jeudi 31 décembre 2015

Corrida de São Silvestre / Jorge Pinheiro




O pessoal da faixa etária de 70 a 74 anos corre! 

De 206 corredores nesta faixa eu fiquei em 
152º 28476 -- Jorge Pinheiro dos Santos (70) PELOTAO GERAL 
Com tempo de 02:30:34 e tempo líquido de 02:07:45. 



LISTAGEM EXTRA OFICIAL (PARA CONFERÊNCIA DE TEMPO)



EVENTO: 91ª CORRIDA INTERNACIONAL DE SÃO SILVESTRE -- 01. CORRIDA 15 KM
RELATÓRIO: RELATÓRIO FAIXA ETÁRIA MASCULINO - M70/74
ENCONTRADOS: 206 RESULTADO(S) 

CLASSIFICAÇÃO/ NÚMERO / ATLETA/ IDADE/ EQUIPE/ TEMPO/ TEMPO LÍQUIDO
152º 28476 Jorge Pinheiro dos Santos (70) PELOTÃO GERAL 02:30:34 02:07:45


mercredi 30 décembre 2015

Adélia e Bataille num diálogo pertinente

Prazer & Religião 
Adélia e Bataille num diálogo pertinente 


por 
Jorge PINHEIRO dos Santos 


São Paulo, 20 de novembro de 2002 


Resumo 


Adélia Prado e Georges Bataille têm preocupações comuns: o cristianismo e o prazer. Cada um a sua maneira, é verdade. Mas, ambos, por meio da literatura traduzem o paradoxo de, ao contrário do que vê o cristianismo, não considerarem o prazer humano como excrescência. Ao contrário, abordam a vida a partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Por isso, neste texto partiremos do diálogo possível e necessário entre os dois autores. Tal leitura procura superar a acentuação da teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Por isso, consideramos o diálogo Adélia/Bataille pertinente. 


Abstract 


Adélia Prado and Georges Bataille, each in their own way, has common concerns: Christianity and pleasure. But, both, through literature, translate the paradox of, and in contrast to what Christianity sees, not considering human pleasure as superfluous. On the contrary, they approach life from the perspective of an experience marked by pleasure, the pleasure of living. Therefore, in this text we will begin with the possibility and necessity of dialog between the two authors. Such a reading seeks to overcome the accentuation of a theology of sin, with its consequent tendency toward endless guilt, that penetrates Christian tradition, at least in its post-Augustinian expressions. In fact, Christian tradition translates this stumble, that in its metanarrative gives considerable weight to the shadow of an instrument of torture, the cross. But without denying pain and evil, it may be possible, even in Christianity, to recover the pleasure of living. Therefore, we consider pertinent the dialogue between Adélia and Bataille. 


Introdução 


Até que ponto o comportamento humano é tão diferente do comportamento dos animais? Logicamente, responder a esta pergunta nos leva a discutir se de fato há liberdade e responsabilidade no comportamento humano. Se voltarmos, por exemplo, a Baruch Spinoza o comportamento humano deve ser descrito em termos de causas mecanicistas, como os demais fenômenos da natureza[1]. E bom passa a ser apenas uma palavra para descrever coisas que nos dão prazer e mau coisas que nos causam dor.[2]


Talvez seja necessário partir daí, da experiência marcada pelo prazer. O prazer de viver. Tal leitura procura superar a acentuação de uma teologia do pecado, com a conseqüente culpa infindável, que perpassa a tradição cristã, no mínimo, pós-agostiniana. Aliás, a tradição cristã traduz este tropeço, uma vez que em sua metanarrativa fundante pesa a sombra de um instrumento de tortura, a cruz. Mas sem negar a dor e o mal, talvez seja possível, mesmo no cristianismo, recuperar o prazer de viver. Ou, como disse Gonzaguinha, "viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita". (O que é o que é, Gonzaguinha). 


Assim, prazer, do latim placere, traduz a idéia de emoção agradável que resulta da atividade satisfeita, inclusive de gozo sensual, mas por oposição nos lembra dor e aflição. Nesse sentido, costumamos chamar aquele prazer que envolve a sexualidade de erotismo, já que aí está implícita a idéia de amor sensual. Por isso, erotismo pode ser considerado a indução ou tentativa de indução de sentimentos, mediante sugestão, simbólica ou alusiva, da questão sexual, o que nos leva ao prazer erótico na literatura.[3]


Daí que neste ensaio sobre o prazer, partiremos de dois mal-compreendidos, uma poeta brasileira de primeira grandeza, Adélia Prado, e um filósofo francês, Georges Bataille. Ambos de formação católica, acusados de excessivamente prazerosos por críticos e teólogos. Por isso, tal diálogo é pertinente. 


Adélia Luzia Prado de Freitas nasceu em Divinópolis, Minas Gerais, em 1935. Suas obras principais são Solte os Cachorros, conto, de 1977, O Coração Disparado, poesia, de 1978, Poesia: Bagagem, de 1979, e Cacos para um Vitral, romance, de 1980. Depois de anos sem publicar, lançou Oráculos de Maio, uma coletânea de poemas, e Manuscritos de Felipa, um texto curto, que ela definiu como experiência literária e religiosa 


Adélia escreve para dialogar com Deus. O leitor entra só como testemunha e até um pouco como invasor. Mas, apesar dos fortes laços que tem com a religião, Adélia considera-se poeta e não profeta. "Meu projeto sempre foi escrever", ela diz. 


Não a afeta que parte da crítica e também da comunidade dos poetas, fiéis a um velho preconceito, ainda a considerem mais evangelista do que escritora. 


Seus poemas e sua prosa são, a rigor, longas conversas com Deus. E faz questão de dizer que não separa a experiência literária da experiência religiosa. “Muitos poetas, aqueles que se dizem ateus, apesar da grande poesia que fazem, não ligam uma coisa à outra. (...) Deus é o grande problema e a grande platéia, tanto que eu engano os críticos. Mas não engano Deus”.[4]


Georges Bataille, 1897-1962, nasceu em Billon, Puy-de-Dôme, França. Filósofo e escritor francês, ficou conhecido como o metafísico do mal. Sua obra está marcada por três experiências centrais: a experiência cristã de sua formação católica e jesuítica, a experiência estética no âmbito do surrealismo e a experiência política de esquerda. Escreveu sobre sexo, morte, degradação e as potencialidades do prazer. 


Considerava que o objetivo de todo intelectual, artista e teólogo, deveria ser a aniquilação da racionalidade em um ato violento, transcendental de comunhão. Bataille cursou teologia, com a intenção de ser padre, participou do movimento surrealista, mas acabou por se dedicar à sociologia, religião e literatura. Fundou e editou jornais. Foi o primeiro a publicar pensadores como Barthes, Foucault e Derrida. Casou-se duas vezes. Depois de divorciar-se de Silvia Maldés, sua primeira esposa, esta se casou com o psicanalista Jacques Lacan. Com sua segunda esposa, Diane de Beauchanais, teve uma filha. 


Uma de suas obras mais polêmicas é a Histoire de l´oeil (1928), que foi filmada, e que influenciou, entre outros, a filmografia do diretor japonês Nagisa Oshima (Império dos Sentidos) e a produção do cantor pop islandês Björk Guödmundsdóttir. Outras obras importantes são Le bleu du ciel (1945), L´abbé (1950). No campo da religião produziu um clássico chamado O Erotismo. Sua bibliografia é muito vasta e influenciou alguns dos principais pensadores modernos, que não lhe poupam elogios, como Jürgen Habermas, Barthes, Foucault e Derrida. Um ano antes de sua morte, em 1961, Pablo Picasso, Max Ernst e Juan Miró organizaram um leilão de pinturas para ajudar Bataille a superar suas dificuldades financeiras. Bataille morreu em Paris no dia 8 de julho de 1962. 


