vendredi 28 janvier 2011

Primeiras impressões do governo Dilma Rousseff: falam os historiadores

 Dilma Rousseff durante reunião ministerial
[Alguns colegas e alunos têm-me perguntado o que acho do governo da presidenta Dilma Rousseff. No intuito de responder, recomendo a leitura deste texto de Carlos Fico. Creio que ele pensa com sabedoria muitas das questões levantadas. Boa leitura, Jorge Pinheiro].

É sempre muito grande a expectativa em relação aos novos governos e, por isso mesmo, duas “pautas” jornalísticas são obrigatórias nesses momentos: a análise das primeiras medidas e o marco simbólico dos “100 dias”. Como avaliar o início do atual governo, passados apenas alguns dias da posse da nova presidente? Esses primeiros dias de Dilma Rousseff distinguem-se dos primeiros momentos da maioria dos presidentes que a antecederam na história do Brasil recente pelo fato de não vivermos uma crise econômica e/ou política.

O regime militar, por exemplo, foi sacudido por crises do início ao fim, começando com o golpe em si e, em 1966, a primeira crise de sucessão, já que Castelo Branco não queria Costa e Silva como sucessor, mas teve de admiti-lo. O novo general iniciou seu governo tendo de enfrentar a impopularidade causada pelas medidas recessivas da dupla Campos e Bulhões, ministros do Planejamento e da Fazenda do governo anterior. Tendo sofrido um derrame, Costa e Silva não foi substituído pelo vice-presidente, já que os ministros militares deram um novo golpe e assumiram o poder. Quatro dias depois, essa junta militar teve de lidar com o sequestro do embaixador dos EUA. Foi sucedida por Médici, que teve um início tranquilo, mas governou sob a égide do AI-5 e tornou-se conhecido como o mais repressivo dos generais. Geisel teve de enfrentar a crise do petróleo e Figueiredo, no início de seu governo, tentou adotar um perfil popular, mas terminaria seu mandato como um dos mais impopulares presidentes de nossa história.

O início da Nova República foi impactado pela morte de Tancredo Neves e, de certo modo, é até difícil determinar quando foi o início do governo Sarney, que assumiu como vice-presidente, marcado pela interinidade e pelo fracasso econômico. As primeiras medidas de Collor, primeiro presidente eleito desde 1960, que pretendia acabar com a inflação de um golpe só, foram arrogantes, ilegais e confusas. Outro vice-presidente, Itamar Franco, também demorou a assumir de fato: no início de seu governo, teve ministros da Fazenda que permaneceram no cargo alguns poucos meses. FHC assumiria com o Plano Real, mas no início de seu segundo mandato teve de alterar o regime cambial. Logo após a posse de Lula, em 2003, o Banco Central teve de aumentar a taxa de juros para 25,5% para acalmar o mercado financeiro.

Portanto, Dilma Rousseff inicia seu mandato em um cenário de relativa tranquilidade. Um aspecto interessante a se observar é o seguinte: sendo uma “criatura” de Lula, a nova presidente adotará as mesmas políticas de seu mentor ou buscará distinguir-se? Alguns gestos iniciais parecem indicar que a nova presidente deseja marcar logo sua própria singularidade. As declarações sobre o Irã, sobre as mulheres, o “pito” no general Elito, a demanda para que as Forças Armadas façam um mea-culpa em relação à ditadura militar, a busca de aprovação para a Comissão da Verdade como política de governo e não apenas de um ministério e assim por diante. Além disso, Dilma deverá ser uma presidente que lê relatórios, cobra e administra.

Consultei alguns historiadores brasileiros – de posições políticas diferenciadas – sobre esse tema. Nem mesmo a sempre mencionada imagem de administradora de Dilma Rousseff é vista consensualmente. Marco Antonio Villa (UFSCar) tem uma visão bastante crítica: “Saímos de uma presidência espetáculo para uma presidência clandestina”. Villa entende que a imagem de Dilma como administradora eficiente é uma encenação: “Basta acompanhar a tragédia da região serrana fluminense e a ausência (que vêm do governo Lula, quando ela era uma espécie de primeiro-ministro) de projetos de prevenção através dos ministérios da Integração Nacional, Cidades, entre outros.”

Villa tem insistido em um ponto, a “inexistência” da oposição: “Como não temos oposição (os 44 milhões que votaram no candidato oposicionista devem ter confundido as fotos e achado que o Serra era a Dilma), a tragédia parece simplesmente um problema natural (Deus não deve ser mais brasileiro)”.

O historiador Manolo Florentino (UFRJ), que não votou em Dilma, diz “torcer muito” pela nova presidente. Ele considera que a dimensão simbólica da eleição de uma mulher é muito importante por causa do machismo brasileiro: “Homem brasileiro não gosta de ser mandado por mulher”. Para ele, a condição de mulher significa, simultaneamente, um trunfo – em função da ruptura com a tradição arraigada –, mas também um desafio: “Ministros (homens) relataram a jornalistas (homens) detalhes de reuniões que deveriam permanecer em sigilo: são machões que não obedecem”. Refletindo sobre a condição humana, Manolo cogita sobre a “burrice e covardia dos homens”, que os tornariam perigosamente singulares. Nesse sentido, as mulheres não seriam tão imprevisíveis. Para Manolo, o perfil de gestora da nova presidente pode ser uma vantagem, em função dos 500 anos de desmandos, mas não pode ser lido como uma inapetência política: “O cargo é político, desempenhado por uma mulher, que não pode ficar conhecida como a ‘mulher do Lula’. Ela é sobretudo gestora, mas sempre há tempo para aprender a ser política”.

Cesar Guazzelli (UFRGS) tem alguma proximidade com a trajetória da nova presidente. Seu pai, Eloar Guazzelli, foi advogado de presos políticos e defendeu o ex-marido de Dilma Rousseff, Carlos Araújo, além de Tarso Genro e Olívio Dutra, entre outros. Guazzelli preocupa-se com o tipo de oposição que Dilma enfrentou e vai enfrentar. “O discurso da direita me lembra muito o pré-64, com uma demonização que eu não via há tempos”, diz. “Parece uma ressurreição da velha UDN! Adjetivos como enganadora, despreparada, oportunista, terrorista, criminosa não faltam nem faltarão”. Guazzelli acha que Dilma é bem mais do que apenas “o cavalo do comissário”, mas, tal como Lula, Dilma não tomará medidas radicais, “o que desarmará um pouco mais as oposições vindas da ultra-esquerda.”

Para Daniel Aarão Reis (UFF), Dilma enfrenta dois desafios: “a da sombra do ex-presidente e a da realidade da heterogênea e gulosa ‘base’ política que lhe deu precioso tempo na TV, apoio na campanha eleitoral e, agora, sustentação política no Congresso”. Daniel identifica a marca de gestora da nova presidente (“a primeira reunião ministerial, pontilhada de computadores, atesta a proposta de um novo caminho: menos conversa fiada, mais trabalho, e resultados práticos, objetivos”), mas lembra que, para encarar os desafios, “não bastam apenas computadores e competência gestionária, mas capacidade de fazer escolhas e liderança política para conduzir o governo. E o caminho, necessariamente, haverá de ser feito com Lula e a referida base política”.

Atila Roque (INESC) chama a atenção exatamente para o suposto despreparo político de Dilma Rousseff: “Acho que se engana enormemente quem supõe que a presidenta Dilma não tem ‘experiência política’ e vai se concentrar na dimensão ‘gestora’ do cargo. A impressão de uma presidenta que fala pouco somente se justifica quando comparada a um presidente que, talvez, falasse um pouco demais. Mas acho que isso faz parte de um processo necessário de entrada do país em algo que poderíamos chamar de rotina republicana, onde são várias e plurais as vozes na esfera pública e a presidência, como o poder mais alto, deve cuidar para se fazer ouvir sem sufocar as demais”. Para Atila, “as declarações sobre a necessidade de trazer à luz sem restrições os documentos e a memória da repressão, a ênfase nos direitos humanos nas relações internacionais e nas desigualdades sociais sugerem que ela tem uma agenda positiva.”

José Murilo de Carvalho (UFRJ e ABL) diz que, apesar de ser criatura de Lula, “Dilma é sua antítese em termos de personalidade e estilo de comportamento. O início de seu governo o comprova. Em contraste com os fogos de artifício e bravatas de Lula, ela quase não tem falado. Os maldosos dizem que é porque não tem o que dizer. Desconfio que não seja verdade, afinal ela teve experiência em posições importantes do governo Lula e nas poucas coisas que disse mostrou ideias próprias e, a meu ver, melhores do que as de Lula. Se conseguir sobreviver à feroz luta clientelista dentro do PT e entre o PT e os aliados, e pôr em pratica seu talento operador, poderá ser um avanço em relação a Lula. Poderá fazer um bom governo sem recurso a carismas e populismos. A República ganhará.”

