jeudi 17 novembre 2022

O negro e o socialismo

O socialismo em discussão
https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/negro.pdf


DESDE NOSSA COLONIZAÇÃO ATÉ OS DIAS ATUAIS, A QUESTÃO RACIAL E A QUESTÃO NACIONAL TÊM RELAÇÃO DIRETA COM A DISCRIMINAÇÃO – VELADA OU EXPLÍCITA – SOFRIDA PELOS NEGROS EM DIVERSOS ÂMBITOS. NAS PALAVRAS DE OCTAVIO IANNI, TRATA-SE DE UMA QUESTÃO QUE “SEMPRE FOI, TEM SIDO E CONTINUARÁ
A SER UM DILEMA FUNDAMENTAL DA FORMAÇÃO, CONFORMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA”. NESTE VOLUME DA COLEÇÃO SOCIALISMO EM DISCUSSÃO É ABORDADA A RELAÇÃO NEM SEMPRE TRANQÜILA ENTRE AS ESQUERDAS E A , QUESTÃORACIAL, E COMO ISSO AFETA OS PARTIDOS E O MOVIMENTO NEGRO.   
  
(Abertura do livro O socialismo em discussão, com a participação de Octavio Ianni, 
Benedita da Silva, Gevanilda Gomes Santos e Luiz Alberto Santos)


Gevanilda Santos
A luta contra o racismo na esquerda brasileira

A década de 1970 é um marco importante para a história do Movimento Negro Brasileiro. Ela inaugurou uma nova fase da luta em defesa dos direitos da população negra.

Nessa nova fase, as diversas instituições brasileiras foram averigua- das quanto à existência de desigualdade sociorracial e à possibilidade de integrar o negro na sociedade de classes, para usar as palavras do sociólogo Florestan Fernandes.

Ao longo da década de 1980 a atuação das representações do Movimento Negro Brasileiro em suas diversas vertentes – cultural, recreativa, religiosa ou política-reivindicatória – unificava a perspectiva de denunciar, de forma particular ou geral, a situação de desvantagem social da população negra. A unidade de ação gravitava em torno da denúncia do racismo e da condição de classe dos trabalhadores negros.

Ao mesmo tempo, a leitura marxista das categorias de raça e de classe adquire novo sentido histórico e teórico. Considerando o pressuposto marxista geral de que o processo de produção e reprodução capitalista não gera apenas coisas, ou seja, mercadorias, mas principalmente relações sociais de dominação e opressão. A implicação desse pressuposto foi observada em relação à raça e ao gênero. O maior desafio teórico era com- preender o racismo e o machismo na interface com a luta de classes. A exploração econômica da população negra e a opressão social passam a ser consideradas decorrências do capitalismo e do racismo.

É dentro desse marco histórico que podemos falar do surgimento de novos referenciais teóricos à compreensão da relação entre raça e classe. O racismo passa a ser explicado como uma decorrência das relações sociorraciais desiguais e, como tal, se constitui em mais uma contradição da sociedade capitalista e autoritária a ser superada no processo de democratização da sociedade brasileira.

A trajetória da categoria “raça” foi reinterpretada politicamente para afirmar a identidade racial do negro brasileiro, mobilizar ação de protesto contra o racismo e denunciar o mito da democracia racial. O primeiro passo já estava dado. O passo seguinte foi reinterpretar a categoria “raça” na dinâmica da sociedade de classes brasileira.

A gênese autoritária do Estado brasileiro passa a ser reconhecida no processo da abolição da escravatura, que ocorreu sem nenhuma repara- ção social para os ex-escravos, na política de importação de mão-de-obra imigrante e assalariada e no caráter elitista da proclamação da República.

As modernizações lentas, graduais e conservadoras do capitalismo no Brasil – no período nacionalista de Getúlio Vargas ou na fase de abertura ao capital internacional, desde Juscelino Kubitschek até a fase pós-ditadura militar de 1964 – lograram a exclusão da população negra por falta de mobilidade social nos marcos da competição capitalista. A integração do negro na sociedade de classe sob um modelo jurídico de Estado autoritário e disciplinador da classe trabalhadora começa a ser questionada.

A partir da década de 1970 os movimentos sociais, os partidos políti- cos de oposição, oficiais ou clandestinos, foram aliados estratégicos na luta contra o capitalismo. O novo desafio era construir essa mesma aliança na luta contra o racismo. A nova estratégia anunciada era dialogar com aqueles setores da sociedade brasileira para testar a hipótese do amadurecimento das relações democráticas nos marcos de uma sociedade socialista.

Não estamos afirmando que naquele momento essa nova estratégia de combate ao racismo tenha solucionado definitivamente tal problemática. Apenas queremos registrar que a partir de então ocorreu o desnudamento das contradições das relações sociorraciais brasileiras nas várias esferas da sociedade, inclusive das organizações de esquerda.

Nesse período podemos falar do surgimento do Núcleo Negro Socialista. Veremos adiante um breve histórico desse organismo mais à es- querda do Movimento Negro Contemporâneo, que estimulou um debate acerca do significado da correlação entre ser negro e ser branco numa estrutura capitalista ou socialista. A elaboração teórica e a intervenção política do Núcleo Negro Socialista chamaram a atenção para as variá- veis da relação de raça e classe, de forma não mais hierárquica, mas sim interdependente, a fim de obter maior objetividade nas relações sociais de um país cuja formação social foi construída na simbiose entre capitalismo e escravidão.

A condição da pobreza da população negra – um fator decorrente da exploração da classe dos trabalhadores – começa a ser mais investigada e questionada. O pensamento social que insistia em negar a existência do racismo no interior da classe trabalhadora brasileira, alegando a centralidade da contradição entre capital e trabalho, foi denominado pen- samento marxista ortodoxo.

Estava aberto o debate entre marxismo e diversidade cultural no inte- rior da classe trabalhadora. O marco histórico deste pensamento foi Florestan Fernandes, com sua obra A integração do negro na sociedade de classes (1964). Ele concluiu seus estudos sobre a revolução burguesa brasileira afirmando que ela incorporou de modo subalterno o negro na sociedade. Outros nomes representativos desse novo pensamento foram Caio Prado Jr., Guerreiro Ramos, Octavio Ianni, Lélia 1 González, Hamilton Bernardes Cardoso e Clóvis Moura.

1. Ver PRADO Jr., Caio. A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1972, 4a ed.; RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro, Editorial Andes, 1957; 
IANNI, Octavio. Capitalismo e racismo (1972), Escravidão e racismo. São Paulo, Hucitec, 1978; Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1987; 
GONZÁLEZ, Lélia e HASEMBALG, Carlos A. Lugar de negro. São Paulo, Marco Zero, 1982; 
MOURA, Clóvis. O negro, de bom escravo a mau cidadão. Rio de Janeiro, Conquista, 1977; Rebeliões da senzala. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1981; Brasil: Raízes do protesto negro. São Paulo, Global Editora, 1983; Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Ática, 1988; Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, Anita, 1994.
2. Ver a história da esquerda brasileira em REIS FILHO, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1985, 1a ed., p. 7-22.

Quais foram os elementos históricos que deram forma a essa nova interpretação teórica? Vejamos um pouco desse momento histórico.

Relações raciais no interior da classe trabalhadora – 
A chamada esquerda brasileira tem entre suas principais matrizes teóricas e políticas 2 duas vertentes: o marxismo-leninismo e o trotskismo.

Essa esquerda – desde a fundação do Partido Comunista (PCB) em 1922, passando pelas organizações trotskistas que se estruturaram no Brasil a partir de 1931 com a formação da Seção Brasileira de Oposição Internacional de esquerda e pelas organizações políticas que existiram no período repressivo pós-1964 – desconhece e, conseqüentemente, não debate as relações raciais no interior da classe trabalhadora brasileira.

Em documentos e cartas de princípio das organizações clandestinas da década de 1970 não havia nenhuma referência à desigualdade sociorracial brasileira. Não havia nenhuma reflexão que pudesse insinuar que o racismo também era um componente de dominação dos trabalhadores brasileiros. A única exceção foi o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que em seu manifesto-programa de fevereiro de l962 mencionou posição contrária a todas as formas de racismo, referindo- se à realidade do negro brasileiro.

O argumento implícito é que a proposta classista de transformação da sociedade capitalista soluciona a problemática da população negra. Essa argumentação é resultado de uma concepção política que com- preende o racismo como uma conseqüência da pobreza generalizada a que está submetida a maioria dos negros, o que, em outras palavras, significa dizer que o único fator de discriminação social é a pobreza. A esquerda admitia o exclusivismo do enfoque capital–trabalho como a principal contradição para explicar a exploração e a opressão da população negra no Brasil.

