jeudi 30 avril 2015

Para Marcela

Para Marcela, filha querida, horas antes do primeiro de maio. Num momento em Paris, antes de grandes emoções ao lado dela.

Estou no Buffalo Grill ouvindo country, comendo burguer e lendo Bernard Reymond, À decouverte de Schleiermacher. É, em Paris, nem sempre faço como os franceses. Mas não dá para esquecer que estou aqui, e eu sei que quero estar.

Caí por essas bandas da Gare du Nord porque daqui a pouco parto para Bruxelas, para a casa de Marcela, querida e amada filha. E para assistir ao show Miss Météores, de Olivia Ruiz, a nova Piaf, no Ancienne Belgique, Anspachlaan, 110. É a casa de show mais badalada de Bruxelas. Gosto de cebola roxa e esta está simplesmente deliciosa. As cebolas roxas são como as outras, só que mais suaves. Boas para comer cruas. Não, não estou tomando Coca-Cola.

Não sei por onde começar,
Eu devo viver a lua ou minha bela estrela
Até que a vida acabe por passar,
Ou provocar o destino fatal

Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes

(Olivia Ruiz, Paris)

Vamos pensar um pouco sobre a consciência do não-ser. E começarei dizendo que a coragem de ser parte da experiência e da compreensão de que não existe acaso ou coincidências. A existência é sempre permeada pela atualidade e pela contingência através das quais se faz presente o incondicionado.

Por isso, a expressão “faça sem culpa” não procede: em primeiro lugar, porque para além do mal-fazer ou do não-fazer-bem está a consciência ontológica do não-ser, que se traduz existencialmente como ausência e separação. E foi esse confrontar-se com o não-ser que fez o hominídeo dar o salto antropológico, existencial: passar de homo apenas e rudimentarmente sapiens a sapiens-sapiens. Reconhece a força do não-ser, sabe que ele ronda e passa a temer a ausência e a separação definitivas.

Tanta gente e tão poucos olhares,
Tanta gente e tão poucos sorrisos
Nunca têm tempo de se oferecer ao acaso,
Tão pouco tempo que a gente gostaria de acabar

Paris desvenda meu amor,
Perdida entre toda essa gente,
Paris entrega meu amor
Eu estarei sobre a ponte dos amantes

Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro, e com a hamartia, a consciência do não-ser. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia é ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.

Alienação, ausência, separação, enquanto estado da existência, leva à compreensão da origem do humano enquanto tal. E Paulo fala, então, da consciência do não-ser. Para o apóstolo, o estado de alienação, ausência, separação na existência produz uma consciência matricial, a consciência do não-ser.

A partir da consciência do não-ser temos a consciência do transcendente, a consciência da diversidade, já que não somos bichos. E, por extensão, não somos apenas natureza, temos a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que ações e coisas podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

Um pouco cansada
Ela avança em meio à multidão
em sentido contrário
Um barco embriagado sobre a onda

Bela Paris, seja generosa
para com a minha pobre alma triste
Eu direi por toda parte que és maravilhosa,
Se você me encontrar um único eu te amo

Assim, diante da alienação, da ausência e do distanciamento presentes e futuros estão necessidade e lei, e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.

Quando proferimos o “fazer sem culpa” rebaixamos a consciência ante os desafios da existência e negamos possibilidades: perdemos esperança e liberdade. E assim a vida é corroída pelas bordas.

Em se falando de consciência do não-ser, vejam Olivia Ruiz interpretando Piaf. Mas, não se esqueçam que Olivia é boom entre os roqueiros na Europa. E, sem dúvida, como sempre acontece, é bem melhor ver e ouvir ao vivo.


mardi 28 avril 2015

2.609 minutos antes

2.609 minutos antes

27.

Operários de cera cavam sepulturas no asfalto. Ah meu Senhor e meu eterno, como estou triste, como é profundo este abismo. Os anos vão passar, mas esses dias não descolarão de minha retina. Tudo isso ficou colado em minha alma. Estou morto.

Ontem, nossos fantasmas, eu e Anabella vimos guardiães retirando corpos que flutuavam no rio. Pessoas olhavam, mas logo aceleravam o passo. Há um medo generalizado. Ninguém acredita no que está acontecendo. Todos queremos acordar desse pesadelo.

