mardi 18 avril 2023

A missão na Europa

A missão no contexto europeu

Jorge Pinheiro 

Montpellier, 10/12/2020



"Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Devemos, portanto, compartilhar sua preocupação pela justiça e reconciliação em toda a sociedade humana e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão ... expressamos penitência tanto por nossa negligência quanto por ter às vezes considerado o evangelismo e a preocupação social como mutuamente excludentes". John Stott  


Duas ou três coisas

Quando me perguntam por que fazer missão na França, eu parto do que, realmente, está acontecendo hoje na Europa, e que os jornais e revistas nos relatam sobre isso.


Ao som de bateria e teclado, quatro back vocais dão o tom do culto na igreja, enquanto são acompanhados por fiéis que, com os braços erguidos, louvam e repetem as letras projetadas no telão. Logo acima, pode-se ler Dieu est amour. A cena, comum nas igrejas brasileiras, é novidade na França, que viu a fé protestante renascer nos últimos anos.


A presença dos muçulmanos traduziu a primeira abertura para a naturalização da expressão religiosa em lugares públicos na França. Mas isso criou um problema: tanto a condição de migrantes quanto a identidade associada a uma religião com grande visibilidade fez da população muçulmana um alvo de discriminações e intolerâncias.


Mas voltemos aos jornais e revistas francesas. Longe do anonimato das ruas, nas manhãs de domingo na entrada da Église Réformée de Belleville a recepção é calorosa e personalizada.


“É a proximidade entre nós, os pastores, e nossos fiéis que faz a força do movimento protestante", afirma Amos Ngoua Mouri, pastor da Communauté Évangélique la Bonne Nouvelle, no norte de Paris.


Segundo Frédéric Rognon, professor de Filosofia das religiões na Faculdade de Teologia Protestante de Estrasburgo, na França, "os protestantes expressam a fé de forma contemporânea, enquanto os cristãos tradicionais utilizam ainda modelos antigos que não respondem à realidade da vida atual.


“O lado da expressão pública da fé protestante, quase publicitário, choca numa cultura francesa que relega a religião ao domínio privado”, afirma Fath, garantindo porém que as coisas estão mudando no país da laicidade. O pastor Mouri, por exemplo, confirma que o movimento protestante é cada vez mais reconhecido.


A presença do Islã na França decorreu da colonização do mundo muçulmano e a questão da presença árabe-muçulmana, ou seja, da migração, tornou-se uma questão fundamental da política da União Europeia. Nas próximas décadas se estima que cerca de 70 milhões de pessoas serão migrantes na Europa. Donde, é inútil negar as razões da crise europeia, já que a gestão da migração, principalmente, a presença muçulmana, deve respeitar os direitos à vida. Mas tanto a União Europeia como os Estados-membros não sabem, nem tem como resolver o desafio.


Para vencer o ódio e construir cidadania, a missão deve defender uma cidadania, por exemplo, que inclua as crianças migrantes, nascidas fora da Europa. O que pode ser enquadrado nas regras do reagrupamento familiar. Ou seja, a cidadania deve ser europeia em primeiro lugar, e ser válida para migrantes e refugiados. Para os povos em diáspora que escolhem esta terra europeia como cidade de refúgio.


Ao se falar de crianças, devemos lembrar que, segundo a UNICEF, o número de crianças refugiadas dobrou entre 2005 e 2015, e essas crianças desenraizadas devem ser levadas em consideração.


Qualquer que seja seu status, uma criança é uma criança. Assim, os milhões de crianças refugiadas que tiveram que deixar seus países devem ser protegidas e ter pleno acesso a todos os seus direitos, garantidos pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança. O grande número de crianças afetadas nos obriga a agir. Cada uma delas tem esperanças e sonhos. Conflitos violentos, perturbações causadas pelas mudanças climáticas não devem impedir que essas crianças tenham um futuro.


Para entender a escala do fenômeno, aqui estão alguns dados: 11 milhões de crianças são refugiadas ou requerentes de asilo fora do seu próprio país. Isto é o equivalente à população da Bélgica. 17 milhões de crianças foram deslocadas à força de suas casas. Cerca de 50% das crianças refugiadas vêm da Síria ou do Afeganistão.


Entre 2005 e 2015, o número de crianças migrantes aumentou 21%. Quanto ao número de crianças refugiadas, ele dobrou durante este período. Ou seja, 28 milhões de crianças foram deslocadas à força. Entre os 164 mil refugiados e migrantes que entraram na Europa em 2017, 29 mil são crianças. Mais de 90% das crianças que chegam à Itália estão sozinhas ou foram separadas de suas famílias. Cada uma delas enfrenta perigos consideráveis em sua jornada em busca de segurança. A rota do Mediterrâneo central, que está entre as mais perigosas, também é a mais utilizada. No final do percurso, essas crianças são frequentemente confrontadas com condições de acolhimento deploráveis: detidas, vítimas de discriminação, acumulam traumas que prejudicam o seu desenvolvimento. Muitas delas não têm acesso à educação ou aos serviços básicos de saúde. E outras optam pelo suicídio.


Vamos pensar a partir da teologia. Quando pensamos em missiologia na Europa e logicamente na França, devemos ouvir e ver o grito dos migrantes, muçulmanos e refugiados a partir do conceito de outro. E se não fizermos assim, vamos ver o próximo como se fosse uma projeção, e deixamos de entender a alteridade.


O renascer do protestantismo


Na França, a cada dez dias uma nova igreja evangélica abre as portas, de acordo com dados do CNEF -- Conselho Nacional dos Evangélicos da França.  


“A primeira razão é simplesmente a necessidade de esperança”, explica o sociólogo batista Sébastien Fath, especializado na história do protestantismo francês e autor dos livros Do gueto à rede, o protestantismo evangélico na França; e A nova França protestante, desenvolvimento e crescimento no século XXI.


"O contexto de crise, que atinge a sociedade francesa, tem por consequência um certo número de patologias sociais, como a solidão. O Estado não pode fazer tudo, as prestações sociais e capacidades de intervenção são em geral fragilizadas, pois há menos dinheiro público. A igreja evangélica responde às necessidade que o Estado não se encarrega mais”, avalia Fath, que enfatiza o caráter otimista do discurso evangélico, em um país onde o pessimismo é a regra.


Fath explica que embora a fé cristã esteja chegando a todos as classes sociais, inclusive às mais favorecidas, ela vem atraindo jovens e imigrantes, principalmente aqueles originários das antigas colônias francesas.


"Muitos franceses estão desencorajados diante da crise e da globalização. Há uma certa depressão e uma necessidade de perspectiva”, diz Fath. Já para Étienne L’Hermenault, pastor batista e ex-presidente do CNEF, o crescimento das igrejas evangélicas é fruto da sede espiritual. "A crise não é simplesmente financeira, mas também moral. Há um cansaço de uma sociedade que perdeu muitas referências e que busca valores”, argumenta.


Fath crê que o retorno ao protestantismo está ligado também à crise do discurso político. “Os franceses estão decepcionados com a política. O país que, durante muito tempo exportou pensamento político, se desencantou com as soluções políticas, há 15 ou 20 anos atrás”, avalia.

 

Evitar a realidade que nos circunda e fugir de uma leitura humana e presencial do Cristo nos remete à frase proposta por Tertuliano de Cartago, escritor cristão do século III, "credo quia absurdum!". Creio porque é um absurdo.

 

Esse absurdo paradoxal atinge o concreto e nos chama a mergulhar na imensidão do divino humano. Fechemos os olhos e digamos como aquele judeu que se chamou Paulo, o Pequeno: "Os judeus pedem um sinal, e os gregos sabedoria, mas nós pregamos o Cristo crucificado, que é um escândalo para os judeus e uma loucura para os gregos”.

 

Absurdo, escândalo, paradoxo... assim como o fundamento da fé, a mesma fé que justifica Abraão no meio da loucura de um pai que deve sacrificar o "filho da promessa". Portanto, a fé deixa de ser a emuná hebraica, que define uma posição militar, e se torna um paradoxo. Nenhuma ilusão ou devaneio, mas a loucura da confiança no divino, que não podemos compreender.

 

Como disse Paul Tillich, herdeiro de Hegel e do jovem Marx, a práxis é a mediação entre a ontologia e a realização da realidade. Essa correlação, que para Tillich se tornará um método, é a busca de superação da dialética anterior, que tratava do conhecimento do ser e de suas manifestações fora da práxis histórica. Devemos, nesta reflexão sobre missão na alta-modernidade europeia fazer essa passagem construindo uma lógica que não será hegeliana nem marxista no sentido clássico, mas buscará correlacionar ontologia, lógica e metodologia na dinâmica da práxis missiológica.

 

Essa correlação com a exterioridade caracteriza a mobilidade da missiologia integral que é uma missiologia da práxis. Desenvolve, assim, o caminho da correlação entre exterioridade e ontologia face à dinâmica da práxis, tratando de formulações de métodos que acompanham a superposição de horizontes ontológicos. Desse modo, tal missiologia coloca a afirmação da exterioridade como fonte anterior às demandas da ontologia, o que leva a uma intersecção comum: a ética.

 

Por isso, a missão na alta-modernidade deve ser construída a partir de duas leituras: o próximo como revelação de um mistério que nasce da liberdade, e da igreja como comunidade que denuncia os poderes que negam a milhões de pessoas a possibilidade a bens e direitos. A fé nasce do ato da inteligência -- essa é uma forma de ver. Mas quem, realmente, vai além do que vemos? Em primeiro lugar, a esperança de que o outro se revele. Ou seja, a possibilidade de produção e reprodução da vida que está além da visão do rosto. Assim, missiologia para a Europa na alta-modernidade significa pensar o outro, mas um outro que se revela na história, que é o mistério da nossa liberdade. Acreditar na revelação deste próximo é entender o significado da história.

 

Para que a missão seja integral devemos descobrir o significado do presente histórico, quer venha da África ou de regiões desfavorecidas do planeta. E o significado do presente histórico é profecia, é a palavra. Mas falar para quem? Na modernidade, falar ao outro nos levou à leitura formal do ir. Atravessar os mares e ir até os confins da terra. Devemos ir, sim. É claro que a profecia deve falar do significado dos acontecimentos presentes para nossa vida cristã. E isso é igreja. Mas, nesta alta-modernidade de caos e crise, o desafio não é apenas ir, mas receber. Vivemos na localidade global, não somos chamados somente a ir, mas a receber, porque muçulmanos, migrantes e refugiados estão entre nós, conosco. Assim, missão na alta-modernidade é receber e viver no chão da vida a realidade da fé.

 

A missão reconhece a vida do ponto de vista integral: onde o outro se apresenta como próximo, irmão, e não como como estranho, diferente, excluído. E esse é o conceito cristão de outro, sempre próximo, mesmo fisicamente distante, que no encontro nos pede novas atitudes e comportamentos.

 

A atividade missiológica é uma atividade de confronto que diz respeito a pessoas que sabem que muitas vezes devem discordar, pois não somos espectadores passivos.

 

A integralidade é uma contribuição para a questão metodológica, pois parte daquilo que está fora da igreja e mesmo do nosso círculo de amizades, que reconhece a existência da liberdade humana como graça de Deus. A lógica da missiologia moderna era dialética, não chegava ao horizonte do mundo, não incluía o outro porque anulava em sua alteridade. Mas, a missão integral nos apresenta um momento antropológico, uma maneira diferente de viver a missiologia, já que é uma missão holística, que abrange tanto o evangelismo e a presença junto às igrejas, quanto a responsabilidade social.

 

Desde 1974, a missão integral influencia o mundo latino-americano, mas hoje se faz necessário que seja presença em todo o mundo, em especial na Europa. Ela nos mostra que o ser humano e a comunidade estão localizados além do horizonte da totalidade. Ser integrado, porque o outro é um ser inteiro, é o fulcro para novos desenvolvimentos. No entanto, o ponto de partida do discurso metódico é a externalidade do outro. Como alternativa à dialética que trabalha com a contradição, a identidade e a diferença, o princípio não é o da identidade, mas o da distinção. O estar e ser integral segue uma sequência, a totalidade é posta em causa pelo questionamento provocador do outro. Ouvir a palavra é ter consciência ética, é aceitar a palavra questionadora de quem fala. É ouvir e ver a necessidade real daqueles que estão na Europa, mas que tiveram sua ancestralidade longe dela.

 

Não podemos esquecer que 2,4 milhões de pessoas de países não pertencentes à Comunidade Europeia imigraram para a Europa em 2018. E que das 446 milhões de pessoas que viviam na Europa em 2019, 21 milhões eram de países que não pertenciam à Comunidade Europeia. Nas próximas décadas, segundo projeções da própria União Europeia, 70 milhões de africanos, principalmente jovens, migrarão para a Europa. O que isso diz a nós missionários?

 

A missão é holística

 

Utilizar o método da integralidade da missão significa aceitar eticamente o grito daqueles que chegam fugidos da miséria, da guerra e do extermínio. Essa ação é constitutiva, condição da possibilidade de compreensão: resulta na adoção da exterioridade, lugar do exercício da consciência crítica.

 

A integralidade da missão é a afirmação da exterioridade: não é apenas a negação de um estado de coisas. É a superação da totalidade moderna a partir da transcendentalidade daquele que nunca esteve dentro. O momento é crítico por isso: é a superação do pensamento dialético negativo, mas não o nega, porque a dialética não nega a ciência, ela simplesmente a assume e a completa. Afirmar a exterioridade é alcançar o impossível para o sistema, o imprevisível para o todo, que decorre da liberdade. É somente por meio de um envolvimento integral que alguém pode se comprometer com o outro, a ponto de arriscar a vida na luta pela conquista de cidadania e direitos deste outro. Como resultado, a missão integral é prática: é uma uma pedagogia que visa a realização da alteridade humana.

 

A expressão missão integral foi criada na década de 1970 por membros da Fraternidade Teológica Latino-americana. A palavra integral, em espanhol e em português é usada para descrever a integridade do pão, pão integral, pão de trigo integral. Assim, a expressão é usada para descrever uma compreensão da missão que afirma a importância de expressar o amor de Deus e o amor ao próximo por todos os meios possíveis. Seus teóricos, dos quais eu citaria três, René Padilla, Samuel Escobar e John Sttot, enfatizaram a amplitude do Evangelho e da missão cristã. E usaram o conceito de missão holística para mostrar que a missão não deve se basear na dicotomia entre evangelismo e envolvimento social.

 

Mas o conceito não é novo: está presente no Novo Testamento e no ministério de Jesus. Missão integral é uma expressão que nos leva à compreensão de que a missão é holística, não é dualista, nem dialética.

 

A missão integral já fez uma jornada de cerca de cinco décadas. Em 1966, o Congresso da Missão Mundial da Igreja, realizado em Wheaton, Illinois, reuniu evangélicos de 71 países. A Declaração de Wheaton declarou que "nós somos culpados de um isolamento antibíblico do mundo que muitas vezes nos impede de enfrentar e lidar honestamente com suas preocupações" e a "falha [da igreja] em aplicar os princípios bíblicos a problemas como racismo, guerra, explosão populacional, pobreza, desintegração familiar, revolução social e comunismo”. 

 

E naquele mesmo ano, o Congresso Mundial sobre Evangelização em Berlim reafirmou a concepção tradicional da missão, que chamamos de moderna. Billy Graham, neste Congresso, disse que se a igreja voltasse à sua tarefa principal de proclamar o evangelho, ela teria um impacto muito maior nas necessidades sociais, morais e psicológicas das pessoas do que poderia alcançar por meio de qualquer outra ação.

 

Mas logo depois tivemos o Congresso Internacional sobre Evangelização Mundial em Lausanne, 1974, o mais importante encontro cristão do século XX, que propôs a missão integral como método para chegar aos desterrados neste novo momento da pregação do Evangelho.

 

Depois do Congresso de Lausanne, a missão integral cresceu. E na Inglaterra, em 1980, se elaborou um documento -- "Um Compromisso Evangélico com Estilo de Vida Simples" --, que reafirmou nosso compromisso com a justiça dentro da concepção de missão.

 

E em 1982, a Consulta Internacional sobre a Relação entre Evangelismo e Responsabilidade Social entendeu que a responsabilidade social é uma ponte e parceira do evangelismo. Ou seja, os dois são, na verdade, inseparáveis.

 

Um ano depois, a Consulta sobre a Igreja, realizada em Wheaton, Illinois, publicou "Transformação: A resposta da igreja às necessidades humanas", que foi a mais profunda afirmação cristã da missão integral. Fez a denúncia da injustiça, e uma crítica àquelas igrejas que através do silêncio dão seu apoio tácito ao status quo sócio-econômico.

 

Depois de "A Questão Judaica", Marx fez a crítica econômica do cristianismo. Essa crítica foi dirigida às igrejas, porque para Marx elas eram a expressão da miséria. Mas também criticou a religião quando analisou o fetichismo da mercadoria, porque para ele a leitura religiosa do mundo real não desapareceria enquanto as atuais condições de vida não fossem superadas. Mas, em que consiste essa leitura do mundo real? Ora, o olhar religioso vê a existência separada das relações construídas pelo ser humano. E essa existência independente das relações sociais, essa existência irreal, é um reflexo de outro real. Essa divisão entre aparência que oculta a existência e oculta a realidade é esta idolatria do fetichismo da mercadoria. Estranho fetichismo, que consiste nisto: ele oculta o caráter social do trabalho e se manifesta como se este fosse um caráter material dos próprios produtos do trabalho. Ou seja, em relação à mercadoria, e infelizmente para o mundo da religião alienada, a realidade está separada das relações de trabalho, do essencial concreto e de seu produto. Vê-se, então, uma realidade aparente, como se o valor da mercadoria pertencesse de direito à sua própria estrutura independente. É esta visão de mundo alienada, separada da realidade, que a missão integral se propõe denunciar.

 

Uma missiologia para a Europa na alta-modernidade é uma ética da vida. Não é apenas uma razão estratégica que visa levar a revelação aos alienados de seu destino, mas deve ser capaz de integrar os princípios de vida que posicionem o outro, o próximo e o diferente como análogos.

 

O sistema-mundo nesta alta-modernidade de caos e crise, ao tornar impossível a produção e reprodução da vida, aprofunda seu caos e crise semeando a exclusão de bens e direitos. As vítimas são milhões de pessoas que estão aqui do nosso lado. Fome e miséria são cavalos do Apocalipse. Cabe, portanto, à missão elevar a ética como recurso diante de uma humanidade em perigo. Esta missiologia é responsável pela solidariedade que parte do critério da vida em relação à morte, da caminhada digna no caminho da fronteira, entre os abismos da irresponsabilidade ética e a paranoia fundamentalista.

 

Estamos aqui diante do sujeito histórico que aponta para a esperança escatológica, que se abrirá para ir além da alta-modernidade, onde o ser humano terá pleno direito de produção e reprodução da vida. E a missão, exatamente por ser holística, deve compreender que esta ação e esta postura não negam o análogo de Cristo, mas deve deixar de ser uma hermenêutica teórica e se desenvolver como uma presença que leva a uma transformação real.

 

É por isso que a missão apresenta um princípio universal: a defesa do direito à produção e reprodução da vida de cada ser humano. Esse princípio é objetivo e subjetivamente negado pelo sistema-mundo e pela globalização.

 

A revelação é palavra

 

Missão integral é revelação. E revelação é palavra, é linguagem e pessoalidade, é ver o próximo, ouvir a pessoa, caminhar com ela. Por isso, a missão corre no fio da navalha: por um lado está a negação da presença e recepção do diferente, daquele que veio de longe e, por outro, o fundamentalismo pró-integração, que quer fazer dele um igual a nós. Por isso, abrir-se para receber, e tudo o que isso implica, rompe a discussão moderna entre o paradoxo e a dialética do Cristo. Não há paradoxo porque Cristo é análogo e o método é holístico.

 

E não nos esqueçamos das palavras do profeta Miquéias (6:8): "O que o Senhor requer de você senão que faça justiça, ame a bondade e ande humildemente com seu Deus". A nossa missiologia mostra que Deus criador e mantenedor existe nesta esperança e nesta possibilidade de produção e reprodução da vida. E Cristo não é uma monstruosidade ou um paradoxo, mas análogo. Assim, os que vem de longe, verão que Deus existe e Cristo é pessoa, Deus que se fez carne por amor a nós.

 

E volto ao Goddard de "Duas ou três coisas que sei dela", quando ele cita o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein: "Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem." Mas, então, vemos Juliette cruzar Paris e dizer: "Mas o mundo sou eu".

 

 

Bibliografia

 

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BOSCH, David J. Missão transformadora. Mudanças de paradigmas na teologia de missão. São Leopoldo: Sinodal, 2002.

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ZIZEK, Slavoj, O sofrimento de Deus, inversões do Apocalipse, Editora Autêntica, 2015.

____________, John Milbank, A monstruosidade de Cristo, paradoxo ou dialética, São Paulo, Editora Três Estrelas, 2014.


Novela de memórias, o livro

Jorge Pinheiro


Novela de memórias

Um pedaço de mim

 


“Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”.

Lutero, reformador do século 16.



Prefácio

Capítulo 1 – Indo...

Capítulo 2 – Um sonho pesado

Capítulo 3 – Memórias em fuga

Capítulo 4 – Bombero loco, loco, loco...

Capítulo 5 – A verdade

Capítulo 6 -- O mundo de Nebo

Capítulo 7 – O bailarino

Capítulo 8 – A taverna

Capítulo 9 -- Anabella

Capítulo 10 – A revelação

Capítulo 11 – Comando León Trotsky

Capítulo 12 – Justiça e graça

Capítulo 13 -- O ódio de Astarote

Capítulo 14 – A vida

Capítulo 15 – Ahumada com Huérfanos

Capítulo 16 – A Deus, as armas...

O autor



Prefácio 


A memória é afetiva e seletiva. Na verdade, ela vai apresentando os fatos vividos, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos situações-limite. Mas não pára aí. A memória sempre faz uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis.


É por isso que os velhos são bons contadores de história e são olhados pelos netos como cavaleiros andantes de um tempo mítico.


Mas nem por isso a memória deixa de ser história. Principalmente quando ela discorre sobre acontecimentos sociais amplamente conhecidos. E quando isso acontece ambas se complementam e se enriquecem. A memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo indutivo, que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato documental.


Mas nossas memórias não se entrecruzam apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos, transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida.


Nessas primeiras memórias apresento ao leitor minha dor maior, meu primeiro exílio e a caminhada em direção ao paredón. Esses acontecimentos fazem parte da história recente do Brasil e da América Latina. Muita gente viveu dores semelhantes e por isso fazem parte dessa história. Alguns estiveram ao meu lado e exerceram uma profunda influência em minha vida. Outros foram passantes.


Aqueles que já morreram e, por isso, mais do que nunca são personagens de nossa história latino-americana aparecem aqui com seus nomes verdadeiros. Os que ainda estão vivos, construindo histórias, deixo que a memória os trate como imagens e por isso aparecem com pseudônimos.


Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que ainda não são história acabada. Nesse sentido, a memória segue a tradição de muitas tribos indígenas brasileiras, onde os nomes mudam conforme o índio cresce. O nome definitivo não traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.


Quanto aos pesadelos, estão todos presentes. É o inconsciente revelando sua visão do mundo vivido pelo escritor. É difícil dizer qual é maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos são terríveis e por isso se complementam. E fica mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual vem primeiro, já que o pesadelo pode ser sentido como futuro que se faz presente, como leitura da escatologia não realizada.


Ou como cantou Chico: “Oh, pedaço de mim/ oh, metade adorada de mim/ leva os olhos meus/ que a saudade é o pior castigo/ e eu não quero levar comigo/ a mortalha do amor”. E, assim, tudo chega através da memória, que afetivamente vai selecionando o que lhe parece mais verdadeiro, a fim de construir o mundo mítico de nosso heroísmo fugaz. 


Jorge Pinheiro  



Capítulo 1


Rebeca tirou o pé do acelerador. O carro deslizou de lado e bateu forte no barranco. Por alguns momentos, nenhum de nós entendeu o que estava acontecendo. Filemón estava com o rosto sangrando, o corpo amolecido pelo impacto. No banco de trás, eu e Yasmin nos recuperamos rápido do susto e saltamos do carro. Juntos, os três agarramos Filemón pelos braços e o puxamos para fora. Estava pálido demais, cor de cera, a não ser pelo vermelho que continuava a lhe escorrer pela cara.


-- Está morto, disse Rebeca.


-- Não, não está, respondeu Yasmin. 


E cada uma olhou para a outra, numa disputa de olhares que todo mundo conhecia muito bem. Elas se odiavam e nunca perdiam a oportunidade de demonstrar isso. Absurdo, essas duas vão começar a brigar aqui, quem sabe vão se engalfinhar, se morder, xingar a mãe, sei lá, enquanto o Filemón se esvai em sangue.


-- Ele está com a cabeça machucada. Se for alguma coisa muito grave, a gente só vai saber depois. Não dá para chamar o médico, agora.


As duas olharam para mim como se estivessem diante de um extraterrestre. Pegamos uma estopa velha e suja de óleo, a única que havia na hora, limpamos a cabeça de Filemón e fizemos uma bandagem com uns trapos que estavam jogados no fundo do carro, um Dolphine que era pau pra toda obra.


Encostamos o rapaz no barranco e, então, voltamos ao mundo real. Eram duas e trinta da madrugada. Ali estávamos quatro militantes do Movimento Nacionalista Revolucionário com um carro cheio de armas, tombado junto a um barranco da rua Almirante Alexandrino, em Santa Teresa. Na verdade, eu tinha avisado a Rebeca, cuidado que esses trilhos escorregam. Cuidado com essa curva perto do hospital alemão, cuidado. Mas, quem disse que Rebeca escutava. Ela sempre se considerou uma Mata Hari. Só não usava piteira. Mas será mesmo que Mata Hari usava piteira ou isso era mais uma criação de Hollywood?


-- Estamos perto de casa. Uns cinqüenta metros. O problema é se passa alguém.


Recomposta da ira inoportuna, Yasmin ajeitou a blusa e a mini-saia, que tinha subido até o alto da coxa. Ela sempre combinava a cor da mini-saia com a cor da calcinha. E para ser verdadeiro, as mini de Yasmin eram micros. Tinha uma dúzia delas. Sacudiu a cabeça, passou a mão pelo cabelo, como se, de repente, estivesse acordando para a vida.


-- Vamos à luta, antes que alguém nos veja.


E mais uma vez os três voltamos a trabalhar juntos. Destombamos o carro, abracei Filemón o melhor que pude, agarrando-o como se fosse um bêbado e o arrastei até o prédio. As duas mulheres, cheias de pacotes, tentavam andar rápido na minha frente. Não corriam. As metralhadoras, mesmo desmontadas, formavam volumes pesados. Era só o que faltava, sermos presos agora, depois de uma viagem tão longa.


Eu sabia que este era um trabalho de formiga. Cansativo, suado e longo. A medida era a história. Sorte nossa que a história marchava a nosso favor. Rua Almirante Alexandrino, 1190 apto. 202S. Um apartamento de dois quartos e sala ampla, com rede, o grande charme da casa, uma estante de tijolos, com os cinqüenta livros mais lidos por nós revolucionários. Desde o pequeno Régis Debray até O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx. Sem dúvida, uma biblioteca pequena, uns cem livros ao todo, mas que carinho tenho por eles. 


Deitei Filemón na rede. Ele gemeu. A testa e a cara dele estavam roxas. É, não é desta vez que ele vai empacotar. Que bom. Se ele morresse agora ia ser um deus nos sacuda.  


Yasmin passou de calcinha em direção à cozinha. Calcinha e camiseta cavada. Ela sempre gostou de andar assim, por isso detesta visita. Os pacotes estavam arrumadinhos ao lado do oratório barroco que eu trouxe de Congonhas do Campo. Metralhadoras e barroco mineiro. Eis aí um bom símbolo para a revolução brasileira. O futuro encontra suas bases no sonho do Aleijadinho. Que loucura, um escultor de mãos podres. Se ao menos fosse poeta, poderia ditar os seus sonhos, ao invés de cinzelá-los em pedra, sabão não há dúvida, mas pedra é pedra.   


Rebeca é gente fina. De Recife, mas criada no Rio. Antes de ser aeromoça, estagiou no Caderno B do Jornal do Brasil. Anda empinadinha, olha de cima, fala professoralmente e quer casar com um escritor famoso. Não ia dormir aqui em casa, mas essa hora não vai encontrar táxi, nem bonde. Ônibus muito menos.


-- Onde eu durmo? No dos hóspedes? 


-- Não quer comer alguma coisa antes? Tem salada de batata com maionese na geladeira, cerveja e uma torta de maça da Colombo. Vem também, Yasmin, levanta dessa cama e vamos fazer um lanche porque o dia foi duro.


-- Torta eu quero. Salada não. É muito pesado a essa hora, disse Rebeca, encaminhando-se para a cozinha.


E Yasmin, toda alegre, veio cantarolando Noel. "Quando o apito, da fábrica de tecidos..." Ela tem o maior orgulho de sua origem proletária. A bisavó era escrava e de tão pobre, quando recebeu alforria, vendeu um dos filhos como grumete para um navio de bandeira chinesa. Sempre que conta essa estória cai na gargalhada e diz que deve ter uma porção de tios na China. O pai era sapateiro. Morreu tuberculoso.


E a mãe... Ah! a mãe! Ninguém em todo o Rio de Janeiro faz uma feijoada como ela. Quando Yasmin canta Noel, tenho a nítida impressão que ele nasceu na Penha. É como se ela estivesse falando de um conhecido, de um desses vizinhos que freqüenta o mesmo bar e divide com a gente um sambinha que acabou de sair do forno. Eu gosto de Yasmin. Tem um gênio danado. É desconfiada, briguenta e sarcástica. É, esta é a palavra exata para defini-la: sarcástica. Despreza solenemente ricos e intelectuais.


Não sei porque está comigo. Somos antípodas. Claro que não sou rico, fiquei apenas com os defeitos de quem foi criado como se fosse. Intelectual? Sou, mas isso só produz grandes brigas com Yasmin. Acho Glauber, o protestante, um gênio. Já troquei umas idéias com ele no Paissandu e gosto mesmo dos filmes dele. Yasmin diz que um governo de trabalhadores não vai gastar um tostão com um cara que faz filmes que ninguém entende. E vai por aí.


Guimarães Rosa, diz Yasmin, a vermelha, é um católico reacionário, e Nélson Rodrigues, machista. Mas gosta do Tenório. E quando ela gosta, ela ri. Na verdade, gargalha. Dá a maior tesão, quando vejo Yasmin rindo. Os olhos dela se fecham, mostra os dentes super brancos. E o corpo todo ri junto. Quem estiver perto fica eletricamente contagiado. É uma alegria carioca, de subúrbio, que rima com samba, cerveja gelada, empadinha da Praça Quinze e gol do Flamengo.


-- Antenor, larga o Filemón aí nessa rede e vem comer. Afinal foi você quem deu a idéia.


Antenor é o meu nome político. Quem me deu foi Tiago, o poeta. É um visionário, mas desses que o país precisa. Sabe combinar política e sonho. É amigo do Fidel, mas também do Negrão de Lima. Às vezes fico pensando de quem ele não é amigo? Conhece todo mundo. Até a queda de Jango freqüentava todas as altas rodas, e dormia em lençóis de linho, com a fina flor da aristocracia, como ele mesmo diz. Agora, clandestino, mas elegante, ele vem aqui para casa, deita na rede da sala, folheia a minha trilogia do camarada Mao Tsétung, em francês, e conta suas estórias. Tem um sotaque forte de homem do Amazonas. É um herói.


-- Rebeca, você sabia que salada de maionese é a especialidade de Yasmin? 


-- Diz logo que aprendi faz um ano. Imagina, com minha mãe em casa quem se atrevia a entrar na cozinha. Faz um ano que Antenor está comendo salada de maionese. Sorte que ele gosta.


-- Vocês não acham que seria bom colocar uma compressa quente na testa do Filemón? E dar um chá de camomila com uma aspirina para ele? O companheiro vai despertar com uma dor de cabeça do cão. 


-- Boa idéia, Antenor. Mas enquanto eu fervo a água para o chá, me conta como é que você e Yasmin se conheceram. Se é que pode?


-- Que é isso, Rebeca? Mais do que você conhece a gente! Não há como quebrar a segurança. Você sabe o Sol, o jornal do Reinaldo Jardim e da Joana, lá no Jornal dos Sports? Bem, tudo começou ali. Yasmin estava no primeiro ano de jornalismo da Federal e eu na PUC. Soube na Manchete que iam lançar um jornal novo, e quando vi que só tinha cobra, resolvi fazer os testes. Coisa fina, melhor jornal não existia. Se tivesse só o Carpeaux já valeria a pena. Ele corrigia meus textos, com gagueira e tudo, dava dicas e comentava as coisas que escrevíamos. Um monstro. Tinha o Cony, que ensinou a moçada a cobrir polícia e vai por aí. E muita gente bonita. Aliás, como diz o Ajuricaba, que anda meio caído por você, era só dar uma volta pela arte, para se ficar apaixonado. E como arte lembra cartum, não dá para esquecer o Henfil. Pena que durou pouco.


-- Ajuricaba caído por mim? Se está, nunca falou.


-- Mas é lógico, ele é super tímido. Aliás, o Antenor morre de ciúmes dele, quando ele vem aqui em casa. É um tímido charmoso.


-- Tímido, charmoso, sonhador, poeta. Só falta ir para a Sorbonne pela Air France.


-- Deixa de indiretas. A Rebeca já disse que ele nunca a cantou, fica você aí falando em Air France e outras bobagens.


-- Espera ai, não quero comprar briga. Só acho que ele sonha com a Rebeca porque ela é aeromoça. Aliás, faz parte dos sonhos eróticos masculinos. Normalista, freira, aeromoça...


-- Deixa de machismo, Antenor, e conta logo como foi que você conheceu Yasmin.


-- É melhor deixar para outra hora. A água está fervendo e depois do chá do Filemón a gente tem que dormir, cortou sabiamente a companheira Yasmin.


Filemón tomou o chá, com muito vagar e gemidos, fez cara feia na hora da aspirina e recostou a cabeça no travesseiro que Rebeca ajeitou com cuidado na rede.


Rapaz corajoso esse. Brizolista, gaúcho. O meu amigo guerrilheiro mais chegado. Fez Caparaó. Ele, Bayard, Amadeu e mais onze companheiros ficaram na serra durante 150 dias. Montaram acampamentos, esconderam uma tonelada de armamentos e víveres, mas foram cercados em março de 67 por seis mil homens da PM de Minas Gerais, do Exército e da FAB. Do grupo, sete eram militares punidos pela ditadura por serem leais ao governo de Jango, entre eles Filemón. Rebeldes, jovens. Cercados na altura de Manhuaçu. A guerrilha não estava implantada. A população das cidadezinhas da região nem sabia o que estava acontecendo. No dia 4 de abril de 1967, o Estado de S. Paulo noticiou: “Oito guerrilheiros que estavam acampados na serra de Caparaó (...) foram presos pelo 11o Batalhão de Infantaria da Polícia Militar de Minas Gerais. O grupo era formado de sete militares cassados e um civil”.