Em O Erotismo, Bataille apresenta uma chave de análise dos aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano. Bataille vê a experiência do prazer como aquela que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano. E a partir dessa constatação, se propõe tratar da questão sob três perspectivas, o prazer dos corpos, o prazer dos corações e o prazer sagrado, já que o desafio é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda. 


A santidade do prazer 


A religio­sidade primitiva, para Bataille, extraiu das proibições o espírito da transgressão, enquanto, a religiosidade cristã se opôs ao espírito de transgressão. A visão de bom e mau, prazer e pecado, nos limites do cristianismo está ligada a esta relativa oposição.[5]


Há no cristianismo um movimento duplo. Nos seus fundamentos o cristianismo quis abrir-se às possibilidades dum amor que era princípio e fim. Quis encontrar em Deus a continuidade perdida, in­vocar os delírios rituais para além das violências reguladas, o amor to­tal e sem cálculo dos fiéis. Os homens, transfigurados pela continui­dade divina, eram chamados, em Deus, a amarem-se uns aos outros. 


Assim, o cristianismo jamais abandonou a esperança de levar este mundo de descontinuidade ao reino da continuidade, abraça­do pelo amor. O movimento inicial da transgressão derivou no cristianismo na visão duma superação da violência, que foi. transmutada no seu próprio contrário.[6] Há neste sonho algo de subli­me e trágico. 


E para Adélia Prado, poética e religião se cruzam. Na verdade, ela vai além. Não separo, para mim elas são a mesma coisa. (...) a poesia é um fenômeno de natureza religiosa, pois tem um papel fundador, que me conecta ao centro do ser. [7]


Talvez por isso, ela é poeta e profeta, que vê imbricamentos e destinos que se costuram no ofício que exerce. Eu entendo a poesia como um oráculo, a fala de uma divindade. Como posso dissociar as duas coisas? Mas sei que, porque não dissocio, corro o risco de ser vista como uma catequista e não uma poeta. Estou fazendo uma poesia na qual o religioso é forte? Estou. Mas é poesia? É poesia. Eu sou catequista, sim, mas em outras horas.[8]


E por ser religiosa e poeta, profeta e escritora, acaba desagradando aos críticos que olham desconfiados essa poesia deslavadamente religiosa e aos religiosos que acham excessivamente prazerosos os oráculos desta senhora mineira. 


Sem dúvida, o prazer permeia os seus textos, prosa ou poética, de forma desafiadora. Tenho um pouco de pudor de contar, mas só um pouco, porque sei que vou acabar contando mesmo. É porque lá em casa a gente não podia falar nem diabo, que levava sabão, quanto mais... ah, no fim eu falo. [9]


Voltando a Bataille, a trans­gressão é a desordem organizada, ao introduzir num mundo organizado algo que o ultrapassa. Mas essa organi­zação, fundada no trabalho, tem por base a des­continuidade do ser. O mundo organizado do trabalho e o mundo da descontinuidade são o mesmo mundo. Se os utensílios e pro­dutos do trabalho são coisas descontínuas, aquele que se serve do utensílio e fabrica produtos é também um ser descontínuo e a cons­ciência da sua descontinuidade aprofunda-se na utilização e criação de objetos descontínuos. E é no mundo descontínuo do trabalho que a morte se revela: já que para quem trabalha a des­continuidade se faz presente, com poder, através da morte.[10] Ela é tragédia elementar que evidencia a ina­nidade do ser descontinuo. 


E a partir do poema Moça na sua cama, podemos ver como prazer, transgressão e descontinuidade se cruzam na poética de Adélia Prado. 


Papai tosse, dando aviso de si,/ vem examinar as tramelas, uma a uma./ A cumeeira da casa é de peroba do campo,/ posso dormir sossegada. Mamãe vem me cobrir,/ tomo a bênção e fujo atrás dos homens,/ me contendo por usura, fazendo render o bom./ Se me tocar, desencadeio as chusmas,/ os peixinhos cardumes./ Os topázios me ardem onde mamãe sabe,/ por isso ela me diz com ciúmes:/ dorme logo, que é tarde. [11]


Ao reduzir o sagrado, o divino, à pessoa descontínua de um Deus criador, o cristianismo foi longe e transformou o outro mundo num local onde se prolongavam todas as almas descontínuas.[12] Povoou céus e infernos de multidões condenadas à descontinuidade eterna de cada ser isolado. Eleitos e condenados, anjos e demônios, transforma­ram-se em fragmentos, para sempre divididos, para sempre distintos uns dos outros, para sempre desli­gados dessa totalidade do ser à qual era contudo necessário religá-los. 


Assim, o dilema está colocado: como continuar religioso sem perder o prazer? Tal como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o prazer inicial, proibindo a transgressão organizada, o cristianismo aprofundou os graus da perturbação sensual. E tal dilema está exposto em Moça na cama. 


Sim, mamãe, já vou:/ passear na praça sem ninguém me ralhar./ Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,/ moa de moços no bar, violão e olhos/difíceis de sair de mim./ Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,/os moços marianos vão me esperar na matriz./ O céu é aqui, mamãe./ Que bom não ser livro inspirado/o catecismo da doutrina cristã,/posso adiar meus escrúpulos/e cavalgar no torpor/dos monsenhores podados./ Posso sofrer amanhã/ a linda nódoa de vinho/ das flores murchas no chão. [13]


E o prazer se ligou à transgressão. Mas o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E o pecado de que fala Baudelaire[14]. As narrativas dos sabbats, por exemplo, correspondem a uma procura do pecado. Sade negou o mal e o pecado[15]. Mas teve que introduzir a idéia de irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. Teve de recorrer à blasfêmia. Sentiu que a profanação era inó­cua, se o blasfemo negava o caráter sagrado do bem, que pretendia macular. A necessidade e a impotência das blasfêmias de Sade são significativas. A Igreja negou o caráter sagrado do prazer, encarado como transgressão. 


Por isso, filósofos e poetas negaram o que a Igreja considerava sagrado[16]. Nessa negação, a Igreja perdeu em parte o poder religioso de evocar uma presença sagrada: perdeu-o quando o diabo deixou de estar na base duma perturbação fundamental. Ao mesmo tempo, os espíritos livres deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o prazer, deixando de ser um pecado, deixava de poder encontrar-se na certeza de fazer o mal, o que implica a destruição da sua própria possibilidade. Num mundo profano só haverá mecânica animal. A consciência do pecado pode manter-se, mas só se mantém ligada à consciência de um logro. O que nos leva, de novo, à Moça na cama. 


As fábricas têm os seus pátios,/ os muros têm seu atrás./ No quartel são gentis comigo./ Não quero chá, minha mãe,/ quero a mão do frei Crisóstomo/ me ungindo com óleo santo./ Da vida quero a paixão./ E quero escravos, sou lassa./ Com amor de zanga e momo/ quero minha cama de catre,/ o santo anjo do Senhor,/ meu zeloso guardador./ Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.[17]


Ultrapassar uma situação não pode significar regressos ao ponto de partida. Há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As ações dos corpos podem, na lucidez, abrir-se, apesar dum empobreci­mento, à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis[18]. O prazer dos corações, o prazer mais ardente, ganhará aquilo que o prazer dos corpos tiver perdido, o que nos remete à fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana.[19]


O prazer da santidade 


O prazer nos deixa na solidão. Prazer é aquilo sobre que é difícil falar. Por razões que não são meramente convencionais, o prazer, principalmente o dos corpos, é definido pelo segredo.[20] Não pode ser público. Tal experiência prazerosa situa-se fora da vida de todos os dias. No conjunto da nossa experiência, permanece separada da comunicação que faze­mos das nossas emoções. Trata-se de tabu. Evidentemen­te que nada é completamente tabu, há sempre transgressões. Mas o tabu intervém para que se possa dizer que o prazer, sendo intensa emoção, já que nossa existência está presente sob a forma de linguagem, existe como se não existisse. 