Anabella olha pela janela do quarto. Ela vai para a dimensão eterna dentro de minutos. Mas, agora, acende um cigarro e continua olhando. Suas mãos finas tremem. Fora dois detalhes, que traduzem a angústia e o desespero, é uma estátua diante da janela. As mãos tremem e umas poucas lágrimas rolam em seu rosto.

Não sei o que dizer. Os pensamentos revoam. Distantes passam voando e vão embora. Meu pai, minha mãe... É como se minha alma procurasse pousar em algum lugar, mas não encontrasse terra firma. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Nunca algo foi tão verdadeiro.

Senhor eterno perdoa minha suficiência. Não sou o dono do mundo, embora maus conselheiros tenham me dito o contrário. Não sou o senhor da guerra, nem sei manejar as palavras com a habilidade com que um samurai maneja sua espada.

Levanto-me, vou até a janela. Fico ao lado de Anabella. Ponho a mão no seu ombro, num pequeno gesto de carinho. Sei que não tenho o direito de quebrar esses momentos de mergulho. São os primeiros em muitos dias. Não tivemos tempo, não paramos para pensar, apenas fugimos da morte. Estamos mortos.

Lá fora alguns operários com britadeiras fazem um buraco no meio da rua. Que cena terrível. Homens de cera cavando sepulturas no asfalto. O ruído atravessa nossos sentidos e esmaga nossos sentimentos. Não existe realidade, não existe sonho, tudo é pesadelo. Sinto uma dor forte no estômago. Tiro a mão do ombro de Anabella e me sento de novo.

Eterno, o passado pesa como uma bigorna presa aos meus pés. Nada sei do meu presente e nem imagino qual será meu futuro, mas reconheço que sou pó, um grão de areia em meio a uma vastidão que não criei. Perdoa minha luxúria. Perdoa o sofrimento que causei a Reyna.

Olho para a janela e Anabella continua paralisada. Meus olhos estão mareados pelas lágrimas. Anabella parece Reyna. Sei que são diferentes, mas o foco se perde e Reyna está diante da janela olhando os operários de cera, que cavam sepulturas no asfalto.

Yoffe, a guerra não acabou. Masaryk/Dubček está morto, parte da liderança da Unidade populární está presa, estamos mortos, mas a guerra não acabou.

Anabella, querida, ainda que você tenha razão, ainda que a vitória seja tão certa como o sol que brilha lá fora, estou morto. Vejo um pôr-do-sol de chumbo e dias de vales de ossos secos, como a sepultura que os operários estão cavando lá fora.

Eu cometi um crime. Não, não foi um crime, foi uma dilaceração. Peguei todas as notas de compras da viagem, cada papelito e rasguei e joguei no lixo. E por que foi um ato tresloucado? Porque a minha memória é construída de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E talvez porque uma tragédia nunca se faça sozinha, peguei todos os meus cartazes e notas e papéis de minha viagem a Cuba e também joguei fora. Foram-se passando as horas e uma angústia foi me dominando. Um sentimento de ausência, de perda, uma tristeza louca por estar jogando fora um pedaço de mim. Na verdade um pedaço de minhas memórias. 

Sou um escritor de pedaços: cada notinha, ainda que seja de compra num free shop tem um valor enorme, maior do que o preço do produto, que certamente já foi consumido. Para minha alegria, a lata de lixo, que não é de lata mas de plástico, fica da área de serviço da casa. E agora, hoje, eu tenho uma preciosidade, um montão de papel picado e cartazes rasgados, não sujos, mas empoeirados, meio amassados, que vou guardar e pesquisar como um cientista louco por palavras sem sentido.

lundi 27 avril 2015

2.610 minutos antes

2.610 minutos antes

É isso mesmo, gosto de palavras, mas não gosto da palavra dada, entregue, pronunciada. Gosto da palavra destruída de sentido, desmantelada, que apresenta novos significados, que se torna signo desconhecido, apontando realidades que só existem depois, ao final. É por isso que sofro com aquele revisor, que indevidamente conserta palavras que desejo desconsertadas.