Fonte
Carlos Fico
http://www.brasilrecente.com/2011/01/primeiras-impressoes-do-governo-dilma.html?spref=fb

Carta de Niterói

CONVENÇÃO BATISTA BRASILEIRA 
Carta de Niterói

Nós, batistas brasileiros, reunidos na cidade de Niterói, RJ, em janeiro de 2011

CREMOS que
· o Universo e o ser humano foram criados por Deus para a sua glória;
· a vida e o Universo, em todos os sentidos, foram dados ao ser humano como um presente de Deus;
· o Universo foi dado ao ser humano para a sua morada, sustento e para o desenvolvimento de sua história de vida;
· o ser humano foi criado como um ser livre, mas, ao mesmo tempo, dependente da soberania de Deus;
· Deus delegou ao ser humano a gestão sábia, criativa e sustentável de sua vida e da natureza;
· depois da queda e rebeldia após a criação, o ser humano desvirtuou-se dos propósitos divinos da criação e passou a gerir sem sabedoria a sua vida e a natureza, sem se preocupar com a sua sustentabilidade;
· que o Evangelho de Jesus Cristo traz não somente a restauração espiritual do ser humano, mas uma nova vida e esperança à humanidade;
· que os ideais do Evangelho de Jesus Cristo recuperam os ideais originais da criação reconciliando-a com o Criador.

Neste sentido, DECLARAMOS que
· ao longo da história, o ser humano ultrapassou os limites da gestão sustentável da natureza e que, por conta dessa atitude, o Planeta Terra está em perigo;
· já não é possível mais o ser humano continuar a ser um consumidor da realidade, da vida e do Planeta Terra;
· os dilemas ambientais e ecológicos não afetam apenas o cosmos, mas também a natureza humana e, neste sentido, o ser humano como um micro-cosmo também tem prejudicado a sua saúde física, mental-emocional, social e espiritual pelo inconsequente e imediatista estilo de vida adotado;
· os cristãos, em geral, tem se preocupado mais com a redenção espiritual do ser humano, nem sempre considerando o ser humano e a vida em todos os seus aspectos.

Por fim, CONCLAMAMOS que
· os cristãos de toda a Terra busquem compreender que o Evangelho todo é para todo o ser humano e para o ser humano todo, incluindo a sustentabilidade da vida humana e da natureza;
· cada ser humano assuma o compromisso de cuidar com sabedoria, criatividade e sustentabilidade de sua vida, de seus relacionamentos e da natureza;
· os empresários assumam o compromisso de participar da preservação do ambiente em seus mais variados aspectos – social, ecológico, distribuição justa de bens e oportunidades para todos;
· os empreendimentos imobiliários sejam planejados e executados de modo a preservar o meio ambiente e a transformar o Planeta Terra numa habitação segura para a vida humana;
· que a educação ambiental e para a vida seja incluída na formação do sujeito histórico desde a sua infância em nossa Nação.
· as autoridades governamentais, em todos os níveis, lutem contra a inépcia, a corrupção, o imediatismo, estabelecendo legislação sábia, séria e respeitosa à vida humana, à preservação e ocupação do meio ambiente;
· as autoridades assumam com seriedade o papel de agente fiscalizador do uso sustentável da natureza de modo a preservar também a vida humana, evitando assim os desastres ambientais como os que ultimamente temos sofrido.

Tudo isto para que conquistemos a VIDA PLENA E O MEIO AMBIENTE.

Niterói, RJ, 91ª Assembleia da Convenção Batista Brasileira, 25 de janeiro de 2011 
Comissão da Carta de Niterói
Mere Márcia Prado Bello
Norton Riker Lages
Lourenço Stelio Rega (relator)

jeudi 27 janvier 2011

Cinema e ideologia

Faculdade Teológica Batista de São Paulo
Cinema e ideologia
Uma análise a partir da hermenêutica da crítica ideológica
Prof. Dr. Jorge Pinheiro dos Santos

Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”. (João Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. 6a. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1968, p. 312).

I. O que é hermenêutica?
A hermenêutica, enquanto ramo da filosofia, estuda a compreensão e a interpretação da arte: poiesis. A palavra deriva do nome do deus grego Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem os gregos atribuíam a origem da linguagem e consideravam patrono da comunicação.

Assim, hermenêutica significa interpretar, levar à compreensão. Alguns autores afirmam que o termo hermenêutica significa técnica também e tem por objeto a comunicação de textos antigos, especialmente das Sagradas Escrituras. Seria, então, interpretação do sentido das palavras dos textos: teoria voltada à interpretação dos signos e seu valor simbólico.

A interpretação faz parte da existência. Nem sempre damos conta de que as escolhas e decisões se fazem a partir de interpretações. Elas se processam ao longo do dia, dos anos e da vida. Mas o que é a interpretação? Questionar radica no que há de mais profundo em nós. Sabemos e não sabemos, queremos e não queremos. O caminho da interpretação é a interpretação do caminho como o não-querer e o não-saber de uma questão. Caso soubéssemos o que desejamos na interpretação, não questionaríamos. Por isso, para Manuel Antônio de Castro, “existir é interpretar a questão” (Poética e poiesis, a questão da interpretação, Rio de Janeiro, UFRJ). Mas o que é a interpretação para que nela se dê a questão? A interpretação, o questionar e o que somos estão assim profundamente interligados. Por isso, quando tomamos como tema a interpretação, é em nossa própria existência que estamos pensando. Interpretar nessa dimensão é interpretar-se. A questão é: O que é o interpretar para que nele possa acontecer um interpretar-se? Interpretar-se é eclodir no que cada um é.

Desde os séculos XVII e XVIII o termo foi empregado no sentido de uma interpretação objetiva da Bíblia. Spinoza, filósofo judeu, foi um dos precursores da hermenêutica bíblica. Já para Schleiermacher, teólogo luterano, a hermenêutica não visava o saber teórico, mas sim o uso prático, a técnica da boa interpretação de um texto falado ou escrito. Tratava-se aí da compreensão, que se tornou desde então o conceito básico e a finalidade fundamental de toda a questão hermenêutica. Schleiermacher definiu a hermenêutica como "reconstrução histórica e divinatória, objetiva e subjetiva, de um dado discurso".

Já Wilhelm Dilthey, que formula a dualidade entre as "ciências da natureza e ciências do espírito", que se distinguem por meio de um método analítico esclarecedor e um procedimento de compreensão descritiva, os eventos da natureza devem ser explicados, mas a história e a cultura devem ser compreendidos. Ele entendia compreensão como a apreensão de um sentido, e sentido é o que se apresenta à compreensão como conteúdo. Assim, só poderíamos determinar a compreensão pelo sentido e o sentido apenas pela compreensão. Toda compreensão é apreensão de um sentido, visão que se diferencia daquela de Scheleiermacher, que fazia distinção entre compreensão divinatória e comparativa:

1. A compreensão comparativa se apoiaria em uma multiplicidade de conhecimentos objetivos, gramaticais e históricos, deduzindo o sentido a partir do enunciado.
2. E a compreensão divinatória daria significação a uma adivinhação de forma imediata ou através da apreensão imediata do sentido.

Heidegger, em sua análise da compreensão, diz que toda compreensão apresenta uma "estrutura circular", pois para que uma interpretação possa para produzir compreensão, ela deve já ter compreendido o que vai interpretar.

A partir dessas leituras, teríamos quatro estruturas básicas de compreensão:

1. Estrutura de horizonte: o conteúdo singular é apreendido na totalidade de um contexto de sentido, que é pré-apreendido e co-apreendido.
2. Estrutura circular: a compreensão se move numa dialética entre pré-compreensão e compreensão da coisa, em um acontecimento que progride em forma de espiral, na medida que um elemento pressupõe outro e ao mesmo tempo faz com que ele vá adiante.
3. Estrutura de diálogo: no diálogo, mantemos nossa compreensão aberta, para enriquecê-la e corrigi-la.
4. Estrutura de mediação: a imediatez se apresenta e se manifesta em todos os conteúdos, mas que se medeia à compreensão em nosso mundo e em nossa história.

Segundo Wilhelm Dilthey, estes dois métodos estariam opostos entre si: já que a explicação é própria das ciências naturais, e compreensão é própria das ciências das ciências humanas. Assim, para ele, esclarecemos por meio de processos intelectuais, mas compreendemos pela cooperação de todas as forças sentimentais na apreensão, pelo mergulhar das forças sentimentais no objeto.

Paul Ricoeur, filósofo cristão reformado francês, procurou superar esta dicotomia, afirmando que compreender um texto é encadear um novo discurso no discurso do texto. Isto supõe que o texto seja aberto. Ler é apropriar-se do sentido do texto. De um lado não há reflexão sem meditação sobre os signos e por outro não há explicação sem a compreensão do mundo e de si mesmo.