Prisão de segurança não segura quem só tem um objetivo, fugir. Fica na prisão quem se acomoda, quem aceita cumprir pena. Quem dorme e acorda preparando a fuga, foge. E aqui está o meu amigo, comandante Filemón, em minha casa, aparelho do Movimento Nacionalista Revolucionário, tonto de dor de cabeça, por causa da derrapada de uma aeromoça empinadinha, que não ouve a voz da experiência. As duas já foram dormir. Vou me aninhar no regaço quente de Yasmin. Poetar não é meu forte. Vou mesmo agarrar aquela moça e tirar o maior ronco. Amanhã cedo tenho que entrar em contato com o médico da organização, antes de ir para a Manchete.     


Esse pedaço da cidade tem um charme especial. Gosto de mato. Esses sabiás, as mangueiras aí no fundo do prédio, lembram a Santa Teresa dos anos 50. Tinha macumba num terreno baldio perto do nosso edifício. Todo sábado de manhã ia lá recolher as moedinhas que colocavam para o santo, era a minha mina particular, nunca contei para ninguém, tinha guerra de barro molhado, depois da chuva, num pedaço de morro desabado, com direito a cabeça quebrada e muito choro, tinha enterro de gato vivo, estilingue, muita queimada e, sublime, pudim de chocolate de merenda na escola pública.


Tinha meu pai, grande, gordo e bravo, me ensinando judô, torcendo pelo América, revisando no JB, apoiando os socialistas, fazendo campanha contra a palavra judiar, negando-se a ser candidato a vereador. Tinha minha mãe, pequenininha, delicada, que comprava as roupas do menino no Príncipe, lia romances franceses, se possível católicos, e tinham os dois, pelados, fazendo guerra de água na banheira, nas tardes dos finais de semana.


Amynthas, cento e dez quilos de carinho. Li e reli, até decorar, uma carta que escreveu de Vitória, onde nasceu, para minha mãe em 1951. 


Querida Maria,


Que a Paz do Senhor esteja contigo e nossos filhos, é o que de coração te desejo. São 5,15 da manhã do dia de finados de 1951, portanto, ha 31 anos que havia deixado Vitória e ha 25 que não via minha velha mãe, o que hontem se deu. Não imaginas, cheguei de surpresa, minha irmã reconheceu-me, mas mamãe não me conheceu.


A velha é, hoje, um espectro daquilo que foi ha muito. Está quasi sem andar, mesmo dentro de casa para faze-lo precisa de um bastão...


Acredito mesmo que não poderá ir muito longe, entretanto, só Deus, o Boníssimo, poderá sabe-lo. Hoje vive relembrando seus dias felizes, muito nervosa, e disse minha irmã que depois que a outra faleceu, ela cahiu como que da noite para o dia...




Vou marcar com o companheiro Marcos, para ele dar um pulinho aqui na hora do almoço. Aí ele dá uma olhada no Filemón. O carro não tem problema, o Artur da oficina passa com o guincho daqui a pouco. Praia do Russel. Nunca consigo chegar antes das dez. Ainda bem que o Giudicelli sempre chega depois. Também ele não dorme. Estou com uma matéria ótima, os doze homens de ouro. São os capi da polícia carioca. Gente da Scuderie Le Cocq, que garante de pés juntos que não têm nada a ver com o esquadrão da morte. Garantem de pés juntos, só não dizem de quem são os pés. Trocadilho infame, mas vou usar no meu texto. Se o Ney tirar, tirou. Vou tentar umas fotos de morro, tudo muito violento. Afinal, o gostoso da reportagem policial é o arrepio. Aliás, sempre dou uma dica para quem vai escrever sua primeira matéria policial: lê X-9 antes.


Um dia ainda me enrosco numa dessas esculturas do Krajberg, aqui na entrada. A minha vingança é que a Manchetinha, a cadela do Adolfo Bloch, já deu umas mijadas no pé dessa árvore. Aliás, esta é a sina da escultura, sempre vira pinico. É uma arte exposta. Prefiro escrever, porque o único jeito é queimar. E se não queimar tudo, vira fragmentos. Aí é o momento maior da glória, tese de doutorado em literatura, fragmentos da obra do escritor rebelde...


-- Ei, Luís, o fotógrafo e o motorista estão te esperando na frente do prédio.


Puxa que dia. Levaram Filemón para outra casa, onde pode ser mais bem cuidado. E também as armas. Mas à tarde, José Paulo me deu uma notícia terrível. Yasmin estava muito ferida. Tinha ido fazer uma reportagem, e o carro do jornal capotou na Avenida Brasil. Saí feito um louco. Na avenida, cruzei com o carro, que ainda estava com as rodas para cima e os vidros quebrados. Puxa, como é que ele conseguiu isso? Será que vinha a 180 por hora? Entrei no hospital furioso, com um ódio da morte, das paredes brancas e do cheiro de éter. Detesto hospital. 


Agora, porém, está dormindo. Sedada. Aqui em casa, na nossa cama. Eles tinham medo que ela tivesse sofrido traumatismo craniano. Para minha felicidade, alarme falso.


Dois acidentes com carros em menos de 24 horas. A bruxa está solta. Coitada da Yasmin, tem uma resistência muito baixa à dor. Se doer, um pouco que seja, ela logo desmaia. Ah! essa casa fica tão triste quando ela não está cantando. Se estivesse boa, já estaria aqui na rede me provocando.


-- Chega pra lá, cara. Puxa, você fica com a rede toda para você. 


Então, me empurra, ameaça me derrubar, depois se enrosca e dorme. Sempre levanto para ela poder dormir direito. Leio, dou voltas pela casa, fico olhando as luzes da cidade. Depois, a pego no colo e levo para a cama. Cubro só com a colcha fininha. Mas hoje não tem nada disso. Ontem, a essa hora, apesar do acidente e dos ferimentos do Filemón, a casa estava agitada. Agora, me sinto solitário. Acho que gosto dela, mesmo.  


Conheci Yasmin no jornal O Sol. Na época não dei muita bola para ela. Estava apaixonado por uma pianista negra, que tocava com Maria Betânia. Eu ficava ouvindo, ouvindo, ouvindo ela tocar, embasbacado. Mas Yasmin fazia uma marcação cerrada. Eu morava no Solar da Fossa, hotel ocupado por artistas jovens, ali em Botafogo, quase na boca do túnel. Por lá andavam Caetano Velloso, Dedé Gadelha, o pessoal do MPB 4, e um amigo fora dos padrões, Wagner Tadeu Horta. Ele tinha chegado de Caratinga, com muita genialidade e uma inocência de anjo barroco.


Quando desceu na rodoviária Novo Rio, levou um susto de ver tanta gente e confusão. Chegou para um sujeito, perguntou se ele podia cuidar da mala dele, enquanto ia tentar apanhar um táxi. Conseguiu o táxi, mas a mala e o sujeito desapareceram. Seu destino era a casa de um amigo e guru, o Ziraldo, que nessa época morava em Copacabana. Quando o táxi estava no meio do caminho, no Aterro do Flamengo, Wagner apavorado com o taxímetro que não parava de saltar, tirou todo o dinheiro do bolso e disse para o motorista:


-- Moço, eu só tenho isso, será que vai dar?


-- Não se preocupe, meu filho, eu te levo até lá.


Wagner agradeceu emocionado, à boa vontade do taxista. E assim se foi, além da mala, com roupas, goiabada cascão e queijo minas, o dinheiro de todo um mês.


Essas histórias aconteciam às dúzias com ele. Estava totalmente despreparado para enfrentar a voracidade do Rio de Janeiro. Mas como desenhava! Era um gênio. Ele e seus jacarés que se devoravam. Lembro-me, certa vez, que chegou ao Solar da Fossa chorando. Tinha levado um cartum para o Correio da Manhã, onde colaborava, e o Paulo Francis disse que o trabalho não prestava, amassou e jogou fora. Wagner ficou doente.


Tinha uma namorada linda. Também de Caratinga. Não sabia bem das atividades políticas dela, mas sei que foi presa. Levaram o Wagner junto. Torturaram os dois. Humilharam os dois, um diante do outro. Quando Wagner foi solto, era outro. Havia uma tristeza em seu olhar... Era como se tivessem arrancado seu coração, sua alegria, aquela capacidade inocente de sonhar acordado. Foi internado no Dr. Eiras, uma clínica psiquiátrica em Botafogo. Conseguiu sair uma vez. Veio direto para a Manchete. Almoçamos juntos, ele fez piadas macabras sobre a vida de interno, falou de um bispo homossexual que tinha terríveis alucinações. Contou de gente que morria por excesso de medicação. Estava destroçado. Não entendia o porque de tanta violência e eu sabia que ele não conseguia esquecer o que tinham feito com a namorada na frente dele. Voltou para o hospital. Tempos depois morreu.


Eu e Yasmin ainda temos um cartão belíssimo que desenhou para nós. Uma história em quadrinhos sobre nós dois. Mandamos imprimir e distribuímos para os mais chegados. Tiago caiu na gargalhada quando viu, Ajuricaba ficou encantado. Mas nossas mães foram taxativas:


-- Que coisa mais escandalosa!


A solidão é má conselheira, não dá para ficar pensado no Wagner, agora. Era só o que me falta, entrar em depressão.


Adoro quando Yasmin põe aquele vestido de seda, que Rebeca trouxe de Paris para ela. Fica coladinho no corpo. Ela parece uma bonequinha. Lembra-me quando a gente saía para namorar, passeando pelo Flamengo, olhando vitrines e trocando idéias sobre como montar o apartamento.


É, vou dormir. Amanhã a mãe dela chega aqui cedo. Vai ficar com ela, porque já tenho uma entrevista marcada com o Mariel para as dez da manhã. A matéria sobre os dez homens de ouro vai ficar boa. Só não sei se eles vão gostar. 


Meio-dia. Recebi um telefone da Joana. Ela quer falar comigo agora, na hora do almoço. Coisa corrida assim, já sei que não é boa notícia. Marcamos um papo na Praça XV, vamos comer peixe no Albamar, olhar esse dia lindo, azul, azul, o marzão besta dominando a baía, e conversar sobre a organização, apelido político para MNR. Gosto do Rio dos dias claros. É quando me sinto plenamente filho dessa terra. Sol na cabeça e calor me irritam, mas a claridade do dia me deixa animado. Acordo cantando, tomo banho cantando e saio gingando pelas ruas. Sou todo carioca, só falta a camisa listrada, porque o resto tenho e faço.


Como a Joana marcou um ponto -- outra expressão cifrada, significa reunião, encontro, geralmente na rua --, vou de ônibus, para não dar bandeira. Táxi é um perigo. Quase todos os taxistas são informantes da polícia. E carro, que não tenho, é bandeira maior ainda. Adoro esse vento, esse cheiro de mar. Não sei porque, mas sempre me sinto mais livre, quando ando assim, sem lenço e sem documento, como soe dizer Caetano, o Velloso. Hoje estou todo pra cima, apesar da barra que segurei nesses dois últimos dias.


Joana jornalista. Joana pernambucana. Joana em flor. Ela tem o maior carinho por Yasmin. E vice-versa. Só que Joana tem uns dez anos a mais. De experiência, de sonhos, de sorrisos. Ela também é uma mulher sorridente. Translúcida. Se fosse um pouquinho mais extrovertida, seria uma típica carioca, apesar do leve sotaque recifense. Todos gostam dela, homens e mulheres. Mas, já definiu quem será seu marido. Só não sei se ele sabe disso. Mas quer saiba ou não, Joana é bastante sagaz para agarrá-lo no momento certo. É uma líder suave, democrata, socialista.


Sentamos. Ela foi direta e precisa.


-- O poeta e eu fomos informados de que corremos o risco de sofrer baixas nos próximos meses. Muita gente tem sido presa em São Paulo. Através dessas prisões, os serviços de segurança podem chegar até nós muito rapidamente. Principalmente daqueles que não estão clandestinos, como eu, você, Yasmin e outros. Tomamos uma decisão, depois de consultar nossas lideranças fora do país. Você e Yasmin devem sair do Brasil nas próximas semanas. Estamos sugerindo que vão para o Chile, assim não perdem o contato com o Brasil.


-- E se entrássemos para a clandestinidade?


-- Estamos muito debilitados. Não temos estrutura para absorver novos companheiros clandestinos. Isso exige casa, documentação, dinheiro. É um risco muito grande, eu diria uma irresponsabilidade. É o momento de recuarmos, acumular forças.


-- O poeta vai deixar o Brasil esta semana. Talvez vocês ainda tenham uma reunião para se despedir.


A proposta da direção do MNR me deixou atordoado. Senti que não era dono da minha vida, que decisões que não sabia muito bem de onde vinham estavam definindo o meu futuro. Senti uma enorme frustração. Ia deixar meu trabalho, meus amigos, minha cidade, porque algumas pessoas estavam com medo de morrer. Olhei para Joana com tristeza e perguntei:


-- E você? Vai ou fica?


-- Fico. Não tenho condições de ir. Fico e tento segurar a barra, mas gostaria que você e Yasmin saíssem o mais rápido possível. Não descarto que eu possa ser presa a qualquer momento.


Naqueles dias aprendi que as desgraças não acontecem de uma em uma. Desabam como temporal. Yasmin foi informada da situação e começamos, rapidamente, a preparar nossa saída do país. Tínhamos que negociar nos empregos, explicar a amigos e parentes que íamos para o Chile. Por mais que tentássemos fazer a situação parecer natural, jornalistas deixando suas atividades rotineiras chamam a atenção.


Na noite anterior a nosso embarque, fomos informados de que haveria uma operação pente fino em Santa Teresa. Pegamos nossos livros, aqueles que poderiam ser considerados subversivos e colocamos na mala do carro de um amigo, estacionado na rua. Depois, sem que ninguém nos visse, pulamos um muro, ao lado do prédio, com documentos e malas, e fomos dormir na casa desse amigo. Nessa mesma noite, nossa casa foi invadida. Na manhã seguinte, partimos de ônibus para a Argentina. Destino: Santiago do Chile.



Capítulo 2


Estamos no passado, não muito distante, mas no passado. O lugar, uma terra arrasada. Um paraíso devastado pela guerra e pelo abandono. Um demônio, chamado Shedu comeu e refastelou-se: atum grelhado na brasa, com repolho vermelho e vinho branco. Tomou um café com pouco açúcar e acendeu o cachimbo. Esticou-se embaixo da velha figueira. A tarde era pesada e excessivamente quente, como só aquela terra sabia ser. Virou-se para um outro demônio, de nome Nebo, e comentou:


-- Ah! Como é bom ser um sátiro, querido mestre da loucura e das palavras mortas.


Deu uma risadinha e terminou a frase, meio melancólico.


-- Como eu gosto de trabalhar com Astarote.


O demônio Nebo, mimetizado no verde, de barriga para cima, gostava de ouvir seu parceiro. Gostava de passar as tardes nos campos estorricados, infernizando a vida de quantos homens e animais, perdidos de suas rotas, aparecessem por ali. E entendia perfeitamente aquele ódio demoníaco que Shedu nutria por Astarote.


Astarote era um demônio sexual. Os humanos tinham vários nomes para ele: Ásera, Astarte, Attart, Ihstar, Afrodite, conforme o país e o rito de adoração que lhe ofereciam. O próprio Salomão, rei de Israel, prestou-lhe culto e chegou a edificar um templo em sua honra, perto de Jerusalém. Descaracterizado, Astarote tinha uma pele esverdeada, num tom escuro, um hálito sulfuroso e uma mente totalmente degenerada. Usava uma cabeça de touro como símbolo de soberania. Sempre passava voando por cima das videiras calcinadas, despertando no demônio Shedu um ódio especial, uma ira assassina, um desejo de parceria que ele há muito tempo não tinha. 


Shedu deu mais uma baforada e colocou o cachimbo de lado. Tirou uma cebola do bolso e deu uma boa mordida. Depois disse para o demônio que o ouvia:


-- Nebo, meu desgraçado amigo, há anos atrás, fui dono de um homem alucinado. Foi uma experiência inesquecível. Viajemos no tempo e quem sabe talvez você entenda a lógica de meus ódios.


Tudo começou numa linda primavera terrestre. Havia um sujeito duro de coração. Perverso para nenhum demônio colocar defeitos. Nós nos conhecíamos, conversávamos pelas madrugadas e ele sempre me ouvia. Uma noite ele se entregou a mim. Queria a minha maldade e eu não lhe neguei. Mais tarde, deu o seguinte depoimento aos soldados que o interrogavam:


Havia um sonhador, um doido, sei lá. Já tinha estrangulado várias pessoas. Uma coisa feia. Sempre igual. As moças eram atacadas de madrugada, mordidas, esganadas e tinham seus olhos arrancados. Sim. Era exatamente assim. Mordidas nos ombros, no pescoço, no rosto, estranguladas. Os olhos arrancados. E tudo em apenas um mês. Foi pelo pânico que resolveram evacuar o hospital. Eu, porque não tinha para onde ir, fiquei. E comigo ficou a frase do jovem Gramsci: “Velhos, porque o destino nos fez nascer numa idade velha”. 


Dez da manhã. A moça, jovem, usava uma saia justa e blusa de malha. Insinuante, lembrava o vermelho. Convidei-a para conhecer o hospital. Ela riu, nervosa, e entramos. Sem proferir palavras, eu cantava.


-- Amelita, querida Amelita... si yo pudiera, como ayer, querer sin presentir.


Sempre gostei de tangos. É a nostalgia, ela me agarra e não me solta mais. Atravessamos o salão de entrada do hospital. Ela na frente e eu atrás. Começamos a subir as escadas.


-- Si yo tuviera el corazón, el mismo que perdi...


Só minha respiração quebrava o silêncio. Chegamos ao primeiro andar. Continuamos. Íamos para o segundo. 


--... es posible que a tus ojos, que me gritan su cariño, los cerrara com mis besos.


Ela parou. Segurei seus quadris. Sentia a carne rija sob a saia justa. Devagar, bem devagar. 


--... me abrazaria a tu ilusión....


Num salto ela se voltou. Senti uma dor profunda no rosto e gosto de sangue. Ela deu-me duas, três mordidas. Todas no rosto. Suas mãos me apertaram o pescoço. Caímos. Senti a dor de minhas costelas na batida com os degraus. Ela por cima.


Interessante, não senti medo. O gosto de sangue, a dor, a luta. Era um mergulho, apenas isso. Suas mãos foram largando o meu pescoço. Ficamos quietos não sei quanto tempo. Shedu sempre diz que não há lugar tranqüilo na cidade dos homens, mas estávamos silentes, eu e meu monstro. Essa é a paz que Shedu me prometeu. Eu e meu monstro, um sentindo o hálito do outro, a gente se rasgando, xingando, lutando, sentindo o rosa e o vermelho, dançando nas cores. Sem uma palavra.


Quietos, ouvimos passos. Alguém subia as escadas. De maneira calma, como se tateasse os degraus com os pés. Terminou os dois primeiros lances, chegou bem à nossa frente e perguntou:


-- Quem está aí?


Segurava o corrimão. Cega. O que estaria fazendo ali, essa cega e seus fantasmas? 


Estendi a mão direita. Ela a tocou e subiu alguns degraus. Eu e a moça bonita não nos mexíamos. A cega subiu e sentou-se quase à altura da minha cabeça, ao meu lado. Brinquei de dedos com os dedos. Ela quieta, parecia estar presa no tato. Que sensação pode ser tão profunda? Sei que sentia formigas e espelhos pelo corpo. Eu sentia dor, o peso de meu monstro, o sangue, a respiração quase parada.


Dizem que eu sou louco. Não sou, não. Lembro-me perfeitamente. O hospital foi se enchendo de gente, que brotava das paredes, do chão ou deslizava do teto. Primeiro, apareceram dois soldados doentes, que subiram as escadas e queriam ir para o segundo andar. Mas como nos encontraram no caminho, desistiram. Ficaram no primeiro andar mesmo. Uma mulher grande e forte desceu do lustre e eu já não sabia se era a chefe das enfermeiras ou oficial. Também não nos incomodou.


A vida voltou ao velho hospital. Havia burburinho, gente arrastando doentes, enfermeiras, a mulher grande e risos. Mas ninguém nos importunava. E nós três ali, quietos, sentindo aquela paz de formigas.


O soldado doente, que tinha ficado no quarto bem em frente à nossa escada, abriu a porta devagarzinho e fez um gesto para mim. Chamava a moça bonita. Ela virou o rosto para a porta, sorriu como uma fada e saiu de cima de mim. Como um gato, sem fazer ruído.


A partir desse momento, eu e a cega não nos separamos mais. No meio da dor, andávamos tropeçando pelos campos, eu em minha velhice, ela em sua cegueira.


O comando militar da cidade já havia informado que haveria novos bombardeios. Na segunda semana de abril foi lindo e triste. Bem de manhã, uma névoa cobria o campo e a casa dos oficiais, que não ficava muito distante do hospital. Todos gritavam. Junto com a garoa fina caiam as bombas. De uma das rampas da casa, por entre o verde, corriam meus irmãos, vivos e mortos, com estrelas no coração.


Fogos de artifício de carne e sangue desenhavam flores no céu. Eu e a cega, de mãos dadas, via e ouvíamos o dum-dum dos tambores e a festa vermelha do fim dos dias. De repente, veio a ordem de debandar. Saíram os carros negros, limpos, fugindo para não sei onde. Os soldados corriam e desapareciam, como se fossem névoa, apenas névoa. E aqui no hospital, eu e a cega caminhávamos no vazio. Mais uma vez estávamos sós.


Fomos caminhando devagar para longe do prédio. Era melhor deixá-lo morrer sozinho, comido pelo mato, vendo suas paredes caírem de cansaço e de velhice. Igual a mim, eu acho.


Não, valorosos soldados, não sei o nome de ninguém. Nunca me preocupei com nomes. Nunca me lembrei de guardá-los. Do general sei que era imponente, mas triste. Gostava de ouvir os pássaros de manhã e à tarde escutava uma ninfa tocar cítara. Era triste e só.


Ah! O meu monstro. Foi meu apenas durante algumas horas. Também não sei dos meus irmãos. Ouvi dizer que os piedosos subiram aos céus, mas disso Shedu nunca fala. Não sei. É muito difícil saber dessas coisas. E eu não sou um homem sábio.


-- E a cega?


Fiquei com medo. Sei que o general de vocês é diferente, que acredita no que faz e no que diz e pretende fazer com que o país volte às normas da legalidade absoluta, com a supressão do arbítrio e dos sonhos. E eu fiquei com medo.


Chovia. Era difícil andar. Eu por causa da velhice e ela porque tropeçava nas raízes. O mergulho, era isso que eu tinha na cabeça. Nem mais, nem menos. Paramos ao lado de uma poça. O longe roncava como fera. Não sabia se o futuro começava ou se o passado cochilava. Devagar, segurei sua cabeça e enfiei na lama. Ela deixou. Seu corpo se contorceu um pouco, com arrancos. Meu medo foi passando. Levantei seu rosto. Éramos iguais os dois, mortos, com máscaras de lama.


Segui sozinho, sentindo uma paz esquisita. Acho que é a mesma paz que sentia o velho hospital depois do bombardeio. Não sei. Sinceramente, valorosos soldados, não sei mais nada. O seu nome... Não me lembro bem, mas parece que era Dolores. É, só poderia ser Dolores.


E assim, caro Nebo, o corpo que eu consegui a duras penas, e que me deu tantos prazeres, foi fuzilado numa tarde de setembro. E como você pode ver, esse súcubo infernal só apareceu para bagunçar o coreto. Com o fim da guerra e sem corpo em que me agarrar, resolvi mudar de ares. Cheguei aqui como ave de arribação, sem eira, nem beira, agarrado num mestre de artes marciais, mas logo encontrei quem eu procurava.


Uau! Que sonho estranho. É isso que dá brigar com a Yasmin. Sinto uma culpa danada e depois fico sonhando essas loucuras. E é tão fora de propósito que não dá para contar para ninguém. E para quem haveria de contar? Estamos num ônibus leito, atravessando os pampas uruguaios. É chão que não acaba mais.


Eu dizendo que queria curtir um pouco de Argentina, ver uns tangos em Buenos Aires e ela querendo, porque querendo, chegar logo em Santiago. Parece até que estamos fazendo uma viagem de trabalho. Desde quando o exílio impede a gente de curtir uns tangos? Brigamos. Ela virou para um lado e eu para o outro. Ela dorme como um anjo, mas eu fico lutando com demônios a noite toda. Êta briga besta.



Capítulo 3


Parece que foi ontem. Janeiro de 69 estava quase terminando e ainda estávamos sob o choque do AI-5. Recebi um telefonema, na própria redação da Manchete, informando que teria uma reunião com Ricardo, jornalista do JB que fazia Direito na Cândido Mendes. Ele era a nossa ponte com um pessoal que atuava dentro da embaixada dos Estados Unidos. E lá fui eu almoçar no Lamas, ali no Largo do Machado. Aliás, o bom desses pontos é que a gente acabava comendo bem. 


Entramos silentes. Sentamos numa mesa do fundo. E seguindo um velho ritual dos freqüentadores do Lamas, pedimos filé com fritas e chope. Por um momento meus pensamentos voaram e fiquei lembrando quando vinha aqui com meus pais, ainda menino. Gostava de ficar olhando para aqueles espelhos e ver minha imagem se multiplicar infinitamente.  


-- Acho que a situação vai feder. Já informamos ao poeta e a Joana. O pessoal em Cuba está atento a possíveis novidades.


A infância ficou longe. Voltei ao presente, mas continuei calado. Conhecia Ricardo e sabia que podia contar com uma boa história de suspense. Ele nunca entrava direto no assunto. Dava voltas, montava um nariz de cera, e só então ia soltando as novidades. Em pílulas.


-- John Tuthill mandou para Washington um relatório baixando o cacete no AI-5. Li trechos. Parece que os americanos continuam achando o Golbery o máximo, mas consideram o Costa e Silva um banana. 


Manolo passou sério, me cumprimentou, e fez sua média:


-- O seu é ao ponto?


-- Como sempre...


Ricardo fingiu que não viu nem ouviu.


-- Golbery conta com o fracionamento da esquerda. Já o pessoal da linha dura, como os generais Muricy, Aragão, Castilho, Frota e Ramiro querem partir pras cabeças. Os americanos dizem que o temperamentalismo deles é um perigo, que foram eles que pressionaram o Costa e Silva a baixar o AI-5. Acham que esse pessoal pode fazer mais bobagens e levar a situação a ficar insustentável. 

 

-- Você acha que os americanos vão tirar o apoio que dão ao Costa e Silva?


-- Acho difícil dizer isso agora. Mas, parece que a assistência econômica dos EUA foi suspensa logo depois do AI-5. Soube que o governo americano congelou o programa de empréstimos bilaterais para o desenvolvimento, adiou a venda de caças A-4 Douglas para a FAB e o fornecimento de equipamentos bélicos. 


-- Se essa informação não foi plantada, a crise está instaurada.


-- Mas o relatório é cauteloso. Diz que a linha dura está num túnel e acabará saindo do outro lado, se não ficar bloqueada lá dentro. E nisso há um consenso: as passeatas estudantis, greves, manifestações, ação guerrilheira e pressões internacionais podem bloquear os militares dentro do túnel.


-- É, com mobilização e luta armada, a polarização vai aumentar. Os militares vão cerrar fileiras ao lado do Muricy e do seu pessoal, mas a sociedade não vai embarcar nessa. 


Não era necessário falar mais. Tinha chegado o momento de responder à altura. Quando Costa e Silva tomou posse muitos acreditaram que ia levar a frente uma política reformista. Mas se esses planos existiram, foram para a caixa do chapéu. O governo não tem nenhuma orientação clara e, aliado a gente incompetente, criou novos problemas. Que ninguém me ouça, mas o Golbery tem razão.


O movimento estudantil protesta porque o governo é incapaz de realizar uma reforma digna na Educação. Tarso Dutra é um sorvete na testa, mas ficou no cargo. O caso do Márcio Moreira Alves é outra burrada. Se Gama e Silva não fosse tão grosso e a linha dura tivesse deixado à própria Câmara resolver o problema, a situação não teria chegado aonde chegou. Mas do jeito que a coisa foi feita, os deputados não podiam votar a suspensão da imunidade do Márcio. Azar o deles. Enfim, o vento sopra a nosso favor.

 

Almoçamos com vagar. A conversa ficou descontraída e o clima conspiratório foi diluído em chopes gelados de colarinho alto. Mas nomes como Frank Carlucci, o odiado conselheiro político da embaixada americana, John Kubisch, o diretor da divisão Brasil no Departamento de Estado, e outros agentes da central de inteligência pontuaram nossa conversa.


Ricardo era muito inteligente, tinha o inglês como segundo idioma e se vestia com elegância. Conhecia pessoalmente muitos dos nossos inimigos. "Ossos do ofício", dizia meio a contragosto. A organização confiava nele por um simples motivo -- os companheiros cubanos também confiavam nele. Várias vezes, ele e Carlucci almoçaram juntos. Era presença obrigatória nas festas da embaixada.     


Mas conversa de jornalista sempre termina em jornal.


Ricardo contou da raiva que o noticiário sobre o AI-5, de 14 de dezembro de 68, no Jornal do Brasil produziu no meio militar. 


“Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx.: 38o em Brasília. Mín.: 3o nas Laranjeiras”. Dines, espertamente, colocara no alto da primeira página do JB de 14 de dezembro de 68, o clima criado pelo AI-5. No outro extremo, chamada para uma matéria interna: Ontem foi o Dia dos Cegos. O resto era noticiário sobre o AI-5, mas tinha ainda uma foto ridícula de Costa e Silva. 


-- Eles babaram de ódio, quando perceberam o que o JB fez. A partir daí a censura vai checar tudo, até horóscopo. 


-- É, mas gosto da postura do Estadão.


-- É, parece que o Mesquita peitou os caras. Mas, não sei bem como foi...


-- O jornal foi apreendido antes do AI-5.


-- Antes do AI-5?


-- É, Costa e Silva tinha ido a Belo Horizonte para uma formatura e para inaugurar um computador, mas o pessoal da redação sabia que uma tempestade estava se formando... Estavam de olhos e ouvidos em Brasília, onde o clima era tenso. Os deputados votavam o pedido de licença para que o Marcito fosse processado, sob a acusação de ter ofendido as Forças Armadas...


-- Bem, até aí nada, porque todo mundo estava acompanhando a votação.


-- O velho Mesquita, na verdade Júlio Mesquita Filho, ao saber que a Câmara não daria a licença para que o Marcito fosse processado, redigiu um editorial para a página três: Instituições em Frangalhos. Falava do impasse e dos atos institucionais. O cenário era sombrio. 


-- Acertou em cheio...


-- Previu o tiro no peito da democracia.


-- É, mas não acaba aí...


-- O texto desceu para as oficinas e a produção do jornal seguiu seu ritmo. No começo da noite daquela quinta-feira ligaram da Polícia Federal para perguntar ao secretário de redação, Oliveiros Ferreira, quais seriam as manchetes da primeira página no dia seguinte. Ele falou, o censor não disse nada e a impressão do jornal continuou.


-- Na madrugada daquela sexta-feira, que por incrível era 13, o chefe da Polícia Federal em São Paulo, general da reserva Sílvio Corrêa Andrade, apareceu nas oficinas do Estado e pediu para ver o jornal. Leu o editorial e não gostou. Mandou parar a impressão e apreender os exemplares prontos. Mais de 100 mil jornais já estavam a caminho do interior de São Paulo. Foi o maior pepino... 


-- E isso aconteceu umas 20 horas antes de Costa e Silva assinar o AI-5. O Mesquita, então, avisou ao chefe da Polícia Federal e ao Abreu Sodré que não ia aceitar autocensura. Era problema do regime. Então, à noite, os homens chegaram para ficar... 


-- É isso aí, quem lamber botas hoje no futuro vai cair com eles.


-- Um dia esse regime vai despencar. A censura é a violência visível da ditadura. O resto a gente mal vê e não sabe. Mas a censura não. Por isso, o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil e o Estadão estão fazendo história...


Rua Santa Clara. Posto 4. O sol está de derreter asfalto. Dá para fritar ovos na Atlântica. Walter joga peteca com os amigos. Lolita, de maiô cavado nas costas, lembra Nabukov, ao menos na minha cabeça de menino.


-- Luís, passa Dagelle nas minhas costas.


Obediente, gosto dessa mistura do cheiro do bronzeador com a maresia, cumpro à risca, devagar, a ordem recebida.


Marcus e Júlio, à beira d’água, fazem seus castelos de areia, que a arrebentação, feroz realidade, desfaz um a um. Como formigas insistem, gritam e dançam, quando uma onda maior alisa a areia.


Maria fez para mim um calção que é uma bandeira. Pegou uma blusa estampada de rosas grandes e como costura muito bem fez um calção lindo, o mais colorido de toda a praia. Mas caiu bem.


E a turma, uma gang atribulada, quase todos do Externato Duque de Caxias, elogiou. Minha pequena, Jussara, cujo pai trabalha na Souza Cruz, ela me deu de presente um pacote do recém-lançado Minister, me agarrou pelo braço e saímos... Eu com ela, ela com o rebelde dela.


Jussara tem 14 anos, faz balé e mora na Serzedelo Correia. Eu tenho 16 e fui aluno de latim do Pompílio da Hora no Atheneu São Luís, no Catete. O velho Pompílio me adorava, eu era o melhor aluno de latim que ele tinha. Certa vez, me expulsou da sala. E me fez sair pela janela, aos gritos:


-- Você não é digno de sair pela porta.


Pulei. E quando já estava fora, me fez voltar à sala, com um ensinamento estranho, mas sábio:


-- Nunca viva de tal maneira, que possam dizer para você: “Puxa Luís, nunca imaginei que você fizesse isso”.


Pompílio, primeiro negro brasileiro a ser nomeado embaixador na África, dando lições de transgressão a seu pupilo.


Jussara me agarra pela cintura, rindo e apontando para o mar. A gang, de calções abaixados, brinca de boto furando as ondas...


Morena de olhos azuis, ela não é bonita, é linda. A vida toda se resume nisso: futebol de areia todas as tardes depois das quatro, toda televisão que dá para ver, muito livro e Jussara para me levar ao cinema. E saímos na maior pinta. Eu de rancheira e camisa de ban-lon branca e ela de vestido de fustão rodado. Depois do cinema, comemos waffles ali na N. S. de Copacabana.  


Os anos 60 começam a desabrochar. Lá em casa, Walter e Lolita deram adeus ao JK, um pouco preocupados com os ares que sopram. Walter prefere o Lott, mas o povo vai de Jânio. O jeitão do magrela não me agrada. É o homem da caspa de talco, do sanduíche de mortadela e da Vila Maria, em São Paulo. 


Toda minha família sempre foi juscelinista, até o tio Walter que é austríaco e veio para cá no meio da guerra. Magro, um metro e noventa, cabelos lisos e negros, foi atleta do Flamengo. Remava. Foi capataz de fazenda. Levou um tiro de um peão, na barriga. Casou-se com minha tia Iracema, que era estilista e dona de loja no centro. Depois da morte de Iracema veio Lolita, filha de mãe espanhola e pai italiano. Bailarina. É vinte anos mais nova que o Walter. E doze anos mais velha do que eu. É amiga, confidente, tia e, às vezes, mãe. Esta última função é a que menos gosto.


