lundi 31 octobre 2022

Cristianismo e práxis social

A importância do cristianismo para a práxis social está em que cria paradigmas que reafirmam os valores da democracia e da liberdade e possibilitam o encontro de caminhos que ligam reforma e revolução. E alinhava as conquistas sociais com a criação de uma nova ordem fundada na expansão do espaço público e da desmercantilização da vida social. 

E isso é possível, porque a relação entre o cristianismo e a práxis social é profunda. Mas o fundamento de origem do cristianismo na formação da consciência brasileira e da práxis social apresenta aproximações e estranhamentos, que não se traduzem em tendência à cisão, mas juízos reveladores da força de origem das utopias. O cristianismo, enquanto visão de mundo é utópico e normativo, age para expandir e renovar o sentido transformador da experiência cristã no seio da sociedade brasileira e da práxis social, e é exatamente esse movimento que leva tanto às aproximações quanto aos estranhamentos. Em sua própria forma de ser o cristianismo trabalha com mediações de valores e daquilo que deve ser. Coloca-se assim na antípoda do realismo político, em particular de suas expressões pragmáticas, de afinidade com os valores liberais de mercado. 

O cristianismo brasileiro, a partir de sua experiência comunitária, distanciou-se do poder de Estado e firmou-se em sua autonomia de origem social e de identidade cultural. Assim, no período republicano, é escassa a experiência de matriz governativa, tendo, principalmente a partir dos anos 1960, optado pela paixão dos humilhados e ofendidos à força imanente dos símbolos de poder. Mas, ao mesmo tempo, essa presença e força faz do cristianismo, através de milhares de igrejas e entidades, o poder de maior experiência frente às expresões da barbárie e opressões. Nas favelas, no sertão nordestino, nos prisões, entre as crianças sem lar, idosos sem abrigo, entre as prostitutas, entre os aviltados, se faz presente a mão fraterna da igreja. 

Tomado nesta perspectiva, o cristianismo não é mera instituição ou poder institituído, nem mesmo programa ou modelo fixado de respostas aos grandes dilemas da política, mas movimento gerador de paradigmas, que possibilitam reflexões sobre os fundamentos da vida na comunidade política. Esses paradigmas propõem conceitos, ordenação de valores, estilos de pensar e fazer a política. 

Há nesses paradigmas questões fundamentais que o diferenciam dos paradigmas liberais e burgueses. A primeira é o modo como define a liberdade, não em sentido negativo, de espaço da ausência de intervenção do Estado. A liberdade para o cristianismo significa não depender de vontade arbitrária, o que aproxima o conceito liberdade da noção de autonomia, embora vá além, transceda. A segunda é que para a burguesia liberal, o Estado mínimo maximiza a liberdade. Mas o cristianismo relaciona liberdade e igualdade. Dentro da tradição burguesa liberal, o desejo de igualdade ameaça à liberdade, produzindo tensões entre as duas metas. E a maneira de enfrentar o problema, para a burguesia liberal, repousa sobre a noção de igualdade de oportunidades diante do mercado. Para o cristianismo é a desigualdade que provoca riscos à liberdade. A terceira questão é o modo como se relaciona o indivíduo e o Estado: a burguesia liberal coloca o acento na dinâmica da sociedade civil, pensada como em oposição ao Estado, em particular em sua dimensão mercantil. Já o cristianismo coloca o acento nas responsabilidades cidadãs, de participação na comunidade política, na formação de uma práxis imprescindível à proteção do corpo político das ameaças à própria liberdade, que não pode ser garantida apenas por boas leis. Esta práxis política comum requer uma comunidade de valores, a noção de bens públicos, uma fundação e uma narrativa da construção de um modo de viver em liberdade, que faz com que os cidadãos sintam-se, apesar das diferenças, parte de uma mesma comunidade política. 