Alguns nomes importantes da academia brasileira, como Caio Pra- do Jr., já haviam apontado a ortodoxia da esquerda nacional, ressaltando que

“[...] a diversidade da realidade brasileira, assim como os aspec- tos culturais, de modo geral, não são considerados pela esquerda brasileira. Esse desconhecimento cria obstáculos para a unifica- ção das forças, na medida em que o discurso da vanguarda revo- lucionária não sensibiliza outros grupos subalternos, e que, com 3 isso, não criam uma base social hegemônica [...]” .

A desorientação da esquerda no Brasil em sua ação prática pode ser explicada no desconhecimento da situação da diversidade cultural e das diferentes contradições da classe trabalhadora brasileira. Sem dúvida, ao defender a perspectiva de eliminar as desigualdades econômicas da sociedade brasileira, a esquerda brasileira contribuirá para a superação do racismo, na medida em que o estabelecimento da melhoria nas condições de vida elimina o aspecto material de manifestação do racismo, isto é, a pobreza. Todavia, isso por si só não eliminará a discriminação e a desvalorização social diante dos traços culturais da matriz africana.

As organizações e os partidos de esquerda, no início da década de 1970, não possuíam prática e discurso de combate ao racismo e não dimensionavam o grau de opressão racial existente na sociedade brasileira.

Vejamos como essa situação começa a se alterar.

3. PRADO JR., Caio, op. cit., p. 20. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 25
4. CARDOSO, Hamilton Bernardes. Depoimento do autor em outubro de 1989, São Paulo, Capital.
5. SILVA, Antônio Ozai. História das tendências no Brasil. São Paulo, Ensaio, 1990.

O Núcleo Negro Socialista: a luta de combate ao racismo sob a hegemonia da matriz ideológica da esquerda – 

Embora a esquerda brasileira em geral não apresente um discurso de combate ao racismo, em uma de suas vertentes foi planejado um projeto de organização para a luta contra o racismo e dessa experiência surgiu em 1978 o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), posteriormente de- nominado Movimento Negro Unificado (MNU).

O período de inserção da luta contra o racismo na perspectiva de raça/ classe está intimamente ligado à experiência de várias lideranças negras dentro da esquerda, entre 1975 e 1978 e o surgimento do Núcleo Negro Socialista no interior da Convergência Socialista.

Segundo o depoimento de um militante dessa época, o MUCDR foi idea- 4 lizado pelo Núcleo Negro Socialista . Esse projeto político foi criado estrategicamente pelas tendências trotskistas Liga Operária e Fração Bolchevique, que acabaram fundindo-se na Convergência Socialista. Esta surgiu a partir de 1974, quando militantes da Fração Bolchevique Trotskista de São Paulo e o grupo Ponto de Partida, de tendência leninista-trotskista do Secretariado Unificado, formam a Liga Operária, a qual teve como referência internacional o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) da Argentina. No início de 1975 a Liga Operária realizou o II Congresso e decidiu concentrar suas forças nos movimentos operário e estudantil do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em 1977 realizou sua primeira conferên- cia e mudou o nome da organização para Partido Socialista dos Traba- lhadores. No começo de 1978 lançou o Movimento Convergência Socialista, cujo objetivo era aglutinar setores militantes “socialistas” para a 5 formação de um partido socialista no Brasil .

À época, a Liga Operária desenvolvia uma política de atrair negros para a tendência trotskista. Esse processo foi impulsionado no final da década de 1970 com o crescimento dessa tendência na África do Sul e na Guiné-Bissau e a relativa expressão que teve nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960.

Em São Paulo, alguns militantes negros da Liga Operária que atuavam no meio universitário do eixo São Paulo–Campinas–São Carlos e alguns jornalistas do jornal Versus, com o propósito de intervir na luta anti-racis- mo, formaram o Núcleo Negro Socialista.

O projeto idealizado pelo Núcleo Negro Socialista apontava para um movimento que aglutinasse não só o negro, mas todos aqueles que so- frem discriminações: negros, mulheres, indígenas etc., o que explica a denominação inicial Movimento Unificado Contra a Discriminação Ra- cial (MUCDR). O objetivo fundamental era legitimar a luta contra o racis- mo no plano sociopolítico, ampliar a consciência racial da sociedade bra- sileira e oferecer formação política para as lideranças negras. Quanto à estrutura, o MUCDR possuía centros de luta formados por negros e nú- cleos de apoio dos outros movimentos sociais de composição plurirracial.

O caráter nacional dessa proposta foi efetivado a partir da estratégia da Liga Operária de buscar lideranças negras nos vários estados brasileiros, o que possibilitou a formação de núcleos negros socialistas em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. A articulação nacional foi realizada por intermédio das comissões estaduais e de um boletim de divulgação interna que informava sobre a conjuntura política e o processo organizativo dos demais movimentos sociais.

Com a movimentação de negros de São Paulo e Rio de Janeiro, foi fundada no dia l8 de junho uma organização de combate à realidade de discriminação racial, o MUCDR. A assembléia de fundação, realizada em São Paulo, deliberou pelo lançamento público do movimento unifi- cado com um ato de protesto ao quadro das desigualdades sociorraciais. Essa deliberação foi polêmica. A proposta do Núcleo Negro Socialista paulista não foi consensual, recebeu a oposição de militantes de uma entidade cultural do movimento negro, o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), fundado em 1970. O Núcleo Negro e o Cecan avaliavam a conjuntura política sob ponto de vista diferente. A divergência básica consistia em ser ou não aquele o momento propício para explicitar a luta contra o racismo e, principalmente, o caráter socialista da luta, na medida em que a época era ditatorial e de suspensão das garantias individuais. Esses dois setores estavam em confronto desde maio de 1978. À época das comemorações do 13 de Maio, o Cecan propôs uma manifestação de protesto à falsa liberdade concedida pela Lei Áurea, na qual a população não sairia às ruas como forma de repudiar a data. Eles compreendiam que o 13 de Maio não deveria ser come- morado porque a população negra continuava sendo discriminada, opri- mida e explorada. O Núcleo Negro Socialista, ao contrário, propunha sair às ruas porque avaliava que o 13 de Maio era uma data significa- tiva para a população negra, mas que necessitava de uma visão crítica sobre o que fora a abolição da escravatura, exatamente para quebrar o mito da princesa Isabel como redentora que sustentava o mito da democracia racial.

A proposta do Núcleo Negro Socialista foi vitoriosa e o 13 de Maio entrou no calendário do Movimento Negro Brasileiro como o Dia Nacio- nal de Luta Contra o Racismo. Cabe salientar que como contraponto foi escolhida a data de 20 de novembro, como elemento mítico para a luta da população negra, que ficou conhecido como o Dia Nacional da Consciência Negra. Essa proposição, também do Núcleo Negro Socialista, tinha um objetivo, ampliar no Brasil a consciência social contra o racis- mo, de forma que, cada vez mais, os não-negros pudessem assumir e defender a melhoria da condição social dos negros brasileiros. Na verdade era uma política voltada para uma sociedade plurirracial, buscando resgatar e valorizar a memória de Zumbi dos Palmares.

Em junho de 1978 aconteceram dois episódios importantes para o acirramento daquela divergência: a divulgação na imprensa paulista do tratamento discriminatório a quatro atletas negros que foram impedidos de freqüentar o Clube Tietê de São Paulo e a violência policial que levou à morte o operário Robson Silveira da Luz. Essas circunstâncias motivaram protesto, mobilização e repúdio público contra o racismo na sociedade brasileira. No dia 7 de julho de 1978, o MUCDR e várias enti- dades negras organizaram um ato público em frente às escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em repúdio à discriminação racial. Nas palavras do MNU,

“[...] a discriminação racial, o desemprego e a violência policial fundamentavam seu surgimento e legitimavam sua organização, buscando conscientizar a comunidade negra e chamar a atenção 6 da sociedade brasileira para a questão do racismo [...]” .

A divergência se acentua, o Cecan e outras entidades negras que dis- cordavam dessa forma de manifestação não participaram do Ato Público realizado no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Munici- pal de São Paulo, com a presença de 2 mil pessoas.

A carta convocatória ao Ato Público foi assinada por apenas seis das 13 organizações negras que estavam articuladas nesse processo: Afro-Latino-América (Centro de Intervenção do Núcleo Negro Socialista de São Paulo, por intermédio do jornal Versus), Associação Recreativa Brasil Jovem, jornal Capoeira, Grupo de Atletas Negros, Associação Cristã 7 Beneficente do Brasil e grupo Decisão . Este último surgiu de uma dissidência do Cecan e era formado por lideranças que apoiavam a mani- festação pública da luta contra o racismo. Esse grupo político posterior- mente aderiu ao MUCDR.

Dez anos de luta contra o racismo (1978 -1988). São Paulo, Confraria do Livro, 1988.