Alguns anos depois da morte do Amynthas, Walter e Lolita me adotaram. Os dois filhos, Marcus e Júlio, vieram mais tarde.


Hoje, tio Walter tem loja de moda, um Jaguar 53, usa tanga na praia, um escândalo que Lolita aprova, e joga religiosamente peteca com os amigos domingo de manhã na praia. 


-- No que você está pensando? Está tão calado.


-- O azul dos teus olhos é mais bonito que o azulão besta do mar.


-- Bobo!


-- É verdade. Prefiro esse azul aqui àquele lá.


-- Bobo duas vezes. Aquele lá é maior. Olha, nem fim tem...


-- É, mais o teu eu posso levar comigo.


-- Só se eu deixar...


-- E você deixa?


-- Depende...


-- De que?


-- Ué, para onde?...


-- Quero o azul dos teus olhos como farol, que baila, na ilha, no meio do mar...


-- Puxa, então eu deixo.



Capítulo 4


Serginho e Maria Cristina estavam sorridentes como sempre. Moravam em Santiago, numa casa grande, de dois andares, com jardim, lareira e muito conforto. Para nós que chegávamos, era uma mansão. Mas em dois dias, eu e Yasmin descobrimos que ter uma casa confortável, em Santiago, não era nenhuma coisa do outro mundo. 


Serginho e Maria Cristina eram exilados especiais. Nossos amigos no Rio de Janeiro, trabalhamos juntos no jornal O Sol e na TV Continental. Aliás, na TV Continental chegamos a fazer um programa louquíssimo, Blow Up, que deu muito trabalho para a censura. Serginho, fotógrafo, tinha descoberto o trotsquismo com Mário Pedrosa, um intelectual que marcou nossas vidas naqueles anos chilenos. 


Logo na nossa primeira noite, fomos apresentados à comissão de frente do trotsquismo emergente: João, Jaime e Túlio. Não foi uma noite agradável. Jaime, com a grossura posadista que lhe era peculiar, perguntou se eu era stalinista. Logicamente ouviu um sim, acompanhado de uma retumbante declaração de que todos os que faziam autocrítica da luta armada não passavam de uns desbundados. Foi o que bastou. Tivemos uma violenta discussão, devidamente aplacada por nossos anfitriões.


Serginho, um gentleman, entregou-me, quando já ia para o quarto, um exemplar da Revolução Traída, de Trotski. Mas, antes de dormir, como se não bastasse, ainda briguei com Yasmin, que concordou com a exposição de Jaime sobre o trágico papel de Stálin na União Soviética. Dormi com ciúmes, com o ego massacrado, achando que saíra de um inferno para cair em outro.


Lílian é minha grande amiga chilena. É uma graça, una chilenita de cabelos negros, olhos negros e quase gordinha. Uma doçura de pessoa. Morre de rir de minhas gafes com o espanhol e com sua pronúncia.


A anedota que mais gosta e que conta para todo mundo, é da confusão que fiz entre duas palavras cuello e culo. Eu tinha que comprar uma coleira para o meu cachorro, o Putz, e fui a uma loja de ferragens. Uma moça muito simpática me atendeu e eu nem pensei duas vezes:


-- Señorita, necesito un collar para el culo de mi perro.


A moça me olhou horrorizada e foi chamar um homem, que já veio me olhando feio.


-- O que o senhor quer mesmo?


E de novo, muito sério, reafirmei meu pedido:


-- Un collar para el culo de mi perro.


O homem não sabia se pulava no meu pescoço ou se caía na gargalhada, mas corrigiu:


-- No es culo de mi perro, es cuello de mi perro.


E foi buscar a coleira para o Putz.


Demorou alguns segundos para cair a ficha. Só então entendi que culo não é uma palavra elegante. Pedi desculpas. Contei para os amigos e comecei, então, a estudar espanhol seriamente.


Lílian é muito amiga de Yasmin. E nos tem ajudado nas coisas do dia-a-dia nesta cidade grande e desconhecida. Nos ajudou a encontrar uma casinha linda, aqui na Villa Santa Carolina. As casas da Villa são todas pré-fabricadas, com as paredes internas de aglomerado. São à prova de terremoto. Se o tremor for muito forte, o telhado escorre para fora, não desabando sobre os moradores.


A casa tem um jardim, quintal enorme, três quartos, sala ampla, cozinha e banheiro. Eu e Yasmin amamos. Decoramos com móveis rústicos, bem à maneira chilena, colocamos rede na sala, compramos uma linda casa de cachorro para o Putz e num dos quartos fizemos nosso escritório e adega. Logicamente, nossos vinhos são comprados aqui mesmo na vinícola Santa Carolina. É o maior charme.


Eu e Yasmin estamos estudando na Universidade do Chile. Estamos revalidando o curso de jornalismo que fizemos no Brasil. Eu fiz PUC e ela Federal. Eu fui desligado da universidade e ela cortada pelo 477, uma famigerada lei que impede ativistas políticos de estudarem. E nisso tudo, Lílian, que é do Partido Socialista, vive nos dando uma força.


Não estamos longe da Universidade, do Pedagógico, onde estudamos. Dá até para ir a pé, mas normalmente tomamos um micro-ônibus, uma liebre, como os chilenos dizem.


Nós três, eu, Yasmin e Lílian, às vezes, no final das aulas, vamos para um bar em frente à universidade e ficamos conversando. Nós brasileiros somos, comparados com os chilenos, muito agitados. Lílian me parece calma, reflexiva e muito alegre. Está sempre rindo. Não tem as angústias e problemas existenciais que caracterizam os exilados brasileiros.


-- Você está errado, Luís. Não somos nem tão pacíficos, nem tão alienados...


-- Duvido, acho que aqui não tem nem suicídio.


-- Errou. Os suicídios se dão no inverno. As famílias pobres não têm como comprar carvão para a estufa. E diante da fome, do frio e do desemprego, muitos pais de família matam toda a família e se suicidam. Às vezes, são encontrados congelados dentro de casa.


Yasmin faz uma careta. Ela sempre faz uma careta quando ouve algo chocante. E pergunta:


-- E a Unidade Popular, o que está fazendo?


-- Nós estamos organizando as pessoas nas poblaciones, que são os bairros pobres da periferia. Através da organização e do cadastramento das famílias, sabemos quem está desempregado, qual é sua capacitação e como e onde podemos empregá-los. Temos também um programa de leite gratuito para as crianças e cestas básicas para os desempregados. Mas isso não resolve o problema... 


-- É verdade, a meta tem que ser o pleno emprego, mas não acredito que vocês consigam isso tão facilmente, completa Yasmin.


-- Outro problema é que existe fuga de capital. Os empresários têm medo de Allende, do socialismo, e por isso muitos fecham suas fábricas e vão embora.


-- Hoje temos, por causa disso, um monte de fábricas que está sendo administrada pelos próprios trabalhadores. E na sua grande maioria a produção aumentou...


-- É, mas por quanto tempo? É possível um capitalismo sem empresários? Tenho minhas dúvidas sobre o modelo chileno...


-- Calma Luís. Estamos começando. O governo da Unidade Popular é um governo de transição, queremos o socialismo, esse é nosso objetivo, mas faremos tudo para evitar uma guerra civil.


Yasmin dá a sua famosa risadinha. Sarcasmo puro. Ela é socialista, já está no Partido Socialista, mas discorda da ala reformista. Yasmin é a nossa Rosa Luxemburgo.


-- A insurreição operária é o caminho. Essa história de transição pacífica leva à derrota. Mas o partido sem dúvida é o Socialista. É um partido de massas e não é burocrático. Ele tem tudo para dirigir a insurreição dos trabalhadores chilenos.


Como não concordo com Yasmin nessa questão de partido – estou ligado ao Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR --, chegou a hora de ser sarcástico:


-- Mira compañera, com estos huevones nadie va a lugar ningún...  


Pronto, armei a barraca. De uma tacada só agredi minhas duas amigas. Elas ficam uma fera, me chamam de mirista irresponsável, bombero loco, e pedem a conta.


Yasmin já me conhece bem e Lílian está descobrindo a fera. As duas, de repente, pulam em cima de mim, agarram minha barba, puxam meus cabelos e gritam para todo o bar ouvir:


-- Loco, loco, bombero loco...


E caem na gargalhada. 


Coitada da Yasmin. Este primeiro ano de Chile está sendo terrível. Mas ela guerreia por seus sonhos como uma Joana D'Arc. Temos tudo para viver dignamente. A casa é bonita e charmosa, estamos construindo um agradável círculo de amizades e o dinheiro que trouxemos do Brasil dá para viver alguns anos. Além do mais, nunca vimos tanta liberdade em nossas vidas. Podemos ser felizes.


Mas eu estou enlouquecendo. É um processo de violência que iniciou lentamente, no início da juventude, quando comecei a praticar karatê. Tive grandes mestres, como o Lírton, mas  o maior deles, sétimo dan, foi um ex-treinador da seleção japonesa. Depois de um ano de treinamentos intensivos, eu era uma máquina programada para espancar quem quer que fosse. Mas agora, em Santiago, sinto-me acuado, numa sociedade que nós exilados da luta armada desprezamos por considerar pacífica.


Como liberar essa vontade de violência, esse desejo de fazer justiça em nome do proletariado? Saída não há. Quem sabe a solução é o suicídio? Yasmin, às vezes, tem que me carregar, bêbado de cair, até em casa. Numa dessas, quase morri de coma alcoólica. Ela cuidou de mim chorando. Outras vezes, sai de casa sem saber se ao voltar vai me encontrar pendurado pelo pescoço numa gravata, amarrado no cano do chuveiro, à moda Santos Dumont.


Violência? Você sabe o que é violência?


Um dia saí de casa e estava atravessando calmamente uma rua quase deserta da Villa Santa Carolina. Eram umas três da tarde. Sol a pino e muita poeira. De repente, uma bicicleta que não sei de onde saiu, me atropelou pelas costas. Caindo, saltei no ar, me virei, dei um urro de guerra e pulei sobre o rapaz. Disparei uma seqüência de golpes sobre seu rosto. Sangrando, espumando, sujo de terra, atordoado, enquanto eu o esmurrava, ele tentava dizer alguma coisa. Até que uma frase, simplesmente desesperada, saiu de seus lábios em meio a golfadas de sangue.


-- Estou tendo um ataque epiléptico.


Fui atravessado por uma dor profunda. Tão grande, tão grande, como se estivesse participando do assassinato de alguém muito querido. Coloquei o rapaz no colo, arrastei-o até o meio fio e amparei sua cabeça. Ele não falava. Seus olhos estavam esgazeados, distantes, seu rosto muito pálido, os lábios cortados, começavam a inchar. E a camisa branca coberta de sangue. Fiquei ali até ele se recuperar. Depois, saí tonto, andando pela rua com um vazio enorme no peito, e uma vontade de pedir socorro, de chorar. 


Essa mesma noite, depois de conversar longamente com Yasmin, visitei meus amigos João e Dulce. Eles estavam a mais tempo em Santiago e poderiam me sugerir algum psiquiatra. E lá fui eu falar com Hugo Alexandre, um mago da psiquiatria chilena que cuidava dos atormentados da colônia brasileira. Hugo Alexandre era um personagem. Dava plantão no hospital psiquiátrico da cidade, usando uma longa capa, negra por fora e vermelha por dentro, que lembrava as capas dos estudantes da Universidade de Coimbra.


Às vezes, no saguão do hospital, rodopiava como Batman, a capa flanava, e ele saia correndo. Tratava os loucos com carinho. Certa vez, vi chegar um sujeito furioso, aos berros, amarrado em camisa de força. Hugo Alexandre mandou que o soltassem e, com medo, os enfermeiros obedeceram. Hugo abriu as asas, ou melhor, os braços e a capa e envolveu o homem num abraço negro. O sujeito ficou mansinho. Tinha encontrado alguém mais louco que ele. 


Não, Hugo Alexandre não mandou me internar. Mas me encheu de drogas. Um mogadon antes de dormir, e um valium dez depois de cada refeição. Efeito que era bom, não fazia nenhum. Parecia que eu me recarregava em fios de alta tensão. Algumas noites vagava pelas ruas, ia para o último andar de um dos prédios das torres de San Borja, as mais altas de Santiago, e corria pela mureta. Lá embaixo, o breu da noite. Por que será que eu não tinha medo de nada?



Capítulo 5


São Paulo, Vila Santa Isabel. É noite de sexta-feira. Noite de festa em bairro da periferia. Bailes de São João em cada esquina. Uma senhora, em seu quarto, porta fechada a chave, de joelhos, abraça a Bíblia, como se fosse um filho muito querido e ora:


-- Senhor, eu não sei do Luís. Não sei porque largou a Manchete, viajou para tão longe, o que está fazendo e como está vivendo. Ah! Senhor, ouve esta mãe. Acalma o coração dele, dê-lhe paz. Ajuda ele, Pai adorado. Eu gosto tanto dele, mas ele me escreve tão pouco. Ajuda também a Yasmin. É uma moça tão boa. Não permita que Luís a faça sofrer.


Maria não vê, mas alguns anjos acompanham com atenção e reverência aquela oração de fé. Ela está conversando com o Deus Criador dela e deles. Suas asas, enormes, estão abertas. O ambiente brilha com intensidade. Ah! Se ela pudesse ver. Se pudesse... De memória, aquela simples e pequena mulher de fé, começa a orar o Salmo 91...


-- Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, a sombra do Onipotente, descansará...


De olhos cerrados, coloca a Bíblia sobre a cama, junta as mãos com força, como se estivesse esperando já, nesse momento, a resposta de Deus. E completa a oração.


--...porque a mim se apegou com amor, eu o livrarei, pô-lo-ei a salvo, porque conhece o meu nome. Ele me invocará, e eu lhe responderei, na sua angústia eu estarei com ele, livrá-lo-ei, e o glorificarei. Saciá-lo-ei com longevidade e lhe mostrarei a minha salvação.


As lágrimas escorrem por seu rosto. Rosto de mãe que recorda o filho ainda pequeno orando com ela o Pai Nosso. Sorri, como se o menino estivesse ali, do seu lado. Lembra-se dele, no colo do pai, ouvindo as histórias de um rapaz corajoso, que enfrentou sozinho um gigante chamado Golias. E o menino vibra, pula, quando o pai imita o barulho da queda do filisteu.


Era um apartamento gostoso aquele de Santa Teresa, no Rio. Ela cheia de vida, moça ainda, não tinha muito do que reclamar. Era apaixonada pelo marido. Pena que a vida às vezes muda tão bruscamente. Amynthas morreu de complicação cardíaca. Foi tudo muito rápido. Perderam o apartamento. Tiveram que ir para Perdões. Ela e os dois filhos, um pequenino, com apenas três anos. Foram para a fazenda do tio Ari. Ela ficou lá uns meses e voltou para o Rio. Tinha que conseguir trabalho, alugar casa, cuidar das crianças.


E aquela jovem mãe, criada em berço de ouro, que nunca tinha trabalhado na vida, mostrou-se tão valente como o garoto Davi. Foi massacrada pelas circunstâncias. Empobrecida, moravam num quarto alugado na rua Paissandu, ali no Flamengo. O menor, já tinha 12 anos, mas só andava em más companhias. O dia todo na praia. O Luís trabalhava e estudava. Lia a Bíblia, tinha amigos crentes. Deus, sem dúvida, haveria de ajudá-lo.


Mas a vida era muito dura. Recebiam ajuda da igreja, além de pacotes de trigo e leite em pó doados pela Aliança para o Progresso. Num momento de desespero, cortou os pulsos. E em plena crise, foi internada em um hospital psiquiátrico em Jacarepaguá. 


De pé, Maria coloca a Bíblia sobre a mesa. E continua a lembrar-se das visitas que o Luís lhe fazia aos domingos. Ela sedada, estava inchada pelos medicamentos, quase não conseguia andar. Ria da situação, para não deixar o filho chorar de desespero. Mas ela sabia que um jovem não resolve muito bem certos problemas.


Meses depois, recebeu alta. Casou-se com um professor de São Paulo, dono de uma escola no bairro do Carrão. Mudou-se para a casa dele. Casa grande, de dois andares, que entre outros confortos tinha uma biblioteca. Levou o rapaz Alex. Luís afastou-se dela, da família, de todos.


Passaram-se anos. Será que ele me odeia? Será que ele não vai me perdoar, nunca, pelos anos difíceis que vivemos? Pela fome? A esta mãe só restava a oração. E como crente que era, orava todos os dias pelos dois filhos, em especial pelo pródigo. 


Se ela pudesse ver a revoada de anjos ao redor da casa, naquelas noites de oração. Era um quartel-general de Deus no quarteirão. Mas ela sabia que não estava sozinha. No mínimo, uma dezena de pessoas orava diariamente pelo Luís. As tias Lucy e Alice, que temiam por sua vida, e vários irmãos de sua igreja, que tinham iniciado uma corrente de oração por ele.


E foi assim, por misericórdia e amor, que Deus ordenou a seus anjos guardarem a vida do Luís. É certo que essa guarda só podia ir até certo ponto. Luís declarava-se ateu, e conscientemente tinha rompido todos os relacionamentos com a fé. Só confiava em si próprio. E não queria ajuda de ninguém. Mal sabia ele que a seu lado, como conselheiro chegado, havia um demônio. Shedu, o demônio das onze horas. E como Shedu não trabalhava sozinho, lá estavam em parceria permanente, Astarote e Nebo. O inferno particular de Luís era violento, degenerado e alucinado. Mas quem definia o rumo era Shedu. 


Os anjos do Senhor já haviam advertido aos demônios: eles não tinham permissão para tocar na vida do rapaz. Mas permaneciam à distância. Há uma lei que nem Deus viola. É o livre arbítrio que Ele próprio deu às pessoas. Assim, Luís tinha o direito inalienável de escolher seus conselheiros e amigos. Daí a cena, sem dúvida estranha, que acompanhava sua vida. Estava sempre rodeado dos três demônios, que o envolviam opressivamente, formando uma névoa negra e compacta. A certa distância, em revoada atenta, sempre havia três anjos. Eles não penetravam a névoa, mas sua presença era uma lembrança permanente para os demônios, da ordem que tinha vindo do trono de Deus: não toquem na vida do Luís.


Maria não podia ver o mundo espiritual. Mas estava em seu coração a lembrança dos momentos em que a intervenção divina salvara a vida do menino. Quando ele tinha apenas um ano de idade, ela estava fazendo um mingau e por algum motivo afastou-se do fogão por momentos. A criança, andando desequilibradamente, apoiou-se com força no fogão e a panela de mingau fervendo entornou sobre ela. Desesperada, uma das tias, Iracema, pegou o menino e o colocou debaixo do chuveiro frio. A pele de todo o corpo escorreu e ficou no fundo da banheira. Durante dias, entre a vida e a morte, Luís ficou internado, nu, sobre folhas de bananeira.


Maria orava insistentemente para que a criança não morresse. E fez um acordo com o Deus Criador. Prometeu que a criança seria dele, para Ele, conforme fosse o desejo dele. Deu seu primogênito como oferta ao Senhor. Nazireu de Deus. Sem dúvida, ela fica lembrando... Deus ouviu sua oração e aceitou sua oferta. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado fazia um ano, e da Itália chegou uma pomada milagrosa: penicilina. Três vezes por dia, passavam a pomada em todo o seu corpo. Um mês depois teve alta.


Que bom saber que Deus cumpre o que promete. Luís estava sob a guarda de Deus. Ela só tinha que ter paciência. Qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.



Capítulo 6


Noite alta, o demônio Nebo, mestre da loucura e palavras mortas, ficou pensando na viagem e na última coisa que seu parceiro Shedu, morador das ruínas de Edom, dissera antes de se retirar para o oco de sua figueira: “Demônio bem sucedido trabalha em equipe. Nós estamos incompletos. Astarote é a parte que falta para criarmos o inferno que desejamos”. Palavras difíceis, como poderia catalogá-las?


Detesto essa terra, mas adoro essa hora da meia-noite. Pensou. Sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. Essa é a hora dos meio-tons. Não está gelado, mas faz frio. Está escuro, mas não completamente. Existe o mais e o menos. É a hora mais difícil para os humanos. Eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. Ao menos uma folha, mas nada. E eu também fico quieto, acompanhando a ordem natural do momento. É certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. Mas eles nem percebem. São seres medrosos.


Às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. E fica mais escuro. É aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. É o momento. Vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. Sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da desolação e começo a falar com os mortos.


Sou filho de Merodach e Sarpanitu. Vivi e fui adorado em Borsipa, mas na primavera desse país, Shedu ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. Um lamento do fundo das trevas. Era eu. Tinha sido desterrado, exorcizado para os confins do inferno. Depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. É aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há 12 mil anos acendo o Osorno.


E lá em baixo, no Llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. Sua presença imponente domina a paisagem.


Quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. Na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. Depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. Fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos.


Gosto do gelo das geleiras. Esta é a minha casa, a casa do demônio. E foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos do meu amigo Shedu, o demônio das onze horas.


Posso estar velho e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. Gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens.


Falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. Mas é minha especialidade. A memória humana é uma colcha de sensações. Eles sempre se lembram da dor das pedras. O momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. Assim são eles. Suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. Tudo fica escrito. Até as marcas da saudade não se apagam. E para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.


Aprendi a caçar os fantasmas humanos. Mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, ressuscito cadáveres antigos e mal cheirosos. Não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero.


Quem me ensinou esta especialidade demoníaca foi Shedu. No início ele me disse que o mundo das palavras mortas fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. Bastava aprender, com ele, a viajar na memória dos humanos. Sempre levo comigo uma bolsa. É a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. São palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. Ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. São palavras de pobre, como guspe, frio e maleita. São palavras quatrocentonas, como treme-treme e sezão. Junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.


Tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. E aí, sozinho, vou colocando cada uma delas na sua forma. E ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. E vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. O demônio é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho Nebo a uma centúria de formigas flamejantes. Na Semana Santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. E a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. Ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. É a porta de entrada da minha casa.


Ao contrário de nós demônios, na vida dos homens sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. Lembro-me de um jornalista carioca, que na madrugada de 23 de abril, dia de Ogum, foi fazer uma reportagem na floresta da Tijuca. Ele trabalhava na revista Manchete. Era auto-suficiente e não tinha dúvidas quanto à sua capacidade profissional. Vivia com uma jovem, bisneta de escravos, e, no fundo do seu coração, queria ser o dono do mundo. Nessa época, eu, Shedu e Astarote trabalhávamos juntos. Tínhamos organizado uma grande festa.


Era noite de lua cheia. Corpos endemoniados tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. Representavam os mortos: os esquecidos e os lembrados. No meio do círculo, muita comida. Do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. Sons de cantar, dançar e de fazer sexo. Nunca me esqueço. O luar cobriu a floresta. Astarote vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de Shostakovitch penetrou no labirinto e depositou um feto, a pequena Gaia, numa cova rasa. Eu, cheio de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de Artaud, poeta maldito: "... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus (...), o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado". 


E como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos malditos, loucos e suicidas. Foi então que apareceu o rapaz. Ele olhou, mas não viu. Nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos. Astarote, toda sensual, chamou:


-- Luís, entra na roda.


Ele levou um susto. Não entendeu como sabíamos o nome dele. Mas cheio de orgulho, aceitou conversar.


-- Quem é você?


Astarote respondeu:


-- Você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.


Na verdade, o corpo de Astarote era lindo aos olhos humanos. Usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. Sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. Sob a luz da lua, a cena era encantadora. Os atabaques batiam no ritmo do coração. O ar era de sensualidade e magia. Cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu:


-- Não posso entrar aí. Sou filho de Ogum. Meu orixá não permite, ele é o senhor da guerra.


Era mentira, nós sabíamos. Ele não tinha nenhum acordo com nenhum dos nossos. Mas nós adoramos a mentira. Ah! Se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. Quisemos saltar dentro dele. Era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. Partimos para o ataque, mas uma espada flamejante nos impediu. 


-- Ele pertence ao Deus criador dos céus e da terra. Aceitou o Senhor e o Senhor o recebeu. Estão proibidos de fazer nele morada e de tocar na vida dele. Esta é uma ordem do Senhor dos senhores, diante do qual se dobrará todo o joelho, tanto no céu, na terra, como embaixo da terra.


Aquela luz brilhava demais. Feriu nossos olhos, apavorou nossos corações, lembrou-nos da condenação eterna. Nossa festa tinha chegado ao fim. O ódio estremeceu os corpos que ocupávamos. Urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. Depois, semimortos, os abandonamos ali. A partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.


Nenhum encontro é casual. Há sempre aquele que busca. Só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. Descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.


No verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. Transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. Sobrevôo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. As folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. E o tempo, para que serve? Eu o transformo na memória da solidão. Minhas palavras são punhais assassinos. Elas amedrontam a noite e congelam o dia. E eu fico encantado, como num conto de fadas. Afinal, sou Nebo, mestre da loucura, um demônio muito especial, cheio de malícia e de palavras mortas. 



Capítulo 7


Este inverno está terrível. Eu e Yasmin estamos nos separando. Não tem lógica nenhuma. Eu a amo, eu preciso dela, mas não agüento ir ao Pedagógico, assistir aulas, vê-la alegre e cercada de amigos.


Ando deprimido, não consigo aceitar o Chile como minha nova morada, com a possibilidade de nunca mais voltar ao Brasil. O frio, as árvores desfolhadas, esse sol sem força que não esquenta nada, nem ninguém...


Hoje resolvi andar sem destino. Peguei a Bernardo O’Higgins e caminho como se carregasse um trem nas costas. O inverno de Santiago é cinza. E eu carrego o meu trem sob um céu cinza. Paro num bar, sento e peço um conhaque. Tiro um livro do bolso e começo a ler. Sou professor assistente da cadeira de psicologia social. Dou aulas de Reich.


Análise do caráter e A revolução sexual estão entre meus livros prediletos. Tenho nas mãos o livro de um autor que não é encontrado neste Chile de Allende. Os comunistas não gostam de Reich e pressionam para eu desistir de meu projeto. 


A vida é tão simples (...). Apenas torna-se complicada pela estrutura humana caracterizada pelo temor à vida. A consecução geral teórica e prática da função vital e da segurança de sua produtividade chama-se revolução cultural. Sua base somente pode ser a democracia do trabalho natural. Amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. Deverão regê-la também, afirma o amigo Reich. Eu até acho que ele tem razão, mas nunca vi alguém viver isso.


Irina, minha amiga e catedrática de Psicologia Social, me enturmou com um pessoal que está realizando uma experiência inédita aqui em Santiago, uma clínica de terapia de grupo ao ar livre, com jogos, pouca roupa e muito rock. É meio woodstock, mas eu gosto. Só não sei se vai dar certo. Já tive vários problemas.


Vi minha terapeuta transando com um dos nossos. Vi por acaso, mas não gostei. Na verdade, morri de ciúme. Márcia é uma jovem belíssima. Do tipo loira esguia. Às vezes, tomamos banhos juntos, todo mundo, debaixo de uma árvore centenária. Somos uns dez, mais ela e Rodolfo, outro terapeuta.


Num desses dias, estávamos sentados em roda, e Márcia pediu que eu expressasse o que sentia para um jovem que estava ao meu lado. Ele se levantou. Eu me levantei e dei-lhe um soco no meio da cara. Foi a maior confusão. Mas por que você fez isso? E o sujeito chorando. Chorando de soluçar. Imagina, chega na terapia e leva um soco na cara.


Por que eu fiz? Porque queria. Você não disse para eu me expressar? Então quebrei a cara dele. Pressionaram e eu dei um abraço nele. Pedi desculpas. Ele aceitou.


Outra vez saímos da terapia, em grupo. Estávamos, não sei porque, na maior felicidade. Ríamos, brincávamos, quando saiu um sujeito de um bar e passou a mão, espalmada e vagarosamente, nas partes de Lílian.  A menina deu o maior berro, de susto, imagino.


Dei um grito, um salto e quebrei o nariz do sujeito. Ele correu para dentro do bar, com a mão no nariz. Os amigos pegaram tacos de sinuca e vieram contra mim. Parei no meio da rua e comecei a lutar contra uns cinco. Todo o esforço do Lírton, que nos dava treinamentos especiais para briga de rua, florava naturalmente. Eu era um bailarino, voando nos peitos daqueles coitados.


Uma mulher, cambaleante de bêbada, com uma criança no colo começou a gritar desesperadamente.


-- Ele deu um murro no meu filhinho, deu um murro no meu filhinho.


Perdi a concentração. O balé perdeu seu ritmo, pessoas começaram a me rodear e, de repente, uma multidão correu atrás de mim. Os dos tacos de sinuca, gente com paus e pedras. Uma multidão. Eu ia ser linchado...


Lílian me salvou. Chamou a polícia, que de viatura e sirene aberta me agarrou e me levou para a delegacia. Mas a multidão não desistiu. Correu para a delegacia. Queriam me linchar de qualquer jeito. Eu era um perigo para a pacífica sociedade chilena.


E uma outra história foi contada ao delegado. Eu, um carateca brasileiro, louco, havia esmurrado uma criancinha de colo e, por isso, aqueles pacatos jogadores de sinuca se sentiram na obrigação de defender a criança e sua mãe.


Depois de umas duas horas de xilindró, a situação se acalmou e o delegado me chamou. Já tinha ouvido o depoimento de Lílian e do pessoal da terapia. Ouviu o meu, me deu alguns conselhos sobre não ficar usando meus conhecimentos de artes marciais por aí, me desejou boa sorte e me soltou.


Irina e Márcia diagnosticaram machismo incurável. Lílian gostou, passou a dizer que era seguro andar comigo. 


O conhaque é espanhol. Reich continua a falar mal da família monogâmica, diz que a comuna é a nova família. Os comunistas nunca vão aceitar isso.


A compulsão à destruição é obsessiva. Conheci uma jovem loura e tímida, que acaba de chegar de Brasília. Joguei Yasmin fora, sem ao menos me dar conta de que estava vivo graças aos cuidados dela. Mudei de casa e iniciei um longo mergulho de sensualidade e niilismo. Eu e Náiade fazemos sexo doze horas seguidas. E dormimos as outras doze horas. Conseguimos passar semanas inteiras sem sair de casa, sendo alimentados pelos amigos, que estarrecidos, deixam as refeições na porta do apartamento, para que não morramos de fome. Só depois de um mês de puro sexo saímos pela primeira vez. 


É impossível esquecer aquela noite. Era inverno, passamos pela casa de Gabriel, bebemos muito, e fomos assistir à uma peça de teatro na Universidade do Chile. Antes mesmo de terminar o espetáculo, eu aplaudia e gritava como um alucinado. Mal se fecharam as cortinas, pulei no palco e fui abraçar os atores. Minha euforia era contagiante. Noite gelada, céu estrelado e uma sensação de estranhos poderes. Náiade se enroscava em mim. Estava feliz. Todos meus amigos estavam felizes. Luís superou a crise, está curtindo a vida, apaixonado. Não vai se suicidar.


Aliás, já tinham realizado algumas reuniões de cúpula com Mário Pedrosa e Mary, sobre minha situação. E o velho Mário, muito sábio, declarou: "Não se preocupem, é uma crise epistemológica. Se ele superar, aprende com ela e vai em frente. Cresceu. Se não superar, se suicida. Não merece a vida que tem". Todos tinham um amor muito grande por mim. Muito grande mesmo. Eu era violento, assassino e suicida em potencial, mas meus amigos me amavam. Só que eu não tinha tempo para olhar para esses detalhes. O importante era guerrear a guerra da vida. O resto, ora que resto?


Era noite de São João. Convidei um grupo de amigos para jantar em casa. Tínhamos feito um peixe assado, o vinho branco estava na geladeira, e íamos servir o jantar à luz de velas. Antes, porém, fui fazer uma visita ao João. Quando cheguei lá, vi um sujeito que não conhecia e que, coitado, acabava de chegar do Rio de Janeiro. Estava acompanhado de uma moça magra, elétrica, que vestia verde e usava uma boina, imaginem, verde também. Parecia um grilo. Olhei para o sujeito, gritei que não ia com a cara dele. Dei um urro horroroso e pulei com os dois pés do peito dele. O sujeito quase caiu morto: de susto, aterrorizado. Convenceram-me a ir embora e saí babando de ódio. Com Náiade do lado, mansa como se nada tivesse acontecido. Horas mais tarde, quando íamos dar início ao jantar, entre os convidados, quem chega? Os dois. Ele e ela.


Todos se sentam à mesa. Levanto-me, dirijo-me à carioca recém-chegada e pergunto:


-- Vou tomar um banho de banheira, você quer vir comigo?


Ela responde afirmativamente. Todo mundo está estatelado, principalmente Náiade. 


Eu pergunto:


-- Como é seu nome?


-- Anabella.


Eu e Alex fazendo pesca submarina na praia Vermelha. A gente sai cedo de casa e leva toda a tralha em duas sacolas grandes: pés de pato, máscaras de mergulho, tubos de respiração, facas e arpões. Não usamos acqualung. Mergulhamos no fôlego.


Levamos também água potável, dois sanduíches e duas maçãs.


Da praia Vermelha, ali ao lado do forte, nadamos uns quinhentos metros, cada um com sua sacola, até a ponta da pedra. Ficamos em frente ao mar aberto. 


Instalamos nosso QG ali. Escolhemos uma área protegida para as sacolas e a comida e iniciamos a pesca.


O mergulho. O sol atravessa às duras penas a transparência do mar. Só aqui no fundo encontro o verde que eu quero verde. Os cardumes de peixes coloridos diante de meu nariz e as algas que docemente oscilam ao sabor da corrente dão a agradável sensação de vôo livre.


O arpão está armado, mas a primeira hora de mergulho é só de observação. Eu e Alex sempre mergulhamos aqui, por isso já conhecemos esses amigos das profundezas. A gruta da lagosta, que sempre foge à nossa chegada e que não nos preocupamos em caçar. Nem fisga para lagosta a gente traz. Bagre e peixe pequeno a gente também não pesca. É a maior vergonha aparecer lá em cima com alguma coisa pequena.


Caçonete é a meta. Mas não é fácil. Depende da temperatura da água, da corrente e até mesmo da claridade do dia. Água fria, turva, e dia nublado favorecem a caçada, mas mesmo assim não é fácil encontrar o cação.


Depois do cação vem a arraia e o polvo. Se o mar tem cação, tudo bem. É uma questão de destreza e mira. Às vezes, ele passa diante da tua cara e quando você vai atirar, ele já saiu da linha de tiro. Você persegue e ele mergulha. Você vai até onde o fôlego dá. Pode ter sorte ou ter que subir rápido porque os pulmões ameaçam explodir.


Já a arraia são outros quinhentos. Ela fica lá em baixo, quietinha, mimetizada na areia. Se bobear, você passa por ela e nem vê. Ela então dá uma deslizada rápida pelo fundo, em busca de outro esconderijo. 


Esse é o momento. Você está em vôo livre, por cima, armado. Tchum... O arpão corta a água e atravessa a arraia. Ela fica grudada no fundo se contorcendo. Você tira a faca e corta o rabo dela. Segura o arpão e a traz para a superfície.


-- Peguei, peguei uma arraia...


