jeudi 21 juin 2012

A pensar num aniversário...

Almoço com a filha
Por Jorge Pinheiro, do Rio de Janeiro

Um encontro afetivo na Tijuca com a filha, do mercado de moda.
Surge a pergunta: será que tenho medo de morrer?

Pencil X Camera, por Ben Heine 


Meio deprimido Qoheleth, o sábio do livro de Eclesiastes, disse que a melhor coisa que alguém pode fazer é comer, beber e se divertir. E que isso é uma bênção do Eterno.

Eu agrego que ardis, traços e desafiações também fazem parte da vida.
Basta ver que o final do e-mail foi mais ou menos assim:

“Já são duas da manhã, tenho que dormir, mas fico pensando que não gosto de ir ao Rio, que não gosto do Rio, mas estou indo ao Rio. Espero que não seja uma tragédia. Às vezes, a gente cai em armadilhas... É normal ser convidado para fazer palestras, que eu viaje para fazer isso. É uma consequência do meu trabalho. A armadilha está em que eu cada vez gosto mais de ficar no meu espaço, trabalhar no meu espaço. Estou com dor de cabeça, coisa chata. Vou tomar um chá e tentar dormir. Amanhã nos vemos. Ciao”.


Mas, as palavras de ontem, de antes de ontem, na madrugada, desfaleceram diante da beleza da cidade. É sexta-feira e só um estrangeiro, amante, consegue ver os detalhes, chocantes, outros pequenos. O chiado dos esses, dos xis e dos ceagás bem à portuguesa de um grupo de estudantes, a luz da manhã que vai à frente, a abrir caminho para o meu passo lento de quem quer ver, e o meio sorriso, quase à Gioconda, da moça que me atende na livraria iluminam este começo de dia.

"En el mundo habrá un lugar/ para cada despertar/ un jardín de pan y de poesía" 



Ela sugeriu o Apreciatti, numa das beiradas do bairro onde nasci. Tijuca. Chego dez minutos antes. E ela elegante, estilo produtora de moda, usa a febre do verão nova-iorquino, vestido branco curto e ligeiramente largo. O restaurante é adega, italiano. Além dos antepastos tradicionais e das massas artesanais, eu poderia começar pelo carpaccio de hadoque com ovo de codorna, caviar e alcaparras. E depois pedir um filé mignon grelhado com risoto de tartufo. Ou, quem sabe, optar pelo bufê e escolher entre carne de avestruz, leitão à pururuca, pernil de cordeiro, salmão ou filé de cherne. Mas, como estamos na sexta, não posso esquecer que a feijoada é de lei.

Assim, nessa terra de intensa luz, dos huguenotes nos meados dos quinhentos, companheiros de sonhos antárticos, é dia de feijoada. Será que me arrisco? Uma vida de traços, agora na trincheira da teologia. Será que me arrisco? Um pensamento relampeja: coma com moderação. Será isso possível, risco com moderação? Será isso possível, feijoada com moderação?

"Porque puestos a soñar/ fácil es imaginar/ esta humanidad en harmonía"

Ardis, traços e desafiações. Em 1999, em Paris, o francês Philippe Solal, o suíço Christoph Müller e o argentino Eduardo Makaroff encararam o traço, fazer tango eletrônico contemporâneo. E o desafio virou
Gotan Project. Em 2000 lançaram um single, Vuelvo Al Sur/ El Capitalismo Foraneo e, um ano depois, o álbum La Revancha del Tango. Um rolar novo com direito a trocadilho, e o tango, a partir do lunfardo, a gíria portenha, que curte falar as palavras al revés, virou gotan.

Você já rezou o “Padre nosso”? Mas qual versão você prefere, a de Mateus (6.7-15) ou a de Lucas (11.1-4)? E qual dos dois contextos fala mais ao seu coração, o primeiro ou o segundo?

"Vibra mi mente al pensar/ en la posibilidad/ de encontrar un rumbo diferente/ para abrir de par en par/ los cuadernos del amor/ del gauchaje y de toda la gente"


Mateus e Lucas enfrentaram as suas desafiações e chegaram ao rolar novo, porque diante das tradições orais e mesmo das tradições escritas, duas pessoas podem perceber essas tradições de formas diferentes. Mas isso não tem lá muita importância, porque os textos antigos eram escritos para serem ouvidos pela comunidade e não serem lidos solitariamente ou estudados sob a lupa de exegetas.

Donde uma sugestão, ouça o texto como quem ouve o
Gotan Project.

Carioca, coçado, sexta-feira. Tijuca. Ela ri e me pergunta se tenho medo de morrer... E, antes que eu diga qualquer coisa, afirma que tenho que me desapegar das coisas materiais. Diz que ela já fez isso e quando morrer vai subir, mas eu não, vou ficar rodeando por aí.

É vou de feijoada. Não estou desapegado das delícias, sou discípulo de Qoheleth... protestante.

"Qué bueno che, qué lindo es/ reírnos como hermanos/ Porqué esperar para cambiar/ de murga y de compás" (Gotan Project, Diferente).

Para hoje: feliz aniversário, menina!
31/10/2010 Fonte: ViaPolítica/O autor