O socialismo em discussão
https://www.marxists.org/portugues/tematica/livros/diversos/negro.pdf
DESDE NOSSA COLONIZAÇÃO ATÉ OS DIAS ATUAIS, A QUESTÃO RACIAL E A QUESTÃO NACIONAL TÊM RELAÇÃO DIRETA COM A DISCRIMINAÇÃO – VELADA OU EXPLÍCITA – SOFRIDA PELOS NEGROS EM DIVERSOS ÂMBITOS. NAS PALAVRAS DE OCTAVIO IANNI, TRATA-SE DE UMA QUESTÃO QUE “SEMPRE FOI, TEM SIDO E CONTINUARÁ
A SER UM DILEMA FUNDAMENTAL DA FORMAÇÃO, CONFORMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA”. NESTE VOLUME DA COLEÇÃO SOCIALISMO EM DISCUSSÃO É ABORDADA A RELAÇÃO NEM SEMPRE TRANQÜILA ENTRE AS ESQUERDAS E A , QUESTÃORACIAL, E COMO ISSO AFETA OS PARTIDOS E O MOVIMENTO NEGRO.
(Abertura do livro O socialismo em discussão, com a participação de Octavio Ianni,
Benedita da Silva, Gevanilda Gomes Santos e Luiz Alberto Santos)
Gevanilda Santos
A luta contra o racismo na esquerda brasileira
A década de 1970 é um marco importante para a história do Movimento Negro Brasileiro. Ela inaugurou uma nova fase da luta em defesa dos direitos da população negra.
Nessa nova fase, as diversas instituições brasileiras foram averigua- das quanto à existência de desigualdade sociorracial e à possibilidade de integrar o negro na sociedade de classes, para usar as palavras do sociólogo Florestan Fernandes.
Ao longo da década de 1980 a atuação das representações do Movimento Negro Brasileiro em suas diversas vertentes – cultural, recreativa, religiosa ou política-reivindicatória – unificava a perspectiva de denunciar, de forma particular ou geral, a situação de desvantagem social da população negra. A unidade de ação gravitava em torno da denúncia do racismo e da condição de classe dos trabalhadores negros.
Ao mesmo tempo, a leitura marxista das categorias de raça e de classe adquire novo sentido histórico e teórico. Considerando o pressuposto marxista geral de que o processo de produção e reprodução capitalista não gera apenas coisas, ou seja, mercadorias, mas principalmente relações sociais de dominação e opressão. A implicação desse pressuposto foi observada em relação à raça e ao gênero. O maior desafio teórico era com- preender o racismo e o machismo na interface com a luta de classes. A exploração econômica da população negra e a opressão social passam a ser consideradas decorrências do capitalismo e do racismo.
É dentro desse marco histórico que podemos falar do surgimento de novos referenciais teóricos à compreensão da relação entre raça e classe. O racismo passa a ser explicado como uma decorrência das relações sociorraciais desiguais e, como tal, se constitui em mais uma contradição da sociedade capitalista e autoritária a ser superada no processo de democratização da sociedade brasileira.
A trajetória da categoria “raça” foi reinterpretada politicamente para afirmar a identidade racial do negro brasileiro, mobilizar ação de protesto contra o racismo e denunciar o mito da democracia racial. O primeiro passo já estava dado. O passo seguinte foi reinterpretar a categoria “raça” na dinâmica da sociedade de classes brasileira.
A gênese autoritária do Estado brasileiro passa a ser reconhecida no processo da abolição da escravatura, que ocorreu sem nenhuma repara- ção social para os ex-escravos, na política de importação de mão-de-obra imigrante e assalariada e no caráter elitista da proclamação da República.
As modernizações lentas, graduais e conservadoras do capitalismo no Brasil – no período nacionalista de Getúlio Vargas ou na fase de abertura ao capital internacional, desde Juscelino Kubitschek até a fase pós-ditadura militar de 1964 – lograram a exclusão da população negra por falta de mobilidade social nos marcos da competição capitalista. A integração do negro na sociedade de classe sob um modelo jurídico de Estado autoritário e disciplinador da classe trabalhadora começa a ser questionada.