Escrevi: “em Praha fixo irado”. E disse para a Brianda, minha mulher, algum maldito vai rescrever “em Praha fico irado”. E fazer isso será um absurdo porque “fico” é do verbo ficar e “fixo” é do verbo fixar. Escrevo “em Praha fixo irado” porque no meu antigamente houve um guerrilheiro que se chamava Tiro-fijo, em espanhol, e que traduzido quer dizer “tiro certeiro”, mas que eu sempre li e entendi como “tiro-fixo”, porque debruçado na mira, como amante sobre a amada, era mortal. Só quem sofreu com os papéis lançados na lata de plástico do lixo pode dizer se eu em Praha fico irado. Não fico irado não, fixo irado.

Desmontei a palavra, depois, remontei-a conforme a minha estética precária exige. É isso mesmo, a estética exige, tem jeitos que ela mesma define, é uma senhora brava, uma matrona cheia de manias. Mas a minha é precária, pois no diálogo com essa matrona, ela entra com sua autoridade e eu com minha fragilidade de escritor. E, então, se dirá: mas, e o leitor?

Bem, o leitor é o grande construtor da realidade estética do texto. E repare por quê! O autor é o momento da luta com o caos, ele criou seu texto a partir de emoções, sensações, racionalizações e muitos, mas muitos pequenos papéis de viagens. E da dilaceração permanente, contínua, de cada palavra, de cada sentença, tirou delas o sentido esperado. Fez do esperado, desespero. Criou sentidos que só pertencem a ele, como o exemplo do fixo irado. Mas, o leitor é o ato de liberdade que possibilita a todos os sentidos e a qualquer sentido ter de fato sentido. Por isso quando eu digo em Praha fixo irado, você vai convidar a matrona para a cama, vai dormir com ela, nem que seja só para se aquecer. De todas as maneiras, ela vai se adocicar diante da sua ternura e abrir possibilidades novas que o autor nunca, jamais, tinha pensado. E o leitor tem esse direito, porque ao possuir o texto vai fazê-lo dele, é quem de fato lhe dá vida. 

Mas vamos falar agora, um pouco de minha viagem a Praha, que posso traduzir como uma volta ao local do crime. Crime meu e crime cometido contra milhares e eu aí incluído. Crime contra a alegria, a liberdade e o pensamento. 

Brianda comprou cerejas numa banca de frutas em frente à universidade Charles de Praha. É tempo de cerejas em Praha e elas são tão doces que doem na garganta. Tinha ido visitar a minha antiga universidade e cultivar lembranças. Geralmente se cultiva lembranças como frutas, é preciso terra. Donde a necessidade de voltar ao local do crime, de sentir os pés sobre a terra, respirar o cheiro do lugar, ouvir sons que estão adormecidos na memória. Por isso, caminhamos degustando cada cereja, porque as frutas já não eram frutas apenas, mas o açúcar do tempo das cerejas.

Veja como é guadiana. “O tempo das cerejas” é uma canção de dois franceses, Clément e Renard. Foi escrita e musicada em no antigo século dezenove, antes de explodir a comuna de Paris, uma pequena, mas grande revolução que durou apenas três meses. Mudou a maneira de se pensar o solidarismo. Marx, por exemplo, ficou extasiado diante daquela experiência do proletariado. O tempo das cerejas não é uma canção revolucionária, mas de amor. A última estrofe foi agregada posteriormente e dedicada a uma enfermeira morta em defesa da Comuna. Essa estrofe foi escrita debaixo do fogo da semana sangrenta, quando milhares de combatentes da Comuna foram massacrados. “Le temps des cerises”, que você pode ouvir e baixar na internet, me lembra o hotel residencial Londres, que fica na ulice Londres, em Praha. O prédio foi construído depois da primeira guerra geral do século vinte, e algumas décadas depois transformado em hotel por um casal cheio de charme, os Dumand. E deu um charme especial ao bairro Paris-Londres no centro da cidade. Na ulice Londres, no hotel residencial Londres fui preso no terceiro dia do ataque dos guardiães. 

O tempo das cerejas entregou a cabeça da mulher, serviu o sangue da virgem num cálice, cada gole tem o sabor da vida derramada, mochileiros franceses, macho, fêmea e filhote, dizem à demain para as cerejeiras, a rua está perfumada, a alameda é atravessada.