Alex me ajuda, a enrola em jornal e coloca numa das sacolas.


Tem ainda o polvo. O certo é pescá-lo com fisga. Ele se esconde nos buracos das pedras e acertá-lo com arpão não é fácil. O melhor é a fisga. Por isso, só levamos polvo para casa, quando, num golpe de sorte, ele dá bobeira e a gente consegue acertá-lo.


Parada para o lanche.


-- Tia Lucy fez os sanduíches. Misto quente, frio.


-- Ta bom.


-- Você está gostando de morar com o Walter?


-- Ele é gente fina. Está me ensinando boxe.


Eu e Alex sempre nos demos muito bem, mesmo quando brigamos. Geralmente sou eu quem brigo. Ele é muito inteligente. Aprendeu a ler aos três anos de idade, mas não gosta de estudar. Já fugiu da escola várias vezes. É um típico menino do Rio. Passa o dia na praia. Magro, muito queimado de sol, olhos negros, sobrancelhas enormes, lembra o Amynthas, diz orgulhosa a pequena Maria. É um garoto lindo, saudável, um pequeno animal selvagem. Marinho.


-- Gostaria de ter conhecido o Amynthas, ou me lembrar dele.


-- Você era o nariz de batatinha. Ele gostava tanto de você, que você recebeu sua primeira surra aos três anos.


-- Pó, e isso é sinal de gostar?


-- Para ele sim. O Amynthas tinha um padrão de educação meio antigo. Quem ama, educa.


-- Você apanhou muito, não é?


-- Não mais que o necessário. Amynthas e Maria ficavam loucos comigo. Eu era um menino da pá virada.


-- Por falar nisso, acho que o tempo vai virar. Vamos mergulhar mais um pouco. Se o mar picar, adeus pesca.


-- Vamos lá.


Já temos uma arraia, mas sei que Alex não quer voltar de mãos vazias. Quando não pescamos nada, levamos mariscos. Eles aqui são grandes e bonitos.


Tia Lucy gosta. Transforma peixes em caldeiradas e frutos do mar em paellas. Nas mãos dela tudo vira banquete. E na hora do jantar, sempre regado a suco de frutas brasileiríssimas, carambola, jabuticaba, tamarindo, faz um elogio rasgado à nossa destreza de pescadores submarinos. Tio Waldemar, Daniel e Eduardo também comentam e aprovam. Eu e Alex somos os heróis da noite.


Waldemar é filho de alemães. Seu pai tinha uma metalúrgica em Joinville, onde Daniel e Eduardo nasceram.


Ele e tia Lucy se conheceram no Rio, quando ele fazia faculdade de medicina. Depois a fábrica pegou fogo, um dia depois do seguro vencer, o pai deixou de mandar dinheiro e ele passou a representar madeireiras do sul aqui no Rio.


É um sujeito esperto, com muito tino para os negócios. Trabalha sozinho, em casa. Usa telefone, a Western para seus telegramas, e toda a madeira vem de navio, cif ou fob, a gosto do cliente. Forneceu madeira para a construção do Maracanã e está ganhando muito dinheiro.


O mar picou e Alex não pegou nada. Fico na minha. Para ele não ficar muito chateado, pegamos umas dúzias de mariscos, embrulhamos tudo em jornais, colocamos nas bolsas e nadamos devagar, de volta à praia. 


O céu nublou, sopra um vento sul que deve trazer chuva. É bom acelerar o passo...



Capítulo 8



Ontem recebi uma carta do Rio de Janeiro. Uma carta de meu primo Daniel. Durante muitos anos morei com meus primos Daniel e Eduardo, ali na Glória. O sonho dos dois era serem pilotos da força aérea. Cursaram Agulhas Negras, mas Eduardo acabou indo para a intendência. Hoje é coronel. E o Daniel foi desligado. Parece que fez uma barbeiragem num de seus treinamentos e quase enfiou o avião em cima de uma torre de alta tensão.


Ficou na maior fossa. Todo mundo pensando que ele ia desistir de viver... Mas, deu a volta por cima. Começou a ler a Bíblia e a freqüentar as reuniões dos batistas numa igreja lá perto do Rio Comprido. Fez medicina e se tornou missionário.


Daniel é um sujeito peculiar. Inteligente, culto, fala e escreve bem. Digo peculiar, porque eu e ele crescemos no meio da malandragem da Glória. Conhecíamos todos os bandidos do pedaço. E curtíamos as noitadas ali na taverna.


Quando éramos garotos, gostávamos de colocar umas bombas chamadas cabeça de negro no banheiro dos homens, que tinha uma portinha ao estilo de bar de farwest. Era uma loucura, os marinheiros que ficavam por ali agarrados às prostitutas, de vez em quando eram apanhados de surpresa por uma violenta explosão no mictório.


Saíam às carreiras, com as calças no meio das pernas, gritando feitos loucos. E nós lá fora, rolando de rir do desespero alheio.


Outras vezes, a situação engrossava. Uma vez nosso amigo Camões, um cara parrudão, um pouco pro violento, mas muito amigo nosso, teve uma briga feia, num beco ali perto. Um cara o pegou de jeito, deu-lhe uma banda, e começou a bater a cabeça do Camões no meio fio. Com a cabeça quebrada e sangue correndo por todo lado, Camões conseguiu pegar seu canivete automático e enfiar na barriga do cara.


No desespero, correu para a taverna. Mas correu com o canivete na mão. Toda a turma estava lá bebendo. No desespero, Camões passou o canivete para o Alemão, que passou para o Lourenço, que passou para o Daniel, que sentou em cima.


Não deu nem tempo do pessoal respirar e chegou a dona justa. Pularam em cima do Camões como gato em cima do rato. Todo mundo branco quase fazendo nas calças. Mas todos sentados. Os tiras se engalfinharam com o Camões. Todo mundo sentadinho, branco quase fazendo nas calças, mas sem sair do lugar. Como se nada estivesse acontecendo. Levaram o Camões. Chamaram o Alemão e o Lourenço para irem juntos. Meu primo ficou quieto. Bom moço, sentado em cima do canivete.


Dá-lhe Luís. Estou com saudades. Espero que você e Yasmin estejam felizes com a vida nova aí em Santiago. Todo mundo está preocupado com vocês. Ninguém entendeu porque você deixou a Manchete e se mandou. Só quem está mais despreocupado é o Eduardo. Ele vivia dizendo “ainda vou ter que tirar o Luís da prisão”. Sei que você sabe se virar. Mas não se esqueça de Jesus, meu chapa, só ele é o Filho de Deus. Só ele é garantia de vida eterna. Tudo o mais, por importante que seja, é apenas vapor, vaidade humana.


Lembra-se de quando conversávamos sobre a bíblia? A gente ficava de madrugada, na varanda do apartamento, tomando ovomaltine batido no liquidificador com leite e cubos de gelo, com açúcar e muita espuma, e falando sobre os heróis da fé. Lembra-se da coragem de Isaías, que foi cortado pelo meio. E do meu xará, que enfrentou leões, mas não afinou?


É não deixe de ler a bíblia. O apóstolo Paulo, quando escreveu ao seu amigo Timóteo, disse que a escritura é a palavra de Deus, dada ao homem para guiá-lo na experiência da salvação. É livro único porque tem um único mentor, o próprio Deus, que soprou o seu hálito criativo sobre os homens que o escreveram.


Além de um mentor único, as escrituras sagradas têm um personagem principal, Cristo. Ele próprio, quando esteve aqui, em carne e osso, disse que deveríamos examinar as escrituras, porque julgamos ter nelas a vida eterna e são elas mesmas que dão testemunho de sua filiação e de sua autoridade.


A bíblia, primo de guerras e aventuras, conta uma única história, a tragédia da queda da humanidade nas trevas e sua salvação através de Cristo. Eu e você gostamos de escrever, por isso vou arriscar uma imagem que é comum à sua atividade literária: as escrituras têm um autor, que é Deus. Um argumento, só Cristo pode salvar o pecador. Um roteiro, a história da salvação. E centenas de capítulos, a história da salvação em cada época, em relação a cada povo e a cada homem. 


"Pois tudo quanto outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança", disse o apóstolo Paulo quando escreveu aos cristãos em Roma.


Aliás, no início dessa carta aos romanos, ele afirma que a causa da condenação de Deus ao mundo é a ignorância deliberada do homem. "Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a própria divindade, claramente se reconhecem, desde o começo do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas".


Não se esqueça disso, a ação e a presença de Deus nunca estiveram escondidas do homem, pois a natureza revela o poder e a divindade do verdadeiro Deus a todos os homens. A ignorância deliberada, que tem por base raciocínios nulos, tornam o homem indesculpável perante Deus.


Pode ser que essa conversa pareça distante da sua realidade atual. Mas quero que você recorde verdades que já conhece. Quero conversar sobre a bíblia, porque sei que o marxismo centra seus argumentos na impossibilidade de ser ela um livro inspirado. Você me desculpe, mas na próxima carta vou voltar ao assunto, com argumentos mais profundos. 


Aqui todo mundo está bem. Você sabe que não gostamos dessa ditadura. Mamãe torce pelo Juscelino, como mineira quatrocentona, eu e o Eduardo torcemos por você, mas achamos que você pode ser um grande político sem ser ateu.


Manda um abração pro Allende!


Dá-lhe Luís!


Do primo Daniel.


Carta maneira. Daniel sempre conseguiu me fazer pensar, mesmo quando discordo dele. Talvez seja essa sinceridade transparente com que ele diz as coisas. Ele não precisava seguir esse caminho. Mas o fato de ter dinheiro nunca significou muito para ele.


Estudava em colégio de menino rico, no Santo Inácio, ali na rua do Catete, mas sempre teve amigos pobres e paupérrimos. Aliás, Camões talvez seja o maior de todos. Juntos falsificavam carteirinhas do Flamengo para entrar nos bailes de carnaval, davam o chapéu em trocador de bonde e se apaixonaram por duas gêmeas que moravam na rua Santo Amaro.


Se ele escrever, leio e respondo. Mas sem grossura. Daniel merece todo o respeito do mundo.



Capítulo 9



-- Escrevi para minha mãe. Contei que conheci um homem maravilhoso. Você. Disse que estou apaixonada.


-- Será que ela vai acreditar?


-- Claro, nunca falei de homem nenhum assim.


-- Mas só tem um mês que estamos juntos!


Eu e Anabella estamos morando emprestado num apartamento de sala, banheiro e cozinha, mínimo, perto do rio Mapocho. O bairro é barra pesada. Nas primeiras noites não dormíamos direito por causa dos tiros. Nada político. É briga mesmo nos bares e inferninhos da rua em frente. Agora já acostumamos. Às vezes, antes de dormir fico tentando adivinhar o tipo da arma usada. Tiro de calibre 22, 32 e, vez ou outra, 45.


-- Acho aquele nosso café da manhã uma loucura.


-- É, os argentinos, não se arriscaram. Mas qualquer francês ia dizer que é muito sofisticado.


Ostras com vinho branco gelado. Esse é o nosso café nas manhãs de sábado. Moramos ao lado do Mercado Municipal. As ostras são fresquíssimas, o vinho é servido em copo e tudo ao preço de uma média com pão e manteiga. Mas os companheiros argentinos do Partido Revolucionário dos Trabalhadores, PRT -- La Verdad, preferiram não arriscar. Um deles alegou gastrite. Vieram discutir a formação do partido no Brasil. Acham que as condições estão mudando e que o governo, dentro de alguns anos, terá que aceitar uma abertura política. Eu concordo. Anabella acha que estamos delirando.


-- A barra está pesadíssima.


-- Está, mas vai mudar.


-- Olha, eu estava namorando o Mariozinho, ali na praia do Leme, pertinho do forte. Eram umas dez da noite. Nós estávamos na areia. De repente, apareceu um soldado. Ele enfiou o fuzil na cara do Mariozinho, me xingou de tudo que era palavrão. Disse que ia nos prender, porque éramos subversivos. Foi uma loucura. Então, abriu a braguilha...


Coloquei os dedos nos lábios de Anabella, pedindo silêncio. Seus olhos estavam marejados. Eu conhecia uma porção de histórias como essa. Histórias de humilhação.


-- Deixe para contar outra hora. Não vale a pena começar o sábado assim.


Estou trabalhando numa metalúrgica no bairro operário de Vicuña Mackenna. Sou soldador. É uma fase nova e dura na vida. Acordo às cinco da manhã e entro na fábrica às 6h45. Trabalho até às cinco da tarde. Chego literalmente morto em casa, às sete da noite. Aí, só dá para tomar banho, comer alguma coisa e desmaiar. Passo o dia, não somente soldando, mas carregando ferro de um lado para o outro. Nem sexo faço mais durante a semana.


Sábado e domingo são dias especiais e, por isso, devem ser muito bem aproveitados.


-- Vamos para Valparaíso.


-- Isso mesmo, almoçar à beira-mar.


E lá vamos nós, num micro-ônibus, descendo a cordilheira em direção ao oceano Pacífico. Valparaíso é uma cidade histórica. Lembra-me a II Guerra Mundial e o Bismarck, encouraçado alemão que afundou em frente à cidade. Encontramos um restaurante que fica quase na areia, de frutos do mar. É um restaurante digno. Não muito limpo, mas não é sujo. A maresia é forte e fria. Na verdade, está ventando. Anabella está de calça verde, uma blusa de malha de manga comprida e um colete felpudo de cor vinho. Corre pela areia, enquanto pelicanos sobrevoam sua cabeça. Alguns, despreocupados, caminham ao seu lado. Aproveito a cena e tiro algumas fotografias.


-- Uma amiga minha, que trabalha na Gillete, vem passar as férias aqui no Chile. Quero que você a conheça. É louquíssima. É quase uma irmã.


-- Será que alguém com a cabeça no lugar viria passar as férias no Chile?


-- Você está exagerando.


-- Não estou. Só estou dizendo que chamar a sua amiga de louquíssima é pleonasmo. Se vem para o Chile de Allende e não é de esquerda, só pode ser louca mesmo. É isso que eu quero dizer.


-- Você complica tudo. Não se esqueça que está baratíssimo fazer turismo no Chile.


-- É, nisso você tem razão, mas ainda acho que ela é louca. Afinal, é sua amiga.


-- Estava pensando. Você toparia passar umas férias na Argentina? Eu tenho que ir ao Brasil. Você me esperaria em Buenos Aires, e voltaríamos a Santiago por Bariloche, passando pela região dos lagos, Osorno, Puerto Montt e Valdívia.


-- Tem a fábrica. Tenho que ver se é possível.


Eu, de jornalista, tinha virado soldador. E Anabella fazia um curso de fresadora na Universidade Técnica. Estava se preparando para trabalhar em fábrica, no Brasil, quando voltássemos definitivamente. Apesar das dificuldades, acreditávamos que a formação de um partido socialista passaria inevitavelmente pelas novas cidades industriais que tinham surgido nos últimos anos. Apostávamos no ABC paulista.


Assim, durante a semana, ambos vestíamos macacões, usávamos luvas grossas, óculos de segurança, e vivíamos uma vida nova, pesada e cansativa, mas cheia de esperança no futuro glorioso da humanidade. Aos sábados nos divertíamos, viajávamos, comíamos em restaurantes baratos e dançávamos à noite. Aos domingos, tínhamos reuniões políticas.


Não gosto de praia, gosto de mar.


Deitar na areia, torrar, nunca curti. Vou à praia aos domingos de manhã por obrigação social. Senão fico desenturmado. Jogo futebol de areia no final da tarde, porque o sol está fraco. A claridade e o calor da manhã me incomodam. Prefiro a noite.


Do hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no alto da Tijuca, onde nasci, dando uma quebrada pela Mangueira, atravessando toda a zona sul até a Barra da Tijuca, conheço tudo. Esse é o meu Rio. Mais tenho os meus espaços: a taverna da Glória, a Prado Júnior e a galeria Alaska.


Noite e juventude transviada. Lugar por onde andam os malditos. Meus amigos beatniks, de corrente no pescoço, meus amigos existencialistas, que lêem Sartre, Camus e cantam Boris Vian: “Je viens de recevoir/ mes papiers militaires/ pour partir à la guerre./ (...) Je ne veux pas la faire,/ je ne suis pas sur la terre/ pour tuer des pauvres gens./ (...) Je m’en vais déserter...” Tudo isso, mais o inferno sexual de alguns deles, que sofrem com seus romances proibidos, mergulhados em culpa, álcool e drogas.


É o caso de Luciano. Ele é apaixonado por um garoto de 18 anos. Um menino caladão, que só de vez em quando sorri. Luciano morre de ciúmes e talvez por isso o garoto desaparece. Acho que ele tem uma vida dupla. Aliás, não acho que seja namorado de Luciano, acho que é michê.

   

A viagem do amigo Luciano é alucinante. Começou com as prises de lança-perfume, depois partiu para as anfetaminas, agora compra um medicamente para otite, que ele destila e injeta na veia do braço. No lugar das veias tem manchas roxas e hematomas.


Depois de injetar-se, Luciano fica com os olhos vidrados, olhando para o nada. Fica caído, num canto do quarto, como um trapo.


Não sei qual é o barato, mas é algo ligado ao desespero da vida dele. Quando o garoto desaparece ou quando a vida pesa, ele se droga. E como a vida dele é uma droga, ele se droga sempre.


Luciano é um sujeito culto, mas o que ele sabe não produz nada. Escreve um livro que nunca termina e tem projetos que nunca começou.


Somos amigos, mas ele me odeia. Gosto da vida e acho que ela vale a pena. Ele tem um tropismo pela morte.


Já foi internado duas vezes no Dr. Eiras para tratamento psiquiátrico, mas não adiantou. Sai de lá, inchado, de tanto medicamento, aparentemente manso, falando devagar. Um mês depois, já secou por inteiro, está falando rápido como locutor do jóquei e se drogando a mais não poder. Por isso, as pessoas o chamam de Luciano bolinha.


Se fosse traduzir a personalidade de Luciano numa palavra diria agressividade. Às vezes, parece que vai babar como um cachorro louco e agredir quem está na frente. Como é muito magro, pele e osso, nesses momentos ele treme muito.


Quando escreve um texto mostra para todo mundo, ri muito e fica na maior euforia. Gostamos desse pique de Luciano. Ele escreve bem e todos na Manchete sabemos disso, mas sua produção depende de tantos fatores e humores, que a maioria prefere não contar com ele.


Não gosto de praia, gosto de mar.


Mar é nadar, mar é pescar, mar é a imensidão besta, infinito verde, um mundo abaixo da linha da aparência. Passei grandes momentos no mar.


Aprendi a nadar com a pequena Maria, em Icaraí, jogado no mar. Não afundei e depois tive aulas, com ela, de respiração, movimentos e técnicas. Em casa todos nadamos, mas o grande mestre era o Amynthas.


Alex se afogou pela primeira vez aos cinco anos. Entrou na arrebentação de peito aberto. Maria nem notou. Foi resgatado por um salva-vidas.


Só uma vez dei um vexame desses. No Flamengo, mar furioso de inverno, sob a bandeira vermelha. A bem da verdade, eu já tinha nadado e voltava para a praia quando fui golpeado na nuca por uma muralha de água.


Rodopiei, comi areia e fui agarrado por dois salva-vidas que me pegaram pelos braços e me trouxeram até a praia. Eram umas seis da tarde. Alex deitou e rolou. Tirou o maior sarro. Fiz uma ficha de afogado na barraca dos salva-vidas, rodeado de curiosos, assinei o papel e saí na maior vergonha. Mas quem manda nadar em mar de ressaca?


Gosto de nadar à noite. Entrar no mar ali em frente à Santa Clara e ir devagar, bem devagarzinho, em frente. Depois fico de papo pro ar, boiando, olhando pro céu. É o melhor lugar para você namorar estrelas. Depois, de novo, bem devagar, devagarzinho, nado em direção ao colar de luzes de Copacabana.



Capítulo 10



Dá-lhe Luís.

Estou aqui de novo. Infelizmente, vou começar esta carta com uma notícia ruim. Lembra-se do seu amigo Luciano, aquele que trabalhava na Manchete. É, ele se matou. Estava na casa do primo, num estado depressivo lastimável. Depois de uma longa conversa e com aval de Luciano, o primo telefonou para uma clínica pedindo que mandassem uma ambulância. Nesse meio tempo, Luciano levantou-se da poltrona, correu em direção à janela e atirou-se. Espatifou-se oito andares abaixo. 


Foi a maior depressão, mas de certa forma um fim desse era esperado. Infelizmente. 


Texto revelado. Texto confiável?


Eu disse na última carta que gostaria de conversar com você sobre a Bíblia. A questão é: será que ela merece confiança. É tudo uma baboseira ou posso confiar no que ela diz?


Quando Moisés levava seu povo, que tinha sido escravo no Egito, em direção a uma terra prometida, Deus disse a ele:


"Agora, pois, ó Israel, ouve os estatutos e os juízos que eu vos ensino, para os cumprirdes, para que vivais (...). Nada acrescentareis à palavra que vos mando, nem diminuireis dela, para que guardeis os mandamentos do Senhor vosso Deus, que eu vos mando". 


Um milênio e meio depois, um discípulo de Jesus escrevia assim aos judeus que tinham aceitado o Messias:


"(...) havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, pelo qual também fez o universo". 


Aqui vemos não somente um Deus de amor falando aos nossos antepassados, homens e mulheres de nossa espécie, de várias maneiras, através das Escrituras, mas ligando a revelação do antigo testamento a uma outra apresentada em Cristo. 


A revelação das escrituras no antigo testamento prepara o terreno para uma nova revelação: Cristo. Este Cristo é Deus feito carne e osso, que morre em lugar do homem rebelado, e cria as condições para um novo e eterno relacionamento entre Deus e cada um de nós.


Mas Deus não parou aí. Hoje, além da natureza, das escrituras, da revelação que é Cristo, ele fala através do Espírito Santo, que é nosso advogado, aquele que apela, argumenta, fortalece e defende. Jesus, não nos deixou órfãos. Ele prometeu, que "o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito".


Lembre-se, Luís, você não está sozinho, abandonado. Há alguém que fará você recordar-se daqueles ensinamentos essenciais à sua salvação.


Como você gosta de temas complicados e eu quero fazer uma defesa racional da fé, vou aprofundar um pouco mais minha exposição. Na verdade, o único conceito teológico que deixa claro que a revelação nas escrituras é cem por cento divina e cem por cento humana é o conceito plenário-verbal. 


Em primeiro lugar, Deus soprou. Há uma ação clara de Deus, de presença ativa e poder. Essa ação de soprar seu hálito divino é a inspiração. Em segundo lugar, este soprar não se dá apenas sobre um trecho ou outro das Escrituras, mas sobre ela toda, de conjunto. É uma inspiração plena.


Mas é também uma inspiração verbal. Todas as palavras e relacionamentos verbais, nos manuscritos originais, são inspirados. O texto inteiro está sob inspiração. É Cristo quem diz isso. "Porque, digo com toda a certeza, até que o céu e a terra passem, nem um yod - a menor letra do alfabeto hebraico, que se parece um apóstrofo - ou um risquinho, jamais passará da lei, até que tudo se cumpra". Assim, referindo-se ao antigo testamento, Jesus deu a seus discípulos um conceito sublime de inspiração.


Ora, se Jesus nega qualquer relativismo em relação à inspiração, por outro lado eu discordo das posições que sugerem a possibilidade de que os textos foram psicografados. Acredito, Luís, que o Espírito Santo apresentou as idéias, ajudou os escritores bíblicos a verbalizarem a revelação, respeitando a realidade cultural, de estilo e vocabulário de cada um, evitando, porém, erros em relação à mensagem. Não há entropia. O processo de revelação é indutivo, mas não viola a personalidade do escritor.


Sei que você entendeu. A conclusão, então, é clara e coerente. Os manuscritos originais são cem por cento divinos e cem por cento humanos. Nesse contexto, quando todos os fatos descritos e previstos pelas Escrituras forem totalmente conhecidos, veremos que ela é plenamente verdadeira. Isso é a inerrância bíblica.


Houve uma época, aos dezesseis anos, que você sonhava em ser pastor. Não sei por onde andam seus sonhos. Mas como conheço você, vou deixar a teologia um pouco de lado. Quero falar de arqueologia. Afinal, quando os homens se calam, as pedras clamam.


Você concorda comigo que a Bíblia é um livro muito antigo, não é? Mas Deus, na sua bondade, criou as condições para que tivéssemos hoje um texto quase perfeito em relação aos manuscritos originais. Vejamos algumas evidências. Os rolos de manuscritos descobertos em 1947, nas cavernas de Qumran, no mar Morto, incluem fragmentos e livros do antigo testamento e do período helênico. Esta biblioteca foi escondida pelos essênios, um grupo de judeus piedosos, nas cavernas de Qumran no ano 68 d.C., prevendo ofensivas maiores dos romanos. Desde o ano 66, judeus e romanos estavam em guerra.


No ano 70, Tito, general romano, destruiu Jerusalém. Mas a providência divina cuidou para que a biblioteca dos essênios fosse salva e quase dois mil anos depois chegasse até nós quase inteira. Aí estão importantes fragmentos de Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Samuel, Salmos, Eclesiastes, Isaías, Jeremias e Habacuque.


Em relação ao antigo testamento, as descobertas arqueológicas de Qumran aproximam em centenas de anos esses manuscritos de seus originais. Discordando dos marxistas, que afirmam que os evangelhos, Atos dos Apóstolos e os textos de Paulo são posteriores ao período apostólico, alguns especialistas afirmam que fragmentos desses textos podem ser encontrados na biblioteca de Qumran. Se essas afirmações forem corretas, os evangelhos de Marcos e Lucas, Atos dos Apóstolos e as epístolas de Paulo foram escritas antes do ano 68, e considerados de tal importância a ponto de serem incluídos na biblioteca dos essênios.


Ainda sobre o novo testamento é importante dizer que é o documento histórico antigo melhor confirmado pelo testemunho dos manuscritos. Temos hoje 24 mil cópias antigas de porções do novo testamento. Em todos esses textos, comparando um com outro, foram encontrados apenas cinco por cento de variação: erros de cópia e variações de ortografia. A crítica textual, através da reconstrução, reduziu esta percentagem para 0,05%. Ou seja, das cerca de oitenta mil palavras do novo testamento, só existem dúvidas em relação a quatrocentas palavras. Temos assim, o texto do novo testamento praticamente intacto.


Agora vai uma novidade. Tenho quase certeza que você desconhece, porque está acontecendo agora e nos últimos anos você abandonou seus estudos teológicos.


Em relação ao livro de Gênesis, há uma prova irrefutável de sua veracidade. Dois professores da Universidade de Roma, Paolo Mathiae e Giovanni Petinato, estão dirigindo escavações no sítio arqueológico de Tell Mardickh, desde 1964. Na região escavada, existiu a cidade de Ebla. A cidade, no auge de seu poderio comercial, 2.300 anos a.C., possuía uma população de 260 mil pessoas. Ebla foi destruída, em 2.250 a.C. por Naram-sin, neto de Sargão, o grande.


O interessante, Luís, é que a equipe de arqueólogos já desenterrou aí dezessete mil tabletes, a grande maioria de relatórios comerciais entre Ebla e as cidades vizinhas.


Sodoma, Gomorra e as três outras cidades da planície mesopotâmica, citadas em Gênesis 14, durante séculos foram consideradas lendas, pelos historiadores. Agora, no entanto, temos certeza de que essas cidades existiram, pois nos tabletes de Ebla, os nomes e as atividades comerciais de Sodoma, Gomorra, Admá, Zeboim e Zoar são relatadas em detalhes.


Fantástico. A arqueologia e a história confirmam a veracidade do texto bíblico.


A questão canônica.


Outro problema: bíblia judaica, protestante, católica. Afinal, quantas bíblias existem?


Essa discussão está ligada à questão de que livros da bíblia são inspirados e quais não são. Essa definição de que livro deve estar ou não na bíblia os teólogos chamam de cânon, palavra grega que quer dizer vara reta, régua, e que acabou sendo interpretada como medida. Assim, eu diria que temos uma bíblia e dois cânones. 


Os judeus, que por tradição só aceitam o antigo testamento, consideram como inspirados vinte e quatro livros, que dividem em Lei, os cinco livros de Moisés, em Profetas, composto pelos livros proféticos, e em Escritos, formado pelos livros poéticos, os cinco rolos e os livros históricos. Esse cânon judaico foi aceito pelo uso geral antes mesmo de Jesus nascer. Mas, só foi oficialmente definido pelo rabinato como inspirado na reunião de Jâmnia, nos anos 90 d.C.


Em relação ao antigo testamento, a igreja reformada, de Lutero, Calvino e Zwinglio, adotou o cânon judaico. A diferença está na ordem e no número de livros. A igreja reformada dividiu o livro de Reis em 1o e 2o Reis, o livro de Crônicas em 1o e 2o Crônicas, e o livro Esdras-Neemias também em dois, o livro de Esdras e o livro de Neemias. E os doze profetas menores, que para os judeus compõem um livro só, para a igreja reformada são doze livros separados. 


Embora o conteúdo seja um só, os judeus têm vinte e quatro livros no Tanach, mas os protestantes têm trinta e nove. Embora a seqüência de organização dos livros do antigo testamento seja basicamente por assunto, a igreja reformada tem razão em fazer estas divisões, pois cada escritor, no caso dos profetas menores, por exemplo, fala da ação de Deus em realidades e épocas diferentes.


Já a igreja católica agregou oficialmente, no Concílio de Trento, em 1546, ao cânon judaico mais quatorze textos. Os livros de Judite, Tobias, 1o, 2o, 3o e 4o Macabeus, Livro da Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, a Carta de Jeremias, adições em Ester e os capítulos 3.24-90, 13 e 14 em Daniel.


Esses livros e adições, chamados apócrifos, termo grego que quer dizer "escondido", apareceram oficialmente, pela primeira vez, com a tradução grega do antigo testamento, realizada na cidade de Alexandria entre os anos 250 e 150 antes de Cristo. Esta tradução, conhecida por Septuaginta, apesar de sua importância histórica, já que transformou a bíblia num livro ocidental, combinou textos reconhecidos pelos judeus como inspirados com literatura religiosa não inspirada. Assim, os apócrifos nunca foram aceitos, quer pela igreja reformada, quer pelos judeus, como inspirados.


E qual o critério utilizado por nós, protestantes, para definir que tal livro é inspirado ou não. Em primeiro lugar, a autoridade de Deus. Nos livros inspirados do antigo testamento sempre encontramos expressões como "assim diz o Senhor", afirmação inexistente nos apócrifos.


Além disso, os livros inspirados afirmam taxativamente que foram escritos por servos de Deus, como Davi, Salomão, Isaías, Jeremias, etc. E foram comprovados como autênticos pela historiografia judaica e dos povos vizinhos. Já o texto apócrifo, Susana, por exemplo, acrescentado ao livro de Daniel, é classificado como ficção. Outro argumento muito forte, para nós, é que foram citados e avalizados por Jesus. Da mesma maneira, os apóstolos e os pais da igreja os usaram, citaram, e guardaram. E por último, a tradição judaica religiosa e intelectual, até o ano 100 de nossa era, os considerou inspirados.


Quanto ao novo testamento não há diferenças entre a igreja católica e a igreja reformada. É muito importante, porém, esclarecer que a igreja cristã não criou um cânon. A igreja apenas reconheceu oficialmente os livros escritos por apóstolos de Jesus e discípulos dos apóstolos, que foram amplamente utilizados e guardados pelos pais da igreja.  São vinte e sete livros.


Os apócrifos do novo testamento foram rejeitados porque não faziam parte do cânon não-oficial dos pais da igreja, Policarpo, Justino Mártir, Irineu, entre outros, e porque não foram incluídos no cânon do sínodo de Hipona, realizado em 393 d.C.


Dessa maneira, o cristianismo tem uma mesma Bíblia e dois cânones: o da igreja reformada, com 66 livros, e o da igreja católica, atualmente acrescido de sete livros: Judite, Tobias, 1o e 2o Macabeus, Livro da Sabedoria, Eclesiástico e Baruque, já que a Carta de Jeremias aparece como capítulo 6 de Baruque, e mais as adições nos livros de Ester e Daniel.




Vou parar por aqui. Não jogue as cartas fora. Guarde-as, porque elas têm uma seqüência temática. Acredito que consigo expor o que desejo em mais uma. E não deixe de me responder. Gostaria muito de saber o que você anda pensando.   


Manda um abração pro Allende!


Dá-lhe Luís!


Do primo Daniel.



Capítulo 11



A situação está ficando feia. Os enfrentamentos entre militantes da Unidade Popular e da direita criaram uma situação de instabilidade generalizada. Camponeses e agricultores têm sido mortos nas ocupações das fazendas, É bala, foiçada e pedrada. O pessoal briga com o que tem na mão. 


Depois que a Vanguarda Organizada do Povo, a VOP, foi indultada, seus militantes, esses sim legítimos bomberos locos, isso se não estiverem infiltrados pela CIA, já são responsáveis por seis assassinatos, inclusive de um ex-ministro de Allende, o democrata cristão Edmundo Pérez.


A crise econômica não está fácil. A inflação já passou dos 300%, o déficit na balança comercial vai além dos 450 milhões de dólares. O que é muito, se levarmos em conta que quando Allende chegou ao governo havia um superávit de 175 milhões de dólares.


A dívida externa nesses últimos três anos aumentou cerca de 60% e o déficit fiscal chega a 45%. A produção industrial continua caindo de forma absurda, o que afeta diretamente aos trabalhadores. Há escassez de tudo, farinha de trigo, pão, carne, refrigerantes, detergentes, pasta de dente e até vinho. Essa situação está criando um mercado negro sem paralelo na história chilena.


Embora não tenhamos estatísticas confiáveis, a direita fala que a desnutrição e a mortalidade infantil estão aumentando e que o nível de vida dos trabalhadores baixou para patamares inferiores ao de meados da década de 60.


Logicamente, diante desse quadro, todos estamos nos preparando para o pior. A sociedade chilena está dividida de alto a baixo. E essa situação não pode se manter por muito tempo. Isso vai estourar daqui a pouco.


Estamos tomando uma série de precauções. As células dos partidos receberam ordens de se armarem. Além das armas, que devem ser guardadas nos bairros operários de periferia, nas fábricas e nos acampamentos, os militantes devem ter em casa garrafas para a produção de bombas molotovs, lanternas, velas e até água potável. É claro que ninguém leva isso muito a sério, mas a ordem é essa.

 

Alguns partidos da UP pretendem lançar às ruas, para combate, milícias uniformizadas e armadas como se fossem carabineiros. A intenção é confundir as forças da direita. Não sei se isso funciona...Às vezes não dá tempo para organizar tão bem. É gente que não aparece, outras são presas. Uma guerra civil não é um desfile militar, por isso tenho lá minhas dúvidas, sobre essas idéias.


Também há uma ordem para que as milícias abandonem logo no primeiro dia de combates o bairro Alto, onde vive o grosso da burguesia chilena. Eles acreditam que setores da Aeronáutica apoiarão Allende e, por isso, não descartam o bombardeio do bairro Alto. Estou torcendo para que seja assim, mas esta é outra incógnita. 