7. As 13 entidades participan-tes foram o Centro de Cultura e Arte Negra, Grupo Afro Latino- América, Câmara de Comércio Afro-Brasileira, jornais Abertura e Capoeira, Associa- ção Recreativa Brasil Jovem, Associação Casa de Arte e Cultura Afro-Brasileira, Associação Cristã Beneficente do Brasil, Grupo de Atletas Negros, Company Soul, Zimbabwe e Grupo de Artistas Negros. Ver GONZÁLEZ, Lélia e HASEMBALG, Carlos A., op. cit.
8. MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, op. cit.

A proposta do Ato Público foi apoiada por outros estados. Organiza- ções negras como a Escola de Samba Quilombo, o Renascença Clube, o Centro de Estudos Brasil-África, o Instituto de Pesquisa da Cultura Ne- gra, o Núcleo Negro Socialista do Rio de Janeiro e também o Grupo Nego da Bahia estiveram presentes ao Ato ou enviaram moções de apoio. Em 7 de julho de 1978 essas entidades negras explicitaram à soci- edade brasileira uma proposta política de combate ao racismo.

Como vimos, o projeto do Núcleo Socialista foi vitorioso na medida em que colocou a ação política de combate ao racismo nas ruas, apontando o seu caráter de classe. O racismo, nessa nova leitura, se impunha como um instrumento de exploração e opressão da população negra, que não encontrava solução dentro da ordem burguesa. Mas isso não significava que as entidades negras já existentes também defendessem essa nova leitura, ou mesmo integrassem o MUCDR. Apesar de não apoiar essa for- ma de intervenção mais politizada, elas, em maior ou menor grau, legiti- maram o processo e acompanham o impulso dado por ele.

O embate político-teórico sobre o racismo – Além da leitura ini- cialmente apresentada, que reconhece uma matriz de esquerda na idealização do projeto de combate ao racismo nos anos 1970, há uma outra leitura que minimizava essa contribuição e acentuava como ele- mento fundamental nesse processo a efervescência cultural da popula- 8 ção negra iniciada na década de 1970 .

Essa movimentação cultural ocorreu em razão da conjuntura repressi- va e recessiva que impunha sérias restrições à qualidade de vida da população negra. Em resposta a esse mecanismo de exclusão surgiram mobilizações da população negra de caráter cultural que, por si sós, representavam um protesto às condições de vida e ao modelo racial vigente. A efervescência cultural revelava a identidade racial reprimida pelo padrão sociorracial vigente e encontrava ressonância política e organizativa na experiência de organização da luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis e nas guerras de libertação dos povos africanos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Essa leitura destaca um ponto importante quanto à diferença na forma de organização da luta contra o racismo na Bahia e no eixo São Paulo– Rio de Janeiro, observando que, enquanto Salvador priorizou as manifestações culturais para chegar ao político, em São Paulo e no Rio de Janeiro, sob o impulso do Núcleo Negro Socialista, acentuou-se a participa- ção com uma linguagem essencialmente política, por meio de concentração em praça pública, distribuição de panfleto e ato público.

As duas posições explicativas do surgimento da luta contra o racismo nos levam a concluir que foram várias as forças envolvidas na formação do projeto de combate ao racismo dos anos 1970 e também evidenciam uma descontinuidade entre uma forma de intervenção que priorizou a manifestação cultural de protesto e outra que priorizou a perspectiva de politização da manifestação cultural, sob a hegemonia de uma matriz ideológica de esquerda. As lideranças negras oriundas do Núcleo Negro Socialista aproximavam-se das manifestações culturais como potencial de mobilização para ampliar a consciência de raça e de classe. As lide- ranças negras oriundas do processo cultural compreendiam a mobilização cultural como canal de pressão contra a ideologia racial vigente e de formação da consciência negra, capaz de resgatar a identidade racial reprimida pelo mito da democracia racial.

A ausência de continuidade entre as duas perspectivas de organização da luta contra o racismo pôde revelar que, por um lado, os setores de esquerda instrumentalizavam o cultural apenas na medida em que ele manifestasse um protesto à realidade de discriminação racial; por outro lado, revelou também que algumas lideranças negras minimizavam o caráter de classe das manifestações culturais ao priorizar a valorização da identidade racial em detrimento do seu aspecto de classe.

9. Documento publicado pelo Núcleo Negro Socialista (s/d).

A reação ao projeto do Núcleo Negro Socialista – Entre a formação do MUCDR e a consolidação do MNU, primeira entidade de caráter nacional do Movimento Negro Contemporâneo, ocorreu um período de grande polêmica e reação ao projeto do Núcleo Negro Socialista, o qual avaliou a realização da primeira assembléia do MUCDR apontando os se- guintes fatos:

“[...] foi realizado em São Paulo, no dia 27 de julho, uma Assem- bléia Nacional do MUCDR, com a participação de diversas entida- des do interior paulista, dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, com quase 350 pessoas. Nessa assembléia, definiu-se um programa mínimo para o movimento unificado, que abarcava desde a luta por melhores condições de vida até a libertação na- cional. O único grupo a se posicionar como socialista foi o Núcleo Negro de São Paulo e do Rio de Janeiro. Houve muita resistência 9 a esse posicionamento” .

A partir desse momento, ocorreu uma cisão entre os negros que estavam organizados dentro da esquerda e aqueles que já haviam rompido com essa organização. O rompimento era justificado a partir do entendimento de que as organizações de esquerda não poderiam dar encaminhamento à luta antiracismo porque não havia prioridade política para essa problemática e tam- bém pela composição racial de sua direção, basicamente composta por bran- cos, o que dificultava a percepção da problemática.

Aqueles que continuaram no Núcleo Negro Socialista compreendiam que seria necessário construir uma força política dentro da Convergência Socialista para que a luta anti-racismo se tornasse uma preocupação da direção; portanto, seria preciso elaborar uma política anti-racismo e ampliar o leque da militância na questão racial, absorvendo um maior número de negros para aquela organização.

Os negros do Núcleo Negro Socialista eram vistos como militantes da organização de esquerda que atuavam no movimento negro na perspectiva de formar uma frente de luta da organização, ao passo que os negros que haviam rompido com a tendência viam o movi- mento negro como um espaço autônomo, capaz de forjar uma política anti-racismo. De qualquer forma, o Núcleo Negro Socialista não era monolítico. Havia unidade quanto à necessidade de uma política anti- racismo e na aceitação dos princípios políticos da organização. Con- tudo havia pensamento divergente na maneira de atingir o objetivo central: a criação de um projeto político para a luta contra o racismo. Por exemplo, alguns acreditavam que a relação do movimento negro com a esquerda deveria ser explícita para definir uma perspectiva socialista, outros achavam essa posição equivocada, dado o caráter repressivo da época.

Na II Assembléia Nacional do MUCDR, realizada em setembro de 1978, na cidade de Caxias, no Rio de Janeiro, o projeto do Núcleo Negro Socia- lista começou a sofrer alterações em função daquelas divergências. Se- gundo a avaliação do próprio Núcleo Socialista, com

“[...] as acusações do DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de que a Convergência Socialista dirigia o MNU o relacionamento piorou. Em São Paulo as entidades negras do in- terior de São Paulo se retiraram do MNU e no Rio de Janeiro ocorreu o afastamento do Núcleo Negro Socialista, por motivos inter- 10 nos da própria Convergência Socialista [...]”

10. Idem.
11. MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, op. cit.

Estes fatos alteraram a correlação de forças entre aqueles que dispu- tavam a direção da luta contra o racismo.

O resultado final da assembléia foi a inclusão da palavra “negro” na sigla e a supressão da referência “contra a discriminação racial”, originando a denominação Movimento Negro Unificado (MNU). Aqui tam- bém há uma controvérsia: segundo o posicionamento do MNU, a mudança de sigla ocorreu na I Assembléia de Organização e Estruturação Mí- nima para o movimento, com a presença de vários estados, Rio de Janei- ro, São Paulo e Minas Gerais. Essa assembléia ocorreu no dia 8 de julho de 1978, em São Paulo, na qual foi aprovada proposta do Rio de Janeiro de acrescentar a palavra “negro” ao nome “movimento”. Desse modo a denominação passou a ser Movimento Negro Unificado Contra a Dis- criminação Racial e, no I Congresso Nacional do MUCDR, realizado no Rio de Janeiro em dezembro de 1978, que reuniu delegados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito 11 Santo, o nome foi simplificado para MNU .