Para quem gosta de palavras é muito difícil deixar Gabriela e Pablo de lado. São momentos de sacralidade do dito e escrito. Pablo tinha uma mania que eu também tenho, gostava de casas. Casa para ele não era abrigo ou lugar de morar. Era navio, lugar de memórias e casulo para amar. Por isso, mandou construir La Chascona, a desgrenhada, que foi a casa dele com a terceira amada, Matilde. É bom lembrar que Matilde tinha cabelos vermelhos. E eu, numa homenagem transversal ao poeta, também cheguei lá de cabelos vermelhos. E me senti muito bem, ruivo, a papear com Sharon no jardim. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto foi um homem de muitas faces, mas a que mais admiro, além daquela de poeta, foi a de militante peregrino. Estudou pedagogia, foi diplomata, senador, nobel de literatura, mas nós nos lembramos dele como Neruda, o poeta peregrino. 

E viveu em La Chascona. Morreu aí, junto com a alegria, a liberdade e o pensamento. La Chascona, que agora é história, está ao lado do cerro San Cristóbal e foi construída em níveis. Um jardim serpenteia a casa e cria hoje paisagens propícias ao cultivo de memórias. Nesse jardim, eu e Sharon descansamos, olhando para a sombra das pequenas árvores, quietos, silentes, vendo turistas passantes e Brianda desaparecida a fotografar.

O tempo das cerejas fugirá para outras bandas, Miró mia nas minhas lembranças, rabisco no La Chascona ao poeta, bardo brado, por onde anda a ode? Flagelo e sal, sangue e semente, formigas desfilam sobre o açúcar derramado, você e eu descarrilados, por poemar instantes, beleza é água na garganta seca.

samedi 25 avril 2015

2.611 minutos antes

2.611 minutos antes

Você já prestou atenção no caminhar? É diferente caminhar em terra batida, em terra molhada, na grama. São apenas duas ruas de paralelepípedos e mansões dos anos 1920, uma se chama Paris, como aquela da Comuna, e a outra Londres, como aquela de Cromwell e seus republicanos. De manhã, caminhar em ruas de paralelepípedos nos dá a sensação de segurança e desequilíbrio. Você sai do asfalto, do cimento e vai devagar a pisar paralelepípedos. Sinta com atenção. Veja a diferença. Sentiu, Brianda? Veja como é gostoso, Sharon? Aqui as ruas não são apenas belas, estão paradas no tempo, frescas, sombreadas. Aqui não há lojas. Há pequenos hotéis, escolas e esse café maneiro ao lado do hotel. Com uma praça e tudo, à moda antiga, um pedaço da Europa no meio de Praha.

Mas como sonho e pesadelo são estados do adormecido, em frente ao meu hotel residencial Londres há um prédio pichado “aqui torturaram e assassinaram”. E quando meio dormindo, meio acordado, tentava descobrir o que estava lendo, um cicerone não convidado se aproximou e disse: “Esta era uma das muitas casas onde a ditadura torturava e assassinava pessoas”. Conversamos poucas frases sobre violência e crimes políticos, e tráfico de drogas no a terra dos brasis, mas rapidamente meu interlocutor escafedeu-se.

Essas ruas de Praha, manchadas de sangue, me remetem a um militante, homem de fé, um outro lutero, herói de trezentos milhões de negros espalhados pelo mundo e de um presidente federação americana. Mas tudo começou com Rosa Parks. Ou como contou o jornal da contra-mão.

1955. Uma costureira negra, dirigindo-se do trabalho para casa em Montgomery, Alabama, recebeu ordens de um motorista branco para que se transferisse para a parte de trás do ônibus. Rosa Parks estava sentada, em um dos bancos da frente, e simplesmente recusou-se a mudar de lugar. Foi presa por violação às leis de segregação do Alabama. A comunidade negra enfureceu-se. Os negros disseram que já vinham sendo insultados há demasiado tempo por motoristas de ônibus brancos, e declararam que não tomariam mais qualquer ônibus até que a segregação fosse eliminada e certo número de motoristas negros fosse admitido.