                

Se tudo der certo, ou melhor, como foi planejado, comandos atacarão pontos estratégicos para os militares e mesmo alvos civis fundamentais para a direita. Não queremos que eles tenham tempo para mobilizar setores como os dos camioneiros.


As fábricas serão defendidas à custa da própria vida. E se isso não for possível, devem ser dinamitadas. Por isso, em todas as fábricas controladas pelos trabalhadores queremos estocar o material explosivo necessário para ações de defesa, de ataque, ou mesmo de autodestruição. 


De minha parte, o comando León Trotsky vai lutar junto com o MIR e devemos nos reunir, em caso de golpe, em Indumet. Ali estamos vários companheiros da Fração Bolchevique da 4a Internacional Trostsquista. É gente séria, quase todos com experiência de clandestinidade e alguns de luta armada. Eu sou em desses. Sou especialista em bombas antitanques e organizei em junho a mudança parcial da linha de produção de uma fábrica metalúrgica da Corvi. Antes só fazíamos janelas e portas de metal, mas depois também granadas. 


Minha missão é ir para Indumet. O comando León Trotsky está se reunindo dia sim, dia não. Estamos fazendo treinamento de guerrilha urbana. Uso de armas curtas, operações noturnas, ataque a tanques, quais seus pontos vulneráveis, o perigo das lagartas e da infantaria, que lhe dá proteção, o uso correto das molotovs.


Tudo isso eu conheço, mas a força de um comando está na ação em equipe. Por isso, o treinamento é fundamental. Um dos problemas mais complicados é o que fazer com o companheiro ferido. Em guerra aberta de rua, não há muito como defender um companheiro ferido. A vida de um pode custar a vida de todos. Por isso, temos um acordo entre nós. Tentaremos sempre esconder o ferido e deixar com ele água e uma arma.


No Brasil ganhei do poeta uma pistola que pertenceu ao guerrilheiro boliviano Inti Peredo. Fiquei muito alegre, mas um alerta do poeta tirou parte da alegria:


-- Antenor, lembre-se: a última bala é para você.


Esse era nosso acordo na época do MNR. E eu sei que aqui pode ser igual.




Capítulo 12



Dá-lhe Luís.


Sabe aquele general que jogava buraco aqui em casa com papai e mamãe, antes do papai ter o derrame? Você deve se lembrar, aquele que empastelou o Binômio, o jornal do José Maria Rabelo, em Belo Horizonte?Bem, deixa para lá... Vamos ao fato. Segundo John McCone, que foi diretor da CIA e hoje está no staff da ITT, as corporações norte-americanas estão derramando dinheiro grosso, para derrubar o Allende. Parte desse dinheiro já foi entregue à oposição liderada por Jorge Allessandri. O presidente da ITT, Harold Geneen, entrou com um milhão de dólares.


As outras empresas que foram citadas são a Anaconda, a Kennecott, a Ralston Purina e a Northern Indiana Brass Company. Se a situação já estava feia com o boicote internacional dos bancos Chase Manhattan, Chemical, First National City, Manufacturers Hanover e Morgan Guaranty, agora parece que a Marinha chilena resolveu partir para o pau. Falta a adesão do Exército e da Aeronáutica. Acho que você deve se preparar para o pior.


Mas, quero continuar minha carta anterior, quero falar de justiça e graça.


Ao contrário do que pode parecer num primeiro momento, o Deus do antigo testamento é o mesmo Deus de hoje. Ele sempre foi um Deus de amor e compaixão, conforme vemos em Gênesis, quando fez as primeiras vestimentas de peles para o homem e a mulher, desnudos pelo pecado. Ou quando, Noé é agraciado com a salvação.


Esse mesmo Deus, no novo testamento, diz através de seu Filho: "Jerusalém, Jerusalém! que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!”. 


Mas se é um Deus de amor e misericórdia, é também um Deus de justiça. "Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo o desígnio do seu coração; então se entristeceu o Senhor por ter feito o homem na terra, e isso pesou no seu coração. Disse o Senhor: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito". 


É claro que falar de Deus como um ser que se entristece e se arrepende é utilizar uma linguagem antropomórfica. Mas, apesar disso, o que o texto transmite é que este Deus é pessoal, não está passivo diante dos acontecimentos históricos e que tem atitudes reais para com a conduta humana. 


Assim, o arrependimento de Deus não deve ser entendido como uma mudança de seus propósitos, mas de atitude. Aliás, neste texto vemos duas atitudes bem definidas por parte de Deus. Uma é a da justiça, que se traduz em destruição do que se degenerou, e outra a da graça, diante de Noé. Essa graça reafirma o propósito da redenção.


Temos na bíblia um único Deus. Acontece que a bíblia, como história de Deus em relação a sua criação, fala de experiências. Nós vamos progressivamente, através dos eventos em primeiro lugar e posteriormente através de revelação, crescendo no conhecimento de Deus. Esse crescimento durante o antigo testamento, que de Abraão até Jesus cobre um período de dois mil anos, foi lento e gradual. 


O homem engatinhava no conhecimento de Deus e este, cheio de amor, tinha que definir limites, para que o homem não morresse. É o pai usando da sua autoridade para não deixar o filho enfiar o dedo na tomada, beber água sanitária ou brincar com a faca que viu na cozinha.


Os exemplos parecem simples demais. Mas foi exatamente isso que Deus fez no antigo testamento, definiu leis e mandamentos, para que seu povo não fosse destruído pela ignorância. Ele explica sua pedagogia: "Sabe, pois, no teu coração que, como um homem disciplina a seu filho, assim te disciplina o Senhor teu Deus". 


No antigo testamento, Deus nos mostrou a necessidade de um Salvador e no novo testamento nos deu esse Salvador. E como o apóstolo Paulo mostra, a graça, esse amor não merecido, precisa estar baseada na lei, ou seja, na autoridade paterna. Deus é o mesmo. No tempo certo, com o crescimento do conhecimento de seus filhos sobre Ele, adotou atitudes diferentes, condizentes com um momento novo na história da humanidade.


Justiça e graça não se opõem. Antes, são atitudes divinas inseridas em seu propósito de redenção da espécie humana. Respostas à realidade criada pela aceitação ou não-aceitação desta salvação oferecida pelo Criador. 


O segundo livro de Samuel, dos capítulos 11 ao 20, fala da profunda depressão vivida por Davi em conseqüência de seu adultério, e como tal situação desencadeou um processo de desestruturação de sua família e do reino como um todo.


Tudo começou quando Davi, apesar de ter oito esposas, cobiçou a mulher de Urias, um de seus homens mais corajosos. Cobiçou e realizou a sua cobiça, adulterando com ela no terraço da casa real. É interessante notar, que tempos depois, quando Bate-Seba manda informar-lhe que está grávida, o rei não denota nenhuma atitude de arrependimento, mas opta pelo caminho aparentemente mais fácil e sanguinolento: o assassinato de seu soldado. A fidelidade de um bravo é recompensada com a dissimulação, a hipocrisia, a ingratidão e o homicídio.


Nem bem o cadáver de Urias esfriara, já que o luto de sete dias foi puramente formal, Bate-Seba recolhe-se à casa real e torna-se mulher de Davi. Passado um ano, o profeta Natã apresenta a Davi a parábola do homem rico que se apropria da ovelha do homem pobre. 


"Tu és este homem", vocifera Natã. Denunciado publicamente, Davi chora o seu pecado diante de Deus. Arrepende-se e é perdoado. Mas os frutos dos dois pecados cometidos, adultério e assassinato, ele haveria de colhê-los na sua própria família.


Não somente o reino sofreu as conseqüências da transgressão, já que a confiança que o povo depositava no rei foi imediatamente quebrada. Da mesma maneira, sua família olhava com desconfiança esse pai que se mostrava fraco e evasivo diante de suas obrigações familiares.


Temos, então, a morte do primeiro filho de Davi e Bate-Seba, o incesto de Amnom e Tamar, e o ódio crescente de Absalão pelo seu meio-irmão Amnom. É impressionante notar que passados dois anos, a única postura de Davi em relação ao filho incestuoso foi apenas de muita ira. Não há da parte do pai nenhuma atitude objetiva. Não há diálogo, crítica, punição...Nada. Apenas ira acumulada. Podemos imaginar como isso tocou o coração de Absalão, irmão de sangue de Tamar, ao ver dois anos passarem-se sem que o pai tomasse qualquer atitude.  E Absalão fez justiça com as próprias mãos, assassinando o irmão. 


Tal situação fracionou mais ainda as relações familiares. Davi amava a Absalão, e este ansiava pelo perdão do pai. Mas nunca mais foram reatadas as relações de amor entre pai e filho. É verdade que depois de três anos de separação, Absalão consegue ver o pai, que o beija. Até que ponto este beijo foi o pedido de perdão, de um pai omisso a seu filho rebelado, não sabemos. O beijo como cumprimento era um costume oriental. O certo é que o ressentimento de Absalão não foi curado.


Temos, então, mais uma seqüência de tragédias. Absalão lidera uma conspiração contra o próprio pai, toma o trono e obriga Davi a fugir com toda a sua família e soldados de confiança. O rei é apedrejado e amaldiçoado. Em fuga, "o rei Davi e todo o povo que ia com ele chegaram exaustos ao Jordão, e ali descansaram".


Sem dúvida, esses últimos cinco anos tinham sido terríveis. Esse Davi, deprimido à beira do Jordão, estava longe de lembrar o pastor alegre e confiante no Senhor que derrotara Golias. A auto-suficiência do rei, sua insensibilidade e racionalização levaram-no ao pecado. Agora estava ali, às margens do rio, tendo dentro de si uma confusão de sentimentos acumulados: medo, ira, rejeição, culpa. 


Quando se arrependera, depois da exortação de Natã, Davi escreveu o salmo 51 e posteriormente o salmo 32. Dois textos belíssimos. O primeiro, sobre a confissão do pecado e o arrependimento. O segundo, sobre a felicidade daquele que recebe o perdão. Agora, no fundo do poço, com a família destroçada, suas concubinas sendo possuídas publicamente pelo próprio filho, destronado e amaldiçoado, só lhe restava descansar em Deus. 


O reinado de Absalão será curtíssimo. Ele é assassinado e o rei Davi vive um momento de profunda angústia. Recupera-se da dor da morte do filho rebelde, mas tão amado, e começa a reconquistar cada uma das tribos, em parte graças à participação diplomática e militar de seu amigo e braço direito durante todos esses anos: Joabe.


A tempestade estava passando. Os anos de chumbo terminavam. E Davi recomposto emocional e espiritualmente poderá dizer no final de sua vida:


"Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel me falou: aquele que domina com justiça sobre os homens, que domina no temor de Deus, é como a luz da manhã, quando sai o sol, como manhã sem nuvens, cujo esplendor, depois da chuva, faz brotar da terra a erva. Não está assim com Deus a minha casa? Pois estabeleceu comigo uma aliança eterna, em tudo definida e segura. Não fará ele prosperar toda a minha salvação e toda a minha esperança?”.


O Senhor Deus restaurara a vida de Davi. 


Mas fica uma pergunta: será que o rei durante esses anos trágicos tinha consciência do processo que estava vivendo? Temos uma pista bastante interessante: os já citados salmos 51 e 32. Vejamos o que eles dizem.


No salmo 51, salmo de confissão e arrependimento, logo no versículo três, Davi afirma: "(...) eu conheço as minhas transgressões e o meu pecado está sempre diante de mim".


Davi, na verdade tinha consciência do erro cometido. Quando escreve o salmo, ele já parou de racionalizar o seu erro. Ele não se justifica mais. É interessante ver como essa compreensão que tem de si próprio é real. Davi, neste salmo, usa palavras como purificar, lavar, renovar, restituir, sustentar, livrar e abrir, para dizer o que Deus precisa fazer por ele. Aqui ele vê suas limitações, vê sua humanidade decaída e pede a Deus que seja Deus pleno em sua vida. 


Duas coisas ficam claras nessa oração do rei Davi. Por um lado, reconhece que está vivendo o momento mais terrível de usa vida: distante de seu Deus, esse Deus que transformou um menino desprezado pelo pai, pastor de ovelhas, sem perfil para nada mais heróico, em rei ungido de Israel. Mas, se tem esta autocompreensão de seu estado de pecador pusilânime e irremediavelmente perdido, por outro, tem consciência de que não é isso que Deus quer para ele. "Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova em mim um espírito reto".


E no salmo 32, o rei canta a alegria do perdão recebido. Ele se diz feliz, bem-aventurado, e explica que esses sentimentos existem porque "não ocultei os meus pecados".


Depois de reconhecer suas limitações, de ter seus pecados perdoados e de viver a alegria do perdão, Deus diz a Davi: "Instruir-te-ei e te ensinarei o caminho que deves seguir; e sob as minhas vistas, te darei conselho".


Davi estava curado de seus pecados, mas Deus continuaria a lhe educar. Receberia ensinamentos e cresceria no conhecimento de seu Deus, de si próprio, e de seu próximo, enquanto estivesse vivo. Graças a esse crescimento permanente nós, as gerações futuras, fomos abençoados com os momentos de chumbo da vida do rei Davi, com seu arrependimento e com o conhecimento posterior que Deus lhe deu.


No correr das escrituras, Deus mostra seu propósito de redenção do ser humano e da terra. Assim, o livro de Gênesis fala da criação do universo, do lugar do homem nesse universo, da entrada do pecado no mundo, da genealogia de Adão a Noé, da perversidade e do castigo do velho mundo e das antigas famílias da humanidade.


É o livro dos princípios (bereshit, em hebraico), que mostra Deus como criador de todas as coisas. Deus é o criador pessoal, sábio, interessado nas coisas que faz e tem um propósito definido em toda a sua obra. Assim, o homem que ele cria é feito a sua imagem e semelhança, cheio de glória, com capacidade intelectual, moral e espiritual. "Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a, dominai sobre (...). Eis que vos tenho dado (...). Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom (...)".


Nesses primeiros capítulos do livro de Gênesis encontramos uma teologia do ser humano e uma teologia da terra. Na primeira, vemos que esse homem criado a semelhança de Deus, com o propósito de governar, gerar e trabalhar, com responsabilidade moral sobre toda a criação e diante de Deus, desobedece. A desobediência, que também pode ser vista como rebelião diante da autoridade de Deus, gera o pecado e este a morte. "(...), mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás".


Deus tinha avisado, a desobediência haveria de marcar o início do reino da morte na vida humana, como nos explica o apóstolo Paulo. "Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens porque todos pecaram". Espiritualmente morta, a humanidade é expulsa do paraíso e separada da presença de Deus. Essa situação leva a uma teologia da terra. O mundo deixa de ser "muito bom" e torna-se "maldito". 


Tal situação de morte e maldição tinha que ser quebrada. Mas a humanidade estava morta. Aquele que deveria dominar sobre a terra, tornou-se escravo. Só Deus poderia intervir. E é a esta intervenção planejada, programada e implementada pelo próprio Deus que chamamos de redenção. Assim, junto com a morte, vem o plano divino da redenção. E Deus fala a Satanás: "Porei inimizade entre você e a mulher, entre a sua descendência e o descendente dela. Ele lhe ferirá a cabeça e você lhe ferirá o calcanhar". 


A serpente mata ferindo o calcanhar, e o homem mata a serpente esmagando-lhe a cabeça. Esta imagem, Deus a transforma em realidade escatológica. A serpente é o próprio Satanás, que tem sua cabeça esmagada por Cristo. Esta é a primeira promessa de redenção feita pelo próprio Deus e assim entendida pela igreja cristã, como está escrito: "Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isso se manifestou o Filho de Deus, para destruir as obras do diabo".


Esse plano de redenção vai ser implementado através da formação, num longo processo histórico, do povo de Deus. A promessa de uma nação escolhida para servir e proclamar a redenção foi feita ao patriarca Abraão: "Olha para os céus e conta as estrelas, se é que o podes. E lhe disse: Assim será a tua posteridade. Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça". E Deus firma um pacto como Abraão. Na verdade, mais que um pacto, é uma aliança de graça, que se confirmará no correr de anos, séculos e milênios através de novos pactos.


Deus escolheu Abraão e sua família com a finalidade de abençoar todas as famílias da terra. Faz dele pai de uma multidão. "Ora, tendo a escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: em ti serão abençoados todos os povos", diria dois mil anos mais tarde o apóstolo Paulo.


Essa aliança com Abraão não se restringiria a uma nação, embora tivesse como ponto de partida da promessa os descendentes físicos do patriarca. Essa nação, situada num lugar estratégico, encruzilhada para povos do Ocidente e Oriente, situada entre as grandes nações da terra, receberá o nome de Terra de Israel, neto de Abraão, que deixará de ser enganador para tornar-se, pela graça do Deus Altíssimo, vencedor. "Já não te chamarás Jacó e sim Israel: pois como príncipe lutaste com Deus e os homens, e prevaleceste". 


Com Moisés, a libertação da escravidão no Egito e a entrada na terra prometida, esse povo de Deus começa a viver sua fase teocrática, através de juízes que ministram as leis dadas por Deus no monte Sinai. São tempos difíceis, de aprendizado nas coisas de Deus, de erro e acerto, de afastamento e aproximação de Deus. 


Ainda no Sinai, Deus já havia alertado para a responsabilidade da aliança. "Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz, e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos, porque toda a terra é minha". Como qualquer pacto, este também tinha dois lados: a promessa de Deus e a responsabilidade dos escolhidos. Era um pacto condicional, porque implicava por parte de Israel, ser "reino de sacerdotes, nação santa".


É importante notar, que com a criação da nação de Israel, Deus mostra que seu plano de redenção também está dirigido aos povos e nações. Egito, Moabe, Amom, Canaã, Fenícia, Assíria, Babilônia, Pérsia e todas as pequenas nações do mundo antigo deveriam ouvir a mensagem da redenção. Historicamente, vemos que isso acontece de forma marcante durante o reinado de Salomão, filho do rei Davi.


"Deu também Deus a Salomão sabedoria, grandíssimo entendimento e larga inteligência como a areia que está na praia do mar. (...) De todos os povos vinha gente a ouvir a sabedoria de Salomão, e também enviados de todos os reis da terra, que tinham ouvido da sua sabedoria". 


Se olharmos para Israel, podemos achar que o plano de Deus fracassou. Afinal, o período de juízes foi profundamente atribulado, o período do reino unido foi curto e a nação dividida acabou invadida e desterrada. Mas, apesar do fracasso humano, Deus foi um sucesso durante todo o período. Desde o Egito do faraó Sesostris III, do qual José, filho de Jacó, foi primeiro-ministro, até Hirão, rei de Tiro, que comerciava madeira com Salomão, todos os povos vizinhos e mesmo distantes tomaram conhecimento da existência do Deus único, criador dos céus e da terra.


Durante o reinado de Jeroboão II, rei de Israel, entre os anos 793-753 a.C., por exemplo, um profeta nacionalmente conhecido, oriundo de Gate-Hefer, povoado próximo a Nazaré, chamado Jonas ben Amitai, pregou na capital assíria, Nínive, durante o reinado de Assur-Dan. Tal pregação produziu um avivamento em direção ao monoteísmo como nunca se viu na história assíria.


Da mesma maneira, já durante o exílio, Daniel foi estadista durante os reinados de Nabucodonosor, Dario e Ciro. Testemunhou e profetizou para esses reis com tal ousadia e determinação, que Dario fez editar um decreto para todo o império babilônico, afirmando:


"Faço um decreto, pelo qual em todo o domínio do meu reino os homens tremam e temam perante o Deus de Daniel, porque ele é o Deus vivo e que permanece para sempre; o seu reino não será destruído e o seu domínio não terá fim. Ele livra e salva, e faz sinais e maravilhas no céu e na terra (...)".


Mas o plano de redenção da humanidade não podia restringir-se ao exclusivismo judaico. No tempo certo, a promessa que Deus fizera a Adão e Eva no paraíso "se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai".


A partir de agora, "é chegado o reino dos céus". O tão esperado reino messiânico começa a ser estabelecido. Com a chegada do Cristo tem início uma nova ordem. Essa nova ordem será traduzida em novo pacto, não mais com sangue de animais (sacrifícios rituais) ou mesmo de homens (circuncisão), pois "visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes (...). Jesus, porém, tendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, assentou-se à destra de Deus, aguardando daí em diante, até que seus inimigos sejam postos por estrado dos seus pés". 


Já não vivemos na sombra, estamos na luz, que é Cristo.


Em cima do alicerce se constrói o prédio. E esse prédio é construído não em cima da tradição do antigo Israel, mas sobre "uma pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será de modo algum envergonhado. (...) Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz. Vós, sim, que antes não éreis povo, mas, agora, sois povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas, agora, alcançastes misericórdia".


Agora, a redenção é plena para os gentios, sem a intermediação de Israel. Surgiu, com o novo pacto, uma nova nação, a Igreja de Cristo. Em Jesus se dá o cumprimento das antigas promessas feitas em Abraão. Quem são, então, os verdadeiros descendentes de Abraão, os verdadeiros beneficiados pelas promessas de Deus a ele?


São os crentes em Cristo em todas as nações. Abraão não só recebeu a justificação pela fé, mas recebeu esta benção antes de ser circuncidado. Abraão é o pai de todos aqueles que, sejam circuncidados ou não, seguem o exemplo de sua fé.


Os fiéis são chamados a assumir as responsabilidades de povo escolhido por Deus e de nação santa. Somos a semente de Abraão e as nações de toda a terra serão abençoadas por nossa definição missionária, apresentando a elas a redenção em Jesus Cristo, prometida ainda no Jardim do Éden. Pessoas de todas as nações são chamadas, como explicou Jesus:


"Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugar à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas".


Deus é o Deus da história. Seu próposito de redimir a humanidade do pecado foi planejado na eternidade passada e está em franco desenvolvimento. Hoje em dia, o crescimento da Igreja aumenta, proporcionalmente, mais rápido do que a população mundial. Diariamente, mais de 70 mil pessoas aceitam a redenção do pecado oferecida em Cristo Jesus.


"(...) vi e eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas mãos".


Passada a fase da Igreja, aberta com o derramar do Espírito Santo, conforme descrito em Atos 2, teremos o cumprimento pleno da promessa, que começa com a volta de Jesus Cristo e a construção, por Deus, de um novo universo.


"Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram (...)".


Enfim, os inimigos que, sorrateiramente, lá no Éden roubaram ao homem a glória, a vida e a comunicação perfeita com Deus, estão debaixo dos pés de Cristo. Onde está ó morte a tua vitória! Satanás e seus demônios foram lançados no lago de fogo. Tudo se fez novo. Há um novo homem, uma nova família, uma nova raça, uma nova terra. E uma benção de proporções universais, eterna. Este é o plano de Deus. 


É isso, a redenção está ao alcance da tua mão. 


Manda um abração pro Allende!


Dá-lhe Luís!


Do primo Daniel.



Capítulo 13



Astarote transformara o útero de Yasmin numa caverna maldita. O demônio rompera as cadeias da forma e do espaço. Como fêmea, nua e sensual, abriu uma gaveta e olhou dentro. Enrugado e ressecado, um feto jazia inerte. Seus olhos grandes estavam espantados, como se tivessem sido cegados por trevas eternas. Seu rosto chupado e suas mãos estendidas pareciam pedir perdão por alguma coisa. Astarote, cheio de ódio pela vida, pegou o feto no colo, cantou uma cantiga de ninar e depois perguntou:


-- Como vai esse serzinho desprezível?


Guardou o feto de novo no armário. Seu pensamento sobrevoou as antigas terras da Síria e Palestina. Viu homens e mulheres lhe prestando culto. Prostitutas cultuais oferecendo amor e fertilidade. Promessas de prosperidade e bom augúrio. Abriu uma segunda gaveta. Um tumor vermelho, do tamanho de um ovo de galinha, vivo e palpitante olhou para o demônio. Astarote riu e sibilou com raiva:


-- Os homens sabem que são frágeis diante da vida. Temem o desfecho. A morte, tumor querido, rasga a esperança. O meu prazer consiste em atapetar o caminho do inferno.


E fechou a gaveta de um golpe.


Abriu, então, uma terceira gaveta e tirou de lá as memórias vividas com os demônios Shedu e Nebo.


Eu me lembro quando caiu a primeira bomba. Afinal, poucas vezes em toda a minha existência participamos de uma destruição tão organizada. Durante anos, planejamos cada detalhe, tomamos posse de homens e mulheres de partidos políticos, pensamentos e sonhos aparentemente diferentes. Demônios da guerra chegaram aos milhares, dominaram os ambientes e planejaram todas as ações. Nós auxiliamos. A meta era incrementar o ódio a todos os níveis.


Eles eram quatro adultos e quatro crianças. Todos cobertos com chagas e doenças de pele, que produziam pus amarelo forte e cheiro de enxofre. Os cabelos tinham caído parcialmente, o que lhes dava uma aparência de bonecos maltratados. E todos tinham perdido os dentes.


Empestiados, fedorentos, maltrapilhos. Estavam imersos na angústia. As dores e o sofrimento apontavam como única saída o suicídio. Mas um poder que, sem dúvida, não vinha deles, os empurrava para frente. E foi essa vontade de viver, que os levou a se ajudarem mutuamente. A cidade parecia uma escultura derretida, com formas infernais, um silêncio de túmulo e um cheiro de podre que nunca desapareceu.


Toda a água de superfície estava contaminada e queimava como fogo, quando em contato com a pele ou os lábios. Havia uma pequena fonte subterrânea, um olho d’água. Eles se protegiam do sol e da chuva que queimava num galpão de madeira, sem janelas. Era a única sensação agradável que sobrara: a de estar na sombra.


Era o inferno. Uma parceria perfeita entre demônios e homens. Nós o criamos com toda a força de nossa obstinação e o fizemos pior e mais terrível que todas as lendas e histórias que ouvíramos antes. Não havia uma única árvore viva em dezenas de quilômetros. Nenhum pássaro cruzava os ares. Até os insetos tinham desaparecido. De vez em quando, encontravam debaixo de alguma pedra um escorpião solitário. E ficavam olhando com um misto de desespero e dor. O escorpião, para eles, era o irmão na sobrevivência. Muitas vezes, olhavam e começavam a chorar. Era um diálogo patético.


À noite, quando não fazia tanto calor, plantavam hortaliças e com cuidado regavam planta por planta. Cobriram a plantação com um telhado improvisado, para que não estorricasse sob o sol ou morresse com a chuva.


Ter relações sexuais era horrível e doloroso. O contato das carnes queimadas pela radiatividade, o cheiro que exalavam, a penetração num organismo doente e quase podre inviabilizava o amor. Além do mais, tinham medo de ter filhos deformados.


Eu, Shedu e Nebo realizávamos nosso ódio. Nós demônios odiamos a espécie humana. Se é impossível vencer quem os criou, ao menos resta-nos a possibilidade de destruir a criatura. Um ser feito do pó da terra, algo tão material, frágil e passageiro não merecia ter os privilégios que tem, nem mesmo a semelhança com aquele que os criou. Nós nos rebelamos sim. E somos movidos pelo ódio, nos movemos nas sombras, queremos a morte e em nós não há lugar para arrependimento. Nosso objetivo é roubar, matar e destruir. E naqueles dias conseguimos isso como nunca antes. Mas temos inimigos. Inimigos que se tornam poderosos porque se unem à fonte da vida, àquele que é senhor sobre todos, inclusive sobre nós. Esses inimigos são os que levam o nome de cristãos. É preciso destruir os humanos rapidamente. Caso contrário, em Cristo surgirá uma nova espécie e esta, sem dúvida, será superior e imortal.


Em meio àquela destruição apareceu, não sei de onde, protegido por anjos, um missionário. E ele contou muitas histórias para aqueles homens e mulheres, de olhos rasgados, que desconheciam a Jesus, o Cristo, e o reino de Deus.


-- Havia um lugar além do Universo, um mundo de estrelas, habitado pelo Deus único, criador e eterno. Ele estava rodeado de seres criados de excepcionais poderes. Acontece que esses seres não tinham o privilégio da reprodução, nem o prazer do gozo do mundo material. Eram apenas seres de poderes excepcionais.


Mas Deus decidiu criar uma nova espécie, com a qual pudesse se relacionar, manter parceria, que participasse de seus objetivos e metas. Mais do que criatura, filhos. Ligados ternamente ao Criador, que se recriando povoassem uma região sem fim destinada a eles: o Universo. Assim, em amor, Deus escolheu um mundo pequeno e, num jardim previamente plantado, criou um ser lindo, perfeito.


Astarote parou de pensar na guerra. Olhou para as paredes do útero e urrou: Shedu, Nebo, Astarote! Demônios de um mundo vazio! Senhores isolados! Perdidos na solidão eterna! Quanto mais gritava, mais disforme e contraído ficava. Parecia agora não uma jovem sensual e lasciva, mas uma mancha de sangue, grudada nas entranhas invadidas. Teatralmente, perguntou-se:


É possível apunhalar o amor?

Qual é mais digno:

O ódio de Medéia, a mãe,

Ou o amor de Édipo? 

Qual é mais ódio? Qual é mais amor?

O amor se esconde

Sob os escombros da cidade, na galeria inundada do metrô,

Atrás da máquina de Coca-Cola.

O velho amor dos séculos,

Repetido, gasto, se esconde,

Ele é xingado,

Virou merchandising,

Foi despido

E crucificado nu

Numa esquina da 5th Avenue.

É possível apunhalar o amor?


Sua gargalhada ecoou através de cada milímetro daquele corpo doente. E pensou que, à maneira de Nebo, o demônio das palavras mortas, ele também sabia fazer poesias.


Odeio. Odeio os ensinamentos do missionário. Mas, o que ele ensinou àqueles miseráveis, mortos-vivos do terror nuclear, fez deles seres novos. Salvos. Reconstruídos espiritualmente pela engenharia genética da vida eterna em Jesus, o Ungido de Deus. Em poucos anos, todos estavam mortos, adultos e crianças, mas ressuscitarão, livres e eternos. Belos. Novinhos em folha. E eu perdi. E me revolvo de ódio no sangue dessa desgraçada, só de pensar que perdi, que apodrecerei, eu também, fechado eternamente em trevas.




Capítulo 14



11 de setembro de 1973. Dez horas da manhã. Acordo. A noite foi longa e insone. Ficamos em treinamento até de madrugada. Tememos que o golpe possa ser deflagrado a qualquer momento. Allende se mostra indeciso. Deveria sublevar os cordões industriais e distribuir armas para os trabalhadores. Mas não quer romper a legalidade. Se o golpe vier agora não sabemos o que pode acontecer.


Muita gente da Unidade Popular confia na fidelidade das forças armadas ao governo. Mas parece que essa não é a experiência histórica...


Peguei a rádio Corporación. É Allende. Ele está falando.


-- Certamente, esta é a última oportunidade em que posso dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da rádio Magalhães. Minhas palavras não contêm amargura, mas decepção. Que elas sejam um castigo moral para aqueles que traíram seu juramento. Soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Marinha, mais o senhor Mendonza, general rasteiro que até ontem manifestava sua fidelidade e lealdade ao governo, e que também se autodenominou diretor geral de Carabineiros...


-- Diante desses fatos, só me resta dizer aos trabalhadores: não vou renunciar!


-- Em meio ao trânsito histórico, pagarei com minha vida a lealdade ao povo.


-- Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, e aqueles que serão perseguidos, porque no nosso país o fascismo já esteve muitas horas presente: nos atentados terroristas, voando pontes, cortando vias férreas, destruindo oleodutos e gasodutos, ante o silêncio daqueles que tinham a obrigação de cuidar. Estavam comprometidos. A história os julgará. Certamente, a rádio Magalhães será calada e o metal tranqüilo de minha voz já não chegará até vocês. Não importa. Continuarão a ouvi-la...


-- Sempre estarei junto a vocês. A lembrança que terão de mim será a de que fui um homem digno, fiel à pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve deixar-se arrasar, nem acribillar, mas também não pode ser humilhado. Trabalhadores de minha pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Outros homens superarão este momento cinza e amargo quando a traição pretender se impor. Fiquem sabendo que, muito mais cedo do que imaginam, de novo se abrirão as grandes avenidas por passará onde o homem livre, para construir uma sociedade melhor.


-- Viva Chile! Viva el pueblo! Vivan los trabajadores!


-- Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a felonia, a covardia e a traição.


Ele parou de falar, mas porque não chamou o povo a sair às ruas, a lutar. O que está acontecendo... Por que esse derrotismo?


Giro o dial. Uma voz metálica ameaça. Estarrecido ouço o general Augusto Pinochet ordenar a rendição incondicional do companheiro Allende, caso contrário a Força Aérea bombardeará o palácio La Moneda.


Corro até a janela e olho para o palácio. Imponente, de arquitetura espanhola, como será que ele tem coragem... Bombardear... Não, isso é impossível. Giro o dial de novo e pego o rádio-amador aqui ao lado, o da sede do partido socialista... Em meio a zumbidos, procuro uma melhor definição de onda.


Será que um golpe contra Allende pode ser bem-sucedido? É impossível prever. E o povo, e as fábricas, e os cordões industriais? Não irão às ruas, não vão resistir?


Peguei um diálogo... 


O Palácio de La Moneda está cercado por tropas do Exército. A polícia de Allende recebe uma proposta de rendição, transmitida por seus adidos militares.


O presidente rechaça a renúncia, diz que prefere morrer. Ninguém sabe ao certo o que está acontecendo. Allende suicidou-se, foi fuzilado?


-- Creio que a história do suicídio é falsa. Acabei de falar com o adido naval... Eu o encarreguei de convencer o chefe dos carabineiros a render suas tropas, do contrário vão ser bombardeadas, afirma o vice-almirante Patrício Carvajal ao general Pinochet.


-- De acordo. Acaba de me chamar o subsecretário da Marinha, e concorda que a exigência é rendição incondicional. Esse cara é traiçoeiro. Se quiser se render, que vá ao ministério da Defesa para se entregar aos comandantes.


Allende está acuado no palácio. Por telefone fala com o Ministério da Defesa. Só aceita dialogar no palácio presidencial.


-- O presidente da República só recebe em La Moneda, diz uma voz por telefone.


-- Esse cavalheiro está tentando ganhar tempo. Nós estamos nos mostrando débeis. Não aceito nenhum encontro. Encontro significa diálogo. A rendição é incondicional. É bem claro o que digo: rendição incondicional. Se quiser, ele que venha e se entregue. Se não, vamos bombardear o palácio o quanto antes.


Pinochet está irado. Seus pares concordam com ele.


-- De acordo... Em dez minutos, vamos bombardear La Moneda, declara o vice-almirante Patrício Carvajal.


Hawker Hunters, aviões de caça da Força Aérea chilena, surgem como pequenos pontos no horizonte. Vão crescendo e tomando forma como maldições que se materializam. E os mísseis, um, dois, três... Perco a conta, vão acertando o alvo. O centro da cidade é estremecido por um ruído rouco, que parece sair do próprio oco da terra. Um misto de terremoto e irrupção vulcânica, imagens tão dolorosas na vida desse povo que tanto se orgulha de sua democracia.


Paredes internas do palácio desabam. 


-- Pegue o ministério do Allende e vamos mandar todo mundo para fora do país. Já... De avião..., diz Carvajal.


-- Tem razão, se forem julgados ganham tempo..., concorda Pinochet.