E será a partir de Paul Ricoeur, sem negar os hermeneutas anteriores, que analisaremos a ideologia e a necessidade de trabalharmos com a hermenêutica da crítica ideológica para entender a correlação cinema e ideologia.

II. O que é ideologia? O que é crítica ideológica?
Ideologia é um conjunto de idéias e cosmovisões de uma pessoa ou de um grupo, orientado para suas ações culturais, políticas e sociais. E se a ideologia é um conceito genérico para os processos pelos quais o sentido é produzido, contestado e transformado, a crítica ideológica se preocupa em teorizar os processos de produção de sentido como realidades culturais, políticas e sociais. Por isso, os interesses da crítica ideológica se correlacionam com formas diferentes de hermenêuticas, como a crítica cultural, a crítica sociológica e a crítica ética, entre outras.

A crítica ideológica trabalha ao nível de três dimensões:

1. a relação entre a linguagem e a produção de sentido;
2. os diferentes discursos que atuam no texto;
3. e a natureza das relações de poder. A partir dessas buscas constrói os contextos institucionais dos textos, de sua recepção e a influência exercida sobre os leitores em suas posições sociais específicas.

Devemos levar em conta que a consciência humana é sempre cultural, histórica e social, e sofre influência das condições concretas da existência. Isso significa que as idéias nem sempre representam a realidade exatamente como ela, mas que muitas vezes por causa das determinações culturais, históricas e sociais nos apresentam essa realidade de forma distorcida. Daí a necessidade de trabalhar como a hermenêutica da crítica ideológica, para descobrirmos as ideologias que se confrontam na compreensão de um texto ou em produções de arte e comunicação como é o caso do cinema.

A tarefa do filósofo, para Paul Ricoeur, na crítica das ideologias é desmascarar os interesses que impedem a realização humana e pautar a construção da linguagem sem limite e coação. São três os interesses que Jürgen Habermas, filósofo alemão fundador da hermenêutica crítica das ideologias (e citado por Ricoeur) apresenta como constitutivos das ciências:

1. o interesse técnico, baseado nas ciências empírico-analíticas;
2. o interesse prático, que constrói a esfera da comunicação a partir das ciências histórico-hermenêuticas;
3. o interesse pela emancipação, constituído pelas ciências sociais críticas.
A partir daí deve partir a hermenêutica crítica das ideologias, mas, sem dúvida, é o interesse pela emancipação que funciona nela como mola propulsora. Assim, a crítica das ideologias situa-se na base de atuação das ciências histórico-hermenêuticas, ou seja, a comunicação. É no reconhecimento desse espaço que se constitui a idéia reguladora do diálogo livre da dominação. Ora, a comunicação é uma herança cultural da humanidade, uma tradição, que é criada e recriada pela interpretação humana. O ideal da comunicação nada mais é do que uma antecipação, que depende da hermenêutica mesmo para ser anunciada como tal. Ou como disse Habermas: “Não podemos antecipar simplesmente no vazio, um dos lugares da exemplificação do ideal da comunicação é justamente nossa capacidade de vencer a distância cultural na interpretação das obras recebidas do passado. É bem provável que quem não é capaz de reinterpretar seu passado, também não seja capaz de projetar concretamente seu interesse pela emancipação”. (Paul Ricoeur, Interpretação e ideologias, org., trad. e apresent. de Hilton Japiassu, 4.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1983, p. 142).

III. Cinema e ideologia

Os artistas são, segundo Martin Heidegger (Emmanuel Carneiro Leão, O pensamento de Heidegger no silêncio de hoje. In: Revista Vozes, 4, 1977, ano 71, p. 6), os vigias da casa do ser, daquilo que somos, são os vigias da linguagem. Por isso, as interpretações são as ações de vigiar a casa do ser, mas não são o ser. Interpretar não é explicar nem analisar, é conduzir ao diálogo poético, onde o real se manifesta na sua verdade dialógica. A interpretação não substitui a obra poética, possibilita o diálogo. O intérprete não salvaguarda o mundo que a obra de arte abre, mas salvaguarda a abertura de mundo. Salvaguardar a abertura de mundo manifesta a obra poética como vigor de ter sido no vir-a-ser do porvir. A interpretação poética é acontecer, que não se propõe, criticamente, como a única verdadeira.

Mas, ao mesmo tempo, a arte sempre traduz ideologias, sejam elas as predominantes na sociedade ou aquelas que se encontram à margem. Isto porque os artistas, ou aqueles que produzem idéias separam-se dos que produzem coisas e à medida que a arte vai ficando cada vez mais distante da sociedade real, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos. Esse é um fenômeno presente no cinema, já que seus profissionais, devido à ideologia tendem a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material. Surge, então, o cinema como cultura de massas predominantemente ideológica.

Eu me lembro de uma experiência vivida em uma viagem a Miami, nos Estados Unidos. Vi um senhor latino varrendo a rua no entardecer. Eu fiquei olhando para ele com uma certa admiração, afinal era velho e magro e tinha uma tristeza no rosto. Ele também olhou para mim e respondeu ao meu olhar com uma única frase em espanhol: “Jovem, isso aqui não é Hollywood”.

Assim a ideologia torna-se ideologia quando não aparece sob a forma de mito, mas como explicação ideal da sociedade. A ideologia surge quando no lugar da palavra dos deuses apresenta idéias: sobre o ser humano, o que é o bem, etc. E no século XX apoiou-se numa arte nova, o cinema. E o que fez o cinema? Ofereceu à sociedade imagens de ocultamente da realidade social, apresentando uma lógica ideológica de dominação social e política. Por isso, ao interpretar uma obra de arte somos chamados ao diálogo com o lado de ocultamento de sua ideologia, mas também a escutar a voz do real na palavra poética. Nessa escuta, que advém da apropriação do que somos, a interpretação não é método ou mediação, mas diálogo e limite, experiência de sentido e verdade do ser. Interpretar torna-se então abrir-se para a escuta e sentido do ser como ethos.

Este abrir-se implica um interpretar-se e não um exteriorizar-se diante de uma obra. Não consiste numa contemplação externa ou interna, mas um abrir-se para a vigência do real, pela qual se dá, na interpretação, uma experiência poética. Nesta, quem advém é o real como mundo. Experienciar a verdade do real como mundo é, então, apropriar-se do que nos é próprio. A apropriação se dá nos limites do caminhar. Interpretar-se poeticamente é experienciar a experiência de ser. Ser é o apropriar-se, em todo caminhar, do vigor de ter sido. Por ter sido, é que podemos nos projetar nos caminhos da interpretação. Por isso, a possibilidade e sentido de toda interpretação é a questão da interpretação como possibilidade e sentido. É sempre uma travessia.

Tudo isso nos leva à questão da interpretação. E aí voltamos a Guimarães Rosa, quando diz que “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” (Grande Sertão: veredas. 6. ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1968, p.235. 22). A questão da interpretação, então, como experiência poética nos leva a inversão: à interpretação da questão. E se aprendemos no exercício de ensinar, nessa aventura poética de interpretar vemos que a interpretação como caminho e experiência poética é o concentrar-se na espera do inesperado.

mercredi 26 janvier 2011

Prazer & Religião

Adélia Prado e Georges Bataille têm preocupações comuns: o cristianismo e o prazer. Cada um a sua maneira, é verdade. Mas, ambos, através da literatura, traduzem o paradoxo de, ao contrário do que vê o cristianismo, não considerarem o prazer humano como excrescência. Eles abordam a vida a partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Por isso, neste texto, partiremos do diálogo possível e necessário entre os dois autores. Tal leitura procura superar a acentuação da teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que, em sua metanarrativa fundante, pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Por isso, consideramos o diálogo Adélia/Bataille pertinente.

Introdução
Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta, positiva ou negativamente, nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza, o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza [1]. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer; e mau, coisas que nos causam dor [2].

Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". (O que é o que é, Gonzaguinha).

Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico na literatura [3].

Daí que, neste ensaio sobre o prazer, partiremos de dois mal-compreendidos, uma poeta brasileira de primeira grandeza, Adélia Prado, e um filósofo francês, Georges Bataille. Ambos de formação católica, acusados de excessivamente prazerosos por críticos e teólogos. Por isso, tal diálogo é pertinente.

Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Suas obras principais são Solte os Cachorros, conto, de 1977, O Coração Disparado, poesia, de 1978, Poesia: Bagagem, de 1979, e Cacos para um Vitral, romance, de 1980. Depois de anos sem publicar, lançou Oráculos de Maio, uma coletânea de poemas, e Manuscritos de Felipa, um texto curto, que ela definiu como experiência literária e religiosa.