Essa proposta de práxis política se faz solidária com o sofrimento humano e molda a voz cristã com a impaciência do que urge. Assim, falar da influência do cristianismo, em especial da igreja, na consciência pública contemporânea brasileira é trabalhar com as noções de fundamento e de formação. Não é uma situação onde um ser constituído exerce influência sobre a evolução de outro ser. São processos formativos em mútua compenetração. A marcha da questão agrária é um exemplo. Ela surge quase como expressão nordestina nos anos 1950, é matricial aí a presença da Igreja. O Movimento de Educação pela Base (MEB), constituído por redes radiofônicas de alfabetização e formação de sindicatos rurais, foi o fundamento original cristão das Ligas Camponesas. E a ação de Hélder Câmara, da Encíclica Mater et Magistra, de forte tematização do problema rural, e da CPT, a partir dos anos 1970, está na raiz do nascimento do Movimento dos Sem Terra, MST. E, embora date dos anos 1960, a adoção de modelos críticos à noção de catequização, também é matricial o papel do CIMI, criado em 1972, na formação da questão indígena perante a democracia brasileira contemporânea. 

Assim, o cristianismo brasileiro, através de sua leitura libertadora, fez a afirmação da liberdade como emancipação do poder arbitrário, compatível com os ideais de liberdade e igualdade, com acento na participação como fundamento das virtudes da comunidade política. Tal compreensão tem óbvias afinidades com a práxis social. A própria identidade solidária e democrática dos movimentos populares podem ser imaginadas a partir dessa práxis. O solidarismo proposto pela teologia da práxis, que integra o valor da soberania popular, seria, desse ponto de vista, um solidarismo religioso. Como história vivida e em transformação, essa imaginação trouxe para os socials, desafiados pelo esforço de transformar o Brasil, um campo possível de experiência e programa. Assim, para a própria construção dos movimentos populares, foi central o papel da igreja na formação de uma práxis dos direitos humanos na moderna democracia brasileira. Esta presença, fundamental nos anos da ditadura militar, através das Comissões de Justiça e Paz ou Comissões de Direitos Humanos, ganhou alento nas duas últimas décadas através da estratégia da particularização dos direitos como demanda de pastorais específicas, como a das crianças, idosos, carcerária, das prostitutas, e das Campanhas da Fraternidade. Não é marginal a presença da Igreja no movimento pela ética na política. Pelo contrário, a primeira lei contra a corrupção eleitoral teve na Igreja progressista sua inspiração através da liderança de Chico Whitaker, vinculado à CNBB. A luta contra a corrpução política faz parte da mensagem da Igreja. 

O PT, partido ligado ao mundo do trabalho, à esquerda solidária e a igreja popular, fez do seu nascimento tardio um enigma aberto à história, ao colocar no centro de sua identidade as relações entre solidarismo e democracia. De fato, esta relação ainda não encontrou uma solução estável, a partir de alguma experiência histórica, na tradição solidária. O desafio lançado aos solidárias ainda não encontrou uma resposta: pela democracia ainda não se chegou ao socialismo, mas lançando-se contra a democracia, o socialismo esclerosado traiu seus ideais de emancipação social. 

O caráter tardio do nascimento do PT, o último grande partido de trabalhadores nascido na tradição clássica, explica sua identidade enigmática. No final dos anos 1970, já estava muito avançado o processo de fim do estalinismo e, por diferentes caminhos o tema da relação entre solidarismo e democracia, voltava à cena. Houve, nesta práxis, tentativas de de resposta: a trotskista democrática que defendeu os valores do pluralismo, inclusive para partidos burgueses. O grupo trotskista francês "Socialismo ou Barbárie", a partir da crítica de Claude Lefort ao totalitarismo, fez a defesa da democracia como instituição social permanente E Castoriadis também defendeu a autonomia como valor fundante. 