Liderados por este outro lutero, os negros de Montgomery simplesmente boicotaram os ônibus até que a empresa, quase à bancarrota, submeteu-se às exigências. Em breve, os negros de muitas cidades do Sul recorreram à técnica do boicote para conseguir melhor tratamento nas lojas e outras casas comerciais, e para assegurar melhor emprego para sua gente. Se os autores do boicote usavam a não-violência, eram ao mesmo tempo militantes e obstinados. Certamente, tiveram importância na obtenção de certas mudanças que o sul da federação, com sua veemente resistência a toda e qualquer transformação, consideraria revolucionária.

Para este king, o poder autêntico era a verdade. Entretanto, esta verdade não seria norma abstrata que se impõe à realidade. Seria, sobretudo, a expressão concreta da tendência última do real. A verdade só teria poder se fosse uma tendência de vida, de uma sociedade, a verdade de um grupo que detém, interiormente, na sociedade, o poder.

Teoria e prática se fizeram carne e sangue na vida deste king e, no dia 4 de abril de 1968, quando preparava uma marcha dos negros na cidade de Memphis, Tennessee, foi atingido por tiros. Anos depois, o jornal da contra-corrente orou pelo companheiro abatido:

Desde a época em que chefiou o boicote dos ônibus em Montgomery, inúmeras foram as ameaças à sua vida. Foi publicamente denunciado e alvo de abjetos epítetos. O próprio clima tornou-se tão carregado que, considerando-se agora as coisas, percebe-se que um fim violento para o líder negro era inevitável. Todavia, a federação branca não podia antecipar a reação da federação negra ao assassinato a sangue frio de um de seus líderes mais poderosos. Vários dias de desordens, incêndios e pilhagens em muitas cidades foram a louca manifestação de um amargo desespero e frustração. Mesmo os que prantearam a morte deste lutero negro sem qualquer mostra exterior de emoção revelaram-se tão sensíveis no apreço de seu significado quanto aqueles cuja reação foi violenta. Longa eternidade caro rei!

A conquista violenta dos instrumentos de poder social não decidia a vitória de uma revolução. Isso só acontece quando se estabelece uma nova estrutura de poder, amplamente reconhecida. É um erro pensar que amparar a revolução no aparelho do poder garanta a vitória. O aparelho do poder deve ser renovado constantemente a partir das forças da sociedade, forças pessoais, materiais e ideais. Caso contrário, a revolução desaba, mesmo quando os meios técnicos permitem que se imponha por tempo maior àquele de épocas não desenvolvidas.

Mas do que palavras, a militância, na relação a este king, traduziu a compreensão de que há uma dialética de ferro entre verdade e poder. E que o poder verdadeiro nasce da verdade última, aquela que transcende o momento presente e permanece no coração e mente dos excluídos. Essa compreensão, mesmo quando não é corretamente traduzida pelo grupo que chega ao poder, continua a marcar o horizonte último da ética libertária. 

Londres-fixo, aranhas sopradas pelo vento norte, lugar de sonhos desperdiçados, picadas na carne nova, matinais de 11 de setembro, o azul cede ao cinza, morcegos desconstróem flores, palavras duras decretam o fim da esperança, olhos mareados, a porta esmurrada, a fronte torturada, o corpo desfilado, olho perdido na esquina.

Deixo para trás Paris-Londres, olho a igreja de San Francisco, a construção mais antiga da cidade. Caminho algumas quadras na sequidão sob um sol de trinta e poucos graus pela principal avenida da cidade, que a corta de leste a oeste, e recebe o nome de um libertador, mas é conhecida como alameda apenas. Ali perto, a poucas quadras, há um palau, o de les persones. 

E me lembro de um político, salvador Masaryk, que depois de três derrotas, veio a vencer as eleições presidenciais. Governou com uma frente popular capitaneada por socialistas e peregrinos. Acreditava que poderia levar a Československá ao solidarismo através do processo democrático, sem enferrujamentos violentos. Mas isso não aconteceu. E como a direita e a federação no norte viam Masaryk como o príncipe das trevas, todos os setores de oposição, inclusive os democratas peregrinos, se organizaram e com apoio dos guardiães, se lançaram ao golpe. Masaryk foi derrubado. O palau e as fábricas, onde trabalhadores organizavam a resistência, foram bombardeados. Foi um tempo de chacina.