Adélia escreve para dialogar com Deus. O leitor entra só como testemunha e até um pouco como invasor. Mas, apesar dos fortes laços que tem com a religião, Adélia considera-se uma poeta e não uma profeta. "Meu projeto sempre foi escrever", ela diz. Não a afeta que parte da crítica e também da comunidade dos poetas, fiéis a um velho preconceito, ainda a considerem mais evangelista do que escritora. Seus poemas e sua prosa são, a rigor, longas conversas com Deus. E faz questão de dizer que não separa a experiência literária da experiência religiosa.

"Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. Mas a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus" [4].

Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billom, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica; a experiência estética no âmbito do surrealismo; e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, à religião e à literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Depois de divorciar-se de Silvia Maldés, sua primeira esposa, esta se casou com o psicanalista Jacques Lacan. Com sua segunda esposa, Diane de Beauchanais, teve uma filha.

Uma de suas obras mais polêmicas é a Historie de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção da cantora pop islandesa Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Suas bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962.

Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda.

A santidade do prazer
A religiosidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição [5]. Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos, o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, invocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor total e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continuidade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros.

Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraçado pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi transmutada no seu próprio contrário [6]. Há neste sonho algo de sublime e trágico.

E para Adélia Prado, poética e religião se cruzam. Na verdade, ela vai além.

"Não separo, para mim elas são a mesma coisa. Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. Mas a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus" [7].

Talvez por isso, ela é poeta e profeta, que vê imbricamentos e destinos que se costuram no ofício que exerce.

"Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas" [8].

E por ser religiosa e poeta, profeta e escritora, acaba desagradando aos críticos que olham desconfiados essa poesia deslavadamente religiosa e aos religiosos que acham excessivamente prazerosos os oráculos desta senhora mineira. Sem dúvida, o prazer permeia os seus textos, prosa ou poética, de forma desafiadora.

"Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais… ah, no fim eu falo" [9].

Voltando a Bataille, a transgressão é a desordem organizada, na medida em que introduz num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organização, fundada no trabalho, tem por base a descontinuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e produtos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a consciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a descontinuidade se faz presente, com poder, através da morte [10]. Ela é tragédia elementar que evidencia a inanidade do ser descontinuo.

E a partir do poema Moça na sua cama, podemos ver como prazer, transgressão e descontinuidade se cruzam na poética de Adélia Prado.

"Papai tosse, dando aviso de si,/ vem examinar as tramelas, uma a uma./ A cumeeira da casa é de peroba do campo,/ posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,/ tomo a bênção e fujo atrás dos homens,/ me contendo por usura, fazendo render o bom./ Se me tocar, desencadeio as chusmas,/ os peixinhos cardumes./ Os topázios me ardem onde mamãe sabe,/ por isso ela me diz com ciúmes:/ dorme logo, que é tarde" [11].

Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas [12]. Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transformaram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desligados dessa totalidade do ser, à qual era contudo necessário religá-los.

Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgressões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. E tal dilema está exposto em Moça na cama.

"Sim, mamãe, já vou:/ passear na praça sem ninguém me ralhar./ Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,/ moa de moços no bar, violão e olhos/ difíceis de sair de mim./ Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,/ os moços marianos vão me esperar na matriz./ O céu é aqui, mamãe./ Que bom não ser livro inspirado/ o catecismo da doutrina cristã,/ posso adiar meus escrúpulos/ e cavalgar no torpor/ dos monsenhores podados./ Posso sofrer amanhã/ a linda nódoa de vinho/ das flores murchas no chão" [13].

E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E o pecado de que fala Baudelaire [14]. As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado [15]. Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inócua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão.

Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado [16]. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. O que nos leva, de novo, à Moça na cama.

"As fábricas têm os seus pátios,/ os muros têm seu atrás./ No quartel são gentis comigo./ Não quero chá, minha mãe,/ quero a mão do frei Crisóstomo/ me ungindo com óleo santo./ Da vida quero a paixão./ E quero escravos, sou lassa./ Com amor de zanga e momo/ quero minha cama de catre,/ o santo anjo do Senhor,/ meu zeloso guardador./ Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe" [17].

Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobrecimento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cujos aspectos não deixarão de estar disponíveis [18]. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana [19].

O prazer da santidade
O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo [20]. Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que fazemos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemente que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, na medida em que a nossa existência está presente em nós sob a forma de linguagem, existe como se não existisse.

Há em nossos dias uma atenuação deste tabu [21], mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio.
Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na experiência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. E Adélia Prado tem consciência disso:

Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bem. Eu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. "O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosaé [22].

Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza [23]. Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realidade que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, na medida em que ambas têm uma intensidade extrema, nos aproxima de outras pessoas e nos afasta delas, nos deixa na solidão.

A passagem do prazer à santidade tem sentido, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito [24]. O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo - felix culpa! - cujo próximo excesso resgata.

Só um desvio permite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão [25]. O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nunca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização.

Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos [26]. A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até o fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o.

Talvez por isso, em 1992, antes de escrever O Homem da Mão Seca, Adélia fez seis meses de psicanálise. E ela garante:

"Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba. Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã" [27].

E assim, na santidade de sua mineirice, Adélia diz que “a religião dá sentido à vida, costura minha experiência, me dá horizonte. Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções” [28].

Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sempre um projeto [29]. Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum.

Considerações finais
O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgressão que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que vai além do cristianismo, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição.

Assim, no plano do prazer, temos a linguagem do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a palavra é a negação do que define o humano por oposição ao animal.

E Adélia Prado nos mostra isso em seu poema Objeto de Amor [30]. E, quando entrevistada pelo jornalista Pedro Bial [31], em programa televisivo, no dia 27 de dezembro de 1998, ao ouvir a pergunta tantas vezes repetida… como uma senhora mineira, católica e mãe de família, podia usar  neste poema expressão tão grosseira, Adélia Prado justificou o uso da expressão mal-dita afirmando que a palavra traduzia a sacralização do corpo, templo de Deus, em sua imagem e semelhança.

[O texto acima foi publicado originalmente na revista eletrônica Correlatio, da Sociedade Paul Tillich do Brasil, da qual Jorge Pinheiro é um dos editores. WEB: www.metodista.br/correlatio]

NOTAS
[1] Spinoza dedica ao problema moral e à sua análise os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz uma história natural das paixões, isto é, analisa as paixões teoricamente e cientificamente, e não desde um ponto de vista moral. O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é tão necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões devem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas e superfícies das figuras geométricas.
[2] Na verdade, foi o marquês de Sade (1740-1814), antes de Nietzsche, a dizer que o que move a ação do ser humano é o bom e o ruim. E o bom, para Sade, é tudo o que causa prazer ao indivíduo, ao passo que o ruim não é o que causa desprazer, mas antes o que vai contra a Natureza. Por isso, podemos chegar a Bataille partindo de Spinoza e passando por Sade, para quem a essência do bom é uma inversão de valores que visa transformar o mundo em outro, que se acredita melhor.
[3] João Ubaldo Ribeiro, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, de 22/1/2000, conta que uma cadeia de supermercados portuguesa recusou-se a vender seu livro, A Casa dos Budas Ditosos, invocando o fato de esta ser pornográfica. Para o escritor tal atitude traduz o fato de que, na cultura cristã, "há um sentimento de culpa ligado ao prazer, que tem marcado o pensamento ocidental. A ponto de Epicuro (…) passar a ser olhado com uma certa reserva, por ser o filósofo do prazer. (…) Numa sociedade que suspeita do prazer. É comum nós, cristãos, ou pelo menos de formação cristã e católica, sentirmo-nos desconfiados no momento em que estamos felizes".
[4] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[5] Georges Bataille, O Erotismo, Lisboa, Antígona, 1988, p. 101.
[6] Georges Bataille, idem, op. cit., p. 102.
[7] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[8] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[9] De Afrodisíacos, Adélia Prado. Texto extraído do livro Filandras, Editora Record, Rio de Janeiro.,2001, p. 53.
[10] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 103.
[11] Moça na sua cama. Esses versos publicados inicialmente no livro O Coração Disparado, foram extraídos de Adélia Prado - Poesia Reunida, Editora Siciliano, São Paulo, 1991, pág. 175.
[12] Georges Bataille, idem, op. cit., p. 104.
[13] Moça na sua cama. Idem, poesia citada.
[14] Segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era espiritualista porque levou às últimas conseqüências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado "poeta do tormento humano", in Jamil Almansur Haddad, Traços Estéticos in Charles Baudelaire, As Flores do Mal, São Paulo: Círculo do Livro, 1995.
[15] "Ser arrebatado não é sempre ativamente resultado do objeto duma paixão. O que destrói um ser arrebata-o também; o arrebatamento é sempre, por outro lado, a ruína dum ser que se dera os limites do decoro." Georges Bataille, A literatura e o mal, Sade, Lisboa, Passagens, pp. 106, 107.
[16] "Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual." Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p.53.
[17] Moça na sua cama. Idem, poesia citada.
[18] Bataille, no prefácio a História do Olho, afirma que "eu nada saberei sobre o que acontece, se nada souber sobre o prazer extremo e a extrema dor!"
[19] Didier Ottinger, Retrato da fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana, nos conta que em maio de 1934, a revista Minotaure traz efetivamente um estudo de Roger Caillois,La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse, em que o autor fornece aos futuros exegetas do louva-a-deus as chaves de sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois, O mito e o homem. Se lhe aplicássemos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-deus pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos "obcecados”. Caillois nos ensina que o inseto é um matador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasmódicos próprios da cópula. Os biólogos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constatação, se indagam se "a fêmea do louva-a-deus, ao decapitar o macho antes do acasalamento, não teria por finalidade obter, mediante a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante". R. Caillois, Le mythe et l'homme, Coleção Essais, 1ª ed. 1938, Paris: Gallimard, 1996, p.54-55. [www.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/pnuhdad0301.htm#notas].
[20] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 223.
[21] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 223.
[22] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[23] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 224.
[24] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 231.
[25] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 231.
[26] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 231.
[27] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[28] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999.
[29] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 232.
[30] Adélia Prado, Poesia reunida, São Paulo, Editora Siciliano, 2001, p. 321.
[31] Entrevista a Pedro Bial, 27 de dezembro de 1998, em programa de televisão transmitido pela TV Globo de assinaturas.