-- Minha opinião é que esses senhores devem ser presos e mandados para qualquer lugar. No caminho, vão sendo eliminados...


O general Gustavo Leigh, comandante da Força Aérea, descarta qualquer possibilidade de julgamento. Para ele, comunista bom é comunista morto.


Os operadores de rádio, jovens cadetes, que estão transmitindo e sendo retransmitidos por todo o país por radioamadores, exclamam estarrecidos:


-- Esse sujeito é um facho.


Os assessores de Allende estão abandonando o palácio, a pedido do próprio presidente. Agitam uma bandeira branca. Pinochet quer saber se Allende integra o grupo.


-- E Allende? Saiu ou não saiu?


-- Não saiu, diz que o ministro Flores está incumbido de pedir condições decorosas para a sua rendição.


-- Não há nenhuma condição decorosa. Esse imbecil, o que ele está pensando? A única coisa que desejo é respeitar sua vida e já fazemos muito.


Pinochet aparentemente ainda trabalha com a idéia inicial de enviar Salvador Allende e seu círculo mais próximo para o exílio, num avião. Mas, a pressão de Leigh vai ganhando espaço entre os militares. Por volta do meio-dia, Pinochet concorda que seria preferível que o presidente morresse.


-- Mantemos a oferta de tirá-lo do país, mas o avião cai quando estiver voando.


-- De acordo... 


Sinistras gargalhadas ressoam na pequena sala de meu apartamento no Hotel London. Quantos estarão ouvindo a orquestração desse assassinato?


Após a saída dos assessores, o presidente Allende, dentro de La Moneda, é fuzilado por um grupo de militares. Informado, o Ministério da Defesa retransmite a notícia aos futuros dirigentes do país, entre eles Pinochet. Mas não contam a verdade.


-- Leigh e Pinochet, Carvajal. Há uma informação de dentro do La Moneda. Pela possibilidade de interferência, vou transmitir em inglês. They say Allende comitted suicide and is dead now. Digam-me se me entendem.


-- Entendido.


-- Entendido.


-- Em relação ao avião para a família, a medida não tem mais urgência.


-- Que joguem o corpo de Allende num caixão e o embarquem junto com a família. Que o enterro seja feito em outra parte, em Cuba. Até para morrer esse cara nos causou problemas.


São as últimas palavras de Pinochet. O zumbido aumenta, uma tristeza invade meu corpo. E eu começo a chorar. Convulsivamente. 




Nunca tinha visto nada igual. O céu ficou preto de fumaça e uma garoa fina começou a chorar sobre Santiago. Uma fuzilaria tomou conta de toda a cidade.


Não consigo sair do hotel. Chovia bala. Ao lado do hotel há uma sede do Partido Socialista. De lá de dentro matraqueia uma metralhadora e tiros esparsos de fuzil. A sede socialista esta cercada por militares entrincheirados.


Um helicóptero do Exército aparece, voa baixo, pára em frente ao prédio e abre fogo de metralhadora contra os resistentes. Fazem isso várias vezes. A impressão é que as balas vão arrebentar as paredes do hotel. É impossível por o pé na rua.


Quando chega a tarde recebo um telefonema da Base Aérea de Cerrillos. Anabella fala comigo chorando:


-- Estou presa, você precisa vir me soltar.


Passa pela minha cabeça que se eu não for soltá-la nunca mais vou vê-la. Mas eu tenho que ir para Indumet, tenho que juntar-me ao companheiros do comando León Trotsky, com os companheiros do MIR. Tenho que salvar Anabella... Ela vai ser fuzilada... 




No dia seguinte, a primeira coisa que faço, numa atitude totalmente tresloucada, é, esgueirando-me o melhor que posso, dirigir-me ao Quartel General do Exército. Chego lá e peço para falar com a assessoria de imprensa, como resposta recebo ordem de prisão:


-- Você é brasileiro? Está preso.


Não têm onde me por: me deixam no corredor, e aí fico de pé, de cara para a parede, desde o início da manhã até à tardinha, vigiado por um soldado. É o segundo dia do golpe, está uma confusão danada, e lá pela tarde o Quartel General começa a ser bombardeado por obuses. Os estilhaços caem dentro do corredor. Soldados correm para todos os lados. Trocam o soldado que me vigia e eu aproveito a confusão e dou uma ordem:


-- Leve-me imediatamente ao quinto andar, à assessoria de imprensa.


O soldado reclama, diz que não pode, mas diante de minha intransigência acaba concordando. Quando chego ao quinto andar, peço ao assessor de imprensa que providencie um jipe militar, porque tenho que ir à Base Aérea de Cerrillos liberar minha companheira que está presa, por engano.


-- Nós não podemos fazer isto, estamos sendo atacados, é impossível te dar um jipe. Volta aqui amanhã, talvez seja possível...


Concordo com ele e o soldado, ainda confuso, me deixa sair do quartel. Chegar ao hotel não será fácil. Há trincheiras ao longo da avenida e nas esquinas das ruas. Até um ponto do trajeto, trincheiras dos militares, e daí em diante trincheiras da resistência. Então eu levanto minha carteira de jornalista, e grito:


-- Sou jornalista.


Corro e pulo na trincheira. Converso um pouco, explico que tenho que seguir em frente e ouço:


-- Se você for em frente vai morrer, vão atirar em você.


Quando estou quase chegando à outra trincheira, volto a gritar:


-- Sou jornalista...


E assim à noite, por puro milagre, chego inteiro, são e salvo, ao hotel.




-- Hoje tenho que ir direto à Base Aérea de Cerrillos.


Ela que fica num bairro distante do centro da cidade. E eu passo o dia todo tentando encontrar algum transporte, mas não há condução. Há o toque de recolher, que proíbe às pessoas de transitarem pelas ruas. Tudo está parado. Às quase cinco da tarde passa um táxi, o único táxi que eu vira nesses dois dias. Quando o táxi chega próximo, lanço-me à frente dele e começo a gritar para que pare. Ele para. O taxista me diz que esta indo para casa, que fica longe, na cidade de Valparaíso. Então, ousadamente, dou-lhe voz de prisão:


-- Leve-me à Base Aérea de Cerrillos ou está preso.


Ele olha para mim, estupefato, e pergunta:


-- O senhor é da embaixada brasileira?


Sei que o governo brasileiro está apoiando o golpe militar, por isso não hesito:


-- Sou.


Então ele me leva até a base aérea. Quando chegamos, a base aérea está sendo bombardeada com morteiros. O táxi passa pelo portão principal, ouvimos os morteiros zumbindo sobre nossas cabeças e explodindo lá na frente. Rapidamente, os militares da Aeronáutica nos cercam. Cai uma garoa forte.


Ordenam que eu desça do carro. Fico no meio de um gramado, nas guaritas há soldados armados com fuzis e metralhadoras. Dão uma segunda ordem:


-- Tira a roupa, toda a roupa.


Debaixo da garoa fina, tiro a roupa e mergulho numa imagem ancestral: a do judeu nu, massacrado, prestes a ser fuzilado.


Um oficial sai de uma das guaritas e pede o meu passaporte. Explico que vim buscar minha companheira. Debaixo da chuva fina, ele abre o passaporte, que é falsificado, olha-o rapidamente e me devolve. Manda chamar Anabella. Ela vem chorando, em prantos. Caminhamos para o táxi, mas o motorista, que também chora de raiva, por ter sido enganado, nega-se a nos levar de volta. Dirijo-me ao oficial e digo:


-- Este homem não quer nos levar de volta.


O oficial responde:


-- Tem que levar, vocês não podem ficar aqui.


E como entramos, assim saímos da base aérea, debaixo de explosões e do matraquear de metralhadoras.




Quando chegamos ao hotel, Anabella conta que na manhã do dia 11 de setembro, a fábrica onde trabalhava resistiu ao golpe até acabar toda a munição. Então, os militares da Aeronáutica, que tinham cercado a fábrica, invadiram as instalações, prenderam todos, encostaram os dirigentes na parede da rua e os fuzilaram na frente dos companheiros. Ela por ser loura e brasileira foi poupada. Afinal, não sabiam de quem se tratava. Foi levada para a Base Aérea e presa. No breve interrogatório, disse que era mulher de um jornalista brasileiro, correspondente da agência Dispatch News Service, de Washington. Teve, então, o direito de dar um telefone, aquele que eu atendi no hotel.


No hotel o ambiente está alvoroçado. A televisão apresenta uma lista de pessoas procuradas, exortando à população a denunciar todos os estrangeiros. Os militares deram dois dias para todos os estrangeiros se entregarem. Eu, logicamente, não vou me entregar.


Anabella e eu sabemos que podemos ser denunciados, mas não temos escolha. Vamos passar esta noite rasgando e jogando pela janela nossos textos e manuais de guerrilha urbana.


Acordo sobressaltado. Estão esmurrando a porta. Vou abrir. Levo uma coronhada na cara. É tudo muito rápido. Abro os olhos, em meio ao sangue que escorre pelo meu rosto, e levo outra coronhada. A cada coronhada eu desmaio e quando volto a mim sou golpeado de novo. Levam tudo o que podem levar, roupas, máquina de escrever, livros. Presos, somos obrigados a caminhar pelas ruas, com as mãos na nuca, numa estranha procissão. Depois nos jogam num ônibus, deitados. Começam então a maltratar Anabella. Chutando-na e pisoteam. Eu grito:


-- Não façam isso, ela está grávida.


É mentira, mas eles param.


Não sabemos para onde estão nos levando. Uma hora depois, com o ônibus cheio de presos, somos obrigados a descer diante de um quartel: é o regimento Tacna. Vemos muita gente machucada, uns segurando seus braços, quebrados, outros se arrastando, todos sujos de sangue, assim como eu. Minha cabeça dói terrivelmente. Sinto o rosto inchado e quente. Minha camisa está empapada de sangue, já meio endurecido. A sensação é muito desagradável. Parece que estou vivendo um pesadelo. O sentido de realidade se perde no meio desse cenário de morte.


Nos largam numa espécie de cozinha. Eu caio no chão e apesar de muito machucado tenho uma sensação de alívio. O chão de ladrilho é frio e transmite uma sensação agradável ao meu corpo. Estou vivo. Isso é o que importa.


Eu e Anabella estamos quietos. Quebro o silêncio e arrisco uma frase de humor:


-- Não se preocupe. Eles não têm nada contra você. Na semana que vem você já estará em Copacabana, no maior bronze.


Sei que vou morrer. Vão me meter uma bala na cabeça e vão me jogar numa vala qualquer. Estou calmo. Minha intimidade com Deus está anda precária, por isso não oro, nem peço nada. Mas gostaria que Anabella não fosse morta, gostaria muito que ela pudesse voltar para o Rio de Janeiro, ali para o Posto 4, para curtir a praia que ela tanto gosta.


O que pensa um homem antes de morrer? Sempre tive essa curiosidade. E agora estou tendo a oportunidade de matá-la. Não penso em nada. É como se o meu cérebro estivesse vazio e os pensamentos passassem como se fossem nuvens rápidas antes da tempestade. Nem mesmo posso dizer que estou plenamente consciente.


Mais do que pensar, eu sinto. Sinto os ladrilhos frios no meu rosto inchado. E isso é agradável. Sinto o meu corpo imóvel, pesado, como se estivesse pressionando o chão. Tão pesado que parece que vai entrar chão adentro. E isso também é agradável. 


Talvez essas sejam as sensações de um feto. Ele não pensa, sente. E o tempo já não existe. Estou aqui faz minutos ou horas? Não sei...  


Chega um coronel e nos informa:


-- Vocês vão ser fuzilados no início da tarde.


O tempo é um redemoinho e eu estou mergulhando nele. Num momento estamos cansados, machucados, tontos, noutro, somos agarrados, levantados, levados. Nos colocam no início de uma fila, umas oito pessoas caminhando para o paredón.


De repente, um tenente me chama. Eu estava na fila, caminhando, e ele me chama. Saio da fila, faço um sinal para Anabella me acompanhar. E o oficial me pergunta:


-- Você foi preso com muito material subversivo, é verdade?


Digo que é verdade, que sou jornalista, e que tudo foi comprado. Ele diz que também tem muitos daqueles livros em casa. Sinto uma empatia profunda com aquele jovem. Estou diante de um oficial de esquerda. Apenas nos olhamos. Olhares cúmplices de companheiros que viram seus sonhos queimarem nas chamas do La Moneda.


Enquanto isso, os três ouvimos atrás de nós os tiros que abatem os outros companheiros.


Somos então mandados para interrogatório. Combino rapidamente com Anabella que apenas eu falarei para não entrarmos em contradição. Explico aos militares que estou estudando na Universidade do Chile, que amo esse país e que nunca me passou pela cabeça sair do Chile. É um interrogatório leve. Vêem que sou correspondente estrangeiro, e me entregam um salvo-conduto para que tenha livre trânsito.


Estamos apenas com a roupa do corpo. Não temos nada. Mas a vida é o bem maior, mesmo quando temos apenas a roupa do corpo. Andarillhamos pelo centro de Santiago, até que descobrimos um hotel perto da Plaza de Armas. O hotel está cheio de conhecidos, velhos companheiros, exilados brasileiros. Dudu, filho do Zé Maria, é um deles. Será que esse é o melhor lugar para um brasileiro se esconder?


Do hotel telefono para Nova Iorque, para um grande amigo meu, Peter, que pertence ao Socialist Workers Party. Não consigo falar com ele, peço então a uma amiga que trabalha no consulado brasileiro em Nova Iorque para entrar em contato com Peter. Explico a situação e peço para me mandarem duas passagens de avião Santiago/Buenos Aires e dinheiro via ordem de pagamento. Ficamos no hotel. Dois dias depois, o dinheiro chega. Compramos roupas. Quando os aeroportos abrirem chegarão também as passagens.



Capítulo 15



O centro de Santiago se transformou num parlamento. Não podemos ouvir claramente as vozes porque estão amordaçadas, podemos ouvir os pensamentos que se debatem em meio aos clamores de justiça e liberdade.


Cada homem e mulher da Unidade Popular, não importa o matiz político, tem o coração partido e sente-se abandonado pelo destino. Ninguém fala, cada um olha para o outro como se vivesse o momento maior da traição. O terror vai tomando conta dos corpos e mentes.


Aqui, no minicentro formado por Ahumada com Huérfanos, convertido nos últimos dias na tribuna pública do medo e do silêncio, podemos ouvir os pensamentos da gente que lutou e morreu na tragédia dos últimos dias. 


O cenário de todos esses dias é parecido. Jovens, homens adultos, velhos, desgrenhados, ensangüentados, rasgados, mutilados vagueiam como cadáveres, procurando não chamar a atenção. Ninguém fala alto, ninguém reparte panfletos ou jornais. Não se vêem grupos ou círculos. Ninguém escuta argumentos, ninguém polemiza.


Ninguém é partidário. Somos todos apolíticos, sombras que vagueiam pelo centro.


A poucos metros de cada um de nós, sempre em grupos, piquetes de Carabineiros sob comando de oficiais observam se alguém traspassa a fronteira do bom senso e abre a boca.


Pensamos. Olhamos o companheiro que passa e pensamos. Ele entende e nos responde. Todos falamos, a comunicação é plena e solidária, apesar do medo. Sem som, sem voz, nos comunicamos. 


Eis o espelho do Chile atual, medo e esperança, dialogam sem pedir permissão a ninguém, e nós nos aproximamos de um desses grupos e escutamos com atenção. 


Preste você também a máxima atenção a esses corações e ouvirá o clamor que não é audível para os assassinos da liberdade. Simplesmente preste atenção.


Ligue seu gravador, de forma dissimulada, para evitar inibições. Venha para esse parlamento de rua, o lugar natural da democracia.


Não se preocupe com os nomes. Aqui ninguém tem títulos, somos todos peatones.




Cena Um

Diálogo Um



Jovem triste, sujo de sangue, tem as mãos quebradas. Fala pausado como se estivesse no meio de um sonho.


-- No dia 11 de setembro eu cumpria minhas funções como membro do dispositivo da segurança do presidente Salvador Allende. Esse dia era muito importante para mim, porque era o dia do meu casamento.


Homem baleado no peito à queima roupa. Tem a camisa e a parca verde oliva queimadas.


-- Nossos planos em caso de golpe sempre levaram em conta duas variáveis: uma ruim e outra péssima. A péssima era de que o grosso das forças armadas apoiasse o golpe. A ruim era de que o povo tivesse armas e alguns regimentos permanecessem leais ao governo.


Senhora de 55 anos chora o filho desaparecido.


--Digam aos militares que o povo não vive só de pão, queremos nossos filhos...


Moça desgrenhada, enlameada, vestida de noiva, com um buquê na mão...


-- Pão nós temos... Eles não vieram para nos dar, mas para tirar o que temos...




Cena Um

Diálogo Dois



Jovem triste...


-- Estive de guarda do lado de fora do quarto do Dr. Allende até as duas da manhã. Depois chegou alguém para me render. Lembro-me, ao me deitar, que vi garrafas de Coca-Cola e sanduíches guardados por meus companheiros para a minha despedida de solteiro.


Operário, veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas.


-- Eles estão falando em mudanças. Que tipo de mudanças? As poblaciones foram invadidas, estão entrando em tudo que é casa. Prendendo pessoas, desaparecendo com elas. Essa mudança nós não queremos.


Velho, de óculos, é o único que esboça algo parecido com um sorriso. 


-- Não percam a esperança, a coisa está começando. Muita água ainda vai rolar. 


Partidários da Unidade Popular em coro.


-- É isso mesmo. Está havendo resistência em tudo que é lado, principalmente nas poblaciones... O que eles dizem não interessa, não podemos fazer o jogo deles. 


Homem baleado no peito...


-- Faço parte da direção do Grupo de Amigos do Presidente -- GAP e sempre defendi a idéia de que em caso de golpe, o presidente deveria criar uma zona liberada, num dos subúrbios operários da cidade. A partir daí, com uma equipe de rádio portátil, organizar a resistência...




Cena Um

Diálogo Três



Um homem destoa do ambiente, está bem vestido e porta com elegância uma bengala trabalhada.


-- E se as mudanças forem boas? E se houver mais empregos?


Velho, de óculos...


-- Os milicos darem trabalho? Você está louco. Eles vão dar chumbo... 


Jovem triste...


-- A situação política e militar estava se complicando e eu sabia que meu casamento tinha que acontecer rápido, no máximo em meia hora...


Um homem destoa do ambiente...


-- Mas porque o desemprego estava aumentando? Porque ninguém queria investir aqui? Porque não tinha estabilidade. Quem sabe agora, pode haver alguma mudança e o dinheiro de fora começa a entrar?


Velho, de óculos...


-- Diga-me senhor, com toda a sinceridade. Quem produz o desemprego nesse país? É o governo ou los momios, que fecharam fábricas, mandaram suas fortunas para a Suíça e para Miami? A estabilidade que eles querem vai ser construída em cima do seu cadáver.


Velho, de óculos...


-- O setor privado chileno está de braço dado com os militares.


Homem baleado no peito...


-- Allende preferiu ir para o palácio La Moneda. Isso condicionou nossos planos.


Velho, de óculos...


-- E há mais um detalhe. O investimento estrangeiro procura é mão de obra barata, não quer fazer a felicidade de ninguém.




Cena Dois

Diálogo Um



Jovem triste...


-- Fui despertado às cinco e meia da manhã. Falam que a Marinha, em Valparaíso, estava rebelada. Preparei-me para o combate e fomos para o Palácio La Moneda. A comitiva especial do GAP, que normalmente era composta por quatro carros foi reforçada, com mais duas camionetas de cabine dupla. Não havia nenhum movimento no centro da cidade. Eram sete da manhã. 


Velho, de óculos...


-- Minha pergunta é, você é ou não é de esquerda?...


Um homem destoa do ambiente...


-- Vou responder com toda a honestidade: não posso dizer que sou dessa esquerda que está aí. Sempre votei nulo.


Velho, de óculos...


-- Então, colega, chegou a hora de fazer alguma coisa...


Moça desgrenhada


-- As armas falam mais alto que as urnas...


Homem baleado no peito...


-- Temos 140 fuzis, com 120 tiros por fuzil. E algumas bazucas, com seis projéteis por bazuca. Não dá para mais de um combate.




Cena Dois

Diálogo Dois



Índio mapuche, forte, troncudo. 


-- Os militares vão repetir a truculência de Custer e sua tropa. Vão exterminar os mapuches. Para nós não há alternativa. É lutar ou ser escravizado. 


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- É, os mapuches não têm opção.


Senhora de 55 anos...


-- Temos que pensar em função de nossas crianças. O que elas vão herdar.


Jovem triste...


-- Eu e Isabel íamos nos encontrar no cartório às nove e trinta.


Moça desgrenhada...


-- Mas o que podemos herdar se anos de democracia, uma tradição chilena, foram queimados com o La Moneda?


Um homem destoa do ambiente...


-- E de que valeu votar na Unidade Popular?


Velho, de óculos...


-- Valeu votar e eleger Allende. Era a exigência do momento. Não foi errado. Agora, é o momento de usarmos outras armas...


Homem baleado no peito...


-- Os trabalhadores estão na periferia da cidade, nos cordões industriais e nas poblaciones. Temos que cobrir Vicuña Mackenna, San Joaquín, Cerrillos, Pan-americana Norte... Conseguir mais munição e avançar sobre o La Moneda.


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- Concordo, só não sei como... Está todo mundo preso. Quem vai liderar a oposição?


Um homem destoa do ambiente...


-- Pior ainda, tem gente fugindo como rato. As embaixadas estão cheias. Todos os estrangeiros que estavam aqui para nos ajudar estão fugindo. Inclusive, muita gente da UP...


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- Se ficarmos parados vai ser pior ainda. Eles vão atacar os mapuches, proibir os partidos, fechar os sindicatos, os jornais. Só vai ficar quem disser sim.




Cena Dois

Diálogo Três



Homem baleado no peito...


-- São seis e meia. Nossa central de rádio informa que está havendo um levante militar.


Um homem destoa do ambiente...


-- Tudo começou o governo de Frei. A democracia cristã fez o papel de Pilatos, lavou as mãos e entregou a Unidade Popular aos seus algozes.


Índio mapuche, forte, troncudo.


-- Companheiro, a luta de classes não começou com Frei. Allende fez o que pode.


Moça desgrenhada...


-- Os governos democráticos sempre reprimiram os trabalhadores, mas esses militares nem democráticos são...


Um homem destoa do ambiente...


-- É, mas, em agosto a própria Câmara dos Deputados começou a sinalizar a favor de um golpe de estado.


Índio mapuche, forte, troncudo.


-- Concordo em parte. Não que a Câmara fosse confiável, mas o que ela estava dizendo é que Allende estava implodindo o estado de direito...


Um homem destoa do ambiente...


-- É, a Câmara dizia que Allende violou a garantia constitucional do direito de propriedade, amparou invasões de fazendas, de indústrias, de comércios, e que por essa via pretendia construir a nova área estatal da economia.


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- Que isso aconteceu é verdade, agora se foi da vontade de Allende eu não sei.


Senhora de 55 anos...


-- Estou de acordo. A esquerda tentou construir um Chile socialista. Ao menos tentou. Mas e a direita, o que fez em toda a história da República?


Moça desgrenhada...


-- Não me interessa o que fez a direita. Ela tem sido minha inimiga. A Unidade Popular pode ser uma mierda, mas é o meu governo.


Homem baleado no peito...


-- Eu estava em casa dormindo. Dei um longo abraço em minha mulher. Ela foi para seu posto de combate, na central de comunicações do partido socialista e eu para o meu.


Jovem triste...


-- Tenho 23 anos e hoje é o dia do meu casamento. Deveria ser o dia mais feliz e importante de minha vida. Estou todo molhado, tive que ajudar a apagar o incêndio do palácio, depois do bombardeio.




Cena Três

Diálogo Um



Jovem triste...


-- O primeiro som de combate foi impressionante. O martelar de uma metralhadora pesada. Eu estava na rua Morandé, 80. Minha missão era cuidar da porta. Quebramos os vidros e respondemos ao fogo. Vimos um tanque e a tropa atrás. Os soldados não queriam avançar, mas os oficiais os obrigavam, sob a ameaça das armas.


Moça desgrenhada...


-- Estão falando em milhares de mortos. Em gente boiando no Mapocho?


Senhora de 55 anos...


-- Será que pode haver gente tão desalmada assim, a ponto de matar trabalhadores indefesos?


Moça desgrenhada...


-- Matam sim e com apoio de gente de fora, com a participação descarada dos Estados Unidos, do financiamento que deram aos camioneiros, aos comerciantes e agora aos militares...


Homem baleado no peito...


-- Recebi ordens de acompanhar o responsável pelo armamento, para tirar e distribuir as armas que estavam num depósito perto do parque Cormo.


Moça desgrenhada...


-- A senhora tem alguma esperança em Pinochet?


Senhora de 55 anos...


-- Não falei de Pinochet, falei de gente desalmada...


Moça desgrenhada...


-- Mas e Pinochet? Gosta ou não gosta?


Senhora de 55 anos...


-- Você está me provocando... Claro que não gosto.


Moça desgrenhada...


-- Senhora, não estou lhe acusando. Mas ele assassinou meus sonhos...


Senhora de 55 anos...


-- E os meus também...


Jovem triste...


-- Só às duas e meia da tarde tomei consciência de que estava vivendo um absurdo. Estava no meio de um combate aberto com os militares, era bala para tudo quanto é lado, e foi aí que resolvi telefonar para Isabel e dizer que nosso casamento deveria ser adiado. Mas que nos veríamos à noite. Eu estava embaixo de uma escrivaninha, com um telefone de um lado e o fuzil de outro.


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- O que você acha de Allende?


Um homem destoa do ambiente...


-- Eu que pergunto: em que deu seu governo?


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- Mas por que vocês se juntaram à oposição e à direita?


Um homem destoa do ambiente...


-- Eu não me juntei à direita, por isso tenho direito de perguntar: quem derrubou a Unidade Popular? A intolerância dos militares ou Allende e a fome?


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- Allende ia colocar seu cargo a disposição do povo, ia chamar a um plebiscito e por isso as forças armadas deram o golpe de Estado. Essa é a verdade.


Um homem destoa do ambiente...


-- Então foram os militares, e eu não tenho nada com isso...


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- Vocês se aliaram à direita civil...


Um homem destoa do ambiente...


-- De acordo com sua lógica quem não apóia a UP é de direita. Eu não apoiei a UP e não sou de direita.


Operário, veste um macacão manchado de graxa...


-- O único que a democracia cristã fez foi confundir as pessoas. E agora, com quem a democracia cristã pretende governar? Ou vocês ficam com a democracia ou ficam com a ditadura. Não dá para ser Pilatos a vida inteira.


Um homem destoa do ambiente...


-- Sabe de uma coisa, o que passou, passou. Temos que construir um novo Chile.


Partidários da Unidade Popular em coro.

 

--¡Se siente, se siente, Allende está presente!


Jovem triste...


-- Isabel mora perto dos Correios, em Puente, e escutou as rajadas de metralhadoras. Sua primeira reação foi dizer que eu ia morrer. Pedi então para falar com seu irmão, um companheiro, um amigo extraordinário.


“Olha, estamos no meio do golpe”.


“Então estamos indo para o La Moneda, com reforços”. 


“Não sejam loucos. É impossível, estamos isolados”.


Homem baleado no peito...


-- Além das armas do parque Cormo, temos outros depósitos, o mais importante deles está na rua Chile-Espanha, perto de Irarrázaval.




Cena Três

Diálogo Dois



O jovem triste e o homem baleado contam suas histórias. Todos ouvem em silêncio.


-- Ele entendeu. Era uma despedida. Senti novamente de sentido de missão que me levara ao GAP. O combate é uma situação de violência física extrema, todos os sentidos estão dirigidos à luta, você pode morrer a qualquer momento. Não há tempo para pensar no que foi sua vida. Não há tempo. 


-- Estou no depósito da rua Chile-Espanha faz meia hora. Algo está errado, ainda não chegou a unidade que deveria pegar as armas.


-- Às quatro da tarde, subimos para o segundo andar do palácio, porque o primeiro estava em chamas. Aí caímos todos. Quando eu ia ser morto, um sargento disse que ia usar-me como escudo, porque dos prédios muitos companheiros estavam resistindo.


-- Resolvo eu mesmo carregar uma camioneta. Deixo a casa e vou para Irarrázaval com o responsável pelo depósito. O trânsito está pesado, todo mundo parece querer chegar em casa o mais rápido possível. Vejo uma camioneta parada. Jogo o carro em cima dela, desço, ponho a mauser na cabeça do condutor e dou ordem para que saia da camioneta.


-- Eu e os companheiros, usados como escudos, fomos obrigados a deitar na Morandé. Pensei que fossem nos esmagar com o tanque. Mas, de repente, aparece um jovem oficial, de porte senhoril, de luvas de couro e nos diz: “Senhores, vocês têm feridos? Mandei buscar uma ambulância para retirar seus feridos”.


-- Meu colega pegou a camioneta e saiu cantando pneus.


-- Logo chegou a ambulância. E também um ônibus da Marinha, que nos levou ao regimento Tacna.


-- Eu fiquei, no meio daquele trânsito congestionado. Enfiei a mão no carro, peguei uma metralhadora AKA e gritei: “Todo mundo no chão”. As pessoas obedeceram. Lançaram-se de cara no chão. Eu estava louco. Usava uma parca verde oliva e estava completamente despenteado.


-- Quando desci do ônibus, um oficial me apoiou, segurando meu braço. Depois pegou uma bandagem e vedou o sangramento à bala no braço de um companheiro. Foi o único oficial que nos permitiu ir ao banheiro à noite. Todos os outros nos torturaram.


-- Depois de carregar a camioneta, fomos para o segundo depósito, na avenida La Feria, perto de San Miguel. Eu de carro, fazendo a escolta da camioneta.


-- Fomos colocados em galpões e cavalariças, junto com os membros da presidência da República. Nos deixaram de pernas abertas, mãos na nuca e nos disseram que íamos ser fuzilados à meia-noite. Depois às cinco da manhã.


-- Às dez e meia, voltei para nosso QG, com todas as armas de quatro depósitos.


-- Havia mudança de guarda a cada duas horas. E a cada duas horas éramos surrados.


-- A comissão política ordenou que déssemos início aos combates. São onze horas e somos 130 pessoas. Estamos diante da alternativa péssima: todas as forças armadas apoiaram o golpe.


Um homem de quarenta anos entra na conversa. Tem as mãos sujas de pólvora. Seu olhar está fixo, em alguma coisa que a gente não vê.


-- Eu também combati no palácio La Moneda. Sou do GAP da Regional Santiago Centro.


Jovem triste...


-- Eu não queria morrer aos 23 anos. E o que mais me incomodava era que eu não tinha filhos. Nem um menino, nem uma menina, que pudesse contar a minha história...


Partidários da Unidade Popular em coro.

 

-- Pinochet assassino! Pinochet assassino!


Homem baleado no peito...


-- Fomos para Indumet. Juntos com a direção MIR começamos a programar um ataque conjunto. Chega, então, outro companheiro da direção do GAP e informa que o La Moneda está pedindo ajuda. Temos que romper o cerco do palácio.  


Homem de quarenta anos...


-- O presidente foi morto por sete homens, um capitão, um tenente e cinco soldados. Recebeu seis tiros, dois no pescoço e quatro no tórax. Tiros de metralhadora CIC 7.62, norte-americana. Eram quase duas da tarde.


Homem baleado no peito...


-- Carabineiros começam a cercar Indumet. Rubém sai e atira nos carabineiros. Começa o tiroteio. 


Homem de quarenta anos...


-- Discutimos se devíamos nos render ou não. Eu fiquei e com outros companheiros, pegamos o corpo do presidente, colocamos a faixa presidencial, e ao lado do corpo deixamos o seu fuzil AKM 7.62, presenteado por Fidel Castro.


Partidários da Unidade Popular em coro.

 

-- Pinochet assassino! Pinochet assassino!




Cena Três

Diálogo Três



O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, continua sua história. Todos ouvem em silêncio.


A rua é sem saída e um ônibus de carabineiros bloqueia a rua. Começam a chegar tanques. Vou tentar romper o cerco pela retaguarda. Explodimos uma parede e saímos por trás. Estamos em San Joaquín, em frente à Coca-Cola.


León é metralhado. Companheiros o levam de volta para Indumet. Os carabineiros invadem Indumet e fuzilam León e mais dois operários.


Cruzamos San Joaquín e nos enfiamos por uma rua ao lado da Coca-Cola. 

  

Nosso comando chegou a La Légua. Um caminhão de carabineiros tentou nos interceptar, mas respondemos com tiros de bazuca. O caminhou incendiou. Pegamos todas as armas deles e fizemos um pequeno discurso exortando a que lutassem ao lado do povo e não contra ele.


Ocupamos a praça de La Légua. Tomamos um caminhão de bombeiros, ligamos a sirene e passamos de población em población chamando a população a resistir e a defender o governo.


Em La Légua deixamos uma companheira que estava ferida no tornozelo. Ficou com alguns moradores de uma población e se salvou.

   

Chegamos a Sumar, que era um dos locais de concentração, segundo nosso plano de resistência. Vários companheiros estavam chegando de Tomás Moro. Um deles com uma camioneta cheia de armas.


O companheiro Lozada, da comissão política, dirigiu nossa reorganização. Tínhamos 200 homens armados.


Somos então atacados por um helicóptero Puma do Exército. Ele desce à altura das copas das árvores e começa a nos metralhar. Uns cem companheiros respondem de imediato. O Puma é atingido e afasta-se rapidamente, mortalmente ferido.


Tentei derrubá-lo com um tiro de bazuca ou de M60, mas já não tínhamos essas armas à mão. No meio dessa confusão, pensei na frase do Che: “Se a revolução é verdadeira, ou se vence ou se morre”. 

   

Para não sermos um alvo fácil e concentrado, criamos um comando para juntar-se aos trabalhadores de Mademsa—Madeco. Eu fui com esse comando.


No caminho, por La Légua, fomos atacados por unidades de carabineiros. Como a ordem era chegar a Mademsa—Madeco, um grupo ficou combatendo, enquanto outro, cerca de 50 companheiros, rompeu o cerco e seguiu seu caminho.


Chegamos a nosso destino e aí criamos nossa segunda defesa perimetral, com carros, rádio e o controle de vários quarteirões.


Às três da tarde tive uma reunião com o interventor da fábrica, um companheiro socialista. Conseguimos pão e víveres para os combatentes. Fui então informado pela central de rádio que até aquele momento não havia nenhuma comunicação das regionais.


Os militares tinham ocupado todas as rádios.


O homem de quarenta anos, que tem as mãos sujas de pólvora e o olhar fixo em alguma coisa que a gente não vê, interrompe:


--Às quatro e vinte fugimos pela rua Teatinos.


O operário, que veste um macacão manchado de graxa e arrasta com dificuldade uma das pernas, completa:


-- Eis um homem digno.


O homem que foi baleado no peito, à queima roupa, que tem a camisa e a parca verde oliva queimadas, termina sua história. Volta-se a fazer silêncio.


Às seis da tarde chega minha mulher. Que alegria vê-la viva. Nos abraçamos, nos beijamos, e a coloco para combater ao meu lado.