A partir da década de 1970 os movimentos sociais, os partidos políti- cos de oposição, oficiais ou clandestinos, foram aliados estratégicos na luta contra o capitalismo. O novo desafio era construir essa mesma aliança na luta contra o racismo. A nova estratégia anunciada era dialogar com aqueles setores da sociedade brasileira para testar a hipótese do amadurecimento das relações democráticas nos marcos de uma sociedade socialista.
Não estamos afirmando que naquele momento essa nova estratégia de combate ao racismo tenha solucionado definitivamente tal problemática. Apenas queremos registrar que a partir de então ocorreu o desnudamento das contradições das relações sociorraciais brasileiras nas várias esferas da sociedade, inclusive das organizações de esquerda.
Nesse período podemos falar do surgimento do Núcleo Negro Socialista. Veremos adiante um breve histórico desse organismo mais à es- querda do Movimento Negro Contemporâneo, que estimulou um debate acerca do significado da correlação entre ser negro e ser branco numa estrutura capitalista ou socialista. A elaboração teórica e a intervenção política do Núcleo Negro Socialista chamaram a atenção para as variá- veis da relação de raça e classe, de forma não mais hierárquica, mas sim interdependente, a fim de obter maior objetividade nas relações sociais de um país cuja formação social foi construída na simbiose entre capitalismo e escravidão.
A condição da pobreza da população negra – um fator decorrente da exploração da classe dos trabalhadores – começa a ser mais investigada e questionada. O pensamento social que insistia em negar a existência do racismo no interior da classe trabalhadora brasileira, alegando a centralidade da contradição entre capital e trabalho, foi denominado pen- samento marxista ortodoxo.
Estava aberto o debate entre marxismo e diversidade cultural no inte- rior da classe trabalhadora. O marco histórico deste pensamento foi Florestan Fernandes, com sua obra A integração do negro na sociedade de classes (1964). Ele concluiu seus estudos sobre a revolução burguesa brasileira afirmando que ela incorporou de modo subalterno o negro na sociedade. Outros nomes representativos desse novo pensamento foram Caio Prado Jr., Guerreiro Ramos, Octavio Ianni, Lélia 1 González, Hamilton Bernardes Cardoso e Clóvis Moura.
1. Ver PRADO Jr., Caio. A revolução brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1972, 4a ed.; RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro, Editorial Andes, 1957;
IANNI, Octavio. Capitalismo e racismo (1972), Escravidão e racismo. São Paulo, Hucitec, 1978; Raças e classes sociais no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1987;
GONZÁLEZ, Lélia e HASEMBALG, Carlos A. Lugar de negro. São Paulo, Marco Zero, 1982;
MOURA, Clóvis. O negro, de bom escravo a mau cidadão. Rio de Janeiro, Conquista, 1977; Rebeliões da senzala. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1981; Brasil: Raízes do protesto negro. São Paulo, Global Editora, 1983; Sociologia do negro brasileiro. São Paulo, Ática, 1988; Dialética radical do Brasil negro. São Paulo, Anita, 1994.
2. Ver a história da esquerda brasileira em REIS FILHO, Daniel Aarão e SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da revolução. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1985, 1a ed., p. 7-22.
Quais foram os elementos históricos que deram forma a essa nova interpretação teórica? Vejamos um pouco desse momento histórico.
Relações raciais no interior da classe trabalhadora –
A chamada esquerda brasileira tem entre suas principais matrizes teóricas e políticas 2 duas vertentes: o marxismo-leninismo e o trotskismo.
Essa esquerda – desde a fundação do Partido Comunista (PCB) em 1922, passando pelas organizações trotskistas que se estruturaram no Brasil a partir de 1931 com a formação da Seção Brasileira de Oposição Internacional de esquerda e pelas organizações políticas que existiram no período repressivo pós-1964 – desconhece e, conseqüentemente, não debate as relações raciais no interior da classe trabalhadora brasileira.
Em documentos e cartas de princípio das organizações clandestinas da década de 1970 não havia nenhuma referência à desigualdade sociorracial brasileira. Não havia nenhuma reflexão que pudesse insinuar que o racismo também era um componente de dominação dos trabalhadores brasileiros. A única exceção foi o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que em seu manifesto-programa de fevereiro de l962 mencionou posição contrária a todas as formas de racismo, referindo- se à realidade do negro brasileiro.