Há em nossos dias uma atenuação deste tabu,[21] mas, apesar de tudo, o prazer ficará sempre como algo de exterior, algo que só é possível sob uma condição: sair para mergulhar na solidão, numa separação do mundo em que estamos. Assim, a experiência prazerosa leva ao silêncio. 


Não sucede a mesma coisa com a santidade. A emoção experimentada na expe­riência da santidade pode ser expressa no discurso, pode ser objeto dum sermão. A experiência prazerosa, contudo, talvez seja vizinha da santidade. E Adélia Prado tem consciência disso: 


Corro o risco é dos preconceitos, e o preconceito é um inferno. Há pessoas que não têm audição ao que estou falando, e sem ter audição têm opinião. Não tenho medo de virar guru. Para mim, a poesia tem uma qualidade de oráculo. Mas não sou uma divindade, sei que sou só porta-voz. Agora, se uma pessoa acreditar que o poema pode curar, é a força da palavra que está curando, não sou eu. Se a poesia faz bem, ótimo, a mim também ela faz muito bem. Eu fico só sofrendo. Se eu fosse grande igual ao Rosa, eu o imitaria, colecionando as críticas ruins de cabeça para baixo. É o que se diz a meu respeito: "Apesar do religioso, até aparece alguma poesia". Como se o religioso não fosse matéria de poesia. O registro católico, esse sim, é acidental, resulta de minha cultura, de minha herança familiar. O católico é acidental, mas o religioso é essencial. Podia ser budista, islâmica, judaica, mas seria sempre religiosa.[22]


Isto não quer dizer que prazer e santidade tenham a mesma natureza.[23] Mas que uma e outra experiência têm uma intensidade extrema. Quando se fala da santidade, fala-se da vida que determina a presença em nós de uma realidade sagrada, de uma realida­de que pode nos perturbar completamente. A emoção da santidade e a emoção do prazer, quando traduzem uma intensidade ex­trema, nos aproximam de outras pessoas e nos afastam delas, nos deixam na solidão. 


A passagem do prazer à santidade tem senti­do, afirma Bataille. É a passagem do que é maldito e rejeitado ao que é abençoado e bendito.[24] O prazer é crime solitário, que não salva senão opondo-nos a todos os outros, que não salva senão na euforia de uma ilusão, uma vez que aquilo que no prazer leva ao extremo grau da intensidade atinge-nos ao mesmo tempo com a maldição da solidão. Já a santidade faz sair da solidão, com a condição de aceitar este paradoxo -- fe­lix culpa! -- cujo próximo excesso resgata. 


Só um desvio per­mite nestas condições regressar aos nossos semelhantes. Este desvio merece sem dúvida o nome de renúncia, uma vez que no cristianismo não podemos simultaneamente operar a transgressão e gozar dela, e só outros podem gozar dela na condenação da solidão.[25] O acordo com os seus semelhantes só é encontrado pelo cristão sob condição de nun­ca mais gozar daquilo que o liberta, daquilo que nunca é mais do que transgressão, violação das proibições sob as quais repousa a civilização. 


Se seguirmos o caminho indicado pelo cristianismo, considera Bataille, podemos não apenas sair da solidão, mas aceder a uma espécie de equilíbrio, que escapa ao desequilíbrio primeiro e que nos impede de conciliar disciplina e trabalho com a experiência dos extremos.[26] A santidade cristã abre-nos pelo menos a possibilidade de levar até ao fim a experiência desta convulsão final, a morte. Aquele que compreende a importância do prazer apercebe-se que esse valor é o valor da morte. Talvez seja um valor, mas a solidão abafa-o. 


Talvez por isso, em 1992, antes de escrever O Homem da Mão Seca, Adélia fez seis meses de psicanálise. E ela garante: Já se disse que a religião do futuro será a psicanálise, o autoconhecimento. As igrejas, as instituições vão acabar, a igreja real é dentro de mim. Hoje ainda necessitamos do rito - mas um dia a instituição desaparecerá, para que se institua a igreja real, que está no coração de cada um. Jung disse que, para que a cura aconteça, o analista deve remeter o paciente à sua religião de origem. Ele descobriu a qualidade curativa da religião, ter um criador para adorar, para a gente não ficar feito boba. Deus é personagem principal em sua obra. Ele está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã.[27]


E assim, na santidade de sua mineirice, Adélia diz que a religião dá sentido à vida, costura minha experiência, me dá horizonte. Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções.[28]


Por isso, para Bataille, o santo vive como se morresse, mas vive a fim de encontrar a vida que é a vida. A santidade é sem­pre um projeto.[29] Talvez não o seja em essência. A intenção da vida eterna liga-se à santidade como se liga ao seu contrário. Como se, na santidade, só um compromisso permitisse entregar o santo à multidão, entregar o santo a todos os outros: à multidão, ou seja, ao pensamento comum. 


Considerações finais 


O mais estranho é que possa haver ligação entre a transgressão deliberada e a condição de não se falar dela. Este acordo é encontrado nas religiões arcaicas. O cristianismo inventou um caminho aberto à transgres­são que permite se falar da transgressão. Reconhecemos assim que o pensamento, que vai além do cristianismo, tende a negar tudo o que se assemelha à transgressão, a negar tudo o que se assemelha à proibição. 


Assim, no plano do prazer, temos a linguagem do prazer, que é negação da proibição, negação da transgressão que gera a proibição. Aqui, a palavra é a negação do que define o humano por oposição ao animal. 


E Adélia Prado, majestosamente, nos mostra isso em seu poema Objeto de Amor. 






De tal ordem é e tão precioso/ o que devo dizer-lhes/ que não posso guardá-lo/ sem que me oprima a sensação de um roubo:/ cu é lindo!/ Fazei o que puderdes com esta dádiva./Quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei/ e, mais que perdôo, eu amo.[30]


E quando entrevistada pelo jornalista Pedro Bial[31], em programa televisivo, no dia 27 de dezembro de 1998, ao ouvir a pergunta tantas vezes repetida... como uma senhora mineira, católica e mãe de família, podia usar expressão tão grosseira, Adélia Prado justificou o uso da expressão mal-dita afirmando que a palavra traduzia a sacralização do corpo, templo de Deus, em sua imagem e semelhança. 


Bibliografia 


Obras de Adélia Prado 


POESIA 


Bagagem, São Paulo, Imago, 1976 
O coração disparado, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978 
Terra de Santa Cruz, Rio de Janeiro, Nova Fronteira ,1981 
O pelicano, Rio de Janeiro, 1987 
A faca no peito, Rio de Janeiro, Rocco, 1988 
Oráculos de maio, São Paulo, Siciliano, 1999 


PROSA 


Solte os cachorros, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1979 
Cacos para um vitral, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980 
Os componentes da banda, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984 
O homem da mão seca, São Paulo, Siciliano, 1994 
Manuscritos de Felipa, São Paulo, Siciliano, 1999 
Filandras, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Record, 2001 


ANTOLOGIA 


Mulheres & Mulheres, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1978. 
Palavra de Mulher, Fontana, 1979 
Contos Mineiros, São Paulo, Ática, 1984 
Poesia Reunida (Bagagem, O Coração Disparado, Terra de Santa Cruz, O pelicano e A faca no peito), São Paulo, Siciliano, 1991 
Antologia da poesia brasileira, Embaixada do Brasil em Pequim, 1994. 
Prosa Reunida, São Paulo, Siciliano, 1999 


BALÉ 


A Imagem Refletida, Balé do Teatro Castro Alves, Salvador, Bahia. Direção Artística de Antônio Carlos Cardoso. Poema escrito especialmente para a composição homônima de Gil Jardim. 