Saímos com duas camionetas cheia de companheiros para romper o cerco que havia em La Légua e também para aliviar a guerra que acontecia dentro de meu peito. Nesse instante, aviões de reconhecimento voavam baixo sobre La Légua. Fomos metralhados. Não havia como seguir.

   

Esperamos que chegasse a noite para saber o que acontecia em Santiago e no resto do país. Fomos informados que Allende morrera no La Moneda. Não acreditamos. Nossas informações vinham através das rádios controladas pelos militares e não acreditávamos nessas informações.


Falamos por telefone com diferentes regiões de Santiago para ver o que estava acontecendo. Soubemos que os companheiros de La Légua enterraram suas armas e tentam voltar às suas casas. Vão para o sul de Santiago sem armas...   


Está confirmada a morte de Allende. Do comando que partiu de Sumar restam poucos homens...


Partidários da Unidade Popular em coro.

 

-- Pinochet assassino! Pinochet assassino!


A curta distância, mas sem entrar no debate, um casal de jovens de Vitacura comenta em voz baixa: “Deixa que gritem. Durante muito tempo fomos a maioria silenciosa, mas o passado não voltará, caminhamos para o futuro”. 




Meu olhar passeia triste pelo microcentro de Santiago. Nem uma viva alma. É um espaço vazio habitado por fantasmas...



Capítulo 16



A meu Senhor e meu Deus, como estou triste, como é profundo este abismo. Os anos vão passar, mas esses dias não descolarão de minha retina. Tudo isso ficou colado em minha alma. Estou morto.


Ontem, eu e Anabella vimos carabineiros retirando corpos que flutuavam no rio Mapocho. Pessoas olhavam, mas logo aceleravam o passo. Há um medo generalizado. Ninguém acredita no que está acontecendo. Todos queremos acordar desse pesadelo.


Anabella olha pela janela do quarto. Acende um cigarro e continua olhando. Suas mãos finas tremem. Fora dois detalhes, que traduzem a angústia e o desespero, parece uma estátua diante da janela. As mãos tremem e umas poucas lágrimas rolam em seu rosto.


Não sei o que dizer.


Os pensamentos revoam. Distantes passam voando e vão embora. Meu pai, minha mãe... É como se minha alma procurasse pousar em algum lugar mais não encontrasse terra firma. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Nunca algo foi tão verdadeiro.


Senhor Deus perdoa minha auto-suficiência. Não sou o dono do mundo, embora maus conselheiros me digam o contrário. Não sou o senhor da guerra, nem sei manejar as palavras com a habilidade com que um samurai maneja sua espada.


Levanto-me, vou até a janela. Fico ao lado de Anabella. Ponho a mão no seu ombro, num pequeno gesto de carinho. Sei que não tenho o direito de quebrar esses momentos de reflexão. São os primeiros em muitos dias. Não tivemos tempo, não paramos para pensar, apenas fugimos da morte. Estamos mortos.


Lá fora alguns operários com britadeiras fazem um buraco no meio da rua. Que cena terrível. Homens de cera cavando sepulturas no asfalto. O ruído atravessa nossos sentidos e esmaga nossos sentimentos. Não existe realidade, não existe sonho, tudo é pesadelo. Sinto uma dor forte no estômago. Tiro a mão do ombro de Anabella e me sento de novo.


Senhor Deus, o passado pesa como uma bigorna presa aos meus pés. Nada sei do meu presente e nem imagino qual será meu futuro, mas reconheço que sou pó, um grão de areia em meio a uma vastidão que não criei. Perdoa minha luxúria. Perdoa o sofrimento que causei a Yasmin.


Olho para a janela e Anabella continua paralisada. Meus olhos estão mareados pelas lágrimas. Anabella parece Yasmin. Sei que são diferentes, mas o foco se perde e Yasmin está diante da janela olhando os operários de cera, que cavam sepulturas no asfalto.


-- Luís, a guerra não acabou. Allende está morto, parte da liderança da Unidade Popular está presa, mas a guerra não acabou.


-- Yasmin, querida Yasmin, ainda que você tenha razão, ainda que a vitória seja tão certa como o sol que brilha lá fora, estou morto. Vejo um pôr-do-sol de chumbo e dias de vales de ossos secos, como a sepultura que os operários estão cavando lá fora.


-- Não seja pequeno-burguês. Você está vivo e tem muita coisa a fazer. A realidade é maior que o seu pesadelo.


Ah! Onde estará Yasmin, Túlio, Luiz Carlos, Nélson, Vânio...


Senhor Deus, se Yasmin está certa, levanta-me. Aceito a guerra se for a tua guerra. Talvez seja essa a oração de minha mãe. Liberta-me da violência e livra-me do mal.


Oh! Senhor Deus cuida também dos amigos e parentes de



    Luis Bernardo Acevedo Andrade  

     Pedro Gabriel Acevedo Gallardo  

     María Eliana Acosta Velasco  

     Miguel Angel Acuña Castillo 

     Juan Antonio Acuña Concha  

     Ejidio Roespier Acuña Pacheco  

     René Roberto Acuña Reyes  

     José Salvador Acuña Yañez  

     José Domingo Adasme Nuñez.

     Francisco Eduardo Aedo Carrasco  

     Luciano Aedo Hidalgo  

     Manuel Jesús Aedo Landeros  

     Luis Evangelista Aguayo Fernandez  

     Héctor Domingo Aguayo Olavarria.

     Santiago Domingo Aguilar Duhau  

     Manuel Antonio Aguilera Aguilera  

     Stalin Arturo Aguilera Peñaloza  

     Desiderio Aguilera Solis  

     Juan Antonio Aguirre Ballesteros  

     Antonio Aguirre Vasquez  

     José Ernesto Agurto Arce  

     Jorge Aillon Lara  

     Cherif Omar Ainie Rojas  

     Salvador Alamos Rubilar.

