, ao mesmo tempo, poder conversar com você pessoalmente. Você está no início da sua liberdade como pessoa grande, que pode escolher caminhos e destinos. Escrevo sobre as memórias futuras, quando os descendentes darão voltas por este fundão besta, incluindo aí o que escutei e vivi. Mas você não pode esquecer que a memória será sempre afetiva e seletiva. Na verdade, ela apresentará os fatos que a gente viveu, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos os limites da existência. Mas não para aí. A memória fará sempre uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis.

Mas se estou no futuro, posso falar do presente e do passado. É por isso que os velhos somos bons contadores de história e olhados pelos descendentes, e aí incluo você, como cavaleiros andantes de um futuro mítico. Minhas experiências de amor e vida gerarão flores belíssimas, memórias que se multiplicarão com você.

As memórias são nossa história e minhas leituras, porque discorro sobre acontecimentos e nos levam a pensar o que não está aqui e agora, sobre o que é eterno. E quando isso acontece história e leituras se complementam e enriquecem as nossas vidas. O certo é que a memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo de amplidão que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato.

Mas, como já disse parcialmente, acima, nossas memórias não se entreluzem apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida. Transcende. Por isso, essas leituras são traduções de experiências com a eternidade, infinita e sem limites, criadora de todas as coisas, origem e fim do amor e da vida.

Nessas memórias futuras apresento leituras para a sua vida presente, os dias fora e a caminhada em direção à última fronteira, o momento infinito de sermos os anjos que somos. Quanta felicidade. Esses acontecimentos farão parte da história de gentes e povos. Muitos viverão textos parecidos e farão parte dessas memórias. Alguns estarão ao seu lado e exercerão uma profunda influência em sua vida. Outros apenas passarão. São personagens dos dias fora, e aparecerão com nomes e, às vezes, sobrenomes.

Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que você ainda não atravessou a última fronteira. Nesse sentido, nessas memórias os nomes mudarão conforme os lugares e tempos. Jamais o nome traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.

Quanto aos pesadelos, estão presentes. É o inconsciente a revelar sua visão do mundo. É difícil dizer qual é maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam. E ficará mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual virá primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro que se faz presente, como leitura de um presente ainda não realizado.

Ou como canta um poeta: metade esquecida por mim, quero varar os limites impostos. E, assim, as histórias chegam através da memória, que afetivamente vira leitura, a fim permitir a travessia da última fronteira com alegria. 



A bisavó Maria José Pinheiro, 
convidada presente ao Prêmio Lei Sarney à Cultura Brasileira, 
no Palácio dos Bandeirante, em São Paulo.


dimanche 17 juin 2018

A fé do caminhante


Existe um fio condutor entre a história do povo de Israel e a tradição nascida com o rabino de Nazaré, que é a idéia de libertação. Na origem da história do povo de Israel, Adonai se revela a Abraão, faz com ele uma aliança, prometendo abençoá-lo, multiplicar a sua descendência e dar-lhe uma terra.

Em Abraão vão entroncar-se as grandes religiões monoteístas, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo. Os judeus alimentaram ao longo de séculos a esperança na vinda de um messias. E mantêm ainda hoje como referência da sua história, a libertação da escravidão do Egito. Na noite da passagem do anjo exterminador, que matou todos os primogênitos egípcios, incluindo o filho do Faraó, e o início de uma caminhada de quarenta anos em direção à terra de Canaã, realizaram uma ceia especial, a Páscoa. Nesse jantar foi servido cordeiro assado, ervas amargas e vinho, simbolizando os sofrimentos passados e a alegria futura, a esperança da liberdade. Atualmente, a Páscoa judaica, chamada Pessach, é uma festa que se estende do 15 ao 21 de Nissan (março-abril). Dura sete dias em Israel e oito na diáspora para evitar qualquer erro de calendário. É a festa da Páscoa e também a festa da primavera.

Já os muçulmanos não celebram a Páscoa, mas virados para Meca, seguindo a tradição do Antigo Testamento oferecem a Alá, animais em sacrifício por seus pecados e imploram as bênçãos de Alá. É a grande festa, a festa do sacrifício, que se celebra setenta dias após a ruptura do jejum do mês de Ramadã. Ela tem lugar no décimo dia do décimo-segundo mês do ano. Ela se desenvolve em união com os peregrinos de Meca. É a maior festa religiosa do Islamismo.

