dimanche 22 mars 2020

O chão firme da liberdade

O chão firme da liberdade
Jorge Pinheiro

Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite, abre os portais, modifica os momentos, troca os períodos e organiza as estrelas. Bendita seja a eternidade, que traz as sombras da noite.

Querida Zlabya, aquela-que-anuncia, estou escrevendo para você. Escrevo do terceiro milênio, um futuro não muito distante, quase presente, para contar as coisas que vão acontecer e, ao mesmo tempo, poder conversar com você pessoalmente. Você está no início da sua liberdade como pessoa grande, que pode escolher caminhos e destinos. Escrevo sobre as memórias futuras, quando os descendentes darão voltas por este fundão besta, incluindo aí o que escutei e vivi. Mas você não pode esquecer que a memória será sempre afetiva e seletiva. Na verdade, ela apresentará os fatos que a gente viveu, a partir de um processo muito peculiar: dá primeiro as dores maiores, os momentos onde vivemos os limites da existência. Mas não para aí. A memória fará sempre uma leitura épica, onde, por pior que tenha sido o momento, nos coloca como heróis.

Mas se estou no futuro, posso falar do presente e do passado. É por isso que os velhos somos bons contadores de história e olhados pelos descendentes, e aí incluo você, como cavaleiros andantes de um futuro mítico. Minhas experiências de amor e vida gerarão flores belíssimas, memórias que se multiplicarão com você.

As memórias são nossa história e minhas leituras, porque discorro sobre acontecimentos e nos levam a pensar o que não está aqui e agora, sobre o que é eterno. E quando isso acontece história e leituras se complementam e enriquecem as nossas vidas. O certo é que a memória ao apoiar-se nos fatos deixa de ser o relato de algo particular, vive um processo de amplidão que lhe dá grandeza. E a história, inversamente, ao recorrer à memória traz emoção e vida ao fato.

Mas, como já disse parcialmente, acima, nossas memórias não se entreluzem apenas com fatos sociais, nossos pesadelos, assim como nossos sonhos transportam nossas memórias a um mundo mágico, um mundo onde o imaginário, às vezes, é tão real quanto a história vivida. Transcende. Por isso, essas leituras serão traduções de suas experiências com a eternidade, infinita e sem limites, criadora de todas as coisas, origem e fim do amor e da vida.

Na antiga tradição dos longevos, o nome é som e designação que fala da natureza e da história daquele que está a ser nominado. Quando os longevos falavam de chilul hashem, estavam a dizer que a eternidade não poderia ter seu nome profanado porque seria violentar o sem-fim. E por isso somos chamados ao kidush hashem, a separar para honra o nome do sem-fim.

Os quatro sons dos longevos falam dessa infinitude sem-fim, iod he vav he, que nos apresentam a identidade e a história da eternidade sem-fim. Até o ano de 586 antes da era comum, ou seja, até a destruição do primeiro templo, os longevos cantavam os quatro sons. Mas depois optaram, por razões muito justas, em dizer com reverência meu senhor, meu senhor elohim. E mais tarde ainda, antes da era comum, adonai tornou-se, por causa do shemá aramaico, hashem.

Quando estava diante daquele mato bravo que iluminado não pegava fogo, moshé ouviu o vento cantar eheieh acher ehieh. E entendeu que a eternidade dizia que ela era eterna sem-fim. Mas, o vento não parou e cantou diferente iaueh acher iihueh, e assim moshé compreendeu que ela é quem dá vida ao que existe.

Mas a eternidade sem-fim não é homem, nem mulher. Por isso, ela pode ser também elohim, que parece macho e parece muitos. Mas esse macho plural canta e diz que a eternidade é sem-fim e mãe de toda a vida, por isso é elohim ieuá. Mas eu gosto de saber que essa eternidade linda e sem-fim, que é também macho e plural, é a guardiã das portas do vencedor, shomer daltot israel. 

Nessas memórias futuras apresento leituras para a sua vida presente, os dias fora e a caminhada em direção à última fronteira, o momento infinito de sermos os anjos que somos. Quanta felicidade. Esses acontecimentos farão parte da história de gentes e povos. Muitos viverão textos parecidos e farão parte dessas memórias. Alguns estarão ao seu lado e exercerão uma profunda influência em sua vida. Outros apenas passarão. São personagens dos dias fora, e aparecerão com nomes e, às vezes, sobrenomes.

Não há nesta atitude da memória nenhuma intenção de esconder a verdade, mas, ao contrário, o reconhecimento de que você ainda não atravessou a última fronteira. Nesse sentido, nessas memórias os nomes mudarão conforme os lugares e tempos. Jamais o nome traduzirá a fugacidade do momento, mas será a marca de uma vida.

Quanto aos pesadelos, estarão presentes. É o inconsciente a revelar sua visão do mundo. É difícil dizer qual será maior: o pesadelo ou a realidade da dor. Ambos serão terríveis e por isso se complementarão. E ficará mais fácil entender um no debruçar-se sobre o outro. É, inclusive, difícil dizer qual virá primeiro, já que o pesadelo poderá ser sentido como futuro que se faz presente, como leitura de um presente ainda não realizado.

Ou como cantará um poeta: metade esquecida por mim, quero varar os limites impostos. E, assim, as histórias chegarão através da memória, que afetivamente virará leitura, a fim permitir a travessia da última fronteira com alegria.

A eternidade possibilitou a construção dos humanos, que são fruto da miscigenação com a população não sapiens que habitava o planeta e nesse processo, material e natural, desenvolvemos peculiaridades que nos aproximam da eternidade. O universo é cosmo e residência do humano. Mas em que sentido oshumanos, em sua diversidade, são imagem da eternidade? Como a eternidadeconfere à polivalência humana, correspondência? 