Bibliografia

Obras de Adélia Prado

POESIA
Bagagem, São Paulo, Imago, 1976
O coração disparado, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978
Terra de Santa Cruz, Rio de Janeiro, Nova Fronteira ,1981
O pelicano, Rio de Janeiro, 1987
A faca no peito, Rio de Janeiro, Rocco, 1988
Oráculos de maio, São Paulo, Siciliano, 1999

PROSA
Solte os cachorros, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979
Cacos para um vitral, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980
Os componentes da banda, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984
O homem da mão seca, São Paulo, Siciliano, 1994
Manuscritos de Felipa, São Paulo, Siciliano, 1999
Filandras, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Record, 2001

ANTOLOGIA
Mulheres & Mulheres, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978.
Palavra de Mulher, Fontana, 1979
Contos Mineiros, São Paulo, Ática, 1984
Poesia Reunida (Bagagem, O Coração Disparado, Terra de Santa Cruz, O pelicano e A faca no peito), São Paulo, Siciliano, 1991
Antologia da poesia brasileira, Embaixada do Brasil em Pequim, 1994.
Prosa Reunida, São Paulo, Siciliano, 1999

BALÉ
A Imagem Refletida, Balé do Teatro Castro Alves, Salvador, Bahia. Direção Artística de Antônio Carlos Cardoso. Poema escrito especialmente para a composição homônima de Gil Jardim.

EM PARCERIA
A lapinha de Jesus, com Lázaro Barreto, São Paulo, Vozes, 1969

TRADUÇÕES
Para o inglês
Adélia Prado: Thirteen poems. Tradução de Ellen Watson. Suplemento do The American Poetry Review, jan/fev 1984.
The headlong heart (poemas de Terra de Santa Cruz, O coração disparado e Bagagem). Tradução de Ellen Watson, New York, Livingston University Press,1988,.
The alphabet in the park (O alfabeto no parque). Tradução de Ellen Watson, Middletown, Wesleyan University Press, 1990.

Para o espanhol
El corazón disparado (O coração disparado). Tradução de Cláudia Schwartez e Fernando Roy, Buenos Aires, Leviantan, 1994.
Participação em antologias
A poesia mineira no século XX. Assis Brasil (org.). Rio de Janeiro, Imago, 1998.
Palavra de mulher, Maria de Lurdes Hortas (org.), Rio de Janeiro, Fontoura, 1989.
Sem enfeite nenhum. In Prado Adélia et alii. Contos mineiros. São Paulo, Ática, 1984.

Georges Bataille e outros
Bataille, Georges, O Erotismo, Lisboa, Edições Antígona, 1988.
_____________, A literatura e o mal. São Paulo, L&PM, 1989.
_____________, Teoria da religião, São Paulo, Ática, 1993.
_____________, História do Olho (seguida de Madame Edwarda e O Morto), São Paulo, Editora Escrita,1981.
Braaten, Carl E. e Jenson, Robert W., Dogmática Cristã, São Leopoldo, Sinodal, 1990, volume 1.
Chauí, Marilena, Spinoza, uma filosofia da liberdade, Coleção Logos, São Paulo, Editora Moderna, 1999.
Crespi, Franco, A experiência religiosa na pós-modernidade, Bauru, Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1998.
Dussel, Enrique, Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Editora Vozes, 2000.
Eliade, Mircea, O sagrado e o profano, a essência das religiões, São Paulo, Martins Fontes, 2001.
Lowen, Alexander, Prazer, uma abordagem criativa da vida, São Paulo, Círculo do Livro, 1994.
Mills, C. Wright, A nova classe média, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976.
Monzani, Luiz Roberto, Desejo e prazer na idade moderna, Campinas, Ed. Da Unicamp, 1995.
Nietzsche, Friedrich, Além do bem e do mal, prelúdio a uma filosofia do futuro, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
Otto, Rudolf, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992.
Pinheiro, Jorge, Somos a imagem de Deus, São Paulo, Ágape Editores, 2001.
____________, Ética e espírito profético, São Paulo, Igreja sem fronteiras, 2002.
____________, Os batistas e os desafios da brasilidade, elementos para um discurso, São Paulo, Igreja sem fronteiras, 2002.
Segundo, Juan Luís, Que mundo, que homem, que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e teologia, São Paulo, Paulinas, 1995.
Sobrino, Jon, Espiritualidade da libertação, São Paulo, Edições Loyola, 1992.
Spinoza, Baruch, Obras diversas, in Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Abril Cultural, 1988.

Fonte:
Via Politica
http://www.viapolitica.com.br/artigo_view.php?id_artigo=19

mardi 25 janvier 2011

Subindo a montanha com Moisés

Êxodo 19. 16-25.
Na manhã do terceiro dia houve trovoadas e relâmpagos, uma nuvem escura apareceu no monte, e ouviu-se um som muito forte de trombeta. E todo o povo que estava no acampamento tremeu de medo. Moisés os levou para fora do acampamento a fim de se encontrarem com Deus, e eles ficaram parados ao pé do monte. Todo o monte Sinai soltava fumaça, pois o SENHOR havia descido sobre ele no meio do fogo. A fumaça subia como se fosse a fumaça de uma fornalha, e todo o povo tremia muito. O som da trombeta foi ficando cada vez mais forte. Moisés falou, e Deus respondeu no barulho do trovão. O SENHOR desceu no alto do monte Sinai e chamou Moisés para que fosse até lá. Moisés subiu, e o SENHOR lhe disse: —Desça e avise ao povo que não passe os limites para chegar perto a fim de me ver. Se passarem, muitos deles morrerão. Avise também os sacerdotes que eles devem se purificar a fim de poderem chegar perto de mim. Se não se purificarem, eu os matarei. Moisés disse a Deus, o SENHOR: —O povo não poderá subir o monte, pois tu nos mandaste respeitar este monte como lugar sagrado e mandaste também marcar limites em volta dele. Então o SENHOR respondeu: —Desça e depois volte com Arão. Porém os sacerdotes e o povo não devem passar os limites a fim de subir até o lugar onde estou. Se fizerem isso, eu os matarei. Aí Moisés desceu até o lugar onde o povo estava e contou o que Deus tinha dito.

Toda a comunidade viveu a mesma experiência que Moisés teve no Sinai, mas não subiu ao monte.
1. Por que subir era importante?

1.1. Subir em hebraico é “alah”, que significa ascender, ir para cima.
1.2. Também pode significar oferecer, quando se refere a um sacrifício.
1.3. E a palavra “aliyah”, que é derivada da palavra “alah”, significa retornar das terras da dispersão ou subir o monte Sião.

Dessa maneira, subir é:

1.4 Retornar das terras da dispersão
1.5 Dirigir-se ao  monte santo de Deus
1.6 Oferecer um sacrifício agradável a Ele. 

E isso é muito importante.

2. Deus descia até o povo para ensiná-lo. Na sua misericórdia, Deus descia até o alto do monte...

2.1 Para se relacionar com o seu povo;
2.2 Para ensinar à comunidade como se relacionar com Ele,
2.3 Para ensiná-la a viver melhor com seus semelhantes.
Mas Deus é santo...

3. Por isso, apesar de descer até o alto do monte, definia os limites do relacionamento da comunidade para com Ele.

3.1 O motivo dessa separação é a santidade de Deus.
3.2 Mas Jesus quebrou as barreiras da separação.
3.3 Cristo possibilita à comunidade entrar no interior do véu, ou seja, subir a montanha como Moisés fez. Ou, como diz o escritor da carta aos hebreus:

Essa esperança mantém segura e firme a nossa vida, assim como a âncora mantém seguro o barco. Ela passa pela cortina do templo do céu e entra no Lugar Santíssimo celestial”. Hebreus 6.19.