O argumento implícito é que a proposta classista de transformação da sociedade capitalista soluciona a problemática da população negra. Essa argumentação é resultado de uma concepção política que com- preende o racismo como uma conseqüência da pobreza generalizada a que está submetida a maioria dos negros, o que, em outras palavras, significa dizer que o único fator de discriminação social é a pobreza. A esquerda admitia o exclusivismo do enfoque capital–trabalho como a principal contradição para explicar a exploração e a opressão da população negra no Brasil.
Alguns nomes importantes da academia brasileira, como Caio Pra- do Jr., já haviam apontado a ortodoxia da esquerda nacional, ressaltando que
“[...] a diversidade da realidade brasileira, assim como os aspec- tos culturais, de modo geral, não são considerados pela esquerda brasileira. Esse desconhecimento cria obstáculos para a unifica- ção das forças, na medida em que o discurso da vanguarda revo- lucionária não sensibiliza outros grupos subalternos, e que, com 3 isso, não criam uma base social hegemônica [...]” .
A desorientação da esquerda no Brasil em sua ação prática pode ser explicada no desconhecimento da situação da diversidade cultural e das diferentes contradições da classe trabalhadora brasileira. Sem dúvida, ao defender a perspectiva de eliminar as desigualdades econômicas da sociedade brasileira, a esquerda brasileira contribuirá para a superação do racismo, na medida em que o estabelecimento da melhoria nas condições de vida elimina o aspecto material de manifestação do racismo, isto é, a pobreza. Todavia, isso por si só não eliminará a discriminação e a desvalorização social diante dos traços culturais da matriz africana.
As organizações e os partidos de esquerda, no início da década de 1970, não possuíam prática e discurso de combate ao racismo e não dimensionavam o grau de opressão racial existente na sociedade brasileira.
Vejamos como essa situação começa a se alterar.
3. PRADO JR., Caio, op. cit., p. 20. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 25
4. CARDOSO, Hamilton Bernardes. Depoimento do autor em outubro de 1989, São Paulo, Capital.
5. SILVA, Antônio Ozai. História das tendências no Brasil. São Paulo, Ensaio, 1990.
O Núcleo Negro Socialista: a luta de combate ao racismo sob a hegemonia da matriz ideológica da esquerda –
Embora a esquerda brasileira em geral não apresente um discurso de combate ao racismo, em uma de suas vertentes foi planejado um projeto de organização para a luta contra o racismo e dessa experiência surgiu em 1978 o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR), posteriormente de- nominado Movimento Negro Unificado (MNU).
O período de inserção da luta contra o racismo na perspectiva de raça/ classe está intimamente ligado à experiência de várias lideranças negras dentro da esquerda, entre 1975 e 1978 e o surgimento do Núcleo Negro Socialista no interior da Convergência Socialista.
Segundo o depoimento de um militante dessa época, o MUCDR foi idea- 4 lizado pelo Núcleo Negro Socialista . Esse projeto político foi criado estrategicamente pelas tendências trotskistas Liga Operária e Fração Bolchevique, que acabaram fundindo-se na Convergência Socialista. Esta surgiu a partir de 1974, quando militantes da Fração Bolchevique Trotskista de São Paulo e o grupo Ponto de Partida, de tendência leninista-trotskista do Secretariado Unificado, formam a Liga Operária, a qual teve como referência internacional o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) da Argentina. No início de 1975 a Liga Operária realizou o II Congresso e decidiu concentrar suas forças nos movimentos operário e estudantil do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em 1977 realizou sua primeira conferên- cia e mudou o nome da organização para Partido Socialista dos Traba- lhadores. No começo de 1978 lançou o Movimento Convergência Socialista, cujo objetivo era aglutinar setores militantes “socialistas” para a 5 formação de um partido socialista no Brasil .
À época, a Liga Operária desenvolvia uma política de atrair negros para a tendência trotskista. Esse processo foi impulsionado no final da década de 1970 com o crescimento dessa tendência na África do Sul e na Guiné-Bissau e a relativa expressão que teve nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960.
Em São Paulo, alguns militantes negros da Liga Operária que atuavam no meio universitário do eixo São Paulo–Campinas–São Carlos e alguns jornalistas do jornal Versus, com o propósito de intervir na luta anti-racis- mo, formaram o Núcleo Negro Socialista.