Mais do que uma mudança de sigla, essa alteração significou a ruptura da aliança com a esquerda no encaminhamento da luta anti-racismo. O projeto do Núcleo Negro Socialista contra o racismo foi reformulado como um organismo independente da estrutura e da direção da esquerda. O movimento unificador de todas as formas de discriminação restringiu-se à relação branco/negro. Segundo a Carta de Princípios do MNU, seu objetivo básico era:

“[...] defesa do povo negro em todos os aspectos: político, econô- mico, social e cultural, através de maiores oportunidades de em- prego, melhor assistência à saúde, à educação e à habitação, reavaliação do papel do negro na História do Brasil, valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização, folclorização e distorção; extinção de todas as formas de perse- guição, exploração, repressão e violência; e liberdade de organi- zação e de expressão do povo negro [...]”

Em país com alto grau de miscigenação, a própria definição do que é negro passa por uma relação sociocultural marcada há séculos pela ideologia de embranquecimento, trazendo enormes dificuldades para a definição da identidade racial negra e, portanto, para a delimitação do campo de ação do movimento. Além disso, a definição do campo de atuação somente junto à população negra afasta segmentos étnicos e populares importantes, como os indígenas, os mestiços e as mulheres. De qualquer forma, a Liga Operária e o Núcleo Negro Socialista nunca chegaram a definir uma política anti-racismo, o que de certa forma contribuiu para o enfraquecimento do Núcleo Negro Socialista. Porém, essa experiência foi relevante na história da organização da luta do movimento negro pós- 1978. Ela estreitou os laços entre marxismo e racismo, na medida em que aproximou a perspectiva de combate ao racismo da teoria de classe, despertou a militância racial negra dentro das organizações de esquerda e deu sustentação ideológica a um setor do movimento negro que ficou mais à esquerda.

Na opinião de Hamilton Cardoso, o projeto de luta anti-racismo para a sociedade brasileira delineado pelo MNU estava permeado, apesar da utopia socialista, de um nacionalismo afro-norte-americano, reformulado 12 a partir da filosofia do Partido dos Panteras Negras . Já o Núcleo Negro Socialista absorveu uma gama maior de influências da luta anti-racismo. Sua visão mais global e universal foi concebida a partir da refle- xão sobre a história dos Panteras Negras nos Estados Unidos, da luta contra o apartheid na África do Sul, da revolução ma Guiné-Bissau, do pensamento político europeu e do trotskismo. A experiência de combate ao racismo dentro da esquerda foi uma vitória como criação, mas um 13 fracasso em seu processo de implementação .

12. Os Panteras Negras foram um grupo de ativistas negros norte-americanos associados ao Partido dos Panteras Negras para Autode- fesa, organização político- partidária originária de Oakland, Califórnia, no ano de 1966 e extinta em 1982 após intensa repressão política por parte do FBI (Federal Bureau of Investigation). Foi fundada por Huey Newton e Bobby Seale para a legítima defesa da população negra contra o racismo e a violência policial. Foi uma organização de esquerda de influência marxista que defendia uma agenda revolucionária contra o capitalismo e a escravidão. Os Panteras Negras se organizaram em 48 estados norte-americanos e chega- ram a ter expressão na África, principalmente na África do Sul e em Moçambique.
13. Depoimento de Hamilton Bernardes Cardoso em outubro de 1989.
14. FERNANDES, Florestan. “Lutas de raças e de classes”. Teoria e Debate, São Paulo, Diretório Regional do PT-SP, no 2, mar. 1988.

O processo histórico da formação do MNU leva-nos a observar que houve influência da esquerda no encaminhamento da luta contra o racis- mo a partir de 1978 e que o relacionamento entre o movimento e a es- querda ainda está em construção.

Já adiantamos, em análise anterior, que existe um grande desconheci- mento por parte da esquerda sobre a realidade sociorracial brasileira. Até por isso há um fator profundamente relevante nessa experiência: o caráter embrionário dessa relação histórica, que se reflete na fragilidade da relação teórica entre raça e classe na década de 1970.

Após a década de 1980 novos estudos, ações e alianças estratégicas travadas junto aos movimentos sociais e partidos políticos definidos como de oposição, progressistas ou mais à esquerda, construíram experiências de combate ao racismo que estão amadurecendo a ação teórica e práti- ca da relação entre classe e raça.

Vejamos esse enfoque mais detalhadamente.

Uma interpretação da relação entre raça e classe – Uma releitura crítica dos estudos de Florestan Fernandes sobre a integração do negro na sociedade de classes demonstra que o amadurecimento das relações capitalistas de produção, longe de eliminar a desigualdade sociorracial, a 14 recompõe sob a ótica da racionalidade da acumulação do capital .

Sabemos que o valor da mercadoria-trabalho, paga em forma de salá- rio, esconde o tempo de mais trabalho que é apropriado pelo capitalista, e que essa troca não é justa, e sim desigual, e aí está o caráter de exploração dos trabalhadores. Sabemos também que o valor da força de trabalho não é pago de acordo com a necessidade de sobrevivência dos trabalhadores em geral. O valor da reprodução da força de trabalho é determinado socialmente. A força de trabalho não é valorizada individual- mente, mas sim coletivamente. É na história concreta de uma nação que encontramos os nexos explicativos da valorização ou não da força de trabalho. Portanto, se na sociedade brasileira há uma desvalorização social das dimensões de raça e gênero, ela incidirá como fator de barateamen- to no valor da força de trabalho das mulheres e negros.

E, nesse contexto, afirmamos que a admissão da população negra no processo produtivo capitalista é mediada por uma articulação ideológica que determina a absorção da população negra na estrutura de classe de acordo com a necessidade de reprodução do capital e a orientação ideológica racial vigente.

Isso acaba por delinear um quadro em que a condição racial do traba- lhador se transforma num dado seletivo na competição do mercado de trabalho. O fator da identificação racial de matriz africana é sempre desfavorável ao negro, reservando-lhe a mais baixa posição na estrutura de emprego e o recebimento dos mais baixos salários, quer estejam no setor primário, quer no secundário ou no terciário. Tal fato se traduz no desemprego, no subemprego e na rotatividade da sua mão-de-obra, o que provoca o empobrecimento contínuo deste segmento populacional.

A compreensão da marginalização social da população negra, assim como a sua superação, está altamente comprometida com o grau de aceitação da centralidade da relação de raça, classe e gênero. Aí fica visível a situação de exclusão social da mulher negra.

A relação de raça e classe pode ser classificada como um fator explicativo das desigualdades da sociedade brasileira. A relação raça e classe não é dicotômica, e sim interdependente. Ela não é marginal, e sim interior às relações capitalistas de produção. Não desaparece na dinâmica competitiva do capitalismo, apenas é distorcida pela ideologia racial vigente. Ela determina a forma de exploração da força de trabalho da população, quer seja masculina, feminina, branca ou negra e condiciona essa forma de trabalho em termos de sua inserção ou exclusão do processo produtivo, tipo de ocupação, rendimentos salariais, posição na estrutura de classe e o grau de consciência racial da população trabalhadora.

O projeto político de combate ao racismo no Brasil, atuante na política brasileira, tanto por parte do movimento negro quanto por parte da concepção de esquerda, não está isento de equívoco.

A centralidade da contradição capital/trabalho impede a percepção de que a lógica capitalista de exclusão utiliza a diversidade cultural existen- te em meio à classe trabalhadora como fator de discriminação de gêne- ro, raça, idade e religião. A centralidade exclusivista da teoria classista para explicar as desigualdades sociais brasileiras é equivocada porque interpreta de forma tradicional e etnocêntrica nossa formação social. Por isso encontra dificuldades em legitimar-se, por exemplo, perante a população negra, por não construir, culturalmente, uma identidade de raça e classe na luta pelo socialismo. O que por sua vez é um entrave à democratização da sociedade brasileira.


CUT - Brasil
notice
https://www.cut.org.br/noticias/marcha-da-consciencia-negra-ce3b


O negro e o socialismo

O Movimento Negro e a Esquerda: Questões para o Debate sobre Marxismo e Racismo

https://www.enfpt.org.br/jornadas-e-cursos/combate-ao-racismo/o-movimento-negro-e-a-esquerda-questoes-para-o-debate-sobre-marxismo-e-racismo/

O pressuposto marxista geral de que o processo de produção e reprodução capitalista não gera apenas mercadorias, mas, principalmente, relações sociais de dominação e opressão, nos permitem investigar em cada formação social como ocorre a dominação e opressão dos trabalhadores no geral e a dominação e opressão especifica de alguns segmentos sociais, tais como negros e negras, mulheres e homossexuais.

Nos anos de 1970 o aparecimento dos novos movimentos sociais, em especial o movimento negro e feminista inaugurou o debate entre o combate ao racismo e as implicações teóricas com o marxismo.