Londres-fixo, nem Caetano, nem Gil, é ilha no nada, lagartos da inexistencia, tristeza, espanto, perplexidade. Tiago não tem salvador. Coturnos abundam!

Os limites estão mortos. Décadas depois do golpe militar curto a cidade limpa, com metrô e prédios modernos. Metrópole liberal, segundo o modelo dos rapazes de Chicago, liderados por um friedman do norte. Mas, permanece a sensação de que caminhamos sobre cadáveres que não foram sepultados com dignidade.

Quando a dor é grande, quando a dor é grande, às vezes, eu duvido. Quando a dor é grande, às vezes, eu pergunto: estou mal de coração, ou estou mal de ouvido? Se há resposta é o nome, se há caminho é a paixão. São tantas as coincidências, que coincidências não são: é a tua presença na minha vida. Quando a dor é grande, eu creio. Sei que é o meio da tua presença na minha vida.

vendredi 24 avril 2015

2.612 minutos antes

2.612 minutos antes

28.

Bendita seja a eternidade de nossa descendência. Envia a redenção aos povos. Bendita seja a eternidade de nossa descendência.

Yoffe fala sobre a identidade humana. Zlabya, como estamos a falar de memórias da família, quero que pense comigo uma questão: quem é o ser humano e o que caracteriza a nossa existência. É um assunto complicado, mas importante para quem deseja agir e construir o mundo.

Estou na sala de casa, de paredes brancas, enrugadas, sentado em uma almofada, bem à moda safardi. E penso: a busca pela justiça passa por colocarmos no seu devido lugar a questão da identidade humana. Veja você, será que a existência se reduz a um conjunto de sensações, de emoções? Não podemos admitir a identidade de uma pessoa se ela não puder ser percebida pelos sentidos? Se for assim, o cérebro é a causa da identidade e qualquer outra hipótese é inútil.

Vou entrar com toda a cautela na conversa. É gostoso conversar com um descendente sábio. Se no corpo humano existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de ideias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é. Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência se projeta na eternidade ou só existe o momento presente e o resto é aparência e virtualidade? Como combinar uma indigestão com o sentido pleno da vida? Somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do momento. A existência é essa extensão e cada pessoa tem identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una na sua diversidade. Mesmo quando a gente envelhece a identidade permanece. Somos um ao longo do tempo e é esta unidade na existência que me confere identidade. 

Talvez você por ser um descendente sábio, me questione: certo, Yoffe, você defende o princípio da existência que se projeta na eternidade. Você está dizendo que eu sou hoje e também amanhã. Um pedaço de mim envelhece, se desgasta, mas a identidade permanece. Não concordo com isso! Eu sei muito bem que o cérebro está ligado à vida mental. Se uma pessoa sofre uma lesão cefálica é quase certo que vai sofrer algum tipo de dano psicológico. O funcionamento do cérebro, as emoções e a memória estão relacionados. Embora não possamos genericamente correlacionar os estados psicológicos com os estados cerebrais, sabemos que tal correlação existe. Por isso eu digo que a vida mental tem origem no cérebro e que a existência enquanto extensão não existe.

jeudi 23 avril 2015

2.613 minutos antes

2.613 minutos antes
Yoffe ShemTov

Nada como conversar com gente inteligente, querido descendente. Por isso, deixe-me aprofundar os argumentos. A existência está unida ao momento e participa da vida, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente nas suas funções. Deste modo, a existência pensa e deseja. Assim, a existência não está imersa no tempo presente, é independente sob diversos aspectos. Lembro-me de que Aristóteles, o mestre grego, dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as ideias? Ser inteligente, pensar, são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio. A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa de um cérebro saudável para se expressar. 

Estou vendo, querido descendente, você desenhar rabiscos no ar. Diga o que você acha. E o descendente constrói um diálogo, que já não é virtual, mas tomou forma e lugar.

Yoffe, ancestral amado, há uma parte do seu argumento que eu gosto, aquela em que você fala da liberdade humana. Só que para falar de livre arbítrio não é necessário falar de existência. Você disse que a existência é extensa, una e indivisível, então como ela pensa, como se relaciona com os cérebros? Além disso, você não explicou o que torna uma existência a mesma ao longo do amanhã e do depois de amanhã? 