O projeto idealizado pelo Núcleo Negro Socialista apontava para um movimento que aglutinasse não só o negro, mas todos aqueles que so- frem discriminações: negros, mulheres, indígenas etc., o que explica a denominação inicial Movimento Unificado Contra a Discriminação Ra- cial (MUCDR). O objetivo fundamental era legitimar a luta contra o racis- mo no plano sociopolítico, ampliar a consciência racial da sociedade bra- sileira e oferecer formação política para as lideranças negras. Quanto à estrutura, o MUCDR possuía centros de luta formados por negros e nú- cleos de apoio dos outros movimentos sociais de composição plurirracial.
O caráter nacional dessa proposta foi efetivado a partir da estratégia da Liga Operária de buscar lideranças negras nos vários estados brasileiros, o que possibilitou a formação de núcleos negros socialistas em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. A articulação nacional foi realizada por intermédio das comissões estaduais e de um boletim de divulgação interna que informava sobre a conjuntura política e o processo organizativo dos demais movimentos sociais.
Com a movimentação de negros de São Paulo e Rio de Janeiro, foi fundada no dia l8 de junho uma organização de combate à realidade de discriminação racial, o MUCDR. A assembléia de fundação, realizada em São Paulo, deliberou pelo lançamento público do movimento unifi- cado com um ato de protesto ao quadro das desigualdades sociorraciais. Essa deliberação foi polêmica. A proposta do Núcleo Negro Socialista paulista não foi consensual, recebeu a oposição de militantes de uma entidade cultural do movimento negro, o Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), fundado em 1970. O Núcleo Negro e o Cecan avaliavam a conjuntura política sob ponto de vista diferente. A divergência básica consistia em ser ou não aquele o momento propício para explicitar a luta contra o racismo e, principalmente, o caráter socialista da luta, na medida em que a época era ditatorial e de suspensão das garantias individuais. Esses dois setores estavam em confronto desde maio de 1978. À época das comemorações do 13 de Maio, o Cecan propôs uma manifestação de protesto à falsa liberdade concedida pela Lei Áurea, na qual a população não sairia às ruas como forma de repudiar a data. Eles compreendiam que o 13 de Maio não deveria ser come- morado porque a população negra continuava sendo discriminada, opri- mida e explorada. O Núcleo Negro Socialista, ao contrário, propunha sair às ruas porque avaliava que o 13 de Maio era uma data significa- tiva para a população negra, mas que necessitava de uma visão crítica sobre o que fora a abolição da escravatura, exatamente para quebrar o mito da princesa Isabel como redentora que sustentava o mito da democracia racial.
A proposta do Núcleo Negro Socialista foi vitoriosa e o 13 de Maio entrou no calendário do Movimento Negro Brasileiro como o Dia Nacio- nal de Luta Contra o Racismo. Cabe salientar que como contraponto foi escolhida a data de 20 de novembro, como elemento mítico para a luta da população negra, que ficou conhecido como o Dia Nacional da Consciência Negra. Essa proposição, também do Núcleo Negro Socialista, tinha um objetivo, ampliar no Brasil a consciência social contra o racis- mo, de forma que, cada vez mais, os não-negros pudessem assumir e defender a melhoria da condição social dos negros brasileiros. Na verdade era uma política voltada para uma sociedade plurirracial, buscando resgatar e valorizar a memória de Zumbi dos Palmares.
Em junho de 1978 aconteceram dois episódios importantes para o acirramento daquela divergência: a divulgação na imprensa paulista do tratamento discriminatório a quatro atletas negros que foram impedidos de freqüentar o Clube Tietê de São Paulo e a violência policial que levou à morte o operário Robson Silveira da Luz. Essas circunstâncias motivaram protesto, mobilização e repúdio público contra o racismo na sociedade brasileira. No dia 7 de julho de 1978, o MUCDR e várias enti- dades negras organizaram um ato público em frente às escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em repúdio à discriminação racial. Nas palavras do MNU,
“[...] a discriminação racial, o desemprego e a violência policial fundamentavam seu surgimento e legitimavam sua organização, buscando conscientizar a comunidade negra e chamar a atenção 6 da sociedade brasileira para a questão do racismo [...]” .
A divergência se acentua, o Cecan e outras entidades negras que dis- cordavam dessa forma de manifestação não participaram do Ato Público realizado no dia 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Munici- pal de São Paulo, com a presença de 2 mil pessoas.