Em parceria 


A lapinha de Jesus, com Lázaro Barreto, São Paulo, Vozes, 1969 


Traduções 


Para o inglês 


Adélia Prado: thirteen poems. Tradução de Ellen Watson. Suplemento do The American Poetry Review, jan/fev 1984. 
The headlong heart (Poesias de Terra de Santa Cruz, O coração disparado e Bagagem). Tradução de Ellen Watson, New York, Livingston University Press,1988,. 
The alphabet in the park (O alfabeto no parque). Tradução de Ellen Watson, Middletown, Wesleyan University Press, 1990. 


Para o espanhol 


El corazón disparado (O coração disparado). Tradução de Cláudia Schwartez e Fernando Roy, Buenos Aires, Leviantan, 1994. 


Participação em antologias 


A poesia mineira no século XX. Assis Brasil (org.). Rio de Janeiro, Imago, 1998. 
Palavra de mulher, Maria de Lurdes Hortas (org.), Rio de Janeiro, Fontoura, 1989. 
Sem enfeite nenhum. In Prado Adélia et alii. Contos mineiros. São Paulo, Ática, 1984. 


Georges Bataille e outros 


Bataille, Georges, O Erotismo, Lisboa, Edições Antígona, 1988. 
_____________, A literatura e o mal. São Paulo, L&PM, 1989. 
_____________, Teoria da religião, São Paulo, Ática, 1993. 
_____________, História do Olho (seguida de Madame Edwarda e O Morto), São Paulo, Editora Escrita,1981. 
Braaten, Carl E. e Jenson, Robert W., Dogmática Cristã, São Leopoldo, Sinodal, 1990, volume 1. 
Chauí, Marilena, Spinoza, uma filosofia da liberdade, Coleção Logos, São Paulo, Editora Moderna, 1999. 
Crespi, Franco, A experiência religiosa na pós-modernidade, Bauru, Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1998. 
Dussel, Enrique, Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Editora Vozes, 2000. 
Eliade, Mircea, O sagrado e o profano, a essência das religiões, São Paulo, Martins Fontes, 2001. 
Lowen, Alexander, Prazer, uma abordagem criativa da vida, São Paulo, Círculo do Livro, 1994. 
Mills, C. Wright, A nova classe média, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976. 
Monzani, Luiz Roberto, Desejo e prazer na idade moderna, Campinas, Ed. Da Unicamp, 1995. 
Nietzsche, Friedrich, Além do bem e do mal, prelúdio a uma filosofia do futuro, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. 
Otto, Rudolf, O Sagrado, Lisboa, Edições 70, 1992. 
Pinheiro, Jorge, Somos a imagem de Deus, São Paulo, Ágape Editores, 2001. 
____________, Ética e espírito profético, São Paulo, Igreja sem fronteiras, 2002. 
____________, Os batistas e os desafios da brasilidade, elementos para um discurso, São Paulo, Igreja sem fronteiras, 2002. 
Segundo, Juan Luís, Que mundo, que homem, que Deus? Aproximações entre ciência, filosofia e teologia, São Paulo, Paulinas, 1995. 
Sobrino, Jon, Espiritualidade da libertação, São Paulo, Edições Loyola, 1992. 
Spinoza, Baruch, Obras diversas, in Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Abril Cultural, 1988. 


Notas 


[1] Spinoza dedica ao problema moral e à sua análise os livros III, IV e V da Ethica. No livro III faz uma história natural das paixões, isto é, analisa as paixões teoricamente e cientificamente, e não desde um ponto de vista moral. O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere; assim se exprime Spinoza no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção determinista da realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é tão necessário como o mecanismo físico-matemático, e as paixões devem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas e superfícies das figuras geométricas. 
[2] Na verdade, foi o marquês de Sade (1740-1814), antes de Nietzsche, a dizer que o que move a ação do ser humano é o bom e o ruim. E o bom, para Sade, é tudo o que causa prazer ao indivíduo, ao passo que o ruim não é o que causa desprazer, mas antes o que vai contra à Natureza. Por isso, podemos chegar a Bataille partindo de Spinoza e passando por Sade, para quem a essência do bom é uma inversão de valores, que visa transformar o mundo em outro que se acredita melhor. 
[3] João Ubaldo Ribeiro, em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, de 22/1/2000, conta que uma cadeia de supermercados portuguesa recusou-se a vender seu livro, A Casa dos Budas Ditosos, invocando o fato de esta ser pornográfica. Para o escritor tal atitude traduz o fato de que na cultura cristã, “há um sentimento de culpa ligado ao prazer, que tem marcado o pensamento ocidental. A ponto de Epicuro (...) passar a ser olhado com uma certa reserva, por ser o filósofo do prazer. (...) Numa sociedade que suspeita do prazer. É comum nós, cristãos, ou pelo menos de formação cristã e católica, sentirmo-nos desconfiados no momento em que estamos felizes”. 
[4] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999. 
[5] Georges Bataille, O Erotismo, Lisboa, Antígona, 1988, p. 101. 
[6] Georges Bataille, idem, op. cit., p. 102. 
[7] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999. 
[8] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999. 
[9] De Afrodisíacos, Adélia Prado. Texto extraído do livro Filandras, Editora Record, Rio de Jan., 2001, p. 53. 
[10] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 103. 
[11] Moça na sua cama. Esses versos publicados inicialmente no livro O Coração Disparado, foram extraídos de Adélia Prado - Poesia Reunida, Editora Siciliano, São Paulo, 1991, pág. 175. 
[12] Georges Bataille, idem, op. cit., p. 104. 
[13] Moça na sua cama. Idem, poesia citada. 
[14] Segundo Otto Maria Carpeaux, Baudelaire era "espiritualista porque levou às últimas conseqüências o pecado como condição da alma, ora enfatizando audazmente a dissolução, ora padecendo pelo que a consciência lhe dita. Daí o ser denominado “poeta do tormento humano”, in Jamil Almansur Haddad, Traços Estéticos in Charles Baudelaire, As Flores do Mal, São Paulo: Círculo do Livro, 1995. 
[15] “Ser arrebatado não é sempre ativamente resultado do objeto duma paixão. O que destrói um ser arrebata-o também; o arrebatamento é sempre, por outro lado, a ruína dum ser que se dera os limites do decoro.” Georges Bataille, A literatura e o mal, Sade, Lisboa, Passagens, pp. 106, 107. 
[16] “Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual.” Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p.53. 
[17] Moça na sua cama. Idem, poesia citada. 
[18] Bataille, no prefácio a História do Olho, afirma que "eu nada saberei sobre o que acontece, se nada souber sobre o prazer extremo e a extrema dor!" 
[19] Didier Ottinger, Retrato da fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana, nos conta que “em maio de 1934, a revista Minotaure traz efetivamente um estudo de Roger Caillois: "La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse", em que o autor fornece aos futuros exegetas do louva-a-deus as chaves de sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois, O mito e o homem. Se lhe aplicássemos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-deus pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos "obcecados". Caillois nos ensina que o inseto é um matador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado, executa melhor e mais demoradamente os movimentos reflexos e espasmódicos próprios da cópula. Os biólogos F. Goltz e H. Busquet, a partir dessa constatação, se indagam se "a fêmea do louva-a-deus, ao decapitar o macho antes do acasalamento, não teria por finalidade obter, mediante a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante". R. Caillois, Le mythe et l'homme, Coleção Essais, 1ª ed. 1938, Paris: Gallimard, 1996, p.54-55. 
[www.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/pnuhdad0301.htm#notas]. 
[20] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 223. 
[21] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 223. 
[22] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999. 
[23] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 224. 
[24] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 231. 
[25] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 231. 
[26] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 231. 
[27] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999. 
[28] Entrevista a José Castello, O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1999. 
[29] Georges Bataille, O Erotismo, op. cit., p. 232. 
[30] Adélia Prado, Poesia reunida, São Paulo, Editora Siciliano, 2001, p. 321. 
[31] Entrevista a Pedro Bial, 27 de dezembro de 1998, em programa de televisão transmitido pela TV Globo de assinaturas.