Yeshua vem na continuidade da história de Israel, dando origem a uma outra aliança, feita com todos os povos da terra. Nessa história, a celebração da Páscoa judaica, na quinta-feira, foi o clímax de vida terrena de Yeshua. No fim desse jantar com os discípulos, conta o Evangelho que Yeshua tomou do pão e do vinho, abençoou-os, fazendo deles, memorial de sua oferta vicária pelos homens, antecipando a entrega que se daria dali a horas no alto do calvário. A ceia da Páscoa dá origem a uma nova aliança, que é marcada pelo tríduo pascal da morte, sepultamento e ressurreição de Yeshua.

Dentro da tradição católica, a Páscoa é precedida de quarenta dias de preparação conhecidos por Quaresma e que começam na Quarta-feira de cinzas. A semana anterior à festa é chamada de Semana Santa. A Páscoa é a festa maior do cristianismo e centro de toda a sua fé. Na Semana Santa se celebram o Domingo de Ramos, a Quinta-feira Santa ou Festa da Eucaristia ou Lava-pés , a Sexta-feira Santa, ou dia da morte de Yeshua, quando se faz a Via- sacra, e na véspera da Páscoa, é celebrado o Sábado de Aleluia, também conhecido como Vigília Pascal. A data é móvel seguindo o calendário lunar e celebrada no primeiro Domingo depois da primeira lua cheia após o início do outono, no hemisfério Sul.

O rabino Shaul, escrevendo aos cristãos da Galácia, lembra que Yeshua libertou homens e mulheres para que vivam com dignidade, sem submeterem- se outra vez ao jugo da escravidão. Esse é o sentido da Páscoa, memorial de libertação, embora incompleto, pois se realiza a cada dia, enquanto construção humana consciente, quando lutamos contra o que escraviza e aliena.

Jorge Pinheiro, Kadish, vida, morte e reino, São Paulo, Fonte editorial, 2018, pp. 63-65.

Leia, compre e divulgue.









mardi 12 juin 2018

Momentos de deserto


Não sei se você viu o filme “Os dois filhos de Francisco”. É a história de uma dupla sertaneja e mostra como o sucesso implica em superação de dificuldades, persistência e fidelidade a um ideal. De fato, não é uma questão de sorte, mas de fidelidade a um projeto.

Conforme nos conta Lucas, por três vezes, na solidão do deserto, o Yeshua foi tentado. Na primeira vez, o adversário propôs os prazeres do corpo. Na segunda, o caminho do poder e das riquezas. E na terceira vez, a autossuficiência.

Firmado nas Escrituras, Yeshua resistiu às tentações por amor ao pai e ao espírito, e a cada um de nós. Yeshua foi fiel porque não queria se afastar do pai e do espírito e, também, porque não queria se afastar de você.

Em momentos de deserto, também somos tentados a abandonar a comunhão com nosso Adonai e com Mashiah. Somos tentados a escolher os caminhos mais fáceis, os prazeres do corpo, a glória desse mundo e o egoísmo.

As tentações sempre surgirão em nossas vidas. Mas o caminho secreto da vitória sobre elas é a fidelidade. Fidelidade de comunhão com Adonai e com o corpo do Mashiah. Possivelmente, ninguém tomará conhecimento de suas batalhas, porque se darão nos momentos de deserto de seu coração, mas, lembre-se: a recompensa pela fidelidade é a comunhão eterna com o Mashiah Yeshua. 

 “A terra era um vazio, sem nenhum ser vivente, e estava coberta por um mar profundo. A escuridão cobria o mar, e a ruach de haShem se movia por cima da água”. Gênesis 1.2.

A ruach hakadosh é o acontecer da presença atuante de haShem, que penetra até o mais íntimo da existência humana. Leia o Salmo 139.7-23. Ele atua como força de vida no ser humano e transforma aqueles que se encontram sob o poder do Mashiah.

Cria espaço, põe em movimento, leva da estreiteza para a amplidão. Cria o horizonte e nas nossas vidas amplia o horizonte. Na experiência com o Espírito, Adonai não é experimentado somente como pessoa da trindade, mas também como aquele espaço e tempo de liberdade onde o ser humano pode se desenvolver.

Aí eu me ajoelhei aos pés do anjo para adorá-lo, mas ele me disse: Não faça isso! Pois eu sou servo de haShem, assim como são você e os seus irmãos que continuam fiéis à verdade revelada pelo Mashiah. Adore a Adonai! Pois a verdade revelada pelo Mashiah é a mensagem que o Espírito entrega aos profetas.