No campo das relações raciais na sociedade brasileira, essa investigação avança na medida em que as novas leituras relacionam capitalismo e racismo a fim de compreender a natureza do empobrecimento gritante da população negra, principalmente para verificar se a condição de pobreza da população é um fator decorrente da exploração econômica mediada por mecanismo de discriminação racial. Se assim for podemos concordar com Malcolm X, e dizer … “não há capitalismo sem racismo”.

Florestan Fernandes em seus estudos sobre “A integração do negro na sociedade de classes” (1964) e na obra “A revolução burguesa brasileira” afirma que ela incorporou de modo subalterno o negro na sociedade. 1 O intelectual de esquerda colocou o seu prestigio e autoridade a favor da desmistificação da ideologia racial de acomodação das relações raciais brasileiras e cunhou a expressão mito da democracia racial denunciando seu papel fundamental, o de alienar o/a negro/a enquanto sujeito da sua historia de resistência e aliená-los na sua condição e trabalhador.

A idéia da subordinação social e econômica dos negros e negras no capitalismo abre o debate sobre a relação capitalismo e racismo, cuja razão de ser não é mais explicada por um atraso cultural da sociedade brasileira, mais principalmente como um aspecto ideológico das relações sociais brasileiras que encobre os mecanismos da desigualdade racial e, como tal, se constitui mais uma contradição da sociedade capitalista.

Aspectos instigantes da modernização capitalista brasileira elucidam aquela contradição:

A abolição da escravatura (1888) foi proclamada a mais de cem anos e ate hoje não ocorreu nenhuma indenização ou reparação social para os chamados ex-escravos. O governo imperial financiou a política de importação de mão-de-obra imigrante européia e assalariada preteriu e relegou a mão de obra nacional ao desemprego e a economia informal.

O estudo do historiador Ramatis Jacino, em especial, o capítulo “trabalhadores negros” revela o processo de embranquecimento da classe trabalhadora no século XIX,

“O movimento de integração do negro ao trabalho assalariado, subordinado à lógica e à dinâmica da economia capitalista em ascensão ocorreu por iniciativa das elites cafeeiras, em todo o Império, com especial destaque para a cidade de São Paulo, principal, laboratório (…) da expulsão do ex-escravo do mercado de trabalho e das ideologias racistas, que desprezavam o trabalhador nacional não-branco e supervalorizava os europeus, foram materializadas no incentivo governamental e empresarial à imigração de maneira a que esses ocupassem os postos de trabalho na lavoura e na incipiente indústria, e, segundo o pensamento da época, os negros, “pardos”, “caboclos” e mesmo brancos nacionais (culturalmente e racialmente considerados impuros) na se adequariam à condição de livres”2 (JACINO, R. 2008)

O Estado Republicano no confronto com as lutas sociais revelou seu caráter elitista, repressor e genocida. Em diversos momentos da historia as reivindicações populares contra o autoritarismo e a exclusão social foram tratadas como “um caso de policia”. A Revolta da Chibata foi uma sublevação dos marinheiros, na sua maioria negra, que eclodiu no Rio de Janeiro em 1910, 22 anos apos a Abolição da Escravatura (1888).

A revolta liderada pelo marinheiro negro João Cândido, exigiam melhores condições de trabalho e salários e, principalmente, o fim dos castigos corporais impingidos aos marinheiros com a chibata – prática remanescente da escravidão até aquela época vigente na marinha brasileira, por isso a sublevação popular ficou conhecida como a “Revolta da Chibata,” 3. João Cândido e a Revolta da Chibata foram imortalizados no samba “O mestre sala dos mares” de João Bosco e Aldir Blanc, cuja letra e música foram censuradas pela Ditadura Militar. É possível inferir que a Revolta da Chibata foi a primeira manifestação sindical brasileira após a abolição formal do trabalho escravo, já no início da República e este episodio é pouco referenciado na historia da classe trabalhadora brasileira.

Há um grande desconhecimento das lutas de resistência negra na sociedade brasileira e a esquerda brasileira não está isenta desse fato. Estamos falando da chamada esquerda brasileira que tem em suas matrizes teóricas e políticas as duas principais vertentes: o marxismo-leninismo e o trotskismo4.

Em documentos e cartas de princípios das organizações de esquerda há pouquíssima referencia sobre a questão racial. Do Partido Comunista (1922) passando pelas organizações trotskistas que se estruturaram no Brasil a partir de 1931 com a formação da Seção Brasileira de Oposição Internacional de esquerda e ate as organizações políticas que sobreviveram a repressão do período pós-1964, não encontramos nenhum debate sobre as desigualdades das relações raciais na sociedade brasileira ou no mercado de trabalho 5. Conseqüentemente, o debate não adentrou a pauta trabalhista da classe trabalhadora.

Ate os anos de 1970, havia pouco ou quase nenhum debate sobre a discriminação no mercado de trabalho ou desigualdade salarial entre brancos e negros. O enfoque teórico da relação entre o capital e o trabalho como a principal contradição para explicar a exploração e a opressão de todos trabalhadores era orientação geral. Este enfoque não compreende que o racismo se estrutura no plano ideológico que se concretiza na exploração do trabalhador negro, porque deprecia o valor da sua força de trabalho e é fator de exclusão no mercado de trabalho. É dessa forma que se materializa a opressão especifica sobre os trabalhadores e trabalhadoras negras.

Nome importante da academia brasileira, como Caio Prado Jr., já havia apontado a ortodoxia da esquerda nacional, ressaltando que

“[…] a diversidade da realidade brasileira, assim como os aspectos culturais, de modo geral, não são considerados pela esquerda brasileira. Esse desconhecimento cria obstáculos para a unificação das forças, na medida em que o discurso da vanguarda revolucionária não sensibiliza outros grupos subalternos, e que, com isso, não criam uma base social hegemônica […]”6 (PRADO JR, 1972).

A desorientação da esquerda no Brasil em sua ação prática pode ser explicada no desconhecimento da situação da diversidade cultural e das diferentes contradições da classe trabalhadora brasileira. Sem dúvida, ao defender a perspectiva de eliminar as desigualdades econômicas da sociedade brasileira, a esquerda brasileira não contribuirá para a superação do racismo, na medida em que o estabelecimento da melhoria nas condições de vida elimina o aspecto material de manifestação do racismo, isto é, a pobreza. Todavia, isso por si só não eliminará a discriminação racial e a desvalorização social diante dos traços e referências culturais e civilizatórias da matriz africana.

A centralidade da contradição entre o capital e o trabalho impede a percepção de que a lógica capitalista de exclusão utiliza a diversidade étnica e cultural existente em meio à classe trabalhadora como fator de discriminação de gênero, raça, idade e religião. A centralidade exclusivista da teoria classista para explicar as desigualdades sociais brasileiras é equivocada porque interpreta de forma tradicional e etnocêntrica nossa formação social. Por isso encontra dificuldades em legitimar-se, por exemplo, perante a população negra, por não construir, culturalmente, uma identidade de raça e classe na luta pelo socialismo. O que por sua vez é um entrave à democratização da sociedade brasileira.

Uma interpretação da dominação de raça e classe a partir de uma releitura crítica dos estudos de Florestan Fernandes sobre a integração do negro na sociedade de classes demonstra que o amadurecimento das relações capitalistas de produção, longe de eliminar a desigualdade sociorracial, a recompõe sob a ótica da racionalidade da acumulação do capital. 7 (FERNANDES, 1988).

Sabemos que o valor da mercadoria trabalho, paga em forma de salário, esconde o tempo de mais trabalho que é apropriado pelo capitalista, e que essa troca não é justa, e sim desigual, e aí está o caráter de exploração dos trabalhadores. Sabemos também que o valor da força de trabalho não é pago de acordo com a necessidade de sobrevivência dos trabalhadores em geral. O valor da reprodução da força de trabalho é determinado socialmente.

A força de trabalho não é valorizada individualmente, mas sim coletivamente. É na história concreta de uma nação que encontramos os nexos explicativos da valorização ou não da força de trabalho. Portanto, se na sociedade brasileira há uma desvalorização social das dimensões de raça e gênero, ela incidirá como fator de barateamento no valor da força de trabalho das mulheres em geral e dos homens e mulheres negras em particular.

E, nesse contexto, afirmamos que a admissão da população negra no processo produtivo capitalista é mediada por uma articulação ideológica que determina a absorção da população negra na estrutura de classe de acordo com a necessidade de reprodução do capital e a orientação ideológica racial vigente.

Isso acaba por delinear um quadro em que a condição racial do trabalhador se transforma num dado seletivo na competição do mercado de trabalho. A identificação étnica e cultural de matriz africana conta como fator desfavorável a qualificação profissional dos negros, reservando-lhe a mais baixa posição na estrutura de emprego e o recebimento dos mais baixos salários, quer estejam no setor primário, quer no secundário ou no terciário. Tal fato se traduz no desemprego, no subemprego e na rotatividade da sua mão-de-obra, o que provoca o empobrecimento contínuo deste segmento populacional.