A carta convocatória ao Ato Público foi assinada por apenas seis das 13 organizações negras que estavam articuladas nesse processo: Afro-Latino-América (Centro de Intervenção do Núcleo Negro Socialista de São Paulo, por intermédio do jornal Versus), Associação Recreativa Brasil Jovem, jornal Capoeira, Grupo de Atletas Negros, Associação Cristã 7 Beneficente do Brasil e grupo Decisão . Este último surgiu de uma dissidência do Cecan e era formado por lideranças que apoiavam a mani- festação pública da luta contra o racismo. Esse grupo político posterior- mente aderiu ao MUCDR.
Dez anos de luta contra o racismo (1978 -1988). São Paulo, Confraria do Livro, 1988.
7. As 13 entidades participan-tes foram o Centro de Cultura e Arte Negra, Grupo Afro Latino- América, Câmara de Comércio Afro-Brasileira, jornais Abertura e Capoeira, Associa- ção Recreativa Brasil Jovem, Associação Casa de Arte e Cultura Afro-Brasileira, Associação Cristã Beneficente do Brasil, Grupo de Atletas Negros, Company Soul, Zimbabwe e Grupo de Artistas Negros. Ver GONZÁLEZ, Lélia e HASEMBALG, Carlos A., op. cit.
8. MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, op. cit.
A proposta do Ato Público foi apoiada por outros estados. Organiza- ções negras como a Escola de Samba Quilombo, o Renascença Clube, o Centro de Estudos Brasil-África, o Instituto de Pesquisa da Cultura Ne- gra, o Núcleo Negro Socialista do Rio de Janeiro e também o Grupo Nego da Bahia estiveram presentes ao Ato ou enviaram moções de apoio. Em 7 de julho de 1978 essas entidades negras explicitaram à soci- edade brasileira uma proposta política de combate ao racismo.
Como vimos, o projeto do Núcleo Socialista foi vitorioso na medida em que colocou a ação política de combate ao racismo nas ruas, apontando o seu caráter de classe. O racismo, nessa nova leitura, se impunha como um instrumento de exploração e opressão da população negra, que não encontrava solução dentro da ordem burguesa. Mas isso não significava que as entidades negras já existentes também defendessem essa nova leitura, ou mesmo integrassem o MUCDR. Apesar de não apoiar essa for- ma de intervenção mais politizada, elas, em maior ou menor grau, legiti- maram o processo e acompanham o impulso dado por ele.
O embate político-teórico sobre o racismo – Além da leitura ini- cialmente apresentada, que reconhece uma matriz de esquerda na idealização do projeto de combate ao racismo nos anos 1970, há uma outra leitura que minimizava essa contribuição e acentuava como ele- mento fundamental nesse processo a efervescência cultural da popula- 8 ção negra iniciada na década de 1970 .
Essa movimentação cultural ocorreu em razão da conjuntura repressi- va e recessiva que impunha sérias restrições à qualidade de vida da população negra. Em resposta a esse mecanismo de exclusão surgiram mobilizações da população negra de caráter cultural que, por si sós, representavam um protesto às condições de vida e ao modelo racial vigente. A efervescência cultural revelava a identidade racial reprimida pelo padrão sociorracial vigente e encontrava ressonância política e organizativa na experiência de organização da luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis e nas guerras de libertação dos povos africanos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.
Essa leitura destaca um ponto importante quanto à diferença na forma de organização da luta contra o racismo na Bahia e no eixo São Paulo– Rio de Janeiro, observando que, enquanto Salvador priorizou as manifestações culturais para chegar ao político, em São Paulo e no Rio de Janeiro, sob o impulso do Núcleo Negro Socialista, acentuou-se a participa- ção com uma linguagem essencialmente política, por meio de concentração em praça pública, distribuição de panfleto e ato público.
As duas posições explicativas do surgimento da luta contra o racismo nos levam a concluir que foram várias as forças envolvidas na formação do projeto de combate ao racismo dos anos 1970 e também evidenciam uma descontinuidade entre uma forma de intervenção que priorizou a manifestação cultural de protesto e outra que priorizou a perspectiva de politização da manifestação cultural, sob a hegemonia de uma matriz ideológica de esquerda. As lideranças negras oriundas do Núcleo Negro Socialista aproximavam-se das manifestações culturais como potencial de mobilização para ampliar a consciência de raça e de classe. As lide- ranças negras oriundas do processo cultural compreendiam a mobilização cultural como canal de pressão contra a ideologia racial vigente e de formação da consciência negra, capaz de resgatar a identidade racial reprimida pelo mito da democracia racial.