mercredi 23 décembre 2015

Católicos e protestantes repensam a revolução (III)

Católicos e protestantes repensam a revolução -- terceira parte
Jorge Pinheiro, PhD


Assim para o bispo, a história da catolicidade é passível de críticas. Muitas vezes, suas opções e alianças com os grupos de poder fizeram com que se afastasse e dificultasse seu relacionamento com parte da população excluída de bens e possibilidades. Tal situação potencializou o distanciamento entre o cristianismo e o socialismo. Mas, segundo Paul Tillich, o socialismo erra quando nega a existência da base solidária e comunitária do ideal cristão[1]. 

Assim, a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base possibilitaram, no contexto brasileiro, o diálogo e a aproximação necessários ao partido em construção. E os socialistas aprenderam a entender as contradições da hierarquia e a fazer alianças com os católicos:

Qualquer que seja o resultado da reunião, a luta entre as tendências conservadoras da Igreja e os setores progressistas vai continuar. Ela não é um fenômeno apenas superestrutural, ela reflete um processo mais amplo de lutas sociais, e faz parte da movimentação política das massas latino-americanas, hoje num processo irreversível de construção de sua própria história. (...) Se os homens são aquilo que fazem, a Igreja está sendo aquilo que seus sacerdotes têm praticado. E essa prática de discussão e organização das bases de nossa sociedade nós precisamos compreender e avaliar.[2]

Não somente a lutar juntos, a novidade é que começaram a pensar juntos, a pensar a catolicidade com seus acertos e desacertos. 

(...) se analisarmos o caminho da Igreja através de todos os seus documentos e o nível do seu comprometimento histórico, desde a encíclica “Rerum Novarum” do Papa Leão XIII, promulgada em l931, até o discurso do Papa João Paulo II em Monterrey, na sua chegada ao continente para a abertura da Conferência. Porém, até onde o comprometimento da Igreja chegou, não era possível acreditar numa meia-volta, e num retorno às omissões cúmplices com as classes dominantes. Daí que as interpretações, que viam em Puebla um plebiscito para a “teologia da libertação”, falharam totalmente. Há, sem dúvida, no interior da Igreja, a corrente simpática a um alinhamento direto com as classes dominantes, mas a grande maioria do episcopado presente no México sabe que as decisões do Medellín foram demasiadamente profundas para serem abolidas por um ato de vontade. [3]

As contradições existiam, mas a questão era: será possível contar com um setor do catolicismo nesta construção de um partido de trabalhadores? Paulo J. Krischke, na época exilado brasileiro que lecionava na Universidade Autônoma do México e era integrante do Latin American Research Unit, respondeu à pergunta mostrando que os socialistas não podiam descartar a possibilidade de que setores da hierarquia tentassem despolitizar as bases da igreja e esvaziar o projeto das CEBS.

(...) na medida em que o período atual de transição e conflitos abertos com o governo tiver sido superado. Porém, se tal superação realmente se concretizar, com a “volta dos militares aos quartéis, dificilmente se poderia exigir das bases da igreja mobilizadas politicamente, uma “volta dos cristãos à Igreja”, ou seja, unicamente para suas atividades religiosas... Como vimos em Gramsci, “uma concepção ativa do mundo” (ao contrário do fanatismo sectário de uma doutrina de segurança nacional) conduz necessariamente a uma expressão partidária e ao questionamento do poder, sempre que seja essa uma “religião historicamente necessária”, quer dizer, que corresponda ao desenvolvimento orgânico da sociedade. Além disso, o exercício das atividades internas da igreja não é incompatível com sua expressão exterior face a uma prática política pluralista. Antes (...) elas se reforçam mutuamente. Já vai longe o tempo em que a igreja podia aspirar a uma unidade monolítica, ou ao controle disciplinar da maioria da instituição eclesiástica. Assim, o surgimento de setores religiosos sensibilizados politicamente gera um potencial de atuação partidária, que pode ser canalizado tanto por orientações de esquerda, como de direita ou de centro, porém, principalmente por tendências terceiristas ou centristas, dadas as características da ideologia social-cristã e sua forte penetração recente entre a liderança e as bases da Igreja.[4]

Assim, socialistas e políticos de esquerda aprenderam a acompanhar com atenção o movimento pendular da hierarquia católica. Em análise de conjuntura no jornal Versus, escrevemos sobre a possibilidade de que a Igreja viesse a apoiar o novo partido, pois cada vez mais se distanciava da idéia de construir um partido democrata-cristão. 

(...) até agora os cardeais e bispos brasileiros têm-se pronunciado contra a formação de um partido ligado à Igreja. E há razões para isso. Primeiro porque a Igreja no Brasil não está coesa ideologicamente A corrente democrata-cristã vai desde um Franco Montoro até a um Nei Braga, desde um dom Paulo Arns ou um dom Hélder Câmara até a um dom Sigaud. E juntar tudo isso num único partido seria problemático. Além disso, há a experiência internacional, naqueles lugares onde a Igreja lançou partidos políticos e estes fracassaram cai também o prestígio da Igreja. O exemplo mais complicado dessa situação é a própria Itália, onde a Santa Sé não sabe como se livrar do peso que é o Partido Democrata Cristão. Por isso, a tendência maior é que a Igreja jogue no seu papel atemporal, e tenha elementos nos mais diferentes partidos. Aliás, é o que tem feito desde 1945: apresentar uma cara antiditatorial e democrática, sem lançar-se como opção política definida.[5]

Dessa maneira, a teologia e sua práxis passaram a fazer parte das discussões da esquerda, que viu nas Comunidades Eclesiais de Base aquilo que lhe faltava, meios de chegar às massas empobrecidas do país. Ao mesmo tempo, as esquerdas descobriram que a massa de trabalhadores sindicalizados era católica e tinha ligações com as CEBs. Tais realidades eram indiscutíveis e possibilitaram não somente um diálogo entre católicos, uma minoria protestante, os sindicatos e as esquerdas, mas ações e mobilizações conjuntas que caminharam em direção à criação de um partido de classe. 