Para pensar

Somos chamados a subir a montanha. Chamados a deixar a vida de confusão. Viver uma nova vida, agradável a Ele. Ouvir diretamente suas palavras. Mas atenção: Moisés subiu para descer. Assim, somos chamados a subir, mas subir para depois descer. E a gente desce para ficar no nível daqueles que estão em baixo e fim de que também eles deixem as terras da dispersão, ofereçam uma vida agradável a Deus e conheçam as boas novas da salvação.

mardi 18 janvier 2011

O diálogo das origens

Então Iavé Eloim modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente. (Gênesis 2.7).

O texto nos leva a uma concepção de exterior versus interior [1], que tem por base Deuteronômio 32.9, quando afirma que uma parte do Eterno faz o seu povo. Mobiliza assim em diferentes níveis essa força criadora, que constitui uma parte do Eterno.

A matéria-prima utilizada pelo Eterno na modelagem humana é ordinária, enquanto material pertencente a ordem comum de ló nefesh: inanimados e animais. É o sopro do Eterno que faz especial essa matéria ordinária. Mas será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criadora do Eterno transmite à matéria ordinária não somente vida, mas transfere intensidade e profundidade? De certa maneira, não é absurdo dizer que os seres celestiais são criaturas integralmente espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora do Eterno. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra, da palavra criadora do Eterno.

Mas o sopro procede do interior do Eterno e por isso é conhecido como ein soph, que vem de dentro. Ele soprou deve ser entendido como continuidade da afirmação anterior “façamos o homem” (Gn 1.26), de maneira que o sopro liga céu e terra, o que está acima e o que está abaixo. Por isso, dizemos que a natureza humana é superior à natureza angélica, porque brota de dentro da eternidade. Traduz ação mediadora e conjuntiva da força criadora. Donde, a natureza humana procede de atributos eternos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integridade, pluralidade, sabedoria e compreensão.

E nefesh entende-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência da eternidade, que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em cima com o que está em baixo.

Mas essa natureza também vai se constituir enquanto expansão dos significados da revelação, em amor e graça. Na expressão nefesh as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial, garganta e boca [2], que possibilitam o sopro. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gn 2.7, vemos que aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem destino.


Notas
[1] Raphaël Draï, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégese et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996, p. 414.
[2] Nefesh como substantivo ganhou vários sentidos, sendo garganta um deles, e assim é usado em Provérbios 23.2. “E põe uma faca à tua garganta, se fores um homem de grande apetite” (cf. Is 5:.4 e Hc 2.5). A garganta ou goela, é por onde entra e sai a respiração, o ar. O ser humano, então, ganhou a designação nefesh, ser que respira. No humano refere-se também à forma que o espírito e a inteligência, sem forma em si, assumiram ao animar o corpo. 

Referências bibliográficas
Draï, Raphaël, La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1996.
Eichrodt, Walter, O Homem no Antigo Testamento, São Paulo, FTIMB, 1965.
Guinsburg, J., Do Estudo e da Oração, São Paulo, Editora Perspectiva, 1968.
Hasel, F. Gerhard, Teologia do Antigo Testamento, questões fundamentais no debate atual, Rio de Janeiro, Juerp, 1992.
Kaufmann, Yehezkel, A Religião de Israel, São Paulo, Editora Perspectiva, 1989.
Mezan, Renato, Freud: A Trama dos Conceitos, São Paulo, Editora Perspectiva, 1982.
Rowley, H. H., A Fé em Israel, Aspectos do Pensamento do Antigo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1977.
Scholem, Gershom, A Mística Judaica, São Paulo, Editora Perspectiva, 1972.
Schultz, Samuel J., A História de Israel no Antigo Testamento, São Paulo, Edições Vida Nova, 1992.
Westermann, Claus, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1987.
Wolff, Hans Walter, Antropologia do Antigo Testamento, São Paulo, Edições Loyola, 1975.
Wright, G. Ernest, O Deus que Age, São Paulo, Aste, 1967.
 

samedi 15 janvier 2011

Uma nova visita a Sodoma e Gomorra


Os gregos e romanos falavam do Vale dos Campos onde antes ficavam as cidades cananéias de Sodoma, Gomorra, Admá, Zeboim e Zoar inundadas por um cataclismo ecológico. Os estudiosos modernos trabalham com a hipótese de que tal catástrofe foi provocada por uma falha geológica na margem sul do mar Salgado: suas águas transbordaram e cobriram as regiões mais baixas a sua frente.

Assim já faz tempo que a arqueologia e as ciências afins
olham com curiosidade para a região do mar Morto. Segundo a tradição, o general Tito, que comandou exércitos de Roma durante a destruição de Jerusalém, no ano 70 da nossa era, condenou escravos à morte por afogamento, no mar que fica próximo ao monte de Moabe. Jogados várias vezes ao mar, acorrentados, eles voltavam à tona como se fossem de cortiça. Tito ficou tão impressionado que perdoou os condenados. Não podemos garantir a veracidade da história, mas ela nos remete ao fato de que a realidade daquele grande lago salgado está envolta em mistérios que apontam para fatos acontecidos há milênios.

As várias pesquisas realizadas na região, por institutos católicos ligados ao Vaticano, por pesquisadores ligados às universidades de Israel e da Jordânia, assim como por especialistas estadunidenses e europeus levam a uma grande hipótese geral: a de que tenha havido por volta do século 21 antes de Cristo alguma espécie de catástrofe na região, que pode ter sido ocasionada por impacto de meteoro, gerando terremoto e incêndios, já que subsolo é rico em lençóis petrolíferos.

Vejamos um dos caminhos construídos pela ciência moderna sobre as cidades de Sodoma e Gomorra.
O professor Mark Hempsell, a partir da tradução de tábua de argila guardada no Museu Britânico, data a destruição de Sodoma e Gomorra no ano 3.123 antes de Cristo. Se trabalharmos com os relatos bíblicos, tal cataclismo se deu durante a presença de Abraão e Ló na Palestina, ou seja, entre os anos 2.000 e 1.800 antes de Cristo.

Diante disso, temos três hipóteses. A primeira é a de que a destruição de Sodoma e Gomorra e a presença de Abraão e Ló na Palestina se deram em épocas distintas. A segunda, conseqüência da primeira, o relato bíblico juntou tradições diferentes, Sodoma e Gomorra e Abraão e Ló, numa única história. E a terceira é que, de fato, a destruição de Sodoma e Gomorra e a presença de Abraão e Ló na Palestina fazem parte de acontecimentos de uma mesma época, são contemporâneos.

A partir da última hipótese, a história da
tábua de argila guardada no Museu Britânico fala de um meteoro que caiu sobre a terra 1.100 anos antes de Sodoma e Gomorra e da presença de Abraão e Ló na Palestina. Isso não descarta a “hipótese meteoro”, mas levanta a possibilidade de não ter sido este meteoro que destruiu Sodoma e Gomorra.

O que os pesquisadores cristãos afirmam, diante dessas variáveis científicas, é que o rolo das Origens fala de acontecimentos tão antigos, que dificilmente podemos ter uma palavra final e definitiva sobre eles. Não descartam hipóteses arqueológicas, já que o Eterno utiliza a natureza, criação dele, para se revelar ao ser humano. E consideram, pelas próprias pesquisas, a existência do Vale dos Campos e as cidades de
Sodoma, Gomorra, Admá, Zeboim e Zoar. Não sabem exatamente como foram destruídas, se por meteoro (fez chover fogo e enxofre), terremoto, submersão, incêndios de jazidas petrolíferas ou todos estes fenômenos combinados.

Mas, teologicamente, o relato deve ser levado em conta: o rolo das Origens conta que havia sérias acusações contra as cidades de Sodoma e Gomorra e que a perda de sentido do humano e da vida de seus moradores era profunda. E que o Eterno disse a Abraão que se existissem dez pessoas inteiras em Sodoma ele não destruiria a cidade. Mas, no dia seguinte...

“Abraão olhou na direção de Sodoma e Gomorra e de todo o vale e viu que da terra subia fumaça, como se fosse a fumaça de uma grande fornalha. Foi assim que Deus destruiu as cidades do vale”. (Gn 19.28-29).

vendredi 14 janvier 2011

As correlações entre a Religião e a Política


Religião e política, para Paul Tillich, não são realidades estanques, isto porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Pensamento político é a expressão de um ser político, de uma situação social. Não se pode entender o pensamento quando se subestimam as realidades sociais das quais vem o pensamento político.