A ausência de continuidade entre as duas perspectivas de organização da luta contra o racismo pôde revelar que, por um lado, os setores de esquerda instrumentalizavam o cultural apenas na medida em que ele manifestasse um protesto à realidade de discriminação racial; por outro lado, revelou também que algumas lideranças negras minimizavam o caráter de classe das manifestações culturais ao priorizar a valorização da identidade racial em detrimento do seu aspecto de classe.
9. Documento publicado pelo Núcleo Negro Socialista (s/d).
A reação ao projeto do Núcleo Negro Socialista – Entre a formação do MUCDR e a consolidação do MNU, primeira entidade de caráter nacional do Movimento Negro Contemporâneo, ocorreu um período de grande polêmica e reação ao projeto do Núcleo Negro Socialista, o qual avaliou a realização da primeira assembléia do MUCDR apontando os se- guintes fatos:
“[...] foi realizado em São Paulo, no dia 27 de julho, uma Assem- bléia Nacional do MUCDR, com a participação de diversas entida- des do interior paulista, dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, com quase 350 pessoas. Nessa assembléia, definiu-se um programa mínimo para o movimento unificado, que abarcava desde a luta por melhores condições de vida até a libertação na- cional. O único grupo a se posicionar como socialista foi o Núcleo Negro de São Paulo e do Rio de Janeiro. Houve muita resistência 9 a esse posicionamento” .
A partir desse momento, ocorreu uma cisão entre os negros que estavam organizados dentro da esquerda e aqueles que já haviam rompido com essa organização. O rompimento era justificado a partir do entendimento de que as organizações de esquerda não poderiam dar encaminhamento à luta antiracismo porque não havia prioridade política para essa problemática e tam- bém pela composição racial de sua direção, basicamente composta por bran- cos, o que dificultava a percepção da problemática.
Aqueles que continuaram no Núcleo Negro Socialista compreendiam que seria necessário construir uma força política dentro da Convergência Socialista para que a luta anti-racismo se tornasse uma preocupação da direção; portanto, seria preciso elaborar uma política anti-racismo e ampliar o leque da militância na questão racial, absorvendo um maior número de negros para aquela organização.
Os negros do Núcleo Negro Socialista eram vistos como militantes da organização de esquerda que atuavam no movimento negro na perspectiva de formar uma frente de luta da organização, ao passo que os negros que haviam rompido com a tendência viam o movi- mento negro como um espaço autônomo, capaz de forjar uma política anti-racismo. De qualquer forma, o Núcleo Negro Socialista não era monolítico. Havia unidade quanto à necessidade de uma política anti- racismo e na aceitação dos princípios políticos da organização. Con- tudo havia pensamento divergente na maneira de atingir o objetivo central: a criação de um projeto político para a luta contra o racismo. Por exemplo, alguns acreditavam que a relação do movimento negro com a esquerda deveria ser explícita para definir uma perspectiva socialista, outros achavam essa posição equivocada, dado o caráter repressivo da época.
Na II Assembléia Nacional do MUCDR, realizada em setembro de 1978, na cidade de Caxias, no Rio de Janeiro, o projeto do Núcleo Negro Socia- lista começou a sofrer alterações em função daquelas divergências. Se- gundo a avaliação do próprio Núcleo Socialista, com
“[...] as acusações do DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) de que a Convergência Socialista dirigia o MNU o relacionamento piorou. Em São Paulo as entidades negras do in- terior de São Paulo se retiraram do MNU e no Rio de Janeiro ocorreu o afastamento do Núcleo Negro Socialista, por motivos inter- 10 nos da própria Convergência Socialista [...]”
10. Idem.
11. MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO, op. cit.
Estes fatos alteraram a correlação de forças entre aqueles que dispu- tavam a direção da luta contra o racismo.