A compreensão da marginalização social da população negra, assim como a sua superação, está altamente comprometida com o grau de aceitação da centralidade da dominação nas relações de raça, classe e gênero. Aí fica visível a situação de exclusão social da mulher negra.

A dominação das relações de raça, classe e gênero é um fator explicativo das desigualdades da sociedade brasileira. Os tipos de dominação são interdependentes e se realizam no âmbito das relações capitalistas de produção. Não desaparece na dinâmica competitiva do capitalismo, apenas é distorcida pela ideologia racial vigente. Ela determina a forma de exploração da força de trabalho da população, quer seja masculina, feminina, branca ou negra e condiciona essa forma de trabalho em termos de sua inserção ou exclusão do processo produtivo, hierarquiza o tipo de ocupação, rendimentos salariais, posição na estrutura de classe e o grau de consciência negra dos trabalhadores.

Após a década de 1980 se estreitam os laços entre movimentos sociais e a esquerda brasileira. Com o Movimento Negro Brasileiro não foi diferente e no contexto luta contra a Ditadura Militar formaram-se alianças entre as forças democráticas e surgiu rica experiência de combate ao racismo no campo da esquerda. Essa história foi marcada pela trajetória do Núcleo Negro Socialista.

Embora a esquerda brasileira em geral não apresente um discurso de combate ao racismo, em uma de suas vertentes foi planejado um projeto de organização para a luta contra o racismo e dessa experiência surgiu em 1978 o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), posteriormente denominado Movimento Negro Unificado (MNU).

Entre l975 e 1978 várias lideranças negras se aproximaram das organizações de esquerda, cuja experiência no interior da Convergência Socialista levou ao surgimento do Núcleo Negro Socialista.

Segundo Hamilton Bernardes Cardoso, ativista político da época, o Núcleo Negro Socialista idealizou o MUCDR8. Esse projeto político foi criado estrategicamente pelas tendências trotskistas Liga Operária e Fração Bolchevique, que acabaram fundindo-se na Convergência Socialista (1974) 9.

À época, a Liga Operária desenvolvia uma política de atrair negros para a tendência trotskista. Esse processo foi impulsionado no final da década de 1970 com o crescimento dessa tendência na África do Sul e na Guiné-Bissau e a relativa expressão que teve nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960.

Em São Paulo, alguns militantes negros da Liga Operária que atuavam no meio universitário do eixo São Paulo–Campinas–São Carlos e alguns jornalistas do Jornal Versus, com o propósito de intervir na luta contra o racismo, formaram o Núcleo Negro Socialista.

O projeto idealizado pelo Núcleo Negro Socialista apontava para um movimento que aglutinasse não só o negro, mas todos aqueles que sofrem discriminações: negros, mulheres, indígenas etc., o que explica a denominação inicial Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR). O objetivo fundamental era legitimar a luta contra o racismo no plano sociopolítico, ampliar a consciência racial da sociedade brasileira e oferecer formação política para as lideranças negras.

Quanto à estrutura, o MUCDR constituía centros de luta formados por negros e núcleos de apoio dos outros movimentos sociais de composição plurirracial. O caráter nacional dessa proposta foi efetivado a partir da estratégia da Liga Operária de buscar lideranças negras nos vários estados brasileiros, o que possibilitou a formação de núcleos negros socialistas em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. A articulação nacional foi realizada por intermédio das comissões estaduais e de um boletim de divulgação interna que informava sobre a conjuntura política e o processo organizativo dos demais movimentos sociais.

Com a movimentação de negros de São Paulo e Rio de Janeiro, foi fundada no dia l8 de junho uma organização de combate à realidade de discriminação racial, o MUCDR. A assembléia de fundação, realizada em São Paulo, deliberou pelo lançamento público do movimento unificado, sair às ruas com um ato de protesto ao quadro das desigualdades sociorraciais.

Essa deliberação foi polêmica. A proposta do Núcleo Negro Socialista paulista não foi consensual, recebeu a oposição de militantes de uma entidade cultural do Movimento Negro, o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), fundado em 1970. O Núcleo Negro e o Cecan avaliavam a conjuntura política com pontos de vista diferentes. A divergência básica consistia em ser ou não aquele o momento propício para explicitar a luta contra o racismo e, principalmente, o caráter socialista da luta, na medida em que a época era ditatorial e de suspensão das garantias individuais.

O Cecan propôs não sair às ruas como forma de repudiar a data do 13 maio e a falsa abolição. O Núcleo Negro Socialista, ao contrário, propunha sair às ruas e apresentar uma visão critica sobre o que fora a abolição da escravatura, exatamente para quebrar o papel benevolente da princesa Isabel que sustentava o mito da democracia racial.

A proposta do Núcleo Negro Socialista foi vitoriosa e o 13 de Maio entrou no calendário do Movimento Negro Brasileiro como o Dia Nacional de Luta Contra o Racismo. Cabe salientar que como contraponto foi escolhida a data de 20 de novembro, como elemento mítico para a luta da população negra, que ficou conhecido como o Dia Nacional da Consciência Negra. Essa proposição, também do Núcleo Negro Socialista, tinha um objetivo, ampliar no Brasil a consciência social contra o racismo, de forma que, cada vez mais, os não-negros pudessem assumir e defender a melhoria da condição social dos negros brasileiros. Na verdade era uma política voltada para uma sociedade plurirracial, buscando resgatar e valorizar a memória de Zumbi dos Palmares.

Em junho de 1978 aconteceram dois episódios que precipitou o lançamento do MUCDR, posteriormente MNU. A imprensa paulista divulgou tratamento discriminatório a quatro atletas negros que foram impedidos de frequentar o Clube de Regatas Tietê de São Paulo e a violência policial que levou à morte o operário Robson Silveira da Luz. Essas circunstâncias motivaram protesto, mobilização e repúdio público contra o racismo na sociedade brasileira.

No dia 7 de julho de 1978, o MUCDR e várias entidades negras organizaram um ato público em frente às escadarias do Teatro Municipal de São Paulo com a presença de 3 mil pessoas em repúdio à discriminação racial. Nas palavras do MNU,

“[…] a discriminação racial, o desemprego e a violência policial fundamentavam seu surgimento e legitimavam sua organização, buscando conscientizar a comunidade negra e chamar a atenção da sociedade brasileira para a questão do racismo […]”10(MNU, 1988).

A proposta do Ato Público foi apoiada por outros estados. Organizações negras como a Escola de Samba Quilombo, o Renascença Clube, o Centro de Estudos Brasil-África, o Instituto de Pesquisa da Cultura Negra, o Núcleo Negro Socialista do Rio de Janeiro e também o Grupo Nego da Bahia e militantes de Minas Gerais estiveram presentes ao Ato ou enviaram moções de apoio. Em 7 de julho de 1978 essas entidades negras explicitaram à sociedade brasileira uma proposta política de combate ao racismo.

Entre a formação do MUCDR e a consolidação do MNU, primeira entidade de caráter nacional do Movimento Negro Contemporâneo, ocorreu um período de grande polêmica e reação ao projeto do Núcleo Negro Socialista, o qual avaliou a realização da primeira assembléia do MUCDR apontando os seguintes fatos: “[…] foi realizado em São Paulo, no dia 27 de julho, uma Assembléia Nacional do MUCDR, com a participação de diversas entidades do interior paulista, dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, com quase 350 pessoas. Nessa assembléia, definiu-se um programa mínimo para o movimento unificado, que abarcava desde a luta por melhores condições de vida até a libertação nacional. O único grupo a se posicionar como socialista foi o Núcleo Negro de São Paulo e do Rio de Janeiro. Houve muita resistência a esse posicionamento (…)” (Núcleo Negro Socialista s/d).

A partir desse momento, ocorreu uma cisão entre os negros que estavam organizados dentro da esquerda e aqueles que já haviam rompido com essa organização. O rompimento era justificado a partir do entendimento de que as organizações de esquerda não poderiam dar encaminhamento à luta antirracismo porque não havia prioridade política para a questão racial e também pela composição racial de sua direção, basicamente composta por brancos, o que dificultava a percepção da importância estratégica da luta contra o racismo na sociedade brasileira.

Aqueles que continuaram no Núcleo Negro Socialista compreendiam que seria necessário construir uma força política dentro da Convergência Socialista para que a luta antirracismo se tornasse uma preocupação da direção; portanto, seria preciso elaborar uma política antirracismo e ampliar o leque da militância na questão racial, absorvendo um maior número de negros para aquela organização.