Notas

[1] Paul Tillich, “Rapport au Consistoire in Christianisme et socialisme”, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, pp.3-8. 
[2] Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., pp.14-15 
[3] Vanderlei José Maria, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 14. 
[4] Paulo J. Krischke, “A Igreja, a sociedade civil e o movimento popular no Brasil”, São Paulo, Versus no 30, 03.1979, p. 15. 
[5] Jorge Pinheiro, “O príncipe do rancho”, São Paulo, Versus no 33, 06.1979, pp. 28-32.

mardi 22 décembre 2015

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Católicos e protestantes repensam a revolução (II)

Católicos e protestantes repensam a revolução, segunda parte 
Jorge Pinheiro, PhD


Na busca de contribuições, a teologia da libertação procurou responder ao desafio de definir os problemas e os caminhos para o diálogo entre as populações pobres latino-americanas. E mesmo sem saber se tinha a capacidade de contribuir na solução destas crises, deve-se reconhecer que tentou. Pessoas e grupos interessados na superação das crises, mesmo aqueles que não compartilhavam de nenhuma crença religiosa, aproximaram-se da teologia da libertação por entender que a reorganização democrática da sociedade tinha a ganhar com as contribuições que vinham dela. 

Mas, se havia crise do mundo, se havia crise no Brasil, de onde a teologia devia partir? Dussel, numa reflexão sobre erros e acertos do passado, ressaltou a importância do esforço de se fazer uma teologia que enfrente as crises presentes. E caminhará a partir da complexidade do mundo do pobre, conceito este que levará a dois outros: vítima e excluído. Já que para ele exclusão, do latim exclusióne, é uma categoria sócio-econômica, cultural, de gênero, de cor, conforme expõe:

É necessário levantar um princípio absolutamente universal que é completamente negado pelo sistema vigente que se globaliza: o dever de produção e reprodução da vida de cada sujeito humano, especialmente peremptório nas vítimas desse sistema mortal, que exclui os sujeitos éticos e só inclui o aumento do valor de troca. [1]

Aqui o pobre é visto como vítima e excluído: é aquele que tem negada sua eticidade à vida. Assim, se exclusão é pobreza, é, no entanto, antes de qualquer coisa, morrer no começo, fome, doença, mortalidade infantil, marginalidade. É a negação do dom da vida. E a complexidade desse mundo não pode ser esquecida por aqueles que desejam fazer teologia e apresentar ao mundo a boa nova da salvação. Afirma, também, que há um esforço para silenciar o mundo do pobre-vítima-excluído. 

Esse esforço se faz presente através de ideologias que visam o mercado transcendentalizado. E esse engano dos capitalismos imperiais alargaram a brecha entre participantes do mercado e excluídos, impõe o pensamento único, e objetiva calar o excluído. A economia é colocada acima da ética, a política é negada enquanto relação e é pregada a morte das ações de transformação social, a fim de calar as vozes dos não incluídos no mercado transcendentalizado. Esta realidade foi vivida pela sociedade brasileira durante o governo militar. E um teólogo anglicano assim definiu este momento vivido pela América Latina e o Brasil:

É a este vazio (...) que somos levados pela domi­nação do capitalismo de mercado. Politicamente, proclama-se que to­das as funções do Estado devem ser transferidas à empresa privada. O que temos de fato são governos civis que exercem seu poder através do uso de aparatos policiais e militares, O slogan é: O Estado social escraviza, o estado policial liberta. Hinkelammert cita o chefe da po­lícia secreta do Chile, que, no auge da sua imposição de políticas mone­taristas, disse: A segurança nacional é como a amor: nunca é demais. A metafísica do capitalismo empresarial é necessária para justificar este uso do terror do Estado contra os inimigos de livre empresa.[2]

Diante das pressões reais do estado autoritário no Brasil, a teologia se fez práxis e procurou construir um caminho da liberdade. E a expressão maior dessa tentativa de construção foram as Comunidades Eclesiais de Base. Em janeiro de 1979, D. Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu fazia um balanço das CEBs:

Hoje são quase 50 mil Comunidades Eclesiais de Base, organizando cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas, no Brasil. Elas identificam o pecado-raiz de toda a opressão: ... esse grande pecado é agora social e se chama sistema capitalista, concluiu o III Encontro Intereclesial de Comunidades de Base, em julho de 78 na Paraíba. Já não se contam mais nos dedos as Comissões Diocesanas de Justiça e Paz. A Igreja Católica foi, talvez, o primeiro setor organizado, com peso efetivo na sociedade brasileira, a empunhar a bandeira de luta pelos direitos humanos. Ligada às parcelas mais exploradas do povo, sofrendo a perda de padres e freiras perseguidos e mortos, a Igreja se organizou para combater as ameaças à Justiça e à Paz. Deixa, enfim, o regaço dos poderosos, não sem contradições e conflitos dentro de sua própria estrutura.[3]

Logicamente, diante de um Partido dos Trabalhadores em formação, principalmente por parte dos agrupamentos socialistas, havia desconfiança ao engajamento da igreja na luta pelos direitos dos oprimidos, por causa de sua tradição heteronômica. Mas para o bispo e teólogo não havia razões para tal desconfiança. 

A Igreja, na sua essência, é comunidade de fé, de esperança e de amor. Sua maior eficiência, fermentadora e renovadora da comunidade humana, sempre dependeu de seu comportamento e de sua atuação com comunidades. Sem dimensão comunitária a Igreja não é Igreja. Sem abertura para os problemas da comunidade/sociedade, a Igreja não está em condições de realizar sua missão, ser continuação da ação libertadora de Jesus Cristo, ser sinal de esperança para o homem angustiado e sofredor. É verdade que nem sempre a consciência comunitária da Igreja funcionou com tanta clareza. Houve períodos históricos em que os cristãos, inclusive em nível de hierarquia, se deixaram envolver demasiadamente pelos interesses de grupos do poder, e assim se acomodaram. Essas colocações são importantes para entender o interesse da Igreja pelos problemas da humanidade e os instrumentos que ela criou, como por exemplo as Comunidades Eclesiais de Base (CEB), as Comissões de Justiça e Paz, etc... Não visam dominar, elas visam servir melhor.[4]

Diante disso, para os socialistas, durante anos circunscritos à clandestinidade e ao exílio, uma questão deveria ser esclarecida: o que são de fato essas comunidades católicas?

Comunidade: as pessoas se aproximam livremente, se sentem responsáveis, descobrem e atuam nos mais diversos elementos de interesse comum. Eclesial: o ponto de partida e de chegada, os elementos formadores e aglutinadores, os métodos de ação, etc, são os mesmos da Igreja. Base: a comunidade de base tem como princípio fundamental o relacionamento primário das pessoas: pessoas que se conhecem, que se estimam, se complementam, se ajudam mutuamente. Todos atuamos em nível de base. A CEB, embora não seja constituída para fazer política, tem de se preocupar com os problemas políticos e tem parte ativa no processo político. Tem a preocupação de integrar as pessoas da base no processo social, como direito/dever da pessoa humana, e de levá-la à participação consciente e crítica.[5]

Foi essa visão das CEBs, fruto da reflexão teológica da práxis libertadora, que levou a uma aliança de parte da catolicidade com a formação do Partido dos Trabalhadores, conforme argumentava o bispo de Nova Iguaçu:

Para participar do processo social, o Povo precisa de instrumentos válidos e eficientes. Entre esses instrumentos estão, por exemplo, os sindicatos e os partidos políticos. Os sindicatos devem ser órgãos de participação eficiente na defesa dos direitos dos seus sindicalizados. Estão a serviço dos trabalhadores como comunidade de trabalho que constrói a Pátria, e não a serviço de grupos do poder, de demagogos e pelegos. O Estado onipotente conseguiu, também no Brasil, corromper a filosofia dos sindicatos, reduzindo-os a instituições de beneficência e lazer. (...) Um partido trabalhista que corresponde realmente a uma grande corrente do pensamento popular, na classe dos trabalhadores será, mais cedo, ou mais tarde, uma necessidade imperiosa. (...) Mas um Partido Trabalhista que esteja entregue a liderança dos trabalhadores, e não seja manipulado por uma elite burguesa que deseja apenas conquistar o poder.[6]

E se tal aliança é possível, está colocada a discussão das relações entre cristianismo e socialismo. E tem início uma aproximação entre católicos e socialistas que vai marcar a construção do pensamento desse novo partido. 