Esta é a experiência do espírito. Um dos nomes de haShem, segundo a religião judaica, é Macom: amplidão. Quando o Espírito é experimentado como essa amplidão aberta à vida, quando os seres humanos vivem no Espírito, Adonai é experimentado como um novo tempo de vida.

A ressurreição é bênção da integridade de haShem. Quando pensamos na ressurreição pensamos em duas coisas: lá atrás na história, Adonai ressuscitou Yeshua. E lá na frente, um dia, Adonai vai nos ressuscitar. Assim, a ressurreição tem passado e futuro. São duas colunas: passado e futuro. Mas e hoje? Será que a ressurreição tem alguma coisa a ver com o meu presente?

E a nossa esperança era que fosse ele quem iria libertar o povo de Israel. Porém já faz três dias que tudo isso aconteceu. Essa foi a palavra daqueles dois discípulos na estrada de Emaus. 

A morte personifica os limites da existência. A morte personifica medo existencial, fim da esperança, perda do sentido da vida. E naquele entardecer, naquela estrada, os discípulos entristecidos afirmaram que, com a morte de Yeshua, havia morrido algo na vida deles. Assim como a morte do esposo mata algo na esposa, como a morte do amigo mata algo naquele que fica, a morte de Yeshua matara naqueles dois discípulos a vida que dava sentido ao caminhar de cada um deles. 

Foi isso que aconteceu com aqueles discípulos de Emaus: vagavam à noite pela estrada da vida, cabisbaixos, derrotados. A vida não tinha mais sentido para eles. E é assim que acontece conosco muitas vezes: andamos desesperançados, derrotados pela realidade que esmaga a vida e destrói o futuro. 

Mas eles insistiram com ele para que ficasse, dizendo: Fique conosco porque já é tarde, e a noite vem chegando. Então Yeshua entrou para ficar com os dois. Sentou-se à mesa com eles, pegou o pão e deu graças a Adonai. Depois partiu o pão e deu a eles. Aí os olhos deles foram abertos, e eles reconheceram Yeshua. 

O novo nasce quando nos reunimos com o irmão ao redor da mesa, ouvimos a palavra e repartimos o pão. Nós vencemos as crises quando redescobrimos o sentido da ressurreição. E ela é mais que uma lembrança do passado e um futuro de esperança. É um fato presente, uma bênção da integridade de haShem para nossa vida presente. A ação de haShem que no passado trouxe Yeshua à vida é a mesma que a cada dia te dá força. Mas lembre-se: a descoberta da ressurreição não é um ato solitário. É um ato solidário, que implica em ouvir a palavra e repartir o pão. A ressurreição de Yeshua é a expressão permanente do compromisso irrevogável de haShem conosco.

Texto do livro de Jorge Pinheiro, Kadish, vida, morte e reino, São Paulo, Fonte Editorial, 2018, pp. 59-62.

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lundi 11 juin 2018

A existência e a justiça

Detalhe da Apresentação do meu livro Kadish, vida, morte e reino, na sua nova versão, revista e corrigida, a sair em breve.

A existência e a justiça

Moshe Pinheiro, rabino italiano, que viveu em Livorno, no século XVII, foi um dos discípulos mais influentes de Shabtai Zevi, com quem estudou literatura talmúdica e cabalística (1640-1650). Este querido ancestral não apoiou as reivindicações messiânicas de Shabtai Zevi, em 1648, embora fosse seu amigo. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado.

Aqui seguimos reflexões dos ancestrais que nos remetem à relação entre existência e justiça. Quando recorremos ao Sefer ha Neshamá, um tratado sobre a alma humana, vemos que a palavra hebraica para vida é חַיִּים. E se lê raiim, escrita no plural, porque somos pluralidade. Ou seja, uma unidade complexa, que acontece enquanto construção, mas também porque a vida não pode ser solitária, mas solidária, comunitária. Assim, tal complexidade precisa de equilíbrio e só pode ser plenamente construída associada à justiça, que é a qualidade de ser justo, mas também preciso.

