jeudi 25 octobre 2018

Teologia e ética social protestante


Em Christianisme et Socialisme (1919-1931), Écrits socialistes allemands, o teólogo teuto-americano Paul Tillich fornece bases teóricas e roteiro para a leitura teológica da ética social protestante. Uma dessas bases teóricas é o conceito de situação-limite, que explica como estruturas e realidades sociais colocam em risco o sentido da vida, e como diante dessa ameaça é necessária a proclamação da vida. A este protesto contra aquilo que ameaça a essência do ser, a partir de Tillich, chamamos práxis protestante.



Para Tillich, protestante é quem denuncia a situação-limite e proclama o novo ser. Nesse momente e lugat se encontra o protestantismo. É possível que o protestantismo se apresente sob a forma religiosa, mas não depende dela. Por isso, a maioria das pessoas enfrenta a situação-limite fora das comunidades cristãs e a práxis protestante acabe por ser vivida por pessoas e movimentos que pertencem à esfera secular, sem qualquer filiação eclesiástica. Quando pessoas e comunidades seculares, não religiosas, vivem a práxis protestante então é aí, e não nas igrejas, que o protestantismo se torna vivo.[1] 

Tomando-se por base tal conceito, documentados em Christianisme et Socialisme (1919-1931), Écrits socialistes allemands, temos ferramentas para pensar a étira protestante. E mais do que isso, levando em conta a riqueza do momento histórico vivido pelo Brasil no final dos anos 1970, tanto em relação à consolidação da democracia, quanto em relação às perspectivas de construção do futuro, aquele foi um momento especial, de tempo bom, especial e favorável para a construção de propostas e alternativas sociais. Foi um tempo carregado de tensão, de possibilidades, qualitativo e rico de conteúdo, mas nem tudo é possível sempre. Isto porque, os poderes são plásticos e se fazem presentes em tempos diferentes. É nessa consciência da história que está enraizada a idéia de kairós e é a partir dela que deve ser elaborado o conceito de uma filosofia da história.[2]

Ao analisar o surgimento do socialismo, Tillich leva em conta aspectos históricos, como os movimentos ideológicos que se estruturam a partir da Reforma. Tal metodologia é relevante para a compreensão do contexto a partir do qual constrói a sua ética social protestante. O clamor por um posicionamento de resistência à corrupção, como o nazi-fascismo, deveria levar a comunidade cristã a elaborar uma mensagem de esperança para o mundo. Mas, muitas vezes, a comunidade cristã não protestou, ao contrário, procurou submeter a cristandade aos podres poderes que se levantavam.


Situação-limite é a ameaça a tudo que dá sentido real à existência.[3] Clamor e práxis frente a este dragão é o diferencial do protestantismo. A expressão nasceu em torno da justificação pela fé.[4] Vida em liberdade significa viver a exigência incondicional da justiça. Assim, o reconhecimento da situação-limite exige juízo e transformação, realça a diferença entre defesa do poder e práxis protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite. Por isso, sem a compreensão da realidade ética a idéia de vocação pessoal não basta para se construir uma ética. Ou seja, não se funda uma ética protestante apenas sobre o terreno da pessoalidade.[5]

Mas é importante entender que não existe uma interpretação absoluta do mundo da essência, fonte de toda ética, já que essa essência não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica na existência. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma ética social absoluta, nem uma construção de tipo racionalista. Toda compreensão real da essência e como conseqüência toda ética real são concretas. Essa essência se situa no kairós, naquele momento temporal determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ela não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual, o que é válido tanto para a pessoa, quanto para a consciência ética geral de um grupo social. Exatamente por isso, toda realidade essencial comporta dois aspectos, aquele a traz de volta à sua origem, “ao fundamento e abismo de todo ser; e um outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude”.[6]

Assim, a realização da essência deve se orientar em direção a ela própria, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é eterno. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, toda ética transporta ao transcendente e ao mundo, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta. Ao nos posicionarmos por uma ética que parte da essência nos posicionamos por uma ética da vida. E tal compreensão leva-nos a estudar o desenvolvimento criativo desta essência enquanto vida que irrompe na história, criadora do novo.

