lundi 22 décembre 2014

GEORGES BATAILLE

A PALAVRA DO PRAZER ERÓTICO COMO NEGAÇÃO DA TRANSGRESSÃO
Prof. Dr. Jorge PINHEIRO dos Santos 

INTRODUÇÃO
Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza . E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor. 
Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". O que é o que é, Gonzaguinha.
Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico. 
Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 
Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Primeiro com Sylvia, que depois de divorciar-se de Bataille casou-se com o psicanalista Jacques Lacan. Em 1946, Bataille casa-se com a princesa Diane Kotchoubey de Beauharnais, filha do príncipe Eugene Kotchoubey de Beauharnais e Helen Pearce. Georges e Diane tiveram uma filha, Julie Bataile, que nasceu em 1949.
Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 
Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 
I. AS DUAS HERANÇAS
1.1. A herança monástica
Quando, devido à secura das vidas, os ascetas monásticos sentiam que o seu maior inimigo, a sensualidade, os abandonava, eles inventavam outro inimigo. Desta forma, mantinham à frente daqueles que não eram santos a imagem de seres especiais, em luta contra o mal. E, assim, tudo que era natural, as sensações de prazer, a sensualidade era apresentada como má, pecaminosa, fazendo com que as pessoas vivessem num mundo de medo, inseguras e desconfiadas ao lidar com as emoções. Por isso, para Nietzsche, até nos sonhos revelava-se a consciência atormentada dos santos. Essa associação do natural com o pecado, equívoco dos ascetas, dos sacerdotes e dos metafísicos, levou a um resultado pior do que o pretendido. Ao acreditar que o ser homem era mau e pecador por natureza, ao invés de melhorá-lo, considerava Nietzsche, a herança monástica tornava o humano pior.
Tal mal-estar, oriundo das culpas imaginárias, acumulava impressões pesarosas, fazia com que se acreditasse que o pecado era tamanho que somente uma força sobrenatural poderia arrancá-lo daquele sofrimento, da sensação de sentir-se perdido. Essa vida, que na verdade era morte, criou o clima para que os herdeiros do monasticismo saíssem em busca da salvação, já que induzidos pelo engano, acreditavam estar irremediavelmente extraviada. Por isso, Nietzsche vai constatar que o que provoca a angústia nos cristãos, assim como a redenção pretendida de modo algum "corresponde em absoluto a uma pecaminosidade real, e sim a uma falta imaginária". Os cristãos, considerava Nietzsche, lutam o tempo inteiro contra os fantasmas criados pelos ascetas, pelos sacerdotes e pelos metafísicos. Espectros que ficavam pairando ao redor deles como se fossem assombrações das quais eles jamais conseguiam se livrar. E esses fantasmas assombraram o jovem jesuíta Georges Bataille. 
“Se alguém se confessa angustiado, é preciso mostrar o vazio das suas razões. Ele imagina a solução para seus tormentos: se tivesse mais dinheiro, uma mulher, uma outra vida... a frivolidade da angústia é infinita. Ao invés de ir até a profundeza de sua angústia, o ansioso tagarela, degrada-se e foge. E, no entanto, a angústia era a oportunidade: ele foi escolhido na medida dos seus pressentimentos. Mas que desperdício, se ele se esquiva: sofre da mesma maneira, humilha-se, torna-se estúpido, falso, superficial. A angústia evitada faz de um homem um jesuíta agitado, mas em vão. (...) o homem não é contemplação (ele só possui a paz, fugindo), ele é súplica, guerra, angústia, loucura”. 
1.2. A herança libertária
Mas se o monasticismo e a cultura do corpo mau eram herança presente, devemos nos remeter também ao pensamento libertário herdado por Georges Bataille. E vamos fazê-lo a partir do Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade, 1740-1814) e de Friedrich Nietzsche.
Sade foi um precursor da moral que ganhou espaço no mundo contemporâneo depois do Maio francês de 1968, ou seja, foi precursor da revolução sexual, incluindo nessa leitura a homossexualidade. Em Os 120 Dias de Sodoma satiriza o domínio do pensamento heterossexual e a condenação à morte de pessoas acusadas de comportamentos desviantes. É interessante, que este romance, onde nobres abusam de crianças raptadas e fechadas num castelo, num clima de violência, com coprofagia, mutilações e assassinatos, foi produzido durante sua prisão, manuscrito em letras miúdas num rolo de papéis colados, e teve sugestões dadas por sua mulher, Renné. Ela, aliás, passou parte da vida a defender o marido nos tribunais e só se separou dele quando o marquês foi libertado da cadeia, por breve intervalo de vida livre depois da Revolução Francesa.