Há outra simbologia, muito interessante, que parte da compreensão do Sefer Yetzirah, o livro da criação, um dos mais velhos tratados de cosmogonia judaica, que os primeiros ancestrais atribuíram a Abraham, mas que a partir da Idade Média passou a ser visto como obra do rabino Akiva. Nessa imagem, a primeira letra da palavra em hebraico חַיִּים, lê-se da direita para a esquerda, corresponde a uma mulher sentada num trono, com uma espada na mão direita e uma balança na esquerda. Ela tem os olhos bem abertos. Seu olhar encontra o nosso como espelho. A espada voltada para cima é a espada do espírito, a palavra de Adonai, porque não temos que lutar apenas na materialidade, mas também contra as hostes espirituais da maldade. A balança representa o equilíbrio necessário entre polos opostos, e está ligeiramente desequilibrada, porque a perfeição não existe no mundo manifesto, no qual tudo oscila em maior ou menor grau. A justiça, ou seja, o equilíbrio, não é permanecer estático, mas evitar a queda para um dos lados. A mão com a qual ela segura a balança destaca quatro dedos, a diversidade de nossa humanidade: espiritual, mental, física e emocional, que se encontram com o polegar. Tal simbologia traduz uma mensagem de diversidade na unidade. 

Assim, se no corpo existissem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligasse passado e presente, como explicar a associação de idéias, o hábito e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro, mental, e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.

Tomando como modelo a complexidade do mundo, e partindo da piedade e da sabedoria de Moshe Pinheiro, ancestral amado, prefiro dizer que devemos trabalhar algumas hipóteses -- a primeira é: só existe o corpo e o resto é extensão dele; e a segunda hipótese é: a existência vai além do corpo. E fica a questão: como combinar o arrependimento com uma indigestão?

Seguindo os ancestrais desse povo da estrela, digo que somos substância extensa, diversa, mas una, seguimos e vamos além da materialidade. A existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una apesar de complexa. Quando envelhecemos, o corpo muda, mas a identidade, em expansão permanente, permanece. Nos tornamos um ao longo do espaço e do tempo e tal construção na existência me confere identidade. Mas continue a ler ... vamos ver isso melhor no correr destas reflexões.



A nossa fraqueza é a nossa força

Quando dizemos que Yeshua é a palavra de haShem, estamos dizendo que Ele tem o poder de revelar o mistério insondável de haShem e mostrar como Ele é. Yeshua é a comunhão de haShem conosco e nos revelou que Adonai é amor, justiça e poder. É por isso que o apóstolo diz: Ninguém nunca viu Adonai. Somente o filho único, que é Yeshua e está ao lado do pai, foi quem nos mostrou quem é Adonai.

Essa é a verdade maior: Yeshua tornou-se gente para que Adonai pudesse ter comunhão conosco e assim comunicar à humanidade o seu grande amor.

A palavra continua entre nós e, na sua comunhão conosco, tem o poder de plantar a fé, converter os corações e criar um novo mundo de paz. É a palavra que nos revela os propósitos, a vontade e o amor de haShem pela humanidade.

Os três curtos diálogos de Yeshua, presentes em Lucas 9.57-62,nos falam de três candidatos a discípulos. Originalmente são três estrofes onde o texto trabalha com imagens da natureza e costumes agrícolas da época de Yeshua. Falam do reino de haShem e todos os três diálogos apresentam sempre três temas: seguir + ir + preço. 

O primeiro candidato estava disposto a seguir e ir, mas não estava disposto a pagar o preço.

E nós, aceitamos pagar o preço? Caso queiramos poder e influência, talvez seja melhor seguir as águias, que têm segurança nos cumes das montanhas, ou quem sabe seguir as raposas, que dirigem seus negócios com astúcia. O filho do homem nos oferece um ministério sofredor, é isso mesmo que desejamos? 

O segundo candidato recebe o convite para seguir. Mas quer ir para casa. Yeshua diz que ele deve ir e proclamar o reino. 

Aquele que Yeshua chama às vezes está à margem da estrada pensando: O meu pessoal faz certas exigências, e a força dessas exigências é muito grande. Yeshua não espera que eu frustre as expectativas do meu pessoal, não é? Mas é exatamente isso que Yeshua quer  que nós façamos. A proclamação do reino de haShem só tem significado quando apresenta o reino como uma realidade presente. Quem está espiritualmente morto pode cuidar de responsabilidades tradicionais, mas não tem condições de proclamar a chegada do reino. 

O terceiro candidato quer seguir e como o segundo quer ir primeiro para casa. E como o primeiro é desafiado a pagar o preço.