Deixemos Brianda falar também. De maneira nenhuma aceitaria ficar fora da conversa. E Brianda diz: Bem, caríssimos, creio que aqui os argumentos se esgotam e explicam os diferentes caminhos que buscamos para encontrar a justiça. Aqui está a divergência: o cérebro é ou não é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos? E se tomarmos como ponto de partida o sábio Aristóteles, quando disse que pensamos sem órgãos, que o entendimento não está ligado a nenhum órgão, e que pode trabalhar e existir separado do corpo... 

Mas nosso descendente não se deu por vencido. Até esse momento não tinha se sentado. Caminhava devagar pela sala, fitou Brianda, a avó, com carinho e teceu sua argumentação: 

Bem, já que a avó Brianda citou Aristóteles, quero trazer para esta conversa uma hipótese. Na verdade, uma parábola: um príncipe interrogou-se sobre como seria viver como um sapateiro. E um sapateiro sonhou em ter uma vida de príncipe. Um dia eles tiveram a oportunidade de trocar todas as características mentais de ambos. O sapateiro passou a ter a memória, conhecimento e atributos pessoais do príncipe, cujas características mentais migraram para o sapateiro. Depois da troca, a pessoa que agora é sapateiro lembrou-se ter sido um príncipe que desejava experimentar a vida de sapateiro. Ele disse: “Puxa, satisfiz minha curiosidade!” Reconheceu-se como príncipe e não como sapateiro. E vice-versa. Será isso mesmo? 

Mas a estória se complica, isto porque o príncipe havia cometido um crime horrível, e para escapar da condenação resolveu recorrer à troca de cérebros. Após a troca, o crime foi descoberto, e os guardas vieram buscar o culpado. Sem saberem o que aconteceu, prenderam a pessoa que agora é o príncipe, que começou a gritar se dizendo inocente. A pessoa que agora é o sapateiro, que se reconheceu como o príncipe criminoso, saltou de alegria por ter escapado da condenação. Ora, se foi assim, era uma enorme injustiça, pois quem deveria ser condenado era a pessoa que agora é o sapateiro e não a pessoa que agora é o príncipe. Veja, avô Yoffe, a nossa identidade obedece à continuidade do cérebro. Uma pessoa no passado permanece idêntica a ela mesma no futuro se forem mantidas a memória e as características individuais dela. O príncipe que agora é o sapateiro é de fato o príncipe e, por isso, aquele que agora é o sapateiro é culpado pelos crimes do príncipe, uma vez que lhe é psicologicamente contínuo. E este deveria ser o veredicto correto: o sapateiro com o cérebro do príncipe é quem deveria ser condenado.

Opa, percebi o ponto fraco do argumento do descendente e resolvi, então, complicar a estória: Mas eu desejo acrescentar uma pergunta a sua estória, meu querido descendente: e se pudéssemos duplicar um cérebro e colocá-lo em corpos diferentes. Esses dois corpos seriam pessoas iguais ou diferentes? E se fossem diferentes, onde estaria a base da identidade da pessoa, o que faria dela uma pessoa diferentes da outra? Logicamente, não o cérebro, mas a existência que cada uma passaria a viver a partir dos cérebros colocados nos corpos. Com isso, quero dizer que a identidade de uma pessoa não reside no cérebro apenas, mas na existência que se vive. Ou seja, é a existência que constrói o nosso cérebro. Por isso, descendente creio que talvez haja um ponto de contato entre nós. Talvez essa existência seja aquele sopro inicial lançado em nossas narinas pela eternidade, que será construção no caminhar de nossas experiências, emoções, sentimentos. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.