Clássico maldito, o surrealismo e a psicanálise encamparam a visão da relação prazer e dor que a obra de Sade expõe. Vemos sua influência nos filmes de Luis Buñuel, quando em A Idade do Ouro, retrata a saída de Cristo e dos libertinos do castelo das orgias de Os 120 Dias de Sodoma. De igual modo nas imagens em que a navalha cega o olho da mulher em O Cão Andaluz. Também vemos referências em A Bela da Tarde e em Via Láctea, na cena em que Sade converte uma menina ao ateísmo. A influência de Sade pode ser notada também na obra de Jean Genet, dramaturgo, homossexual, ladrão e presidiário, que retomou muitos dos temas do marquês (O balcão, Os negros e Os biombos). Mas, sem dúvida, a obra que melhor retratou em toda sua crueza o paradoxo do prazer e da dor, ou seja, do erótico em Sade foi Saló ou Os 120 Dias de Sodoma, de Píer Paolo Pasolini. O filme situa-se na Itália fascista, durante a Segunda Guerra Mundial, e apresenta cenas de tortura e degradação de um grupo de adolescentes.
Bataille, admirador de Sade, entendeu a linguagem erótica como liberdade que viabiliza a negação da transgressão que gera a proibição. Ao realizar tais explorações, como possibilidade de vida, Sade e Bataille fazem a crítica explícita da tradição cristã e expõem os princípios que negam o humano. Eles se impõem à tarefa de ouvir a voz humana dos algozes, considerando o que para a sociedade são as suas não-razões, de forma a construir uma cumplicidade no conhecimento do mal. Nesse sentido, Bataille tem uma explicita admiração por Sade. Em A literatura e o mal, o chama de gênio:
"À primeira vista, a Revolução marca na literatura francesa uma época pobre. Propõe-se uma importante exceção, mas ela diz respeito a um desconhecido (que teve uma reputação durante a vida, mas deplorável). Se bem que o caso excepcional de Sade não infrinja de modo algum uma opinião que ele logo iria confirmar. É preciso dizer em primeiro lugar que o reconhecimento do gênio, do valor significativo e da beleza literária das obras de Sade é recente: os escritos de Lean Paulhan, de Pierre Klossowski e de Maurice Blanchot o consagraram; é certo que uma manifestação clara, sem insistência, evidente não foi dada antes de uma opinião tão vasta, que suscitou homenagens ruidosas e que se impôs lenta, mas seguramente". Georges Bataille, A literatura e o mal, RS, L&PM Editores, 1989. La Litterature et le Mal, trad. fr. Suely Bastos.
E o peso libertário de Nietzsche não foi menor, mas nessa abordagem queremos partir de uma mulher: Lou Andréas-Salomé (1861-1937). Feminista, no sentido revolucionário da expressão, e psicanalista freudiana, em seu ensaio Reflexões Sobre o Problema do Amor, de 1900, analisou como a feminilidade e o sentimento amoroso encontram eco em nossas experiências contemporâneas. Nesse sentido, a palavra vida, no sentido apaixonante do termo, o de usufruir com vontade e ardor a existência, é central no pensamento de Lou. E no correr dessa vida apaixonada/ apaixonante, ela encantou e foi encantada por personagens exuberantes como os filósofos Paul Rée, Friedrich Nietzsche e o poeta Rainer Maria-Rilke. E o que nos interessa aqui, é que para essa pensadora, nascida em uma abastada família russa como Ljolia von Salomé, na São Petersburgo de 1861, amor era sinônimo de libertação.
Nietzsche foi o homem que ousou apaixonar-se por Lou e que, depois de um período de amizade, de onde resultaram livros capitais de ambos, teve seu amor recusado. Através das cartas trocadas entre Nietzsche e o objeto de sua paixão, podemos acompanhar o processo de enlouquecimento de um homem que, roído de dor e ciúme, acompanha os desvarios da irmã Elisabeth, que organiza uma campanha de difamação pública contra Lou ao ver o irmão mergulhado num caminho sem volta. 
Lou, Rée e Nietzsche, logo no início dessa criativa amizade, quase viveram juntos, sob o mesmo teto, à maneira de uma santíssima trindade. Não podemos nos esquecer que Paul Rée, também apaixonado por Lou, pôs fim à vida, atormentado pela ausência de Lou. 
Lou casou-se com um homem quinze anos mais velho, Carl Andreas, seu companheiro durante mais de quatro décadas, fidelidade que talvez seja explicada pelo fato de nunca ter imposto a ela as obrigações de esposa no contexto do século 19, e que aparentemente fechou os olhos aos admiradores que Lou colecionou no correr da vida.