O resultado final da assembléia foi a inclusão da palavra “negro” na sigla e a supressão da referência “contra a discriminação racial”, originando a denominação Movimento Negro Unificado (MNU). Aqui tam- bém há uma controvérsia: segundo o posicionamento do MNU, a mudança de sigla ocorreu na I Assembléia de Organização e Estruturação Mí- nima para o movimento, com a presença de vários estados, Rio de Janei- ro, São Paulo e Minas Gerais. Essa assembléia ocorreu no dia 8 de julho de 1978, em São Paulo, na qual foi aprovada proposta do Rio de Janeiro de acrescentar a palavra “negro” ao nome “movimento”. Desse modo a denominação passou a ser Movimento Negro Unificado Contra a Dis- criminação Racial e, no I Congresso Nacional do MUCDR, realizado no Rio de Janeiro em dezembro de 1978, que reuniu delegados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito 11 Santo, o nome foi simplificado para MNU .
Mais do que uma mudança de sigla, essa alteração significou a ruptura da aliança com a esquerda no encaminhamento da luta anti-racismo. O projeto do Núcleo Negro Socialista contra o racismo foi reformulado como um organismo independente da estrutura e da direção da esquerda. O movimento unificador de todas as formas de discriminação restringiu-se à relação branco/negro. Segundo a Carta de Princípios do MNU, seu objetivo básico era:
“[...] defesa do povo negro em todos os aspectos: político, econô- mico, social e cultural, através de maiores oportunidades de em- prego, melhor assistência à saúde, à educação e à habitação, reavaliação do papel do negro na História do Brasil, valorização da cultura negra e combate sistemático à sua comercialização, folclorização e distorção; extinção de todas as formas de perse- guição, exploração, repressão e violência; e liberdade de organi- zação e de expressão do povo negro [...]”
Em país com alto grau de miscigenação, a própria definição do que é negro passa por uma relação sociocultural marcada há séculos pela ideologia de embranquecimento, trazendo enormes dificuldades para a definição da identidade racial negra e, portanto, para a delimitação do campo de ação do movimento. Além disso, a definição do campo de atuação somente junto à população negra afasta segmentos étnicos e populares importantes, como os indígenas, os mestiços e as mulheres. De qualquer forma, a Liga Operária e o Núcleo Negro Socialista nunca chegaram a definir uma política anti-racismo, o que de certa forma contribuiu para o enfraquecimento do Núcleo Negro Socialista. Porém, essa experiência foi relevante na história da organização da luta do movimento negro pós- 1978. Ela estreitou os laços entre marxismo e racismo, na medida em que aproximou a perspectiva de combate ao racismo da teoria de classe, despertou a militância racial negra dentro das organizações de esquerda e deu sustentação ideológica a um setor do movimento negro que ficou mais à esquerda.
Na opinião de Hamilton Cardoso, o projeto de luta anti-racismo para a sociedade brasileira delineado pelo MNU estava permeado, apesar da utopia socialista, de um nacionalismo afro-norte-americano, reformulado 12 a partir da filosofia do Partido dos Panteras Negras . Já o Núcleo Negro Socialista absorveu uma gama maior de influências da luta anti-racismo. Sua visão mais global e universal foi concebida a partir da refle- xão sobre a história dos Panteras Negras nos Estados Unidos, da luta contra o apartheid na África do Sul, da revolução ma Guiné-Bissau, do pensamento político europeu e do trotskismo. A experiência de combate ao racismo dentro da esquerda foi uma vitória como criação, mas um 13 fracasso em seu processo de implementação .
12. Os Panteras Negras foram um grupo de ativistas negros norte-americanos associados ao Partido dos Panteras Negras para Autode- fesa, organização político- partidária originária de Oakland, Califórnia, no ano de 1966 e extinta em 1982 após intensa repressão política por parte do FBI (Federal Bureau of Investigation). Foi fundada por Huey Newton e Bobby Seale para a legítima defesa da população negra contra o racismo e a violência policial. Foi uma organização de esquerda de influência marxista que defendia uma agenda revolucionária contra o capitalismo e a escravidão. Os Panteras Negras se organizaram em 48 estados norte-americanos e chega- ram a ter expressão na África, principalmente na África do Sul e em Moçambique.
13. Depoimento de Hamilton Bernardes Cardoso em outubro de 1989.
14. FERNANDES, Florestan. “Lutas de raças e de classes”. Teoria e Debate, São Paulo, Diretório Regional do PT-SP, no 2, mar. 1988.
O processo histórico da formação do MNU leva-nos a observar que houve influência da esquerda no encaminhamento da luta contra o racis- mo a partir de 1978 e que o relacionamento entre o movimento e a es- querda ainda está em construção.