Aquele que não pode resolver a tensão das lealdades em conflito e vive olhando para trás para ver o que os outros estão ordenando que faça, segundo Yeshua, não está apto para o reino de haShem. O camponês distraído pode dar com o arado numa pedra, pode quebrá-lo ou cansar o boi inutilmente. O camponês distraído por lealdades divididas não será capaz de manter a harmonia, não será apenas improdutivo, mas também destruidor.

E você querido brother, quer seguir, mas primeiro ir realizar tarefas que não podem ser adiadas? Ou até aceita ir, mas acha que o preço é alto demais?  Lembre-se, nessas três curtas histórias, Yeshua está nos ensinando que quando somos pressionados por alternativas definidas, mesmo dolorosas, precisamos decidir. Eis o desafio que o Mestre nos coloca".

Trecho de Jorge Pinheiro, Kadish, vida, morte e reino, São Paulo, Fonte Editorial, 2018, pp. 56-58. 
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samedi 9 juin 2018

O amor do Deus único

O amor do Deus único foi revelado no messias através dos seus ensinos e das suas obras, da sua morte na cruz. Quando crescemos na graça e no conhecimento de Yeshua hamashiah, nos revestimos do caráter dele e nos parecemos mais com ele. O caráter de Yeshua se revela em nós através das virtudes que dão o tom da nossa comunhão com os irmãos na comunidade de fé.

Nossa comunhão com as pessoas, na comunidade de fé, se faz através da misericórdia, que é um relacionamento afetivo e cuidadoso com irmãos e pessoas machucadas e abatidas. Quando Yeshua viu a multidão, ficou com muita pena daquela gente porque eles estavam aflitos e abandonados, como ovelhas sem pastor. Por isso, somos chamados à bondade, prontos para fazer o bem sem olhar a quem; à humildade, numa atitude prestativa; à mansidão, numa relação sem coerção para mudança das pessoas; à longanimidade, com boa vontade para ser tolerante diante da fraqueza das pessoas; ao perdão, já que somos perdoados por haShem caso perdoemos; e à paz, já que como resultado da prática do amor, do perdão e da bondade, a comunidade de fé mostra ao mundo que a reconciliação e a paz podem ser alcançadas em Yeshua. As decisões feitas em justiça e amor constroem a paz que excede a compreensão humana, mesmo nas situações de conflito.

Nós, criados à imagem e à semelhança do Deus único, somos chamados a viver a experiência cristã como comunidade de fé. Podemos usufruir, como iguais que somos, as bênçãos dessa comunidade nas celebrações de nossa igreja. Somos convocados a conviver no corpo de Yeshua que alcança o mundo, na comunidade de fé da nossa igreja local.

Portanto, não existe mais condenação para aqueles que estão em Jesus. A lei da ruach da vida em Yeshua te libertou da alienação e da extinção. Coisa impossível ao esforço humano, porque enfraquecido pelo distanciamento, o Deus único enviando o seu filho numa humanidade semelhante à nossa, condenou a alienação, o distanciamento e os alvos errados, a fim de que sua justiça se cumprisse em nós que vivemos segundo o espírito. Com efeito, os que vivem segundo o  espírito, as desejam as coisas que são do espírito.

Na carta do apóstolo Paulo -- que passaremos a chamar de rabino Shaul por ter sido fariseu filho de fariseus --, aos judeus romanos temos dois blocos de textos: um maior, que é o capítulo oito inteiro, e cuja temática é a vida sob a lei do espírito; e um bloco menor (1-5) que trata especificamente da vida emancipada por esta lei do espírito. Esses dois blocos nos dão a linha de pensamento de Shaul: a vida emancipada; a vida exaltada; a vida esperançosa; e a vida exultante. Dessa maneira, o rabino traça o curso da vida, na qual a graça triunfa sobre o esforço humano, e os justos experimentam o livramento da alienação.

A epístola de Shaul, como um todo, enfoca três blocos temáticos: um que fala da justificação através da emunah; outro que discute a exclusão temporal do povo da estrela, e a inclusão daqueles que não têm o berit milah; e por fim exortações práticas.

Ao analisar a justificação, mostra que a libertação do ser humano repousa fundamentalmente sobre a emunah, que é fé-posicionamento, proveniente da graça de Yeshua. Essa misericórdia de haShem não depende da lei, porque o homem, em sua natureza pecaminosa, não tem como responder efetivamente às exigências da lei, que expressa a santidade de haShem. Assim, a graça provem do messias, que no seu amor e sacrifício, perdoa os pecados dos humanos. A liberdade da vida cristã, liberdade diante da lei, não depende da própria pessoa, nem do que ela possa fazer, mas daquilo que haShem já fez por ela.