Sem disfarçar as divergências em pontos fundamentais, podemos admitir uma luta comum por uma causa comum: a justiça social. Quero crer que sem o Cristianismo como pano de fundo, o Socialismo não se explica suficientemente. Muitos elementos do socialismo são de fato cristãos.[7]


Notas

[1] Enrique Dussel, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Editora Vozes, 2000, p. 573. 
[2] Timothy J. Gorringe, O Capital e o Reino, ética teológica e ordem econômica, São Paulo, Paulus, 1997, Quarta Parte, Dois Caminhos, pp. 211-227. 
[3] Entrevista de D. Adriano Hipólito a Renato Lemos e Marcos Magalhães, “O mandamento da liberdade”, São Paulo, Versus no 28, 01.1979, pp.14-15. Na abertura da entrevista os editores do jornal Versus, da Convergência Socialista, afirmam: “A velha Igreja ainda pesa. Esse processo de descolamento se dá em toda a América Latina. Desde Medellin, há 10 anos, nasce uma igreja combativa, voltada para os problemas das sociedades pobres e dependentes. É aí que aparecem Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno, D. Pelé, Benedito Uchoa, Cândido Padim. Para um jornal que se coloca junto às lutas populares este é um debate fundamental. Qual é o papel da Igreja hoje? O que acontecerá em Puebla? Dentro de alguns dias, centenas de religiosos se encontrarão no México, para decidirem o destino de suas comunidades, arduamente trabalhadas durante anos e anos. O Papa vai a Puebla: rompe-se a tradição anticlerical da revolução mexicana, mas, é certo, podemos esperar a aberta interferência de um Vaticano endividado, atolado na falta do dinheiro, recebendo ajuda americana, e alemã... um papa polonês, um golpe nos estados operários, golpe nas comunidades de base?” 
[4] Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15. 
[5] Ainda segundo D. Hipólito: “A CEB aberta, integra-a quem quiser viver e agir em dimensão comunitária. É através da educação de seus membros, empregando o método da reflexão bíblica-oração, orientada para a via concreta: conscientização para a participação tanto na atuação interna da comunidade e da Igreja, como na atuação social. A CEB não é uma sociedade secreta, por isso não tem medo de serviços secretos, nem de perseguição. É típico de uma ideologia de segurança e de desenvolvimento ter medo da conscientização e da participação ativa do Povo, e por isso mesmo olhar como subversivas as atividades da Igreja e das CEBs”. Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15. 
[6] “Olho a nossa América Latina. Apesar de certas aparências, nossos povos vivem à margem do processo social. Uma elite, voltada inteiramente para a Europa, para os EUA, para a Rússia, continua hoje o imperialismo colonial de séculos passados. Só que agora o colonizador é interno. Apesar da chamada independência política os nossos povos precisam ainda ser liberados, e ter os meios de participar intensamente da vida nacional. Medellin quis dar um impulso forte para o aceleramento deste processo integração e participação. Nossa esperança é que a planejada Terceira Conferência, em Puebla, intensifique mais ainda o esforço de Medellín”. Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15. 
[7] E D. Hipólito continua, argumentando sobre a possibilidade do diálogo: “Disse o sociólogo alemão Werner Sombart: ‘há mais de cem tipos de socialismos’. Certamente com vários tipos será possível uma aproximação do Cristianismo. É por isso que as palavras de Pio XI no Quadragésimo Anno: ‘Ninguém pode ser ao mesmo tempo socialista e cristão’ (que em determinado momento histórico visava ao socialismo radical, em sua forma extremada) têm de ser entendidas corretamente. O Socialismo teve de adaptar-se, e moderar-se no contato com a realidade concreta, que é sempre muito diferente do mundo dos filósofos e dos ideólogos. A História, mestra da vida, corrigiu graves erros do Socialismo primitivo, como está corrigindo (cf. Eurocomunismo e também as formas políticas dos diversos países comunistas) o Marxismo. Para nós, os cristãos, vale sempre o princípio de não absolutizarmos os momentos históricos, que de sua natureza, são sempre contingentes e mutáveis. Isto vale para a Política, para a Economia, para a Cultura, para as diversas Religiões. Isto vale também para a própria história do Cristianismo”. Renato Lemos e Marcos Magalhães, artigo cit., p.15.

dimanche 20 décembre 2015

A festa da luz de Deus entre nós

A festa da luz de Deus entre nós


O povo que andava na escuridão viu uma forte luz: a luz brilhou sobre os que viviam nas trevas” (Isaías 9.2).


É comum todos os anos ouvirmos estas palavras do profeta Isaías, nas comemorações do nascimento de Jesus. E a cada ano, elas têm um novo sabor e fazem reviver o clima de esperança e alegria, que é típico do Natal.

Ao povo oprimido e atribulado que andava nas trevas, apareceu uma forte luz. Sim, esta luz forte, que irradia da humildade do presépio é a luz da salvação. Se a primeira luz foi a da criação, no início de todas as coisas, conforme nos conta o livro de Gênesis (1.3), muito mais luminosa e forte é a luz que traz a salvação a todo o homem de boa vontade, porque traduz o milagre do próprio Deus feito homem!

O Natal é a festa da luz de Deus entre nós. No Menino de Belém, a luz primordial volta a resplandecer no céu da humanidade e dissipa as nuvens do pecado. O brilho do triunfo definitivo de Deus aparece no horizonte da história para propor a homens e mulheres um caminho novo, um futuro de esperança.

Do seu pastor e amigo,
Jorge Pinheiro




samedi 19 décembre 2015

Católicos e protestantes repensam a revolução -- (I)

Católicos e protestantes repensam a revolução -- primeira parte
Jorge Pinheiro, PhD


No final dos anos 60, quando a teoria do desenvolvimento começou a entrar em declínio,[1] a estratégia da revolução conquistou corações e mentes latino-americanos. Intelectuais e partidos políticos de esquerda abandonaram a proposta do desenvolvimento, bandeira levantada entre outros pela Comissão Econômica para América Latina -- CEPAL, ligada à ONU, e promovida pelo governo de John Kennedy através da Aliança para o Progresso, e seguiram os passos de Che Guevara e Fidel Castro. 

Dessa maneira, a guerrilha surgiu na Colômbia, Guatemala e Bolívia, e foi-se espalhando pelo resto da América Latina. Seguindo o sentido revolucionário que começou a incendiar o continente, teólogos protestantes, num primeiro momento, e católicos, posteriormente, optam pela estratégia da revolução. Teologicamente, o caminho da revolução levou a uma reflexão que privilegiou a construção teológica a partir da valorização da história, da cultura e da diversidade de formas de manifestação do encontro do ser humano com Deus.