É a partir daí podemos afirmar que o cristianismo em sua essência é uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que acontece em todos os tempos e em todas as situações e é em si mesma independente de formas sociais e econômicas.[7] Nesse sentido, o cristianismo não pode ser identificado com um tipo determinado de organização social, em detrimento de seu caráter transcendente e universal. Mas, ao mesmo tempo, o cristianismo é portador de poder e oferece às pessoas uma mensagem de vida, de conhecimento e de verdade, tanto para a pessoa como particularidade, como para a sociedade como um todo.[8]

Exatamente por isso, apresenta-se capenga toda forma de cristianismo que se fecha na pura interioridade. Também não se pode dizer, conforme expõe Tillich, que o cristianismo é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou simplesmente passando ao largo delas. Na verdade, ele dá forma às expressões culturais e, concomitantemente, toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o cristianismo foi e é interpenetrado pela consciência filosófica, experiência estética, ideal ético de pessoalidade e, logicamente, pelos modelos sociais e econômicos.[9]

É verdade, que o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social, já que a ética do amor/ágape[10] leva o cristianismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. Nesse sentido, nos anos 1970, o cristianismo foi desafiado a fazer a crítica do capitalismo e do militarismo na América Latina. Essa a ética do amor/ágape faz a crítica da ordem social que está erigida sobre o egoísmo político/econômico, e clama pela necessidade de uma ordem na qual o sentido de comunidade seja o fundamento da organização social.[11]

A ética do amor/ágape denuncia o egoísmo da economia das multinacionais e dos governos que servam a elas, que levam à expropriação de muitos em benefícios de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura se enriquecer através da exploração de seu próximo e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas a ética do amor/ágape nega também a afirmação do ódio de classe e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios na educação e a supressão da exploração de determinados setores profissionais por outros.[12]

A ética do amor/ágape condena também o egoísmo internacional da força e do comércio, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos. Assim, a ética do amor prega a submissão dos povos, sejam ricos ou pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades.[13]

Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo econômico diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. No entanto, a partir do amor/ágape vemos que o ser humano não foi criado para a produção, mas a produção para suprir necessidades humanas e que por isso o objetivo da ética na economia não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, e sim a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.[14]

Para Tillich, na história, uma ruptura espiritual vem sempre associada a uma ruptura econômica, da mesma maneira que um processo de unidade espiritual vem associado a um processo de unidade econômica,[15] isto porque a alma da unidade espiritual é a religião. O fracionamento espiritual característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica. Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças espirituais e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias, o cristianismo está eticamente obrigado a fazer uma escolha, ou participa do processo, atuando a favor desse desenvolvimento ou entra em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades nas quais está inserido.[16]