Há outra carta do rabino Shaul, que também trata dessa relação esforços humanos versus graça, que é a carta escrita aos gálatas. Ali, o rabino escreve sobre a justificação através da emunah, falando da liberdade.

Sem dúvida, a análise de Shaul parte da Torá e ele escreve aos judeus romanos, e explica que a promessa feita a Abraham teve por base a emunah, já que ainda não tinha realizado o berit milah. 

O texto está inserido numa epístola, forma literária específica, amplamente utilizada pelos apóstolos e pela comunidade de fé primitiva. No capítulo que segue, analisaremos com mais detalhes esta forma literária, inserindo-a no contexto histórico de gregos e romanos durante o primeiro século da Era Comum. A epístola aos Romanos é uma carta de construção sofisticada, porque o rabino Shaul, o apóstolo Paulo cristão, intercala um pensamento central com várias digressões, tornando complexa a conexão das idéias. E o tema que o rabino trata é um assunto eletrizante para a época, mas hoje aceito pela totalidade dos seguidores de Yeshua: povos e raças de todo o mundo podem se tornar seguidores de Yeshua e não somente o povo da estrela. 

Em Romanos 8:1-5, encontramos no grego cinco verbos fundamentais para a compreensão do que o autor estava expondo. São eles: (1) receber alforria, o oposto ao estado de escravidão, não estar sujeito a uma obrigação, livrar, libertar. Te libertou e variantes: me libertou, nos libertou. É um aoristo passado, isto significa que a ação foi plenamente realizada, mas segue vigente no presente. (2) penalidade imposta por condenação judicial, servidão penal, condenar. Também é um aoristo passado. (3) encho, aterro, encho a ponto de transbordar, dou plenitude, cumpro. (4) ando, vivo, dirijo minha vida. (5) penso, ter a mente controlada por, ter como hábito de pensamento, inclinar-se.

Desses verbos, dois são antônimos, receber alforria versus condenado judicialmente, e levam à oposição que o rabino quer mostrar entre a lei da ruach da vida e a lei da alienação e do extermínio. Assim, ao regime da alienação, o rabino Shaul opõe o novo regime da ruach hakadosh  e diz que em nós transborda o que é justo e bom. Esse transbordar o que é justo, o que é bom, só é possível pela união com o messias através da emunah e tem sua tradução no mandamento do amor. Isto porque, não vivemos segundo a materialidade da vida, mas andamos no espírito, ou seja, temos a mente controlada pela ruach.

A palavra lei aparece setenta vezes no texto de Romanos e sempre tem uma das três conotações: (a) revelação de haShem e de sua santidade, (b) foi dada para esclarecer o que é a alienação, e (c) existe para orientar a vida dos justos. Da mesma maneira, a palavra carne é sempre utilizada com o sentido de natureza humana enfraquecida e natureza humana não regenerada.

O rabino nos apresenta a operação da ruach hakadosh, entendida como aquela que comunica a vida, aquela que dá liberdade e que intercede junto a Adonai.

É interessante notar que o texto original de Romanos 8, em grego, começa com dois advérbios intercalados por uma partícula ilativa, que poderíamos traduzir assim: Atualmente, por isso, nada em absoluto pode condenar aqueles que estão em Yeshua. 

Essa partícula ilativa, que é um conectivo, nos leva ao capítulo 7, onde o rabino Shaul mostra que esforços humanos e alienação não são sinônimos. E que há uma grande diferença entre a esforços humanos e a natureza humana. Entre o que é espírito e o que é material. O corpo, com os membros que o compõem interessa a Shaul enquanto instrumento da vida moral. Submetido à tirania da materialidade, à alienação e à destruição, Shaul clama: quem me livrará? E dá "graças a haShem, por Yeshua, nosso senhor". É a partir desse clímax, que dá sequência ao texto, informando que por isso, hoje, nada em absoluto pode condenar os que estão no messias. 

No mundo de gregos e romanos, as cartas particulares tinham em média, cerca de noventa palavras. Já os textos literários, como os de Sêneca, por exemplo, tinham em média duzentas palavras. As epístolas de Shaul, no entanto, eram bem maiores. A menor delas, dirigida a Filemon, tem 335 palavras, e a maior, enviada a igreja de Roma, 7.101 palavras. Assim, podemos dizer que este Paulo, rabino e apóstolo, criou um novo gênero literário, a epístola, maior que as cartas e os textos literários comuns à época, de conteúdo teológico explícito, e dirigida a comunidade específica.