Mas, ao lado dessas leituras, no Brasil, e mais especificamente no PT, a presença cristã ocupou um lugar central na crítica do stalinismo. Tal pode ser visto, por exemplo, na leitura do caderno "O indivíduo no solidarismo", onde Leandro Konder debate com Lula e Frei Betto. No debate, Lula pergunta sobre o lugar da ambição pessoal em uma concepção solidária da sociedade. Tal questão remete à leitura comunitarista feita por Emmanuel Mounier, na França, e que se desenvolveu em torno à revista "Esprit". Mounier teve importante papel na formação de uma geração de lideranças cristãs no Brasil, a começar por Dom Hélder. Assim, um pensamento cristão, filosófico e político, procurou responder à crise do capitalismo, mas fazendo a crítica do sentido anti-humanista das formas dominantes do comunismo: este personalismo-comunitarista de Mounier colocou-se como resposta contundente ao stalinismo. Mounier e cristãos brasileiros posicionaram-se em eqüidistância do capitalismo e do stalinismo. Admitem a propriedade privada como direito, inscrita na afirmação de sua função social, trabalhando com o solidarismo e o princípio objetivo da socialização na sociedade moderna, isto é, a emergência das dimensões coletivas na vida social. Teóricos socials, como Paul Singer, estudando as formulações da economia solidária se aproximaram desse comunitarismo cristão, retornando a formulações mais antigas, como a de Luís José de Mesquita: 

"Presentemente, o solidarismo não tem uma coesão doutrinal, não constituindo um sistema, não obstante certas características bem próprias, ensaiando, antes, ser uma prática variável para se adaptar aos problemas de cada país e de cada zona do mundo. O fato mais significativo talvez seja a aparição de forças solidárias, em certos países subdesenvolvidos, recusando utilizar os métodos comunistas, mas aceitando a intervenção do Estado e uma planificação para assegurar o desenvolvimento do país e tentar resolver seus problemas. As possibilidades do solidarismo residem em ele se tornar aberto, reconhecendo mais claramente os direitos e os deveres recíprocos da pessoa para a sociedade." 

Assim, o solidarismo defendido pelo PT, que se propõe a compatibilizar as metas de uma nova sociedade com o princípio da soberania dos trabalhadores e do povo, implica em trazer o marxismo para o solo do cristianismo, elevando o seu conceito de público a uma perspectiva anti-burguesa. Neste retorno e nesta função de duas visões anti-liberais há um potencial de experiência histórica, de inovação conceitual e de imaginação de novos futuros possíveis. 

A práxis participativa desenvolvida pelos movimentos populares e o potencial entrevisto nas formas de economia solidária seriam repensadas como formas avançadas de construção do poder e da economia, não estritamente estatal. Estariam se abrindo espaços conceituais e de experiência social para dar a essas inovações um caráter nacional. Assim, por exemplo, as agendas do fórum social mundial ganhariam um sentido de buscar uma simetria de direitos e deveres entre os povos do mundo, diante de um contexto de concentração do poder econômico, militar e geopolítico. 

A práxis cristã do solidarismo seria, assim, uma forma de disputar valores na democrática brasileira com os poderes, saberes e interesses cruzados do liberalismo mercantil e do patrimonialismo. A utopia social se enraizaria, de modo amplo, na tradição histórica da formação cristã brasileira, de negação e superação das heranças da condição colonial, escravocrata, patriarcal e aviltante dos direitos do trabalho. 

Neste encontro promissor entre cristianismo e solidarismo pode-se repensar as relações entre reforma e revolução, questão não resolvida na tradição solidária clássica. O conceito de transição formulado no contexto de avanços democráticos poderia atualizar seu sentido, unindo as conquistas do cotidiano com a noção de uma civilização organizada fora dos parâmetros dominantes do mundo do capital e da opressão. 

As utopias brasileiras não cessaram de interrogar suas origens. Um partido do solidarismo revisita a práxis comunitarista cristã que se faz presente, como uma das forças básicas, de sua proto-formação. Conhecer a si mesmo para conhecer o mundo, transformar-se a si mesmo para transformar o mundo: neste campo da práxis não há derrota definitiva para as linhas de força da emancipação. O cristianismo é, na origem, uma síntese de práxis, como afirma Leonardo Boff. Essa síntese adquiriu no processo da civilização brasileira uma vida própria, uma generosa universalização. Nesta dialética entre povo-Igreja, o Cristo brasileiro é redentor, tem os braços abertos para as utopias da emancipação.