Podemos dizer que os humanos são fruto de um processo que tem origem na eternidade. Há um desenvolvimento que diferencia a diversidade dos humanos, que não é um, mas múltiplo, do resto da natureza. Esses humanos não são um momento, ser que coroa a natureza, mas desenvolveu poder de decisão e responsabilidade.

O que significa isto? Imagem pode ser entendido como a constituição de ser racional e moralmente responsávele semelhança como harmonia que projeta a vida em direção à eternidade. 

A alienação, enquanto ruptura do eterno e do conjunto dos humanos,  embaçou essa imagem-semelhança, que é transcrição do eterno na existência, mas inclui algo que é comum a eternidade e a nós, homo sapiens, em toda sua diversidade: a liberdade de escolha.

Aqui é importante entender a relação entre alienação e consciência. A partir do pensamento grego, podemos dizer que a hamartia entrou no cosmo como alienação dos humanos e com a hamartia a consciência da morte. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos, que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Utilizamos a expressão no sentido de que a humanidade vive um estado em que errar o alvo caracteriza a existência. Por isso, errar o alvo é alienação, e implica em distanciamento do objeto.

Errar o alvo, a alienação, enquanto estado da existência, leva à consequências. E uma delas é a consciência da morte. O estado de alienação da existência produz uma consciência matricial, a consciência da morte. A partir da consciência da morte temos a consciência do que não existe no aqui e agora e a consciência da diversidade, já que não somos apenas natureza, mas sapiens: temos a consciência de que ações e construções podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

Assim, no distanciamento e na alienação estão necessidades e lei, e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.
A eternidade no fluir da existência traduz a construção de seres pessoais Tais seresmantém relações especiais com a natureza. A eternidade se faz, assim, presente nohumano e em toda a natureza. Estes humanos, sapiens, mantém com a natureza uma relação de administração, produção e trabalho. E se relacionam com a natureza através de descobertas e usos, e assim estão em permanente relação coma eternidade.

tal processo se faz através da cultura, enquanto construção objetiva e social de sujeição da natureza, e nesse processo constrói também domínio e expansão, pessoal e subjetivo, que se torna peculiaridade a de homens e mulheres livres.

Ou seja, é construção de gente. E a partir daí podemos dizer que os humanos sapiens, em sua diversidade e peculiaridades, são parecença da eternidade, daí imagem e semelhança. Ou seja, esta imagem ancestral traduz ritmo e forma dconstrução.  Os humanos, imagem e semelhança desta relação eternidade natureza, são seres coletivos. Pois o domínio e, por extensão, seu destino não pode se dar pela submissão, mas pela integração, o resultado da integração dos ecossistemas.

A aproximação à cultura tem de partir de uma perspectiva positiva: a unidade na diversidade. E o primeiro sentido dessa unidade na diversidade é a contextualização da espiritualidade humana, que se expressa enquanto presença do eterno nas culturas, que traduz as peculiaridades da imagem da eternidade em cada grupo humano. 

Tal imagem da eternidade é traduzida na relação que mantém com as criaturas, e é uma relação de domínio. Os humanos se fazem presentes no universo produzido e reproduzido por seu poder criador. Mas aqui há um detalhe: este domínio não lhe é próprio, ele tem origem e procede da própria eternidade. Os humanos não sãoproprietários, nem têm autonomia irrestrita sobre o cosmo. Aqui um elemento importante é a solidariedade. Uma vez compreendida a presença da eternidade no despertar da consciência de justiça, os humanos devem envolver-se naemancipação do humano, tornando-se parceiros dos que estão sendo despertados para mitigar a dor, o sofrimento e a morte

E se todo o cosmo é habitat do ser humano, há a total desmitização da natureza. Não há divinos. Todo o universo pode tornar-se o ambiente do humano, seu espaço, que pode adaptar às suas necessidades e administrar. E tal postura nos leva à responsabilidade ecológica. Os humanos devem construir consciência ecológica, do cosmo enquanto lar, e expandir as possibilidades de novos espaços e lugares denatureza.

Mas imagem da eternidade traduz abertura à transcendência. Aqui estão dados os elementos que nos permitem entender porque faz parte das humanidades o abrir-se à transcendência e viver com ela. Há um deslumbramento permanente diante do absoluto. Estamos diante de um ser que pode pensar o que não está aqui e agora, e que pode refletir sobre o que vai além da realidade presente. E é por poder pensar tais realidades que não podem ser vistas, que ohumanos, enquanto imagem do eterno pode refletir sobre a eternidade e relacionar-se com o transcendente. Assim, é imagem, e a própria eternidade transfere à humanidade a capacidade de relacionar-se com ela.

Esses humanos, que são imagem da eternidade, não são uma pessoa em particular. É construção e desenvolvimento das humanidades, e o domínio do cosmo não é dado a uma pessoa, mas a comunidade dos humanos. Assim, ninguém pode ser excluído da autoridade de domínio construída e desenvolvida pela humanidade.

A alienação rompe com a possibilidade das humanidades serem imagem eficaz da eternidade. O errar o alvo é um estado da existência e o mal se faz presente como opção ao ato livre. Assim, os humanos lançaram-se ao domínio de seus iguais, inclusive através do derramamento de sangue; suprimiram o equilíbrio e a mútua solidariedade; mitificaram a ciência e a técnica; e lançaram-se à destruição da própria natureza.

Mas no mashiah, presença do eterno em meio às humanidades, temos imagem e semelhança da eternidade invisível. E este mashiah cabe fazer, ao nível escatológico, aquilo que aos humanos, sapiens, tornou-se impossível: sobre esta expressão da eternidade entre nós repousa o poder, a honra e a glória.