A única paixão de Lou começou em 1897, quando já com 36 anos, casada com Carl, conheceu o poeta René-Marie Rilke, de 22 anos. Foi uma relação fecunda para ambos: Rilke cresceu como poeta e Lou escreveu A humanidade da mulher e Reflexões sobre o problema do amor (1899 e 1900), sob o impacto da intensa experiência vivida. Até a morte de Rilke, em 1928, e muitos anos depois, até a sua própria morte, em fevereiro de 1937, aos 73 anos, Lou faria do poeta a razão de sua existência e afeto.
Em 1910, Lou escreveu o ensaio O Erotismo, que encontrou ressonância no pensamento Georges Bataille. No ensaio, propõe aos leitores a necessidade de correlacionar experiência e o conhecimento. Lou Andréas-Salomé colocou-se assim como interlocutora de Nietzsche e, por extensão, de Bataille. 
II. A SANTIDADE DO PRAZER
A religiosidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição. 
Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, in¬vocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor to¬tal e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continui¬dade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros. 
Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraça¬do pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário. Há neste sonho algo de subli¬me e trágico.
A trans¬gressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organi¬zação, fundada no trabalho, tem por base a des¬continuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e pro¬dutos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a cons¬ciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a des¬continuidade se faz presente, com poder, através da morte. Ela é tragédia elementar que evidencia a ina¬nidade do ser descontinuo. 
Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transforma¬ram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desli¬gados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los.
Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. 
E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E o pecado de que fala Baudelaire . As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado . Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inó¬cua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 
Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado . Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. 
Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobreci¬mento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu¬jos aspectos não deixarão de estar disponíveis . O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana. 
III. O PRAZER DA SANTIDADE 
O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que faze¬mos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemen¬te que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse.
Há em nossos dias uma atenuação deste tabu, mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio.
Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na expe¬riência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. 
Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realida¬de que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade ex¬trema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão.
A passagem do prazer à santidade tem senti¬do, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- fe¬lix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 
Só um desvio per¬mite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nun¬ca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização.
Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o.
Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sem¬pre um projeto. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum.
ALGUNS FINALMENTES
O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgres¬são que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que no cristianismo vai além, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 
Na palavra do prazer erótico há uma recusa de viver o tempo que produz desprazer, que leva à angústia. Esse tempo é morto, sacrificado na linguagem do erótico, que substitui a angústia pelo tempo subjetivo: evita assim que a pessoa se torne refém das exigências externas ao se submeter ao desejo do outro. Mas, a morte do tempo que produz desprazer leva à ressurreição, leva a um novo tempo. Por isso, na linguagem do prazer erótico, como a vê Bataille, há libertação porque na seqüência gozo, angústia, desejo, o gozo não é mais atemporal, mas temporal. 
Assim, no plano do prazer, temos a palavra do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a linguagem do prazer é negação que define o humano em oposição ao animal.


BIBLIOGRAFIA

Georges Bataille e outros
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