Já adiantamos, em análise anterior, que existe um grande desconheci- mento por parte da esquerda sobre a realidade sociorracial brasileira. Até por isso há um fator profundamente relevante nessa experiência: o caráter embrionário dessa relação histórica, que se reflete na fragilidade da relação teórica entre raça e classe na década de 1970.
Após a década de 1980 novos estudos, ações e alianças estratégicas travadas junto aos movimentos sociais e partidos políticos definidos como de oposição, progressistas ou mais à esquerda, construíram experiências de combate ao racismo que estão amadurecendo a ação teórica e práti- ca da relação entre classe e raça.
Vejamos esse enfoque mais detalhadamente.
Uma interpretação da relação entre raça e classe – Uma releitura crítica dos estudos de Florestan Fernandes sobre a integração do negro na sociedade de classes demonstra que o amadurecimento das relações capitalistas de produção, longe de eliminar a desigualdade sociorracial, a 14 recompõe sob a ótica da racionalidade da acumulação do capital .
Sabemos que o valor da mercadoria-trabalho, paga em forma de salá- rio, esconde o tempo de mais trabalho que é apropriado pelo capitalista, e que essa troca não é justa, e sim desigual, e aí está o caráter de exploração dos trabalhadores. Sabemos também que o valor da força de trabalho não é pago de acordo com a necessidade de sobrevivência dos trabalhadores em geral. O valor da reprodução da força de trabalho é determinado socialmente. A força de trabalho não é valorizada individual- mente, mas sim coletivamente. É na história concreta de uma nação que encontramos os nexos explicativos da valorização ou não da força de trabalho. Portanto, se na sociedade brasileira há uma desvalorização social das dimensões de raça e gênero, ela incidirá como fator de barateamen- to no valor da força de trabalho das mulheres e negros.
E, nesse contexto, afirmamos que a admissão da população negra no processo produtivo capitalista é mediada por uma articulação ideológica que determina a absorção da população negra na estrutura de classe de acordo com a necessidade de reprodução do capital e a orientação ideológica racial vigente.
Isso acaba por delinear um quadro em que a condição racial do traba- lhador se transforma num dado seletivo na competição do mercado de trabalho. O fator da identificação racial de matriz africana é sempre desfavorável ao negro, reservando-lhe a mais baixa posição na estrutura de emprego e o recebimento dos mais baixos salários, quer estejam no setor primário, quer no secundário ou no terciário. Tal fato se traduz no desemprego, no subemprego e na rotatividade da sua mão-de-obra, o que provoca o empobrecimento contínuo deste segmento populacional.
A compreensão da marginalização social da população negra, assim como a sua superação, está altamente comprometida com o grau de aceitação da centralidade da relação de raça, classe e gênero. Aí fica visível a situação de exclusão social da mulher negra.
A relação de raça e classe pode ser classificada como um fator explicativo das desigualdades da sociedade brasileira. A relação raça e classe não é dicotômica, e sim interdependente. Ela não é marginal, e sim interior às relações capitalistas de produção. Não desaparece na dinâmica competitiva do capitalismo, apenas é distorcida pela ideologia racial vigente. Ela determina a forma de exploração da força de trabalho da população, quer seja masculina, feminina, branca ou negra e condiciona essa forma de trabalho em termos de sua inserção ou exclusão do processo produtivo, tipo de ocupação, rendimentos salariais, posição na estrutura de classe e o grau de consciência racial da população trabalhadora.
O projeto político de combate ao racismo no Brasil, atuante na política brasileira, tanto por parte do movimento negro quanto por parte da concepção de esquerda, não está isento de equívoco.
A centralidade da contradição capital/trabalho impede a percepção de que a lógica capitalista de exclusão utiliza a diversidade cultural existen- te em meio à classe trabalhadora como fator de discriminação de gêne- ro, raça, idade e religião. A centralidade exclusivista da teoria classista para explicar as desigualdades sociais brasileiras é equivocada porque interpreta de forma tradicional e etnocêntrica nossa formação social. Por isso encontra dificuldades em legitimar-se, por exemplo, perante a população negra, por não construir, culturalmente, uma identidade de raça e classe na luta pelo socialismo. O que por sua vez é um entrave à democratização da sociedade brasileira.
CUT - Brasil

https://www.cut.org.br/noticias/marcha-da-consciencia-negra-ce3b