As raízes do pensamento político não podem agir com uma força igual em todo momento e em todo grupo. Um ou outro pode predominar, depende de uma situação social, grupos ou formas de dominação determinadas, pois dependem de estruturas sociopsicológicas, da interação com a situação social objetiva. Assim, o primeiro referencial é o ser. Nesse sentido, Tillich trabalha com uma fenomenologia política quando analisa questões como o ser, a origem do pensamento político, enquanto mito, e a partir daí procura trazer à tona os elementos não reflexivos do pensamento político.[1] E a questão do ser, presente na teologia, leva a uma antropologia existencial. Ora, a questão existencial é traspassada pela religião, que é a dimensão da profundidade, o espectro da profundidade na totalidade do espírito humano. A metáfora profundidade significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser humano, é último, infinito e incondicional. No sentido mais amplo e fundamental do termo, religião é preocupação última. E a preocupação última se manifesta em absolutamente todas as funções criativas do espírito humano. Assim, a religião constitui a substância, o fundamento e a profundidade da vida espiritual do ser humano.[2]

Nem sempre é necessário perguntar pelas raízes de um fenômeno social, mas quando a existência está sob risco, então é necessário perguntar quais são suas raízes? É necessário procurar pelas raízes do pensamento político no próprio ser humano. Sem uma imagem do humano, de suas forças e tensões, não se pode dizer nada sobre as fundações políticas do pensamento e do ser político. Sem uma teoria do humano, não se pode construir uma teoria das orientações políticas. Mas, o ser humano, diferente da natureza, é um ser dividido. Não importa saber onde termina a natureza e onde começa o humano, não importa que a passagem entre os dois se faça através de lentas transições ou por um salto. O importante é que em determinado momento, a diferença ficou clara. Há, no entanto, um processo vital indiviso, que desdobra a natureza sem interrogar nem requerer, um processo que está ligado àquilo que se encontra nele e faz parte do que ele é. Assim, existe um processo vital que deseja saber sobre o humano, e que coloca algumas questões para ele: já não é indiviso, mas também dividido. É idêntico a si mesmo quando diante de si mesmo, no ato de pensar e de conhecer. Mas não apenas isso.

O ser humano tem consciência de si mesmo, ou em outras palavras, distingue-se da natureza enquanto ser que se desdobra, tornando-se um ser consciente de si mesmo. A natureza ignora esta divisão. Por isso, o humano não é uma combinação de duas partes autônomas, tais como natureza e mente ou corpo e alma, mas um só ser, porém fendido em sua unidade. Estas determinações gerais levam a algumas considerações no que se refere à pesquisa do pensamento político. Elas negam qualquer dedução do pensamento político enquanto puro movimento de pensamento, de exigências ético-religiosas, ou considerações ditadas por determinada cosmovisão.

O pensamento político vem do ser humano enquanto unidade. Está enraizada no ser e na sua consciência, mais precisamente em sua unidade indissolúvel. É por isso que não se pode entender um sistema de pensamento político sem contextualizar seu enraizamento no ser humano enquanto ser social, ou seja, o imbricamento de pulsões e interesses, os constrangimentos e as aspirações constituintes do ser social. Mas também é impossível separar o ser de sua consciência, ou ver o pensamento político como simples subproduto do ser. Assim, a consciência estrutura todo o ser do homem, todo o ser social, em cada um de seus elementos, inclusive as sensações pulsantes mais primitivas. Quando se tenta desfazer laços passa-se ao largo da primeira e mais importante característica da essência humana, o que produz uma distorção no quadro geral que ele faz de si próprio, de que há uma consciência inadequada ao ser, uma falsa consciência, mas que não invalida a unidade do ser e da consciência. Isto porque, afirma, o conceito de falsa consciência não é possível quando a coisa que se designa é não conhecível. Assim, a consciência justa é uma consciência que emerge do ser e ao mesmo tempo o determina. Não pode ser uma coisa sem ser a outra, porque o humano é uma unidade na divisão, e desta unidade nascem as duas raízes de todo pensamento político. O ser humano se encontra enquanto realidade dada, assim como seu ambiente. Mas estar no mundo enquanto realidade significa que não vem de si mesmo, que não é sua própria origem. Conforme diz Heidegger, o humano é um ser lançado. Esta situação leva o ser humano a colocar-se o problema da fonte. O que mais tarde vai aparecer como questão filosófica. Mas tal discussão é uma construção, e o mito apresenta a primeira resposta, enquanto determinante para a discussão de conjunto.  

A origem é o que faz emergir. Este aparecimento dá lugar a algo novo, que não existiu antes, que produz uma consciência própria, diferente da origem. A realidade que somos está colocada, mas também é algo próprio. É uma tensão entre o ser-posto e o ser-próprio. Mas, a origem não nos liberta. Não se pode dizer que era e que não é mais. Constantemente somos puxados pela origem: ela nos faz emergir, nos segura firme. É ela que nos estabelece como algo, enquanto essência. Dessa maneira, ser-posto no mundo supõe caminhar para a morte.

As concepções conservadoras e progressistas

A concepção conservadora admite o surgimento do eterno no tempo, que repousa no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura.[3] A força dessa concepção repousa no fato de que considera o eterno como dado e não como resultado da ação cultural e religiosa do ser humano.

Paul Tillich ao falar da plenitude do tempo no evento Jesus, explica a construção de sua concepção de kairós: um tempo carregado de tensão, de possibilidades e impossibilidades, qualitativo e rico de conteúdo. Nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos, nem tudo é exigido em todo momento. Diversos mestres, diferentes poderes cósmicos, reinam em tempos diferentes, e o Senhor que triunfa sobre anjos e poderes, reina no tempo pleno de destino e de tensões, que se estende entre a Ressurreição e a Segunda vinda. Ele reina no tempo presente que, em sua essência, é diferente dos outros tempos do passado. É nessa viva e profunda consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia consciente da história.[4] A concepção conservadora também reconhece o kairós, mas o situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado como acontecimento único, é ele quem se revela em todos os sim/não do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousa o pensamento político conservador. Perdeu o sentido supratemporal do kairós.[5] e

O mito expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de objetos e eventos nos quais o grupo humano percebe sua origem. Em todos os mitos ressoa a lei cíclica do nascimento e da morte. Todo o mito é mito da origem, responde à pergunta da providência e conta porque somos segurados na origem e estamos debaixo de seu império.[6] A consciência mítica original é a raiz de todo o pensamento político conservador e romântico. A consciência mítica não apresenta a origem de forma abstrata, mas concreta, sob a forma de poderes originais determinados. A existência humana distinta e suas origens são diferentes, assim como o são os poderes da origem, percebidos no mito e atualizados no culto. Porém, é possível operar alguns reagrupamentos significantes de poderes originais que têm uma grande importância política. [7]
   
Embora haja pontos de contato entre os conceitos expressos por Paul Tillich e o pensamento marxista, principalmente no que se refere à construção de um pensamento político conservador, é interessante ver as diferenças. Para Marilena Chauí, filósofa brasileira, teórica do Partido dos Trabalhadores, o mito deve ser entendido enquanto conceito antropológico, no qual a narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.

Um mito fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para exprimir-se, novas linguagens, novos valores e idéias, de tal modo que, quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.[8]

Dessa maneira, para Chauí, o mito é sempre falsa consciência. Mas o ser humano vai além do colocar-se como realidade dada, vai além do saber colocar-se diante do ciclo do nascimento e a morte. Faz a experiência de uma exigência que separou o imediato da vida e o leva a colocar-se diante da pergunta da providência uma outra pergunta: por que? Esta pergunta quebra o ciclo de uma maneira fundamental, eleva o ser humano acima da esfera do simples viver. Porque é a exigência de algo que não está aí, que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que já é, disso que é, significa que tal exigência impôs ao ser humano o incondicionado. O por que não está dentro dos limites da fonte. É o incondicionalmente novo. Através desse por que o ser humano deve alcançar algo de incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência, quando o humano, por ser dividido, faz esta experiência. Ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além da realidade, além daquilo que o cerca. Tal é a liberdade do ser humano: não que ele tenha uma vontade livre, mas não está preso, enquanto humano, ao que está dado. O ciclo do nascimento e morte foi quebrado, sua existência e sua ação não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, são rasgados os laços da origem, o mito original está quebrado. A ruptura do mito original pela exigência incondicional é a raiz do pensamento político liberal, democrático e socialista.