Notas

[1] Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992, p. 221.
[2] “C’était une intuition subtile qui incitait l’esprit de la langue grecque à designer le temps formel par le terme chronos,qui est différent dekairós, lequel designe ‘temps opportun’, le moment riche en contenu et en signification. Et ce n’ést pas un hasard si ce mot a trouvé son usage le plus dense et le plus fréquent là où la langue grecque devint le véhicule de l’esprit historique et dynamique du judaïsme et du christianisme primitif, c’est-à-dire dans le Nouveau Testament. On y dit de Jésus que son kairosn’était pas encore venu; et puis qu’à un moment ou l’autre il est venu en kairo, à instant où les temps etaient dans leur plenitude. C’est seulement pour la réflexion abstraite, objective, que le temps est une forme vide, pouvant recevoir n’importe quel contenu. Mais pour celui qui vit et a conscience de ce qu’est un événement créateur, le temps est charge de tension, de possibilités et d’impossibilités; il est qualitatif et riche de contenu; tout n’est pas possible en tout temps, tout n’est pas vrai en tout temps, tout n’est pas exigé à tout moment. Divers ‘maitres’, c’est-à-dire diverses puissances cosmiques, règnent em différents temps, et le ‘Seigneur’ qui triomphe de tous les autres anges et pouvoirs, règne dans le temps plein de destin et de tensios, qui s’étend entre la Résurrection et la Seconde venue; il règne dans le ‘temps présent’ qui, en son essence, est différent de tout autre temps du passe. C’est dans cette vive et très profonde conscience de l’histoire que s’enracine l’idée du kairós; et c’est à partir de là qu’elle doit être élaborée en concept d’une philosophie de l’histoire consciente”. Paul Tillich, Kairos Iin Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands(1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp. 116-117. 
[3] “A existência humana é a elevação do ser à dimensão da liberdade. O ser se liberta das cadeias da necessidade natural. Torna-se espírito e adquire liberdade de se questionar a si mesmo, o seu ambiente, de questionar a verdade e o bem e de decidir a seu respeito. Entretanto, há nessa liberdade certa falta de liberdade, pois somos todos compelidos a decidir. ‘Essa inevitabilidade da liberdade, de ter que decidir, cria profunda inquietude da existência; é por esse meio que a existência passa a ser ameaçada’. Tudo isso, porque somos confrontados por uma exigência incondicional de escolher o bem e de realizá-lo, na mesma medida em que isso não pode ser alcançado. Conseqüentemente, o ser humano, na sua dimensão espiritual carrega em si uma ruptura, que também se manifesta na sociedade. Não é possível fugir dessa exigência. Ao enfrenta-la jamais se reveste de segurança absoluta. Trata-se pois do que Tillich chama de ‘situação humana limite’: todas as seguranças que construímos são questionadas e as possibilidades humanas alcançam e descobrem seus limites”. James Luther Adams, O conceito de era protestante segundo Paul Tillich, in Paul Tillich, A Era Protestante, SBC, Ciências da Religião, 1992, p. 301.
[4] “Observamos aqui um dos aspectos mais originais e notáveis da doutrina da justificação em Tillich. Lutero aplicava essa doutrina apenas à vida religiosa-moral. O pecador, não obstante ser injusto era ‘justificado’. Tillich aplica a mesma doutrina igualmente à esfera religiosa-intelectual. Nenhuma autoridade tem o direito de exigir, na verdade, a aceitação de qualquer crença ‘correta’ de quem quer que seja. A devoção à verdade é suprema; é devoção a Deus. Existe sempre um elemento sagrado na integridade que conduz à dúvida mesmo sobre Deus e a religião. Na verdade, se Deus é a verdade, Ele é a base e não o objeto das questões a seu respeito. Qualquer lealdade à verdade será sempre religiosa, mesmo quando acabar constatando a falta de verdade. Parafraseando Agostinho, a pessoa que duvida com seriedade terá de dizer: ‘Duvido, logo sou religioso’. O divino se faz presente até mesmo na dúvida. O ateísmo absolutamente sério pode se dirigir ao incondicional; pode ser uma forma de fé na verdade. Vê-se aqui a conquista da falta de sentido pela consciência da presença paradoxal do ‘sentido na própria falta de sentido’. Assim é ‘justificado’ aquele que duvida. A única atitude fundamentalmente irreligiosa é, então, a do cinismo absoluto com sua completa falta de seriedade”. James Luther Adams, idem, op., cit., pp. 302-3.
[5] Paul Tillich, Le problème de l’éthique sociale évangéliquein Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931),Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p.276.
[6] Idem, op. cit., p. 276.
[7] Paul Tillich, Rapport au Consistoirein Christianisme et socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931),Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, p.3.
[8] Idem, op. cit. p. 4. 
[9] Idem, op. cit., p.4.
[10] “(...) l’ethique de l’amour introduit dans chaque forme sociale et économique un ferment de critique d’autant plus actif que l’ordre s’appuie davantage sur le pouvoir, l’oppression, l’intérêt personnel. Pour cette raison, le christianisme a pu trouver plus de parenté avec la structure de la société médiévale qu’avec celle de l’époque romaine tardive, et se lier plus étroitement à elle. Voilà pourquoi, c’est notre conviction, il doit à présent s’opposer à l’ordre social capitaliste et militariste dans lequel nous nous trouvons et dons les ultimes conséquences sont devenues manifestes avec la guerre mondiale”. Paul Tillich, Rapport au consistoire, op. cit., p. 4. 
[11] Idem, op. cit., p.4.
[12] Idem, op.cit., p.5.
[13] Idem, op.cit., p.5.
[14] Idem, op.cit., p.5.
[15] Idem, op.cit., p.5.
[16] Idem, op.cit., p.5.


Excerto de Jorge Pinheiro, Ética e práxis protestante.