Os negros do Núcleo Negro Socialista eram vistos como militantes da organização de esquerda que atuavam no movimento negro na perspectiva de formar uma frente de luta da organização, ao passo que os negros que haviam rompido com a tendência viam o movimento negro como um espaço autônomo, capaz de forjar uma política antirracismo. De qualquer forma, o Núcleo Negro Socialista não era monolítico. Havia unidade quanto à necessidade de uma política antirracismo e na aceitação dos princípios políticos da organização. Contudo havia pensamento divergente na maneira de atingir o objetivo central: a criação de um projeto político para a luta contra o racismo.

Por exemplo, alguns acreditavam que a relação do Movimento Negro com a esquerda deveria ser explícita para definir uma perspectiva socialista, outros achavam essa posição equivocada, dado o caráter repressivo da época.

Na II Assembléia Nacional do MUCDR, realizada em setembro de 1978, na cidade de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, o projeto do Núcleo Negro Socialista começou a sofrer alterações em função daquelas divergências. Segundo a avaliação do próprio Núcleo Socialista,

“[…]com as acusações do DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de que a Convergência Socialista dirigia o MNU o relacionamento piorou. Em São Paulo as entidades negras do interior de São Paulo se retiraram do MNU e no Rio de Janeiro ocorreu o afastamento do Núcleo Negro Socialista, por motivos internos da própria Convergência Socialista […]” (Núcleo Negro Socialista s/d)

Estes fatos alteraram a correlação de forças entre aqueles que disputavam a direção da luta contra o racismo. O resultado final da assembléia foi à inclusão da palavra “negro” na sigla e a supressão da referência “contra a discriminação racial”, na medida em que se transformava numa palavra de ordem, uma bandeira de luta, originando a denominação Movimento Negro Unificado (MNU).

Aqui também há uma controvérsia: segundo o posicionamento do MNU, a mudança de sigla ocorreu na I Assembléia de Organização e Estruturação Mínima para o movimento, com a presença de vários estados, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Essa assembléia ocorreu no dia 8 de julho de 1978, em São Paulo, na qual foi aprovada proposta do Rio de Janeiro de acrescentar a palavra “negro” ao nome “movimento”. Desse modo a denominação passou a ser Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial e, no I Congresso Nacional do MUCDR, realizado no Rio de Janeiro em dezembro de 1978, que reuniu delegados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo, o nome foi simplificado para MNU.

Mais do que uma mudança de sigla, essa alteração significou a ruptura da aliança com a esquerda no encaminhamento da luta antirracismo. O projeto inicial do Núcleo Negro Socialista foi reformulado a passou a existir como um organismo independente da estrutura e da direção da esquerda. Nascia o Movimento Negro Unificado. O movimento unificador de todas as formas de discriminação restringiu-se à relação branco/negro. Segundo a Carta de Princípios do MNU, seu objetivo básico era:

“[…] defesa do povo negro em todos os aspectos: político, econômico, social e cultural, através de maiores oportunidades de emprego, melhor assistência à saúde, à educação e à habitação, reavaliação do papel do negro na História do Brasil, valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização, folclorização e distorção; extinção de todas as formas de perseguição, exploração, repressão e violência; e liberdade de organização e de expressão do povo negro [...]” (MNU, 1988).

De todo modo a experiência do Núcleo Negro Socialista foi relevante na história da organização da luta do movimento negro pós 1978 11. Ela estreitou os laços entre marxismo e racismo, na medida em que aproximou a perspectiva de combate ao racismo da teoria de classe, despertou a consciência negra dos ativistas das organizações de esquerda e fortaleceu o setor do movimento negro brasileiro que ficou mais à esquerda.

Por fim, com objetivo de trazer outras questões que implicam neste debate, vale concluir a partir das críticas centrais ao marxismo elaboradas pelo etnólogo e cientista político Carlos Moore na obra o Marxismo e a questão racial, sintetizadas por Gilberto Neves, militante do PT em Minas Gerais, que no Posfácio da obra alinhavou os seguintes aspectos:

“1. o eurocentrismo de formulações marxistas, tornando o protótipo social e valorativo dos europeus a referencia exclusiva de modelo histórico para generalizações de compreensão do desenvolvimento das sociedades fora da Europa (consideradas “sem história” ou “não históricas”);

2. a escravidão racial, reduzida à categoria econômica e pilar do crescimento industrial ocidental moderno e da ascensão da classe trabalhadora (não importando o sofrimento imposto aos negros africanos), aceitando-a como “necessária” e um “direito” dos colonizadores brancos em nome da “civilização ocidental”;

3. a equiparação equivocada da escravidão racial à escravidão greco-romana, a qual escravizava as presas de guerra na Antiguidade (não importando raça ou cor), enquanto a escravidão moderna constituiu a servidão especificamente dos negros do continente africano;

4. o etnocentrismo e o racismo nas idéias marxistas por meio da legitimação “científica” e crença numa suposta “superioridade” dos brancos sobre a “inferioridade dos negros, e em noções de sociedades “civilizadas” e “não civilizadas”, raças “desenvolvidas” e “atrasadas” e povos “progressistas” e “retrógados”;

5. o assimilacionismo de alguns povos a outros (pan-eslavistas pelos germânicos, argelinos pelos franceses, mexicanos pelos americanos, indianos pelos ingleses, etc.) para cumprir “necessidades históricas” no interesse da “civilização” e do Socialismo”;

6. o determinismo “científico” justificador da pilhagem dos países “atrasados” não europeus (na África, América, etc.) para prover a base material do desenvolvimento do capitalismo industrial e da classe trabalhadora na Europa e América do Norte, desfavoravelmente à luta dos povos não brancos contra os colonizadores e a agressão “ariana”; e

7. o internacionalismo seletivo de Marx e Engels, favorável ao imperialismo (invasão francesa na Argélia, expansionismo americano contra os mexicanos, dominação dos ingleses contra os indianos, desprezo à libertação do Haiti pelos negros, etc.), e o fato de a Primeira Internacional Socialista (1869) não ter se posicionado sobre a colonização ocidental, o tráfico negreiro e a escravização de africanos nas Américas.” (MOORE, C. 2010)

Diante dessas questões presentes nas obras dos fundadores teóricos do marxismo apontados por Carlos Moore, e mesmo considerando a importância dos trabalhos de Marx e Engels para a compreensão da dinâmica por trás da evolução socioeconômica das comunidades humanas em geral e do desenvolvimento, e o mecanismo interno do Capitalismo no século XIX, Moore assinala que é “impossível a inclusão da condição negra nessa ‘pretensão universalista’.

“um negro é um negro. Em certas situações é transformado em um escravo. Um tear é uma máquina para fiar algodão. Apenas sob certas circunstâncias torna-se capital.” (Passagem encontrada em O Capital, III, traduzido por Ernest Untermann, Chicago, 1909. p.948). Grifos de Carlos Moore que afirma: “É óbvio que dizer: ‘um negro é um negro. Em certas situações é transformado em um escravo’ não é a mesma coisa que dizer: ‘um negro é um homem livre. Em certas situações é transformado em um escravo’. O paralelo estabelecido entre um ‘negro’ e um “tear” reflete mais do que uma coincidência de termos. Mostra até que ponto um negro era, no pensamento de Marx e Engels, sinônimo de ‘coisa’ – outro instrumento de trabalho a ser agrupado juntamente com um tear ou um arado”. Citado em O Marxismo e a Questão Racial.

A citação acima quer ilustrar a afirmação de que existe um conflito de natureza ideológica entre as lideranças e militantes do Movimento Negro, em particular do setor considerado mais radical e mais à esquerda, e os intelectuais e sindicalistas, lideranças e militantes da esquerda no início da década de 1980; caldo de cultura já presente no nascedouro da formação do Partido dos Trabalhadores. Esta tensão ideológica permeou a relação entre esses dois blocos políticos: os que concebiam uma visão política estratégica, cujo eixo central defendia a luta política contra o racismo e o setor que concebia a sua principal estratégia na priorização da luta mais geral pela democratização da sociedade brasileira na perspectiva de construção do socialismo. A questão é que os que consideravam a perspectiva socialista secundarizavam a luta travada pela militância negra do Movimento Negro.

Juarez Guimarães afirma que o equívoco de Marx foi o de legitimar o Estado de transição socialista na “universalidade do proletariado”, concebido como “classe universal e revolucionária” simplesmente pelo fato de sua contradição com o capital. Em que pese a potencialidade para projetos alternativos, a simples contradição proletariado x burguesia não faz dele necessariamente uma classe universal ou revolucionária. Houve aí uma espécie de determinismo sociológico. Uma vez no poder, essa noção de “classe universal” determinista mostrou-se antidemocrática e anti-plural (GUIMARAES, 2005)

Diante dessas reflexões críticas endereçadas ao capitalismo e à visão economicista e reducionista dos socialistas, caberá à esquerda, na contemporaneidade posicionar-se na luta política de combate ao racismo e compreendê-la como um enfrentamento estratégico em sociedades profundamente marcadas pelas desigualdades raciais como a sociedade brasileira, de modo que, a concepção política antirracista integre um programa libertário e emancipador, de forma que as lutas pelas reparações raciais históricas, as ações afirmativas e as politicas de igualdade racial sejam incorporadas ao projeto do socialismo democrático que leve à superação do racismo.