A concepção progressista considera o eterno um alvo infinito, existente em cada época, mas que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim[9] A exigência que o ser humano faz na experiência diante do incondicionado não é estranha a ele. Se fosse estranha à sua essência, não lhe seriam concernentes e ele não poderia discernir tal coisa como exigência. Se ela lhe toca é porque coloca diante de seus olhos sua essência enquanto exigência. Funda-se a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser aborda o humano e exige ser afirmado por ele. Se a exigência é a própria essência do humano, então ela encontra seu fundamento na sua origem, e então a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. Ainda, diante do original, o que é requerido é o incondicionalmente novo. Assim, a origem é ambígua. Há nela uma separação entre origem verdadeira e a origem real. O que é realmente original não é o que é original de verdade. Dessa maneira, a realização da origem é esta exigência e este dever-ser pelo qual o humano é confrontado. O por que do ser humano é a realização da sua providência. A origem real é negada pela origem verdadeira; mas certamente, não é uma pura e simples negação. A origem real tem que levar à verdadeira, ela é sua expressão, mas também disfarce e distorção. A pura consciência mítica original ignora todas as ambiguidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que, fazendo a experiência da exigência da incondicionalidade, se livra dos laços de origem e se apercebe da ambiguidade da origem.    incondicionais, a supressão do anúncio da plenitude dos tempos. É o verdadeiro adversário do espírito profético.

A exigência quer a realização da origem verdadeira. Porém o ser humano não recebe uma exigência incondicionada de outros. É no reencontro do "eu e você" que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido no você com a dignidade do "eu", a dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que apontada à origem. Reconhecer no você uma dignidade igual a do eu, isto é justiça. A exigência que nos arrasta à ambiguidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação e destroem um ao outro. Quando a origem é rompida vem o poder do ser, o declínio dos poderes que expiam e são julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo, como já evocou a filosofia grega. A exigência incondicional eleva acima deste ciclo trágico. Diante do poder e da impotência do ser, opõe a justiça, que provém do dever-ser. Mas essa teoria tillichiana de uma justiça criativa não deve levar aquele que a pratica ao esquecimento das violências do passado, quando grupos se lançaram uns contra os outros, mas nos opormos a essas ações e outras semelhantes, pois o amor pode ir além da separação, não ignorando diferenças, mas dirigindo as partes aos valores mais elevados. Esse é o desafio da justiça criativa: trabalhar a partir das relações pessoais e comunitárias para sobrepujar os problemas do passado e as estruturas existentes, a fim de desenvolver novos modelos de relacionamento e criar leis novas que contribuam para unir as pessoas e os povos, e aumentar o poder. A justiça criativa constitui a última interrelação do amor, do poder e da justiça, mas podemos senti-la e mesmo experimentá-la de maneira fragmentária e momentânea, em meio às ambigüidades da vida. A justiça criativa põe em evidência o poder transformador do amor.[10] Portanto, não há oposição entre justiça e poder, porque o dever-ser é a realização do ser. A justiça é o verdadeiro poder do ser. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre os dois elementos da existência humana e as duas raízes do pensamento político, a exigência predomina sobre a pura origem, e a justiça, sobre o puro poder do ser. A pergunta do por que é superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença rompida, uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica profética. Para Tillich, esse espírito profético está envolvido na situação histórica concreta, tem coragem de decidir e colocar-se sob julgamento ao nível do particular, sem esquecer que sua relação aponta ao incondicionado, e que o ponto mais elevado que é possível alcançar no tempo está submetido ao não. Por isso, o espírito profético não deve perder a audácia do não e do sim concretos.

A utopia e o kairós

Isto é verdade porque cada tensão orientada para adiante comporta uma representação daquilo que deve vir e de como se entende a realização desse ideal. A utopia está presente em todo agir incondicionalmente orientado à transformação do presente.[11] A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o eterno abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Progresso mitigado é o resultado da utopia revolucionária desencantada.

A idéia do kairós nasce da discussão com a utopia.[12] O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter absolutamente decisivo deste instante histórico enquanto destino, mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua essência, aquele que faz a revolução no tempo, sem, contudo, fixar-se nele. Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo.[13]kairós e a utopia, que pensa poder fixar a eternidade no tempo presente. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito da profecia no tempo presente, que voltamos ao kairós, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável.[14] Kairós significa tempo concluído, o instante concreto e, no sentido profético, a plenitude do tempo, a irrupção do eterno no tempo. Kairós não é um momento qualquer, uma parte do curso temporal: kairós é o tempo onde se completa aquilo que é absolutamente significativo, é o tempo do destino. Considerar uma época como um kairós, considerar o tempo como aquele de uma decisão inevitável é considerá-lo enquanto espírito da profecia. Tal desafio não pode ser resolvido por um homem ou por uma mulher, por mais que encarnem o espírito da profecia. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa. Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há no espírito profético da responsabilidade inelutável um choque entre este
 
Essas duas raízes do pensamento político mantêm entre elas uma relação que é mais do que simples justaposição. A exigência predomina na origem. Considerando as várias tendências políticas, não se pode supor que elas sejam atitudes humanas justificadas. Onde são requeridas decisões, o conceito tradicional de realidade não é aplicável, diferente de quando estamos diante de uma exigência do incondicionado.

Ninguém pode entender o socialismo se não experimentar a exigência de sua justiça como uma exigência do incondicionado. Quem não é confrontado pelo socialismo não pode falar do socialismo, a não ser enquanto expressão que vem do exterior.[15] Não pode falar dele porque é contrário às tendências políticas que defende. Aí está o nó da origem. Mas, todo sistema político requer autoridade, não só no sentido de possuir instrumentos de força, mais também em termos de consentimento tácito das pessoas. Tal consentimento só é possível se o grupo que está no poder representa uma idéia poderosa, que goze de significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Toda estrutura política pressupõe poder[16] e um grupo que o assume. Mas um grupo de poder é também um conglomerado de interesses opostos a outras unidades de interesses e sempre necessita uma correção. A democracia está justificada e é necessária na medida em que é um sistema que incorpora correções contra o uso errôneo da autoridade política.[17] Assim, religião e política não são realidades estanques, porque as raízes do pensamento político não são apenas pensamentos. Religião e política estão imbricadas, mas não existem sem a necessidade de correção, ou seja, da democracia,[18] enquanto grupo no poder.


Notas
[1] Paul Tillich, “La Décision Socialiste”, in Écrits contre les nazis (1932-1935), op. cit., p. 27.
[2] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, A dimensão religiosa na vida espiritual do homem, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1974, pp. 16-17. Man’s right to knowledge, Columbia University Press, 1954.
[3] Paul Tillich, “Kairos II. Idées à propos de la situation spirituelle du temps présent”, in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 253-267. “Kairos II, Ideen zur Geisteslage der Gegenwart”, Die Widerstreit von Raum und Zeit, Gesammelte Werke VI, 1963, pp. 29-41. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[4] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op. cit., pp. 259-260.    
[5] Paul Tillich, “Kairós II”, in Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), op.cit., p. 260.
[6] Martin Leiner, “Mythe et modernité chez Paul Tillich, in Marc Boss, Doris Law, Jean Richard (ed.), Mutations religieuses de la modernité, Actes du XIVe. Colloque International Paul Tillich, Marselha, 2001,  Hamburgo, Londres, LIT, 2002, p. 13. 
[7] Paul Tillich, La Décision Socialiste, op. cit., p. 17.
[8] Marilena Chauí, Brasil, mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2000, p. 9.
[9] Paul Tillich, “Kairós II”, op.cit., p. 260.
[10] Mary Ann Stenger, “La justice créative dans les écrits de Tillich sur le socialisme et dans ‘Amour, pouvoir et justice’”, in Etudes théologiques et religieuses, ETR, 79o. ano, 2004/4, p. 527, Montpellier, Institut Protestant de Théologie, 2004.
[11] Paul Tillich, Kairós II, op.cit., p. 260.
[12] Paul Tillich, “Idéologie et utopie. À propos d’un ouvrage de Karl Mannheim” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec : Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 320-322.  “Ideologie und Utopie”, Begegnungen, Gesammelte Werke XII, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1971, pp. 255-261. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[13] Paul Tillich, Kairós II, op. cit., p. 261.
[14] Paul Tillich, História do Pensamento Cristão, São Paulo, ASTE, 2000, p. 24. Texto original: A History of Christian Thought, Ed. Carl E. Braaten, Nova York, Harper and Row Publishers, Inc., 1968. Vorlesungen uber die Geschichte des christlichen Denkens, Stuttgart, Evangelische Verlag W., 1971.
[15] Paul Tillich, “La décision socialiste”, op.cit., p.31.
[16] Paul Tillich, “Le problème du pouvoir. Essai de fondation philosophique” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 486-488. “Das Problem der Macht, Christentum und soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp. 193-208. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.
[17] Paul Tillich, Teologia de la cultura y otros ensayos, op. cit., pp. 239-240.
[18] Paul Tillich, “Le socialisme” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p. 346.  “Sozialismus”, Christentum und Soziale Gestaltung, Gesammelte Werke II, Evangelisches Verlagswerk Stuttgart, 1962, pp.139-150. Trad. fr. Nicole Grondin e Lucien Pelletier.

Fonte
Jorge Pinheiro, Teologia e Política, Paul Tillich, Enrique Dussel e a Experiência Brasileira, São Paulo, Fonte Editorial, 2006, "As correlações entre a Religião e a Política", pp.33-42.