Quase sempre, as cartas eram ditadas a um escriba profissional, chamado amanuense, que usava uma espécie de taquigrafia durante o ditado rápido. Depois, o amanuense burilava o texto, e o autor, finalmente, editava a carta. Na carta de Shaul aos judeus romanos seu amanuense foi Tércio.

Quando escreveu sua epístola aos romanos, o rabino Shaul tinha mais de cinquenta anos e vinte e cinco de encontro com o mashiah. Estava ansioso para ministrar nessa comunidade romana, que já era conhecida no mundo, e por isso escreveu a carta que deveria preparar sua futura visita. Foi escrita em Corinto, quando estava levantando uma coleta para as comunidades da Palestina. Partiu, então, para Jerusalém para entregar o dinheiro. Lá foi preso, e acabou sendo levado à Roma, mas como prisioneiro. 

Teólogos como Orígenes e Barth consideram que a carta do rabino aos judeus romanos é o ponto alto dos textos neotestamentários. Ela sedimentou a compreensão de Agostinho e a reforma de Lutero. Calvino considerava que quem entendesse esta epístola estaria com a porta aberta para a compreensão de toda as escrituras judaico-cristãs. E Tyndale disse algo parecido, ao afirmar que a carta é "a parte principal e mais excelente do Novo Testamento, e o mais puro evangelion, isto é, as boas novas a que chamamos Evangelho, e também uma luz e um caminho para penetrar em toda a Escritura".

Em termos de ensino, Shaul mostrou que a Torá, boa e santa, faz as pessoas conhecerem a vontade de haShem, mas não lhes transmitiu a força para cumpri-la. Deu-lhes consciência de sua alienação e da necessidade que têm de socorro. Esse socorro, inteiramente gratuito, chegou através de Yeshua. E a humanidade, ferida pela alienação, é recriada em Yeshua, podendo agora viver em liberdade e justiça, segundo a vontade de haShem.

Romanos tem como tema central a revelação da justiça de haShem e a universalidade da obra de Yeshua. E, se Romanos é o centro nevrálgico das Escrituras, o capítulo 8 é o coração da carta. 

O capítulo 8 de Romanos mostra que a lei foi, através do sacrifício de Yeshua, dominada pela graça. E a epístola de Romanos foi fundamental no processo vivenciado pela Reforma. A igreja que rompeu com o catolicismo romano, quer a reformada de Lutero, Calvino e Zwinglio, quer a revolucionária de anabatistas e inspiracionistas, entendeu que o apóstolo Paulo traçou na epístola aos judeus romanos o curso da vida cristã, mostrando que através da graça há vitória plena sobre a alienação.

Shaul queria deixar claro que as propostas anteriores não tinham razão de ser, pois a obediência à lei nunca logrou êxito. Através de Yeshua, unido a Yeshua pela ruach hakadosh, aquele que crê está livre de sua alienação e pode iniciar uma vida de liberdade, dentro de uma nova lei, a lei da ruach hakadosh da vida no messias Yeshua.

Os reformados radicais do século dezesseis, contextualizando os ensinamentos de Shaul, entenderam que não havia mais necessidades de obras para se alcançar a liberdade. O que a igreja católica romana proclamava, tanto no que concerne às indulgências, como às obrigações de caridade, estava fora do ensino do rabino nas epístolas aos romanos e aos gálatas, assim como no restante das Escrituras.

Ainda hoje Romanos apresenta ensinamentos fundamentais para a comunidade de Yeshua: a alienação humana; sua luta interior, a gratuidade da liberdade, a eficácia da vida além da vida e o ser levantado de Yeshua. Mas também fala da justificação através da emunah e a adoção dos justos filhos. É a partir desta hermenêutica que Romanos pode ser interpretado. Teremos, então, uma melhor compreensão daquilo que o rabino Shaul chama da lei da ruach da vida no messias Yeshua e de sua importância no caminhar do cristão. Ah! Se você ainda não leu a carta do rabino Shaul/Paulo aos romanos, não perca tempo. Vale a pena.

Texto de
Jorge Pinheiro, Kadish, vida, morte e reino
Fonte Editorial, São Paulo, 2018, pp. 38-45.