O descendente caminhou devagar em direção a uma almofada grande. Procurou uma posição confortável e ouviu com atenção os argumentos do avô. Com deleite se lembrou de uma estória que falava do humano pobre e do humano rico. Essa estória traz imagens ilustrativas de julgamento e recompensa. Era uma estória construída para sábios e religiosos. Os sábios não pensavam existir vida eterna no sentido de recompensa e julgamento, apoiando-se na visão de que o repouso eterno é o lugar de todos os que morreram, sem diferenciação. Mas a estória estava dirigida também aos religiosos, que esperavam a instalação do reino eterno. As palavras tiveram uma audiência específica. A ênfase das palavras era referente ao julgamento e não à recompensa. Porque a penalidade do juízo não é o contraponto da recompensa, mas do reino do eterno. Nestes termos, as palavras também visavam os sábios.

mercredi 22 avril 2015

2.614 minutos antes

Yoffe Pinheiro ben ShemTov

O reinar da eternidade já chegou e começou no ontem, está no hoje e se projeta no amanhã. Esta vida no reinar da eternidade é a vida das eternidades, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o eterno reine nas gentes, a recompensa é a continuação do reinar da eternidade. A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano após a morte tem suas emoções, histórias e memórias guardadas eternidade a dentro, a espera do ser levantado que lhe abrirá os céus e terra novos -- na intimidade do reinar da eternidade ou na separação do que é eterno. Para tratar a estória do humano pobre e do humano rico, é necessário ver que as palavras estão dirigidas a pessoas para evocar respostas. Assim, é necessário compreender o contexto das palavras a quem estava sendo dirigida e com que objetivo foram empregadas. Algumas questões devem ser colocadas de antemão. O contexto maior começa fazendo uma diferenciação entre a prática dos religiosos e a forma de vida do reinar eterno. Há críticas ao espírito da religiosidade. A crítica enfatiza o tipo de vida do reinar da eternidade, a vida das eternidades, por sua qualidade. A crítica questiona a confiança de quem tem certeza de que estará presente no grande banquete do reino eterno: são os pobres, os coxos e os cegos que se encaminham ao banquete, porque as pessoas mais óbvias da lista de convidados estão preocupadas com outros assuntos.

Então Brianda deu um salto de sua almofada e falou rápido, como se não quisesse ser interrompida por ninguém: temos um acordo. Seu argumento é: se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.

Oba, não estou só. Aristóteles e os nossos ancestrais não admitiam nas pessoas dois princípios de vida, mas afirmavam que além da atividade consciente e psicológica, a existência inteligente possui também a faculdade de presidir às funções fisiológicas. Desta maneira, a existência seria o único princípio de toda a atividade vital das pessoas -- da vida vegetativa e sensitiva mas, também, da vida propriamente espiritual. A correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, inteligência, sensibilidade e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações as funções orgânicas e psicológicas.

E nesse momento, o descendente fez um dueto com o avô: Uma comoção violenta da existência pode parar a circulação do sangue ou pode gerar o medo que paralisa. Mas pode também, ao contrário, levar à confiança que sustenta as forças físicas. Ou seja, os distúrbios físicos atuam sobre nosso estado moral, e isso é reciproco. Demonstrada a união da existência, como se faz esta união?

E eu acrescento: A pessoa não existe fora da existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele humano. Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida, existirá, na sua trajetória que engloba todos os humanos, sem corpo não há as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a imaginação, a percepção externa e a sensibilidade. Deste modo, o corpo é a matéria e a existência é a forma, e a união do corpo com a existência constrói um todo substancial e verdadeiro. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência.

Talvez por não ter tantas oportunidades de uma conversa franca com Yoffe, devido as limitações do espaço-tempo, o descendente se mostrou curioso diante dos argumentos do avô. E disse agora com carinho: É certo, entendo, com a morte o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a eternidade?

Vejo essa pergunta, querido descendente, como um clamor da existência. Considero, e desejo que essas reflexões ecoem através de todos vocês que leem, pensam e agem, que no eterno está a sobrevivência pessoal e substancial, a identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de amar e conhecer, sem as quais não há felicidade humana. No eterno, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do ontem que permanece, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem julgamento: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça do eterno. O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência do ser como é não pode decompor-se, nem se desagregar, permanece no coração do eterno. Este é o argumento ontológico da premissa de que a existência se projeta na eternidade. Se há o eterno e sua lei moral, a justiça exige que o crime seja punido e a virtude seja recompensada.


Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de atributos suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício. É necessário, portanto, que haja projeção da existência onde a justiça seja plenamente satisfeita e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a projeção da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração. O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana, assenta sobre o princípio de que o eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste cosmo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como a felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.