     Eduardo Enrique Alarcon Jara  

     Cecil Patricio Alarcon Valenzuela  

     Miguel Del Carmen Albornoz Acuña  

     Alberto Albornoz Gonzalez  

     Alejandro Albornoz Gonzalez  

     Daniel Alfonso Albornoz Gonzalez  

     Felidor Exequiel Albornoz Gonzalez  

     Guillermo José Albornoz Gonzalez  

     Hernán Fernando Albornoz Prado  

     Juan Humberto Albornoz Prado  

     Jaime Aldoney Vargas  

     Eduardo Gustavo Aliste Gonzalez  

     Nelson Cristián Almendras Almendras 

     Luis Jorge Almonacid Dumenes  

     Mirta Mónica Alonso Blanco  

     Jorge Ladio Altamirano Vargas  

     María Inés Alvarado Borgel  

     Juan Emilio Alvial Mondaca  

     Cardenio Ancacura Manquian  

     Alejandro Ancao Paine  

     María Angélica Andreoli Bravo 

     Jorge Elías Andronicos Antequera 

     Juan Carlos Andronicos Antequera 

     Lucio Hernán Angulo Carrillo 

     Antonio Aninao Morales 

     José Luis Appel De La Cruz 

     Carlos Alberto Aracena Toro

     Roberto Enrique Aranda Romero 

     Pablo Ramón Aranda Shmied 

     Dignaldo Herminio Araneda Pizzini 

     Luis Alberto Araneda Reyes 

     José Gilberto Araneda Riquelme 

     Rafael Eduardo Araneda Yevenes 

     Jorge Antonio Aranguiz Gonzalez 

     Santiago Edmundo Araya Cabrera 

     Alfonso Del Carmen Araya Castillo 

     Jorge Manuel Araya Mandujano 

     Rafael Segundo Araya Villanueva 

     Manuel Heriberto Araya Zavala 

     Bernardo Araya Zuleta 

     Ariel Arcos 

     Guillermo Jesús Arenas Diaz 

     Víctor Daniel Arevalo Muñoz 

     Alberto Vladimir Arias Vega 

     Manuel Jesús Arias Zuñiga 

     Diana Frida Aaron Svigilsky 

     Luis Sergio Aros Huichacan 

     Levi Segundo Arraño Sancho 

     Gabriela Edelweiss Arredondo Andrade 

     María Del Carmen Arriagada Jerez 

     Rubén David Arroyo Padilla 

     Juan Luis Ascencio Solis 

     José Ramón Ascencio Subiabre 

     José Braulio Astorga Nanjari 

     Enrique René Astudillo Alvarez 

     José Luis Astudillo Celedon 

     Omar Enrique Astudillo Rojas 

     Ramón Osvaldo Astudillo Rojas 

     Vicente Atencio Cortes 

     Angel Omar Athanasiu Jara 

     Pablo Germán Athanasiu Laschan 

     Alejandro Juan Avalos Davidson 

     Oscar Eduardo Avello Avello 

     Celso Avendaño Alarcon 

     César Osvaldo Del Carmen Avila Lara 

     Roberto Iván Avila Sepulveda 

     Juan Bautista Avila Velasquez 

     Oscar Luis Del Carmen Aviles Jofre 

     José Oscar Badilla Garcia 

     Ambrosio Eduardo Badilla Vasey 

     José Luis Baeza Cruces 

     José Lucio Bagus Valuenzela

     José Emiliano Balboa Benitez 

     Tito Roberto Balboa Chavez 

     Jenny Del Carmen Barra Rosales 

     Luis Alberto Barraza Ruhl 

     José Guillermo Barrera Barrera 

     Antonio Arturo Barria Araneda 

     Guido Ricardo Barria Bassay 

     Héctor Alejandro Barria Bassay 

     Manuel Enrique Barria Navarro 

     Juan Esteban Barrientos Aedo 

     Osvaldo Segundo Barriga Gutierrez 

     Alejo Barriga Nahuelhual 

     Juan Bautista Barrios Barros 

     Alvaro Miguel Barrios Duque 

     Jaime Antonio Barrios Meza 

     Manuel Eduardo Bascuñan Aravena 

     Juan Bautista Bastias Riquelme 

     Luis Alberto Bastias Sandoval 

     Guillermo Roberto Beausire Alonso 

     Manuel Mario Becerra Avello 

     Wilson Alfredo Becerra Cifuentes 

     Mario Omar Belmar Soto 

     José Claudio Beltran Curiche 

     José Ignancio Beltran Meliqueo 

     María Isabel Beltran Sanchez 

     Lincoyan Yalu Berrios Cataldo 

     Emilio Betanzo Ortega 

     Silvio Francisco Bettancourt Bahamondes 

     Patricio Biedma Schadewaldt 

     Jacqueline Del Carmen Binfa Contreras 

     Manuel Orlando Bioley Ojeda 

     Juan Andrés Blanco Castillo 

     Domingo Bartolome Blanco Tarres 

     Vicente Ramón Blanco Ubilla 

     Manuel Antonio Bobadilla Bobadilla

     Ismael Rolando Bocaz Muñoz 

     Octavio Julio Boettiger Vera 

     Cecilia Miguelina Bojanic Abad 

     José Héctor Borquez Levican 

     Miguel Angel Arturo Brant Bustamante 

     Rubén Bravo Bravo 

     Francisco Javier Bravo Nuñez 

     Guillermo Alberto Bravos Rivas 

     Juan De La Cruz Briones Perez 

     Alan Roberto Bruce Catalan 

     Amelia Ana Bruhn Fernandez 

     José Gaston Buchhorsts Fernandez 

     Carmen Cecilia Bueno Cifuentes 

     René Burdiles Almonacid 

     Osvaldo Burgos Lavoz 

     Elba Burgos Saez 

     Alfredo Arnaldo Busch Oyarzun 

     Guillermo Del Carmen Bustamante Sotelo 

     María Teresa Bustillos Cereceda 

     José Ignancio Bustos Fuentes 

     Ricardo Segundo Bustos Martinez 

     Sonia De Las Mercedes Bustos Reyes 

     Jaime Mauricio Buzio Lorca 

     Tomás Orlando Cabello Cabello 

     José Angel Cabezas Bueno 

     Rubén Guillermo Cabezas Pares 

     José Hugo Cabezas Pérez 

     Segundo Enrique Cabezas Pérez 

     Antonio Sergio Ernesto Cabezas Quijada 

     Pedro Antonio Cabezas Villegas 

     Juan De Dios Cabreras Figueroa 

     Sergio Enrique Cadiz Cortez 

     Luis Nelson Cadiz Molina 

     Jaime Del Transito Cadiz Norambuena 

     Francisco Javier Calderon Nilo 

     Jorge Eduardo Calderon Otaiza 

     José Calderon Ovalle 

     Mario Eduardo Calderon Tapia 

     Lorenzo Maximiliano Calfil Huichaman 

     Eduardo Alejandro Alberto Campos Barra 

     José Alejandro Campos Cifuentes 

     Sebastían Hernaldo Campos Diaz 

     Rubén Antonio Campos Lopez 

     José Gabriel Campos Morales 

     Heriberto Campos Vines 

     Anselmo Antonio Cancino Aravena 

     Adán Del Carmen Cancino Armijo 

     Eduardo Canteros Prado 

     Clara Elena Canteros Torres 

     Manuel Fernando Canto Gutierrez 

     Ramón Alfredo Capetillo Mora 

     Horacio Neftali Carabantes Olivares 

     Raúl Iván Carcamo Aravena 

     Saúl Sebastían Carcamo Rojas 

     Rudy Carcamo Ruiz 

     Víctor Modesto Cardenas Valderrama 

     Marcelino Cardenas Villegas 

     Luis Caupolican Carfurquir Villalon 

     Ricardo Eduardo Carrasco Barrios 

     Mario Sergio Edrulfo Carrasco Diaz 

     Carlos Alberto Carrasco Matus 

     Abel Carrasco Vargas 

     Iván Sergio Carreño Aguilera 

     Cristina Magdalena Carreño Araya 

     Enrique Del Angel Carreño Gonzalez 

     Manuel Antonio Carreño Navarro 

     Jorge Ernesto Carrion Castro 

     Cristian Victor Cartagena Perez 

     Manuel Filamir Cartes Lara 

     Enrique Armando Carvallo Lira 

     Mario Eduardo Casanova Pino 

     Gabriel Castillo Cerna 

     Nestor Hernán Castillo Sepulveda 

     Gabriel Del Rosario Castillo Tapia 

     José Eugenio Castro Alvarez 

     Juan Isaías Castro Brito 

     Daniel Antonio Castro Lopez 

     José Ignancio Castro Maldonado 

     Héctor Guillermo Castro Saez 

     Cecilia Gabriela Castro Salvadores 

     Pedro Daniel Castro Sepulveda 

     Oscar Manuel Castro Videla 

     Isidoro Segundo Castro Villanueva 

     Manuel Ramón Castro Zamorano 

     Celindo Catalan Acuña 

     Hernán Eusebio Catalan Escobar 

     Samuel Alfonso Catalan Lincoleo 

     Pedro Luis Catalan Ojeda 

     Manuel Elías Catalan Paillal 

     Reinaldo Catriel Catrileo 

     Carlos Alberto Cayuman Cayuman 

     Pedro Pascual Cea Cabezas 

     Mauricio Carmelo Cea Iturrieta

     Juan Angel Cendan Almada

     Horacio Cepeda Marinkovic

     Humberto Patricio Cerda Aparicio

     César Domingo Cerda Cuevas

     Osvaldo Del Carmen Cerda Huard

     Manuel Antonio Cerda Meza

     Pedro Antonio Cerda Zuñiga

     Luis René Cespedes Caro

     Alfonso Cespedes Pinto

     Julio Chacon Hormazabal

     Juan Rosendo Chacon Olivares

     Arturo Chacon Salgado

     Roberto Salomón Chaer Vasquez

     Juan Guillermo Chamorro Arevalo

     Manuel Natalio Chamorro Gomez

     Nicolás Chanez Chanez

     Alfonso René Chanfreau Oyarce

     Ismael Dario Chavez Lobos

     Juan Eleuterio Cheuquepan Levimilla

     Luis Alberto Cid Cid

     Cristino Humberto Cid Fuentealba

     Washington Cid Urrutia

     Sergio Eduardo Jose Cienfuegos Cavieres

     Gastón Eduardo Cifuentes Norambuena

     Jean Ives Claudet Fernandez

     Germán René Cofre Martinez

     José Lorenzo Cofre Obadilla

     Eleuterio Ramón Colpihueque Lican

     Alberto Colpihueque Navarrete

     Marcelo Renan Concha Bascuñan

     Hugo Antonio Concha Villegas

     José Enrique Conejeros Troncoso

     Héctor Hernán Contreras Cabrera

     Sergio Contreras Contreras

     Luis Omar Contreras Godoy

     Abundio Alejandro Contreras Gonzalez

     Claudio Enrique Contreras Hernandez

     Luis Eduardo Contreras Leon

     Carlos Humberto Contreras Maluje

     Héctor Manuel Contreras Rojas

     Humberto Cordano Lopez

     Luis Alberto Cordero Muñoz

     Raúl Guillermo Cornejo Campos

     Luis Angel Ariel Cornejo Fernandez

     José Abel Coronado Astudillo

     Juan Elías Cortes Alruiz

     Juan Segundo Cortes Cortes

     Juan Manuel Cortes Fernandez

     Gastón De Jesús Cortes Valdivia

     Manuel Edgardo Del Carmen Cortez Joo

     José Enrique Corvalan Valencia

     Plutarco Enrique Coussy Benavides

     Eduardo Segundo Crisostomo Salgado

     Crisostomo Toro Manuel Humberto

     Roberto Cristi Melero

     Lizandro Tucapel Cruz Diaz

     Carlos Luis Cubillos Galvez

     Domingo Clemente Cubillos Guajardo

     José Bernardino Cuevas Cifuentes

     José Emiliano Cuevas Cuevas

     Miguel Cuevas Pincheira

     Pedro Curihual Paillan

     Mauricio Segundo Curiñanco Reyes

     Nelson Wladimiro Curiñir Lincoqueo

     Sergio D'Apollonio Peterman

     Carlos Jacinto D'Apollonio Zapata

     Luis Herminio Davila Garcia

     Luis Carlos De Almeida

     Bernardo De Castro Lopez

     Félix Santiago De La Jara Goyeneche

     José Luis De La Maza Asquet

     Guillermo Del Canto Ramirez

     José Enrique Del Canto Rodriguez

     Carmén Angélica Delard Cabezas

     Gloria Ximena Delard Cabezas

     Alfonso Domingo Diaz Briones

     Carmen Margarita Diaz Darricarrere

     Luis Alfredo Diaz Jeria

     Víctor Manuel Diaz Lopez

     Rafael Alonso Diaz Meza

     Lenin Adán Diaz Silva

     Jose Abel Diaz Toro

     Muriel Dockendorff Navarrete

     Gustavo Efraín Dominguez Jara

     Tomás Rogelio Dominguez Jara

     Uldarico Donaire Cortez

     Jaime Patricio Donato Avedaño

     Sara De Lourdes Donoso Palacios

     Jorge Humberto D'Orival Briceño

     Jacqueline Paulette Drouilly Yurich

     Patricio Del Loreto Duque Orellana

     Alfredo Duran Duran

     Carlos Patricio Duran Gonzalez

     Luis Eduardo Duran Rivas

     Luis Enrique Elgueta Diaz

     Martín Elgueta Pinto

     Antonio Elizondo Ormachea

     María Teresa Eltit Contreras

     Jaime Emilio Eltit Spielman

     Gerardo Antonio Encina Perez

     Edgardo Enriquez Espinoza

     Luis Errazuriz Veliz

     Claudio Jesús Escanilla Escobar

     Elisa Del Carmen Escobar Cepeda

     Daniel Francisco Escobar Cruz

     Ruth María Escobar Salinas

     Alejandro Escobar Vasquez

     Rodolfo Alejandro Espejo Gomez

     Pedro Segundo Espinoza Barrientos

     Jaime Del Carmen Espinoza Duran

     Jorge Hernán Espinoza Farias

     Eliana María Espinoza Fernandez

     Luis Alfredo Espinoza Gonzalez

     Mamerto Eulogio Espinoza Henriquez

     Jorge Enrique Espinoza Mendez

     Modesto Segundo Espinoza Pozo

     Rebeca María Espinoza Sepulveda

     Basilio Eugenio Eugenio

     Gustavo Manuel Farias Vargas

     Carlos Patricio Fariña Oyarce

     Mario Fernandez Acum

     Luis Anselmo Fernandez Barrera

     Julio César Fernandez Fernandez

     Mario Fernandez Gonzalez

     Sergio Fernando Fernandez Pavez

     Carlos Julio Fernandez Zapata

     Santiago Abraham Ferrus Lopez

     Oscar Enrique Fetis Sabelle

     Sergio Iván Fetis Valenzuela

     Joel Fierro Inostroza

     Raúl Marcial Figueroa Burkhardt

     Eliodoro Figueroa Gonzalez

     Miguel Antonio Figueroa Mercado

     Carlos Segundo Figueroa Zapata

     Albano Agustín Fioraso Chau

     José Orlando Flores Araya

     César Agusto Flores Baeza

     María Olga Flores Barraza

     Carol Fedor Flores Castillo

     José Edilio Flores Garrido

     Lorenzo Flores

     Julio Fidel Flores Perez

     Sergio Arturo Flores Ponce

     Sergio Raúl Flores Reyes

     José Segundo Flores Rojas

     Nelson Del Carmen Flores Ugarte

     Carlos Fonseca Faundez

     Alberto Mariano Fontela Alonso

     José Hernán Fredes Garcia

     José Freire Medina

     Isaías José Fuentealba Calderon

     Francisco Javier Fuentealba Fuentealba

     Jorge Isaac Fuentes Alarcon

     José Alberto Fuentes Fuentes

     Luis Hernán Fuentes Gonzalez

     Juan De Dios Fuentes Lizama

     Juan Francisco Fuentes Lizama

     Luis Fernando Fuentes Riquelme

     Humberto De Las Nieves Fuentes Rodriguez

     Raúl René Fuentes Vera

     Sergio Manuel Fuenzalida Loyola

     Gonzalo Iván Fuenzalida Navarrete

     Pablo Gac Espinoza

     Nelsa Zulema Gadea Galan

     Luis Alberto Gaete Balmaceda

     Gregorio Antonio Gaete Farias

     Carlos Enrique Gaete Lopez

     Alonso Fernando Gahona Chavez

     Sergio Alberto Gajardo Hidalgo

     Carlos Alfredo Gajardo Wolff

     Domingo Octavio Galaz Salas

     Andrés Tadeo Galdamez Muñoz

     María Galindo Ramirez

     Néstor Alonso Gallardo Aguero

     Juan Angel Gallegos Gallegos

     Guillermo Galvez Rivandeneira

     José Adolfo Gamonal Suarez

     Segundo Nicolás Garate Torres

     Carlos Miguel Garay Benavides

     Héctor Marcial Garay Hermosilla

     Pedro Juan Garces Portigliati

     José Felix Garcia Franco

     José Andrés Garcia Lazo

     Benancio Bernabe Garcia Ovando

     Vicente Irael Garcia Ramirez

     Alfredo Gabriel Garcia Vega

     Dagoberto Enrique Garfias Gatica

     Máximo Antonio Gedda Ortiz

     Juan Antonio Gianelli Company

     José Domingo Godoy Acuña

     José Mariano Godoy Acuña

     José Nazario Godoy Acuña

     Julio César Godoy Godoy

     Carlos Enrique Godoy Lagarrigue

     Francisco Baltazar Godoy Roman

     Luis Alberto Godoy Sandoval

     Susana Del Rosario Gomez Andrade

     Sergio Arturo Gomez Arriagada

     Luis Alberto Gomez Cerda

     Ilucinio Gonzalez Bustamante

     Teofilo Zaragozo Gonzalez Calfulef

     Guillermo Gonzalez De Asis

     José Gilberto Gonzalez De La Torre

     Ignacio Orlando Gonzalez Espinoza

     José Emilio Gonzalez Espinoza

     Héctor Genaro Gonzalez Fernandez

     Eduardo Alberto Gonzalez Galeno

     Luis Enrique Gonzalez Gonzalez

     Ramiro Carlos Gonzalez Gonzalez

     Hernán Galo Gonzalez Inostroza

     María Elena Gonzalez Inostroza

     Luis Francisco Gonzalez Mariquez

     Luis Genaro Gonzalez Mella

     Víctor Manuel Gonzalez Millones

     Claudio Enrique Gonzalez Nuñez

     Elías Dagoberto Gonzalez Ortega

     Hugo Arner Gonzalez Ortega

     Francisco Juan Gonzalez Ortiz

     Carlos Manuel Gonzalez Osorio

     Juan Rosendo Gonzalez Perez

     Rodolfo Valentin Gonzalez Perez

     Iselcio Enrique Gonzalez Sandoval

     Francisco Eduardo Gotoschlich Cordero

     Fernando Grandon Galvez

     Jorge Arturo Grez Aburto

     Juan Segundo Guajardo Pizarro

     Luis Julio Guajardo Zamorano

     Orlando Patricio Guarategua Quinteros

     Luis Alberto Guendelman Wisniak

     Angel Gabriel Guerrero Carrillo

     Carlos Eduardo Guerrero Gutierrez

     Enrique Renato Guerrero Muñoz

     José Manuel Guggiana Espoz

     José Fernando Gutierrez Ascencio

     Artemio Segundo Gutierrez Avila

     Daniel Antonio Gutierrez Ayala

     Marcelo Del Carmen Gutierrez Gomez

     Oscar Armando Gutierrez Gutierrez

     María Isabel Gutierrez Martinez

     Luis Sergio Gutierrez Rivas

     Jack Eduardo Gutierrez Rodriguez

     Sergio Enrique Gutierrez Seguel

     Julio Esteban Henriquez Bravo

     Juan Isaías Heredia Olivares

     Miguel Andrés Heredia Vasquez

     Eduardo Enrique Hernandez Concha

     Carlos Segundo Hernandez Flores

     Nelson Hernandez Flores

     Oscar Nibaldo Hernandez Flores

     José Abraham Hernandez Hernandez

     Manuel Jesús Hernandez Inostroza

     Gaspar Antonio Hernandez Manriquez

     Gonzalo Hernandez Morales

     Daniel Hernandez Orrego

     Juan Humberto Hernandez Zaspe

     Alicia Mercedes Herrera Benitez

     Jorge Antonio Herrera Cofre

     Rosalindo Delfin Herrera Muñoz

     José Manuel Herrera Villegas

     Aurelio Enrique Hidalgo Mella

     Sergio Jorge Hidalgo Orrego

     Arturo Enrique Hillerns Larrañaga

     José Santos Hinojosa Araos

     Luis Armando Horn Roa

     Roberto Huaiqui Barria

     Gervasio Héctor Huaiquil Calviqueo

     Joel Huaiquiñir Benavides

     Reinaldo Segundo Huentequeo Almonacid

     Domingo Huenul Haiquil

     José Ricardo Huenuman Huenuman

     Oscar Lautaro Hueravillo Saavedra

     Enrique Lelio Huerta Corvalan

     Samuel Huichallan Llanquilen

     Fabián Enrique Ibarra Cordova

     Luis Antonio Ibarra Duran

     Rolando Antonio Ibarra Lopez

     Juan Ernesto Ibarra Toledo

     Héctor Inostroza Paredes

     Iván Sergio Insunza Bascuñan

     Leonardo Antonio Iribarren Iribarren

     Juan Félix Iturra Lillo

     Alexei Vladimir Jaccard Siegler

     José Hipólito Segundo Jara Castro

     José Juan Carlos Jara Herrera

     Mario Jara Jara

     Luis Adolfo Jaramillo Jaramillo

     Reinaldo Luis Jeldres Riveros

     Francisco Del Rosario Jeldres Vallejos

     Víctor Jerez Meza

     Enrique Jeria Silva

     Raúl Luis Jimenez Barrera

     Luis Carlos Jimenez Cortes

     Claudio Raúl Jimeno Grendi

     Mauricio Edmundo Jorquera Encina

     Guillermo Jorquera Gutierrez

     Maria Isabel Joui Petersen

     Yactong Orlando Juantok Guzman

     Mario Jesús Juica Vega

     George Max  Patrick Klein Pipper

     Alberto Segundo Kruteler Quijada

     Ramón Isidro Labrador Urrutia 

     María Cecilia Labrin Saso

     Luis Humberto Lagos Cid

     Sergio Hernán Lagos Hidalgo

     Victoriano Lagos Lagos

     Ogán Esteban Lagos Marin

     Sergio Humberto Lagos Marin

     Gloria Esther Lagos Nilsson

     Oscar Reinaldo Lagos Rios

     Ricardo Ernesto Lagos Salinas

     Luis Armando Lagos Torres

     Jorge Andrés Lamana Abarzua

     Marcelino Rolando Lamas Largo

     Gabriel Valentín Lara Espinoza

     Eduardo Enrique Lara Petrovich

     Fernando Antonio Lara Rojas

     José Miguel Larenas Inostroza

     Luis Alejandro Largo Vera

     Frida Elena Laschan Mellado

     Juan De Dios Laubra Brevis

     Aroldo Vivian Laurie Luengo

     José Renato Lazcano Campos

     Luis Rodolfo Lazo Maldonado

     Samuel Del Tránsito Lazo Maldonado

     Ofelio De La Cruz Lazo 

     Carlos Enrique Lazo Quinteros 

     Samuel Altamirano Lazo Quinteros 

     Alonso Lazo Rojas 

     Luis Segundo Lazo Santander 

     Luis Alberto Leal Arratia 

     Sergio Hernán Leal Diaz 

     Heriberto Del Carmen Leal Sanhueza 

     Juan Alberto Leiva Vargas

     Bernardo Mario Lejderman Konujowska

     Sergio Francisco Leon Espinoza

     José Patricio Del Carmen Leon Galvez

     Elsa Victoria Leuthner Muñoz

     Raúl Wladimir Leveque Carrasco

     Rodolfo Iván Leveque Carrasco

     René Andrés Linsambart Rodriguez

     Manuel Lizama Cariqueo

     José Domingo Llabulen Pilquinao

     Mónica Ghislayne Llanca Iturra

     Juan Manuel Llanca Rodas

     Leandro Llancaleo Calfuquen

     Nelson Nolberto Llanquilef Velasquez

     José Julio Llaulen Antilao

     Antonio Llido Mengual

     Luis Gastón Lobos Barrientos

     Luis René Lobos Gutierrez

     Mariano Loncopan Caniuqueo

     Mario Alfonso Lopez Aliaga

     Jaime Eugenio Lopez Arellano

     Violeta Del Carmen Lopez Diaz

     Ricardo Octavio Lopez Elgueda

     Arazati Ramón Lopez Lopez

     Bernabé Del Carmen Lopez Lopez

     Ernesto Alfredo Lopez Lopez

     José Ricardo Lopez Lopez

     Abraham Lopez Pinto

     Leopoldo Lopez Rivas

     María Cristina Lopez Stewart

     Nicolás Alberto Lopez Suarez

     Carlos Enrique Lorca Tobar

     Edgardo Orlando Loyola Cid

     Juan Rodrigo Mac Leod Trever

     Alfonso Segundo Macaya Barrales

     Gumercindo Fabian Machuca Morales

     Zacarías Antonio Machuca Muñoz

     María Cecilia Magnet Ferrero

     Luis Omar Mahuida Esquivel

     Juan Bosco Maino Canales

     Luis Bernardo Maldonado Avila

     Carlos Germán Maldonado Torres

     Juan Apolinario Mamani Garcia

     Juan Segundo Mancilla Delgado

     Adolfo Ariel Mancilla Ramirez

     Omar Lautaro Manriquez Lopez

     Luis Anibal Manriquez Wilden

     Luis Alberto Marchant

     Rodolfo Arturo Marchant Villaseca

     Jorge Rogelio Marin Rossel

     Hugo Tomás Martinez Guillen

     Eugenia Del Carmen Martinez Hernandez

     Agustín Alamiro Martinez Meza

     Francisco Herminio Martinez Noches

     Guillermo Albino Martinez Quijon

     Fermin Del Carmen Martinez Rojas

     Marco Antonio Martinez Traslaviña

     Víctor Alfonso Martinez

     Héctor Pedro Maturana Espinoza

     Luis Emilio Gerardo Maturana Gonzalez

     Juan Bautista Maturana Perez

     Washington Hernán Maturana Perez

     Samuel Eduardo Maturana Valderrama

     René Del Rosario Maureira Gajardo

     Sergio Adrian Maureira Lillo

     José Manuel Maureira Muñoz

     Rodolfo Antonio Maureira Muñoz

     Sergio Miguel Maureira Muñoz

     Segundo Armando Maureira Muñoz

     Mario Osvaldo Maureira Vasquez

     Rodrigo Alejandro Medina Hernandez

     Gaspar Medina Medina

     Santos David Melgarejo Rojas

     José Andrés Meliquen Aguilera

     Alejandro Robinson Mella Flores

     Pedro Segundo Mella Vergara

     Mario Ramiro Melo Pradenas

     Nalvia Rosa Mena Alvarado

     René Ernesto Menares Diaz

     Ireneo Alberto Mendez Hernandez

     Juan Aniceto Meneses Reyes

     Pedro Juan Merino Molina

     Ulises Jorge Merino Varas

     Víctor Fernando Mesina Araya

     Bernando Samuel Meza Rubilar

     Manuel Jesús Mieres Toro

     Juan Milla Montuy

     Pedro Millalen Huenchuñir

     Jaime Pablo Millanao Caniuhuan

     William Robert Millar Sanhueza

     Pedro Gonzalo Millas Marquez

     Gregorio Mimica Argote

     Dario Francisco Miranda Godoy

     Carlos Enrique Miranda Gonzalez

     Eduardo Francisco Miranda Lobos

     Francisco Miranda Miranda

     Oscar Hernan Enrique Miranda Segovia

     Iván Octavio Miranda Sepulveda

     René Enrique Missene Burgos

     Juan Rene Molina Mogollones

     José Roberto Molina Quezada

     Waldemar Segundo Monsalvez Toledo

     Sergio Sebastian Montecinos Alfaro

     Carlos Roberto Montecinos Urra

     Enrique Segundo Montero Montero

     Juan José Montiglio Murua

     Raúl Gilberto Montoya Vilches

     Eugenio Iván Montti Cordero

     Luis Desiderio Moraga Cruz

     Juan Héctor Moraga Garces

     Mario Ruben Morales Bañares

     Edgardo Agustín Morales Chaparro

     Rubén Eduardo Morales Jara

     Víctor Hugo Morales Mazuela

     Armando Edelmiro Morales Morales

     Rosa Elena Morales Morales

     Miguel Luis Morales Ramirez

     José Luis Morales Ruiz

     Pedro Nolasco Morales Ruiz

     Newton Larry Morales Saavedra

     Mario Fernando Moreno Castro

     Germán Rodolfo Moreno Fuenzalida

     Julio Hernán Moreno Pulgar

     Carlos Alberto Morgado Oyarce

     Iván Nelson Moya Zurita

     Nicanor Moyano Valdes

     Moisés Eduardo Mujica Maturana

     Jorge Hernán Muller Silva

     Eliseo Del Carmen Muñoz Alarcon

     Leopoldo Daniel Muñoz Andrade

     José Miguel Muñoz Bizama

     José Eulalio Muñoz Concha

     Manuel Del Carmen Muñoz Cornejo

     Hernán Rigoberto Muñoz Gonzalez

     Jorge Rodrigo Muñoz Mella

     Heraldo Del Carmen Muñoz Muñoz

     Manuel Jesus Muñoz Muñoz

     Julio Orlando Muñoz Otarola

     Jorge Hernán Muñoz Peñaloza

     Mario Enrique Muñoz Peñaloza

     Ramiro Antonio Muñoz Peñaloza

     Silvestre René Muñoz Peñaloza

     Onofre Jorge Muñoz Poutays

     Raúl Antonio Muñoz

     Luis Gregorio Muñoz Rodriguez

     Wuilzon Gamaniel Muñoz Rodriguez

     José Apolinario Muñoz Sepulveda

     Luis Alberto Muñoz Vasquez

     Luis Gonzalo Muñoz Velasquez

     Juan Miguel Mura Morales

     Vitalio Orlando Mutarello Soza

     Jorge Patricio Narvaez Salamanca

     Arturo Alejandro Navarrete Leiva

     Fernando Alfredo Navarro Allendes

     Manuel Jesús Navarro Salinas

     Sergio Del Carmen Navarro Schifferli

     Miguel Nazal Quiroz

     Cesar Arturo Emiliano Negrete Peña

     José Ligorio Neicul Paisil

     Marta Silvia Adela Neira Muñoz

     Carlos Alberto Nieto Duarte

     Luis Fernando Norambuena Fernandois

     Domingo Antonio Norambuena Inostroza

     Luis Fernando Novoa Aguilera

     Luis Francisco Pascual Nuñez Alvarez

     Rodolfo Marcial Nuñez Benavides

     Ramón Osvaldo Nuñez Espinoza

     Héctor Jaime Nuñez Muñoz

     Luis Hernán Nuñez Rojas

     Martín Nuñez Rozas

     Juan Héctor Ñancufil Reuque

     Domingo Antonio Obreque Obreque

     Jorge Luis Ojeda Jara

     Víctor Fernando Olea Alegria

     Jorge Alejandro Olivares Graindorge

     Zoilo Galvarino Olivares Guerra

     Fernando De La Cruz Olivares Mori

     Mario Samuel Olivares Perez

     Gary Nelson Olmos Guzman

     Mario Armando Opazo Guarda

     Segundo Antonio Opazo Parra Pedro

     Iván Gerardo Ordoñez Lamas

     Miguel Iván Orellana Castro

     Juan René Orellana Catalan

     Juan René Orellana Gatica José Del Carmen

     José Guillermo Orellana Meza

     Sefarín Del Carmen Orellana Rojas

     Nelson Ricardo Orellana Tapia

     Jorge Osvaldo Orrego Gonzalez

     Benjamin Antonio Orrego Lillo

     Juan Fernando Ortiz Letelier

     Jorge Eduardo Ortiz Moraga

     Juan Osvaldo Ortiz Moraga

     Ramón Remigio Ortiz Orellana

     Francisco Hernán Ortiz Valladares

     José Miguel Osores Soto

     Juan Agustín Osses Melgarejo

     Luis Gerardo Otarola Valdes

     Miguel Hernán Ovalle Narvaez

     Sergio Daniel Oviedo Sarria

     Flavio Arquimides Oyarzun Soto

     Héctor Segundo Pacheco Avendaño

     José Remigio Padilla Villouta

     Enrique Julio Pagardoy Saquieres

     Juan José Paillalef Paillalef

     Sergio Luis Paillamilla Treulen

     Julio Manuel Paine Lipin

     Edgardo Iván Palacios

     Gregorio Palma Donoso

     Manuel Fermin Palma Palma

     Daniel Francisco Palma Robledo

     Vicente Segundo Palomino Benitez

     Luis Jaime Palomino Rojas

     José Rosario Segundo Panguinamun Ailef

     Sergio Amador Pantoja Rivera

     Alejandro Arturo Parada Gonzalez

     Javier Ernesto Parada Valenzuela

     Sergio Raúl Pardo Pedemonte

     Silvio Vicente Pardo Rojas

     Juan Antonio Eduardo Paredes Barrientos

     Ernesto Enrique Paredes Perez

     Egidio Enrique Paris Roa

     Jorge Manuel Pavez Enriquez

     Hernán Manuel Peña Catalan

     Juan Francisco Peña Fuenzalida

     Michelle Marguerite Peña Herreros

     José Julian Peña Maltes

     Mario Fernando Peña Solari

     Nilda Patricia Peña Solari

     Aurelio Clodomiro Peñailillo Sepulveda

     Luis Alcides Pereira Hernadez

     Aroldo Armando Pereira Meriño

     Reinalda Del Carmen Pereira Plaza

     Andrés Pereira Salsberg

     Juan Carlos Perelman Ide

     Hernán Santos Perez Alvarez

     Jerónimo Jonadac Perez Aravena

     Pedro Hugo Perez Godoy

     José Leonardo Perez Hermosilla

     Sergio Alfredo Perez Molina

     Adelino Alfonso Perez Navarrete

     José Rosendo Perez Rios

     Aldo Gonzalo Perez Vargas

     Carlos Fredy Perez Vargas

     Esteban Marie Louis Pesle De Menil

     Matilde Pessa Mois

     Guillermo Ernesto Peters Casas

     Jose Francisco Pichulman

     Juan Raul Pichulman

     Jorge Vicente Pierola Pierola

     Juan Dario Pincheira Chavez

     Héctor Ricardo Pincheira Nuñez

     Gilberto De La Cruz Pino Baeza

     Alejandro Alberto Pinochet Arenas

     Luis Humberto Piñones Vega

     Edras De Las Mercedes Pinto Arroyo

     Héctor Santiago Pinto Caroca

     Hernán Pinto Caroca

     José Felidor Pinto Pinto

     Isidro Miguel Angel Pizarro Meniconi

     Waldo Ulises Pizarro Molina

     Gabriel Alejandro Pizarro San Martin

     Miguel Segundo Plaza Narvaez

     Pedro Enrique Poblete Cordova

     Claudia Victoria Poblete Hlaczik

     José Liborio Poblete Roa

     Juan Mauricio Poblete Tropa

     Orlando Miguel Ponce Quezada

     Exequiel Ponce Vicencio

     Benedicto Poo Alvarez

     Armando Portilla

     Reinaldo Salvador Poseck Pedreros

     Arsenio Poupin Oissel

     Juan Antonio Povaschuk Galeazzo

     Lorenzo Alberto Prat Marti Arturo

     José Guillermo Purran Treca 

     Hernán Leopoldo Quezada Moncada

     Mario Luis Quezada Solis

     Hernán Quilagaiza Oxa

     Suarez Luis Quinchavil

     Juan Luis Quiñones Ibaceta

     Marcos Esteban Quiñones Lembach

     Abelardo De Jesús Quinteros Miranda

     Tulio Roberto Quintiliano Cardoso

     Wilfredo Hernán Quiroz Pereira

     Laureano Del Carmen Quiroz Pezoa

     Anselmo Osvaldo Radrigan Plaza

     William Osvaldo Ramirez Barria

     Gustavo Guillermo Ramirez Calderon

     Robinson Enrique Ramirez Del Prado

     José Adrian Ramirez Diaz

     María Julieta Ramirez Gallegos

     Ricardo Ignacio Ramirez Herrera

     Tomás Enrique Ramirez Orellana

     José Santos Ramirez Ramirez

     José Manuel Ramirez Rosales

     Oscar Orlando Ramos Garrido

     Gerardo Alejandro Ramos Huina

     José Moises Ramos Huina

     José Alejandro Ramos Jaramillo

     Osvaldo Del Carmen Ramos Rivera

     Oscar Arturo Ramos Vivanco

     Ramón Edmundo Rebolledo Espinoza

     Luis Emilio Recabarren Gonzalez

     Manuel Guillermo Recabarren Gonzalez

     Manuel Segundo Recabarren Rojas

     Alberto Segundo Reinante Raipan

     Ernesto Reinante Raipan

     Modesto Juan Reinante Raipan

     Elizabeth Mercedes Rekas Urra

     Dixon Retamal Cornejo

     Francisco De Asis Retamal Matamala

     Oscar Abdón Retamal Perez

     Julia Del Rosario Retamal Sepulveda

     Asrael Leonardo Retamales Briceño

     Carlos Ramón Reyes Avila

     Agustín Eduardo Reyes Gonzalez

     Segundo Hernán Reyes Gonzalez

     Sergio Alfonso Reyes Navarrete

     Daniel Abraham Reyes Piña

     Sergio Alejandro Riffo Ramos

     Sonia Del Transito Rios Pacheco

     Guillermo Rios Soto Herbit

     Hugo Daniel Rios Videla

     Carlos Ramón Rioseco Espinoza

     Erika Del Carmen Riquelme Briones

     Juan Antonio Riquelme Briones

     Federico Riquelme Concha

     Jaime Nury Riquelme Gangas

     Jorge Orlando Riquelme Guzman

     Vidal Del Carmen Riquelme Ibañez

     Anibal Raimundo Riquelme Pino

     Juan De Dios Riquelme Riquelme

     Octavio Saturnino Riquelme Venegas

     José Miguel Mario Manuel Rivas Rachitoff

     Patricio Fernando Rivas Sepulveda

     Heriberto Rivera Barra

     Luis Alfredo Rivera Catricheo

     Luis Enrique Rivera Cofre

     Juan Luis Rivera Matus

     Lorenzo Rivera Ramirez

     Arturo Enrique Riveros Blanco

     Arturo Enrique Riveros Chavez José Hernán

     Sergio Alberto Riveros Villavicencio

     Juan De Dios Roa Riquelme

     Jorge Robles Robles

     Jaime Eugenio Robotham Bravo

     José Santos Rocha Alvarez

     Florentino Aurelio Rodriguez Aqueveque

     Juan Carlos Rodriguez Araya

     Héctor Roberto Rodriguez Carcamo

     Bernardino Rodriguez Cortez

     Mireya Herminia Rodriguez Diaz

     Juan Bautista Rodriguez Escobar

     Miguel Angel Rodriguez Gallardo

     Artagnan Rodriguez Gonzalez

     Jesús De La Paz Rodriguez Gonzalez

     Daniel Eliseo Rodriguez Lazo

     Pablo Rodriguez Leal

     Luis Fernando Rodriguez Riquelme

     Alejandro Rodriguez Urzua

     Miguel Enrique Rodriguez Vergara

     Sergio Gervasio Rodriguez Villanueva

     Carlos Patricio Rojas Campos

     Alfredo Rojas Castañeda

     Oscar Eliecer Rojas Cuellar

     Hernan Artemio Rojas Fajardo

     José Adolfo Rojas Medez

     Juan Orlando Rojas Osega

     Heriberto Rojas Peña

     Aladin Esteban Rojas Ramirez

     Miguel Rojas Rojas

     Gilberto Antonio Rojas Vasquez

     Guillermo Haroldo Rojas Zamorano

     Ramiro Antonio Romero Gonzalez

     José Fernando Romero Lagos

     Roberto Del Carmen Romero Muñoz

     Francisco Javier Alejandro Rozas Contador

     Florencio Rubilar Gutierrez

     José Liborio Rubilar Gutierrez

     José Lorenzo Rubilar Gutierrez

     Gerardo Ismael Rubilar Morales

     Clara Luz Rubilar Ocampo

     Juan De Dios Rubio Llancao

     Julio Alberto Rubio Llancao

     Sergio Fernando Ruiz Lazo

     Jorge Carlos Romualdo Ruz Zuñiga

     José Alfonso Saavedra Betancourt

     Enrique Antonio Saavedra Gonzalez

     Guido Arturo Saavedra Inistroza

     José De Las Nieves Saavedra Vergara

     Luis Onofre Saez Espinoza

     Zenón Saez Fuentes

     Jorge Roberto Saez Vicencio

     Jorge Sagaute Herrera

     Héctor Manuel Sagredo Araneda

     José Sel Carmen Sagredo Pacheco

     Manuel Salamanca Mella

     Ernesto Guillermo Salamanca Morales

     Humberto Salas Salas

     José Alberto Salazar Aguilera

     Raúl Salazar Ernesto

     Raimundo Salazar Muñoz

     Carlos Eladio Salcedo Morales

     Diego Celso Saldias Cid

     Oscar Eladio Saldias Daza

     José Sofanor Saldivia Saldicia

     René Nolberto Salgado Salgado

     Jorge Orosman Salgado Salinas

     Ariel Martín Salinas Argomedo

     Marcelo Eduardo Salinas Eytel

     Juan De Dios Salinas Salinas

     Alfredo Ernesto Salinas Vasquez

     Mario Salinas Vera

     Raúl Buridan San Martin Barrera

     José Isaias San Martin Benavente

     Luis Hernán San Martin Cares

     Julio San Martin

     Luis Dagoberto San Martin Vergara

     Juan Carlos San Martin Zuñiga

     Francisco Segundo Sanchez Arguen

     Carlos Enrique Sanchez Cornejo

     Símon Eladio Sanchez Perez

     Gerónimo Humberto Sandoval Medina

     Miguel Angel Sandoval Rodriguez

     Mario Sandoval Vasquez

     Oscar Omar Sanhueza Contreras

     Manuel Eduardo Sanhueza Mellado

     Juan Carlos Sanhueza Sanhueza

     Alamiro Segundo Santana Figueroa

     Ignacio Del Transito Santander  Albornoz

     José Eduardo Santander Miranda

     Ariel Dantón Santibañez Estay

     Ceferino Del Carmen Santis Quijada

     Francisco Javier Santoni Diaz

     Hernán Sarmiento Sabater

     Juan Carlos Schmidt Arriagada

     Ricardo Augusto Schmidt Arriagada

     Luis Orocimbo Segovia Villalobos

     Nibaldo Cayetano Seguel Muñoz

     Carlos Gustavo Segura Hidalgo

     Domingo Antonio Sepulveda Castillo

     Manuel Sepulveda Cerda

     Daniel Mauricio Sepulveda Contreras

     Juan De Dios Sepulveda Gonzalez

     Renato Alejandro Sepulveda Guajardo

     Celedonio De Las Rosas Sepulveda Labra

     Alfonso René Sepulveda Montanares

     Luis Leopoldo Sepulveda Nuñez

     Manuel Jesús Sepulveda Sanchez

     Cardenio Sepulveda Torres

     Osvaldo Manuel Sepulveda Torres

     Marcela Soledad Sepulveda Troncoso

     Benedicto De La Rosa Sepulveda Valenzuela

     Roberto Esteban Serrano Galaz

     David Silberman Gurovich

     Pedro Eduardo Silva Bustos

     Fernando Guillermo Silva Camus

     Luis Ramón Silva Carreño

     Manuel Silva Carreño

     Samuel Eduardo Silva Contreras

     Claudio Guillermo Silva Peralta

     Gerardo Ernesto Silva Saldivar

     Luis Armando Silva Silva

     Javier Enrique Sobarzo Sepulveda

     Rosa Elvira Soliz Poveda

     Jorge Gerardo Solovera Gallardo

     Jaime Gilson Sotelo Ojeda

     Rubén Simón Soto Cabrera

     Hugo Enrique Soto Campos

     Antonio Patricio Soto Cerna

     Luis Alberto Soto Chandia

     Hernán Soto Galvez

     Cesareo Del Carmen Soto Gonzalez

     Gustavo Edmundo Soto Peredo

     Segundo Marcial Soto Quijon

     Luis Horacio Soto Silva

     Rubén Soto Valdes

     Walter Raúl Stepke Muñoz

     Jacobo Stoulman Bortnik

     Juan Ismael Suil Faundez

     Manuel Jesús Tamayo Martinez

     Guillermo Alfredo Tamburini

     Luis Rolando Tapia Concha

     Raúl Francisco Tapia Hernandez

     Julio Fernando Tapia Martinez

     Miguel Angel Tapia Rojas

     Teobaldo Antonio Tello Garrido

     Einar Enrique Tenorio Fuentes

     Carlos Alberto Teran De La Jara

     Jorge Segundo Thather Muñoz

     Claudio Francisco Thauby Pacheco

     Claudio Romulo Tognola Rios

     Enrique Alfonso Toledo Garay

     José Vicente Toloza Vasquez

     Sergio Daniel Tormen Mendez

     Nicomedes Segundo Toro Bravo

     Gonzalo Marcial Toro Garland

     Enrique Segundo Toro Romero

     Eduardo Emilio Toro Velez

     Luis Esteban Toro Veloso

     Osvaldo Alfonso Torres Albornoz

     Ruperto Oriol Torres Aravena

     Henry Francisco Torres Flores

     Ernesto René Torres Guzman

     Jaime Bernado Torres Salazar

     Alejandro Antonio Tracanao Pincheira

     Eliseo Maximiliano Tracanao Pincheira

     José Miguel Tracanao Pincheira

     José María Tranamil Pereira

     Ernesto Traubmann Riegelhaupt

     Luis Hernán Trejo Saavedra

     Jorge Andres Troncoso Aguirre

     Ricardo Troncoso Leon

     Ricardo Aurelio Troncoso Muñoz

     Mariano León Turiel Palomera

     Rodrigo Eduardo Ugas Morales

     Bernabe De San José Ulloa Luengo

     Juan Eladio Ulloa Pino

     Víctor Adolfo Ulloa Pino

     Luis Armando Ulloa Valenzuela

     Gilberto Patricio Urbina Chamorro

     Bárbara Gabriela Uribe Tamblay

     Oscar Julian Urra Ferrarese

     Raúl Urra Parada

     Cleofe Del Carmen Urrutia Acevedo

     David Edison Urrutia Galaz

     Héctor Daniel Urrutia Molina

     Luis Alberto Urrutia Sepulveda

     Juan Segundo Utreras Beltran

     Juan José Valdebenito Miranda

     Adán Valdebenito Olavarria

     Lila Ludovina Valdenegro Carrasco

     Arturo Jesús Valderas Angulo

     Flavio Heriberto Valderas Mancilla

     Manuel Nemesio Valdes Galaz

     Edelmiro Antonio Valdes Sepulveda

     Oscar Dante Valdivia Gonzalez

     Aliro Del Carmen Valdivia Valdivia

     Víctor Eduardo Valdivia Vasquez

     Basilio Antonio Valenzuela Alvarez

     Luis Armando Valenzuela Figueroa

     Luis Oscar Valenzuela Leiva

     Alcibiades Valenzuela Retamal

     Jorge Orlando Valenzuela Valenzuela

     Julio Del Transito Valladares Caroca

     Oscar Enrique Valladares Caroca

     José Miguel Valle Perez

     René Daniel Vallejos Parra

     Jorge Vallejos Ramos

     Alvaro Modesto Vallejos Villagran

     Bautista Van Schouwen Vasey

     Edwin Francisco Van Yurick Altamirano

     Rubén Vara Aleuy

     Carlos Antonio Vargas Arancibia

     Pedro León Vargas Barrientos

     Juan Alejandro Vargas Contreras

     Félix Marmaduque Vargas Fernandez

     Manuel De La Cruz Vargas Leiva

     María Edith Vasquez Fredes

     Luis Justino Vasquez Muñoz

     Jaime Enrique Vasquez Saenz

     Héctor Manuel Humberto Vasquez Sepulveda

     Juan Bautista Vasquez Silva

     Arturo Vega Gonzalez

     Julio Roberto Vega

     Luis Eduardo Vega Ramirez

     Víctor Humberto Vega Riquelme

     Héctor Ernaldo Velasquez Mardones

     Héctor Heraldo Velasquez Mardones

     José Raúl Velasquez Vargas

     Rubén Alejandro Velasquez Vargas

     Héctor Veliz Ramirez

     Rachel Elizabeth Venegas Illanes

     Grober Hugo Venegas Islas

     Claudio Santiago Venegas Lazzaro

     Omar Roberto Venturelli Leonelli

     Ida Amelia Vera Almarza

     Bernada Rosalba Vera Contardo

     Sergio Emilio Vera Figueroa

     Juan Vera Oyarzun

     Exequiel Del Carmen Verdejo Verdejo

     Luis Eduardo Vergara Corso

     Héctor Patricio Vergara Doxrud

     Luis Armando Vergara Gonzalez

     Pedro José Vergara Inostroza

     Héctor Orlando Vicencio Gonzalez

     Edmundo José Vidal Aedo

     Hugo Alfredo Vidal Arenas

     José Abraham Vidal Ibañez

     José Alfredo Vidal Molina

     Jaime Benjamin Vidal Ovalle

     José Mateo Segundo Vidal Panguilef

     Abel Alfredo Vilches Figueroa

     Juan Santiago Vilches Yañez

     José Caupolican Villagra Astudillo

     Emperatriz Del Tránsito Villagra

     Manuel Jesús Villalobos Diaz

     Waldo Ricardo Villalobos Moraga

     Elías Ricardo Villar Quijon

     Agustín De La Cruz Villarroel Carmona

     Juan De Dios Villarroel Espinoza

     Víctor Manuel Villarroel Ganga

     Jorge Eduardo Villarroel Vilches

     Juan Aurelio Villarroel Zarate

     Arturo Segundo Villegas Villagran

     Celsio Nicasio Vivanco Carrasco

     Nicolás Hugo Vivanco Herrera

     Víctor Julio Vivanco Vasquez

     Hugo Ernesto Vivanco Vega

     Gabriel José Viveros Flores

     Carlos Mario Vizcarra Cofre

     Joaquín Walker Arangua

     Luis Guillermo Wall Cartes

     José Arturo Weibel Navarrete

     Ricardo Manuel Weibel Navarrete

     Modesta Carolina Wiff Sepulveda

     José Florencio Yañez Duran

     Juan Miguel Yañez Franco

     Horacio Yañez Jimenez

     Jorge Bernabé Yañez Olave

     Luis Alberto Yañez Vasquez

     Ceferino Antonio Yaufulem Mañil

     Miguel Eduardo Yaufulem Mañil

     Oscar Romualdo Yaufulem Mañil

     Mario Jaime Zamorano Donoso

     Victor Manuel Zamorano Gonzalez

     Luis Armando Zani Espinoza

     Carlos Zapata Aguila

     Pedro Antonio Zarate Alarcon

     Carlos Hugo Zelaya Suazo

     Eduardo Humberto Ziede Gomez

     Jorge Lautaro Zorrilla Rubio

     José Rafael Zuñiga Aceldine

     José Segundino Zuñiga Aceldine

     Luis Hipólito Zuñiga Adasme

     Francisco Arnaldo Zuñiga Aguilera

     Héctor Cayetano Zuñiga Tapia

     Eduardo Fernando Zuñiga Zuñiga


presos e desaparecidos no Chile. Em nome de Jesus Cristo, teu Filho, que também foi preso, torturado e assassinado, que foi levantado pelo Pai... em nome dele eu imploro por justiça e paz. Amém. 




O autor



Jorge Pinheiro é jornalista e teólogo. Fez Jornalismo na PUC do Rio de Janeiro, mas não terminou. Tentou dar sequência ao curso na Escuela de Periodismo da Universidade do Chile, mas o golpe chileno frustrou seus planos. Nos anos 90 fez sua graduação e pós-graduação em Teologia na Faculdade Teológica Batista de São Paulo/SP. E já, no novo milênio, fez Mestrado e Doutorado em Ciências da Religião na Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo. E posteriormente fez dois Pós-Doutorados em Ciências da Religião, o primeiro na Universidade Presbiteriana Mackenzie e o segundo na Universidade Metodista de São Paulo. Seu Doutorado e seu segundo Pós-Doutorado foram realizados no Brasil e na França, na modalidade “sanduíche”, na Faculté de Théologie Protestante de Montpellier.


Desde a época de secundarista, no Rio de Janeiro, tem intensa atividade política. Foi exilado entre 1971 e 1974 no Chile e Argentina e, posteriormente, em 1977, na Espanha e Portugal. Em dezembro de 1979 foi anistiado. Nos anos 90, passou a focar a questão social a partir de uma perspectiva cristã, o que, segundo ele, “aumentou e não diminuiu meu compromisso com os deserdados da terra”. 


Durante 21 anos exerceu função pastoral, primeiro na Missão Batista Memorial da América Latina e depois na Igreja Batista em Perdizes, ambas em São Paulo/SP. Exerceu o magistério teológico como professor de Teologia Contemporânea e Teologia Sistemática na Faculdade Teológica Batista de São Paulo. É escritor com livros publicados nas áreas de Política e Teologia.


Com humor, gosta de apresentar os relatórios do Serviço Nacional de Informações, SNI, sobre sua atuação política, esclarecendo que discorda categoricamente das apreciações e opiniões levantadas acerca de suas atividades e artigos publicados. A seguir, eis a íntegra de tal documento:

 

“Em conformidade com a portaria no 008 de 16 de janeiro de 1996, da Subsecretaria de Inteligência da Casa Militar da Presidência da República, e em atendimento a requerimento de Jorge Pinheiro dos Santos, protocolado no dia 21 de julho de 1998, informo que nos arquivos em poder desta Subsecretaria há registros sobre fatos e situações com as seguintes indicações a respeito do requerente:


Jorge Pinheiro dos Santos, brasileiro, casado, jornalista, filho de Amynthas Jorge dos Santos e Maria José Pinheiro, nascido no dia 05 de março de 1945, no Rio de Janeiro/RJ, (...) foi editor do jornal Versus, diretor do jornal Ponto de Partida e diretor do jornal Convergência Socialista, todos em São Paulo/SP.


Do relatório da Operação Lótus, realizada em 1977/78, pelos DOPS/SP, para apurar atividades do Partido Socialista dos trabalhadores (PST), extrai-se o seguinte sobre o requerente: ‘integrou o grupo denominado Ponto de Partida que criou, no Chile, a Liga Operária (LO); colaborou diretamente na feitura do jornal Independência Operária, órgão da Liga Operária, no Brasil, sendo que em fins de 1976 alugou uma casa em Atibaia/ SP, destinada a aparelho de imprensa, passando a ser responsável pelo setor; em março/abril de 1978, participou de um congresso da Liga Operária em Ubatuba/SP, ocasião em que a referida organização passou a denominar-se PST, passando a integrar o Comitê Central (CC), a Comissão Executiva e o Secretariado do Partido, e a compor a Coordenação Nacional da Convergência Socialista (CS), bem como o núcleo da CS no jornal Versus, em São Paulo/SP; em julho de 1978, participou de um congresso da Tendência Bolchevique (TB), em Bogotá/ Colômbia, ocasião em que a TB passou à Fração Bolchevique (FB), sendo que o mesmo passou a compor o Comitê Central e o Secretariado da FB; foi convidado para fazer parte da Comissão de Coordenação da FB, mas não aceitou, pois para isso teria que se radicar na Colômbia; e ainda, em julho de 1978, fez entrega à FB da importância de Cr$180.000,00, como contribuição do PST brasileiro’.


Integrou a mesa diretora dos trabalhos da 1a Reunião Estadual da CS, realizada na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul no dia 02 de julho de 1978, a qual objetivou o lançamento das bases para a constituição de um Partido Socialista Brasileiro,


Compareceu à 1a Convenção Nacional da CS, realizada no Ginásio de Esportes, no Cambuci, em São Paulo/SP, em 20 de agosto de 1978.


Foi indiciado no Inquérito Policial no 051/78, instaurado pelo DOPS/SP, para apurar as atividades de elementos ligados a antiga organização subversiva denominada Liga Operária, desmantelada em 1977 e reestruturada com a denominação de PST, e que continuou as suas ações subversivas através de seus membros. No relatório do encarregado do inquérito, datado de 17 de outubro de 1978, foram registrados os seguintes dados  sobre o requerente: vulgo Luís, professor, foragido, qualificado indiretamente, elemento do CC do PST, respondendo pela Secretaria Internacional, com intensa atividade subversiva desde o início da década de 70, um dos fundadores, no Chile, do grupo Ponto de Partida, participou de um congresso Trotskista em Bogotá/ Colômbia; integrou também o CC da CS; em seu veículo estacionado na rua Tavares Bastos, defronte ao no 679, foram encontrados documentos de cunho subversivo, inclusive o documento tratando sobre ‘O caminho que o PST deve tomar nesses próximos meses’; a farta documentação contra Jorge Pinheiro dos Santos fez com que ele se mantivesse em local incerto e não sabido. Por fim, o encarregado do inquérito concluiu que os indiciados cometeram infrações capituladas na Lei de Segurança Nacional (LSN) e determinou a remessa dos autos à 2a Auditoria Militar da 2a Circunscrição Judiciária Militar (2a CJM), para os devidos fins. 


Em 30 de outubro de 1978, o juiz auditor da 2a Auditoria do Exército da 2a CJM expediu o mandato de prisão no 15/78, contra o requerente, em virtude de ter sido decretada, naquela data, por aquele Juízo, a prisão preventiva do mesmo, nos termos do artigo 60 do Decreto-Lei no 898/69 (LSN) e artigos 254, 255 letras ‘a’ e ‘b’ do Código de Processo Penal Militar (CPPM), nos autos do Processo no 29/78. Na mesma data, o juiz auditor dirigiu ofício ao General Comandante do II Exército, encaminhando em anexo o referido mandato de prisão contra o requerente, solicitando daquela autoridade determinar providências (artigo 8 letra ‘c’ do CPPM) no sentido do cumprimento do mesmo, com o recolhimento do preso ao Presídio da Justiça Militar Federal, em São Paulo/SP.


O jornal Folha da Tarde, de São Paulo/SP, em sua edição de 31 de outubro de 1978, publicou que havia sido decretada a prisão preventiva de onze elementos do PST, entre os quais o requerente, o qual encontrava-se foragido.


O Diário Popular, em sua edição de 2 de fevereiro de 1979, sob o título ‘Jorge Pinheiro comparece à 2a CJM para interrogatório’, publicou matéria divulgando que o requerente, editor-chefe do jornal Versus, único revel no processo sobre o clandestino PST, havia comparecido no dia anterior, à 2a Auditoria da 2a CJM, espontaneamente, para prestar depoimento no referido processo. Segundo o artigo, depois do interrogatório, o Conselho Permanente de Justiça considerou cessada sua revelia e revogou a prisão preventiva contra ele decretada.


Foi um dos autores de um documento intitulado ‘Um Primeiro Borrador’, datado de 27 de junho de 1979, o qual pautou-se por uma proposta para discussão para todos os militantes da CS, a fim de que pudessem elaborar um documento final a ser levado a Convenção Nacional da CS, propondo a linha política a ser seguida pela mesma, visando a construção de um Partido dos Trabalhadores.


Em 12 de julho de 1979, integrou a mesa coordenadora de um debate sobre o tema ‘Constituinte – As liberdades democráticas e o Socialismo’, promovido pelo Setor Jovem Metropolitano do MDB de Porto Alegre/RS, no Plenário da Assembléia Legislativa/RS e que teve como conferencistas convidados os deputados peruanos Enrique Fernandez Chacón e Hugo Blanco Galdóz. No dia seguinte ao evento, o requerente, os referidos peruanos e outros, se reuniram no edifício Santa Crus, na rua dos Andradas, no 1234, apartamento 2803, em Porto Alegre/RS.


O jornal O Trabalho, em sua edição no 40, de 26 de novembro de 1979, publicou matéria sob o título ‘Nicarágua em debate’, referindo-se a um debate realizado na Universidade de Campinas (Unicamp), em 22 de novembro de 1979, entre militantes da Organização Socialista Internacional (OSI) e CS, para o qual o requerente havia sido convidado.


Em dezembro de 1979, a 2a Auditoria da 2a CJM declarou extinta a sua punibilidade pela Anistia, com fundamento no artigo 1o da Lei no 6.683/79, c/c o artigo 123 II do Código Penal Militar (CPM).


Em janeiro de 1980, foi relacionado entre os dirigentes da CS que participaram da Conferência Internacional do Comitê de Organização e da Reconstrução da IV Internacional, que seria realizado na Colômbia.


Também em janeiro de 1980, foi relacionado entre os integrantes da ‘Tendência pela Defesa do Partido e pela Legalidade’ da Convergência Socialista.


Juntamente com outros membros da Comissão Nacional da CS, participou de uma reunião extraordinária ampliada do ‘Comitê Paritário pela Reconstrução da IV Internacional’, realizada em Bogotá/ Colômbia, no período de 19 a 23 de fevereiro de 1980.


O jornal O trabalho, no 53 de 15/31 de março de 1980, publicou artigo sob o título ‘Convergência: Queremos um PT sem patrões’, assinado pelo requerente, no qual expõe a proposta da CS com relação à articulação do Partido dos Trabalhadores.


Foi autor do editorial intitulado ‘O sonho acabou, mesmo!’ publicado no jornal Convergência Socialista no 11, da segunda quinzena de abril de 1980, no qual a CS tornou público a sua versão sobre as reivindicações salariais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.


O jornal Convergência Socialista no 12, da primeira quinzena de maio de 1980, publicou artigo sob o título ‘Os trabalhadores nada têm a perder... a não ser suas cadeias!’, de autoria do requerente, no qual faz ‘proselitismo do apoio, manutenção e solidariedade à greve dos metalúrgicos do ABC, da derrubada do regime militar, da construção de um governo dos trabalhadores e de um Brasil socialista’.


O jornal Convergência Socialista no 14, da primeira quinzena de junho de 1980, publicou artigo intitulado ‘Uma visita ao Sr. Ministro’, de autoria do requerente, fazendo entrevista a uma audiência com o ministro da Justiça, concluindo com considerações depreciativas ao regime e ao governo da época.


Em 29 de agosto de 1980, participou de um ato realizado no Sindicato dos Químicos, em São Paulo/ SP, em homenagem ao 40o aniversário da morte de Trotsky.


O jornal Convergência Socialista no 20, da primeira quinzena de setembro de 1980, sob o título ‘Chile sete anos depois. O fracasso da Frente Popular’, de autoria do requerente, refere-se depreciativamente à Unidade Popular chilena, que reunia socialistas e comunistas, faz proselitismo do trotskismo e relata fases de sua militância naquele país, quando exilado.


Em março de 1981, foi relacionado entre os líderes da IV Internacional.


Em janeiro de 1984, integrou relação de militantes da Alicerce da Juventude Socialista, em São Paulo/ SP.


É o que se contém arquivado neste Órgão até a presente data. Brasília/DF, 31 de dezembro de 1998. David Bernardes de Assis, assessor”.


Segundo o autor, “posicionar-se no Brasil a partir de uma ética da responsabilidade social, implica em entender o paradoxo da cultura brasileira: vivemos num país onde impera a moral autoritária do senhor, da casa grande & senzala, e a moral libertária da contracultura do oprimido – a moral do não existe pecado do lado de baixo do Equador.


“Qualquer atuação no campo social implica em compreender esta realidade. Consciente de que as sociedades devem se organizar através do jogo democrático, a igreja na América Latina tem como desafio embasar seu compromisso no imperativo das fontes de nossa existência: amor, conhecimento e liberdade”.


“Por isso, falamos de um processo, que crescerá conforme cresça a consciência de que temos uma tarefa: transformar o Brasil num país onde todos tenham acesso a condições dignas de vida e justiça social. E, logicamente, todo o continente”.


Exatamente por isso, Jorge Pinheiro gosta de lembrar a seus leitores certas palavras ditas num morro distante: “Felizes os que têm misericórdia, porque Deus terá misericórdia deles também”. Soli Deo, glória!