Para tanto será necessário aprofundar a reflexão que liberte de crenças teórico-ideológicas remanescentes de estruturas intelectuais deterministas. Os militantes negros socialistas e petistas devem desenvolver a luta antirracista com um olhar aberto para as novas perspectivas na luta por uma sociedade verdadeiramente justa, democrática, igualitária e plural, de forma que os povos vivam movidos pela força da riqueza que é a diversidade humana e as diferenças culturais que os mobilizam para a vida.


1. Ver PRADO Jr, Caio – A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1972, 4ª ed.; RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro, Editorial Andes, 1957; IANNI, Octavio. Capitalismo e racismo (1972), Escravidão e racismo. São Paulo, Hucitec, 1978; Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1987; GONZÁLEZ, Lélia e HASEMBALG, Carlos A. Lugar de negro. São Paulo, Marco Zero, 1982; MOURA, Clóvis. O negro, de bom escravo a mau cidadão. Rio de Janeiro. Editora Conquista, 1977; Rebeliões da Senzala. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1981; Brasil: Raízes do protesto negro. São Paulo, Global Editora, 1983; Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Ática, 1988; Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, Anita, 1994.

Florestan Fernandes foi um dos intelectuais de origem popular que participou do PT desde a sua criação e de forma orgânica desenvolveu uma sociologia critica ao modelo burguês de incorporação subalterna do negro na sociedade de classes. A defesa da livre docência na USP para assumir cadeira de titular sociologia no ano de 1964 ocorreu com a tese “A integração do negro na sociedade de classes”.

2. Ver Jacino, Ramatis – Branqueamento do Trabalho. São Paulo, Nefertiti Editora, 2008, pag. 120.


3. MOREL, Edmar. A Revolta da Chibata. Rio de Janeiro. Edições Graal, 1979. Consultar: João Cândido, o Almirante Negro. Rio de Janeiro: Gryphus: Museu da Imagem e do Som, 1999.

4. Ver a historia da esquerda brasileira em REIS FILHO, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira – Imagens da Revolução. RJ. Marco Zero, 1985, 1ª. Ed., pag.7-22.

5. A única exceção foi o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que em seu manifesto-programa de fevereiro de l962 mencionou posição contrária a todas as formas de racismo, referindo-se à realidade do negro brasileiro.

6. PRADO JR, Caio. Op. Cit., pag. 20

7. FERNANDES, Florestan. “Lutas de raça e de classes”. Teoria e Debate, SP, Diretório Regional do PT-SP, n. 2, mar. 1988.

8. Entrevista realizada em outubro de 1989 na cidade de São Paulo.

9. A Convergência Socialista surgiu a partir de 1974, quando militantes da Fração Bolchevique Trotskista de São Paulo e o grupo Ponto de Partida, de tendência leninista-trotskista do Secretariado Unificado, formam a Liga Operária, a qual teve como referência internacional o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) da Argentina. No início de 1975 a Liga Operária realizou o II Congresso e decidiu concentrar suas forças nos movimentos operário e estudantil do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em 1977 realizou sua primeira conferência e mudou o nome da organização para Partido Socialista dos Trabalhadores. No começo de 1978 lançou o Movimento Convergência Socialista, cujo objetivo era aglutinar setores militantes “socialistas” para a formação de um partido socialista no Brasil.

10. MNU: 1978-1988 – Dez Anos de luta contra o racismo. SP. Confraria do Livro, 1988.

11. Ver polemica sobre a importância do Núcleo Negro Socialista no livro: Negro e o socialismo.

SOCIALISMO             octavio ianni
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DESDE NOSSA COLONIZAÇÃO ATÉ OS DIAS ATUAIS,
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RELAÇÃO DIRETA COM A DISCRIMINAÇÃO –...
Socialismo em discussão




      O NEGRO E
    O SOCIALISMO
       Octavio Ianni
      Benedita da Silva
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O negro e o socialismo
Octavio Ianni ............................................................................. 7

Come...
Debate com o público
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O negro e
o socialismo
Octavio Ianni


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fluente conjugação...
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podem ser consideradas condições fundamentais não só...
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permeando o agrarismo e o industrialismo, a ruralidade e a urbanidade,
     os espaços públicos e privados, leigos e relig...
ções públicas às privadas, impregnando amplamente subjetividades, mo-
dos de ser, sentir, pensar, agir, compreender, fabul...
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Mais uma vez, esse é o cenário no qual o negro revela-se uma catego-
     ria social importante, decisiva. A envergadura e...
Comentários
Benedita da Silva

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intervenção de Oc...
para nós estarmos hoje nesta mesa para falarmos de tal assunto. Temos
     na colonização esta marca racial, que nós ident...
mas como uma problemática nacional que, portanto, deve ser discutida
e colocada como prioridade.
   Temos visto a discrimi...
ras dos negros, rediscutir os remanescentes dos quilombos nesse con-
     texto. Quando formos discutir a questão de salár...
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seus direitos, encontram dentro desse contexto um grande enfrentamento.
Quais instrumentos encontramos nessa classe popula...
20   O NEGRO E O SOCIALISMO
Comentários
Gevanilda Santos

  A luta contra o racismo na esquerda brasileira – A década de
1970 é um marco importante pa...
sociais de dominação e opressão. A implicação desse pressuposto foi ob-
     servada em relação à raça e ao gênero. O maio...
luta contra o capitalismo. O novo desafio era construir essa mesma
aliança na luta contra o racismo. A nova estratégia anu...
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dade de classes (1964). Ele concluiu seus estudos sobre a revolução
1. Ver PRADO Jr., Caio.
A revolução brasileira.
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que está submetida a maioria dos negros, o que, em outras palavras,
significa dizer que o único fator de discriminação soc...
O Núcleo Negro Socialista: a luta de combate ao racismo sob a
                                   hegemonia da matriz ideol...
na Guiné-Bissau e a relativa expressão que teve nos Estados Unidos nas
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  Em São Paulo, alguns mili...
entidade cultural do movimento negro, o Centro de Cultura e Arte Negra
     (Cecan), fundado em 1970. O Núcleo Negro e o C...
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acirramento daquela divergência: a divulgação na imprensa p...
A proposta do Ato Público foi apoiada por outros estados. Organiza-
                                ções negras como a Esc...
padrão sociorracial vigente e encontrava ressonância política e orga-
nizativa na experiência de organização da luta dos n...
caráter de classe das manifestações culturais ao priorizar a valorização
                                 da identidade ra...
cia Socialista para que a luta anti-racismo se tornasse uma preocupação
da direção; portanto, seria preciso elaborar uma p...
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Estes fatos alteraram a correlação de forças entre aqueles que dispu-
                                 tavam a direção da ...
folclorização e distorção; extinção de todas as formas de perse-
      guição, exploração, repressão e violência; e liberd...
ao racismo dentro da esquerda foi uma vitória como criação, mas um
                                 fracasso em seu proces...
determinado socialmente. A força de trabalho não é valorizada individual-
mente, mas sim coletivamente. É na história conc...
seja masculina, feminina, branca ou negra e condiciona essa forma de
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O negro e o socialismo
Luiz Alberto Silva Santos

  Escravidão e capitalismo – O capitalismo acelerou sua expansão
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     ficamente, não representou o fim da divisão ra...
A globalização capitalista como conjunto de fatores que sintetizam o
ideário da hegemonia do capital financeiro em detrime...
A trágica conclusão do IPEA – de que o Brasil branco é 2,5 mais rico
     que o Brasil negro – invoca uma tomada de decisõ...
cursos genéricos sobre excluídos e trabalhadores, deixando de reconhe-
cer que, para além das diferenças de classe, a disc...
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dívida histórica com a população de origem africana no país, incentivando
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Comentários
Octavio Ianni

  Peço licença para fazer duas ou três observações, já que os comentá-
rios desenvolvidos por B...
relações de gênero, as relações étnicas, as relações religiosas, todas esta-
     vam dissolvidas na questão de classes. I...
Penso, com relação à esquerda, à questão racial – raça ou classe –,
que o movimento negro precisa superar esse estado de e...
desde que contemplado, desde que incorporado dentro de uma perspec-
     tiva realista, que reconheça a questão do preconc...
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Debate com o público

  Carioca                             missa de que o problema do negro
  Sou diretor do Sindicato de...
O Negro e o socialismo
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