A Teologia da Libertação surgiu assim como fruto de uma reflexão sobre problemas objetivos vividos na América Latina. Opressão e miséria são fenômenos documentados em todos os países latino-americanos. Mas tais fenômenos não são suficientes para explicar o surgimento de uma teologia e dos movimentos de libertação que cresceram a partir da vitória da revolução socialista em Cuba, em 1959. A existência da miséria não basta, é necessário que a pessoa oprimida perceba a necessidade de lutar pela própria libertação. Deve tomar consciência do estado de opressão e entender que tal situação pode ser vencida.[2]

Para além do desenvolvimentismo está uma nova postura, que se transmite depois, rapidamente, à teologia, e será toda uma nova linguagem, uma interpretação econômica, política e, logicamente, teológica da libertação.[3]

A expressão teologia da libertação definiu o sentido dessa reflexão, ao considerar que a libertação é o horizonte regulador da fala sobre Deus e que o Deus do discurso é fonte da libertação. Dessa maneira, nesta construção teológica, Deus se manifesta nos diferentes momentos do processo histórico. A teologia passa, então, a ser força geradora de ações que viabilizam uma práxis, oriundas das necessidades das circunstâncias sob as quais um povo está submetido.

Por isso, a teologia adquire uma importância capital. Antes, nossos sacerdotes iam à Europa cursar Direito Canônico (...), depois fomos fazer sociologia, economia e política, mas agora se redescobriu que é na teologia onde se encontra a questão. Porque a teologia é a conscientização de todo o processo que se está vivendo; é na teologia que se deve começar a insistir, cada um, em todos os níveis, porque é necessário redescobrir os critérios interpretativos de nossa fé, para que, diante de situações novas, possamos também inventar soluções novas. [4]

Assim, o conceito libertação, nos anos 1960/70, surge a partir da realidade cultural, social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina. E é a partir do quadro vivido no continente que o conceito se consolida. Libertação, então, passa a ser toda “ação que visa criar espaço para a liberdade”.[5] Essa é a origem primeira e o contexto da reflexão teológica que se desenvolveu a partir de uma práxis concreta, num contexto político, social e cultural determinado. Nasceu, a teologia da práxis libertadora. Ou como afirmou Assman em 1972:

Acabou-se o tempo do desenvolvimento e começou a era da libertação, pois que libertação é o novo nome do desenvolvimento. Partir desta situação histórica para refletir sobre a fé cristã não significa limitar o conceito de libertação ao plano econômico (embora aí esteja a prioridade). A libertação do homem no curso da história exige não só melhores condições de vida, uma mudança radical de estruturas, uma revolução social; exige algo mais: uma nova maneira de ser do homem, uma revolução cultural permanente.[6]

Embora tenhamos elaborações como a da Conferência do Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro[7], de 1962, e Towards a Theology of Liberation de Rubem Alves[8], foi no encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano, realizado em Medellín, em 1968, que a Teologia da Libertação adquiriu direito de cidadania.[9] 

Partindo das propostas do Concílio Vaticano II, a conferência de Medellín faz três afirmações que nortearam o pensamento dessa teologia, que os países pobres estavam submetidos ao imperialismo; a igreja latino-americana vivia num meio social em processo revolucionário;[10] e que a igreja latino-americana deveria buscar sua transformação, diante da miséria e injustiça. 

Assim, a Conferência do Episcopado Latino-americano não viu a libertação reduzida à esfera espiritual, mas enquanto ação transformadora que se estende ao ser humano como totalidade, cobrindo as esferas das relações familiares, sociais e políticas. Se por um lado, as opressões do ser humano latino-americano direcionaram a teologia da libertação, por outro, ela também sofreu influência de teólogos europeus que procuraram interpretar a mensagem de Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann negavam a interpretação escolástica e as abordagens existenciais e procuravam na práxis política uma interpretação da mensagem cristã. Ou como diz o próprio Metz:

"A salvação a que se refere a esperança da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação empurrou Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo. Sua cruz não está no privatissimum da esfera indivíduo/pessoa, e muito menos no sanctissimum da esfera puramente religiosa. Ela está além do umbral da reservada esfera privada ou da protegida esfera puramente religiosa. Ela está ‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do templo foi definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são públicos". [11]


Notas

[1] A teoria do desenvolvimento delineou nos anos 60 um novo tipo de relações entre países ricos e países do Terceiro Mundo, de mais cooperação e assistência. Foi defendida por organismos internacionais e, também, por bispos e teólogos latino-americanos. “Medellín se encontra hoje no que chamamos de passagem do desenvolvimentismo para a teologia da libertação. O que significa o desenvolvimentismo? Que existem sociedades desenvolvidas e sociedades subdesenvolvidas, logo é necessário desenvolver as segundas. Mas o desenvolvimentismo pensa que deve-se desenvolvê-las segundo o modo e o modelo das desenvolvidas. (...) Isso é o que pensa o desenvolvimentismo e está um pouco presente ainda em Medellin”. Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, Buenos Aires, Latinoamérica Libros, 1972, p. 108. 
[2] Enrique Dussel, História da la Iglesia en América Latina, medio milenio de coloniaje y liberación (1492-1992), Madri/México, Mundo Negro-Esquilla Misional, 1992, p. 218-220. 
[3] Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, op. cit., p. 109. 
[4] Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, op. cit., p. 170. 
[5] Leonardo Boff, Teologia do cativeiro e da libertação, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 87. 
[6] Hugo Assman, Religione, oppio o strumento di liberazione?, IDOC-Mondatori, Verona, 1972, p. 164. 
[7] A Conferência do Nordeste teve três blocos de trabalhos publicados pela Confederação Evangélica do Brasil: os estudos da I Reunião de Consulta sobre a Responsabilidade Social da Igreja, realizada de 15 a 18 de novembro de 1955, e publicado em março de 1956; os documentos preparatórios da Conferência do Nordeste, em especial os textos de Celso Furtado e de Joaquim Beato; e os dois cadernos, Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, publicados em 1962. Na sequência apresentamos os trabalhos publicados, por data, autor (ou grupo de estudo) e título: 1955, CEB/CIS, “Estudos sobre a responsabilidade social da igreja”; 1962, Almir dos Santos, “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”; 1962, Celso Furtado, “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira”; 1962, Celso Furtado, “O NE no processo revolucionário brasileiro”; 1962, Edmundo K. Sherrill, “A missão total da Igreja numa sociedade em crise”; 1962, Ernst Schilieper, “A Igreja e a sua responsabilidade social”; 1962, Gilberto Freire, “O artista: servo dos que sofrem”; 1962, João Dias de Araújo, “A revolução do reino de Deus”; 1962, Joaquim Beato, “Ideologia cristã como base para a ação social da Igreja”; 1962, Joaquim Beato, “Os profetas em épocas de transformações políticas e sociais”; 1962, Juarez R. B. Lopes, “Resistências à mudança social no Brasil”; 1962, Paulo Singer, ‘”Mudanças sociais na história contemporânea”; 1962, Sebastião G. Moreira, “Cristo, a única solução para o Brasil”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo urbano”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo industrial”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo rural”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo educacional”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo de arte e comunicação”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira estudantil, Grupo estudantil”; 1962, Curt Kleemann, “Encerramento da Conferência do Nordeste”; 1962, Apêndice, ‘Cidadania responsável nas situações históricas”. 
[8] Rubem Alves, Da Esperança, Campinas, Papirus Editora. Towards a Theology of Liberation, Corpus Book, Washington, 1969. Trad. João-Francisco Duarte Jr. 
[9] R. Vidales, Acquisizioni e compiti della teologia latinoamericana, Roma, Concilium, 1974, nº 4, p. 154. 
[10] “Os teólogos apenas analisam a situação social, política e econômica do nosso mundo contemporâneo e apenas constatam a existência dessa luta de classes que é sempre deplorada por eles. Nenhum teólogo da libertação achará o evangelho classista no sentido sociológico moderno. Por outro lado, seríamos cegos se não percebêssemos no evangelho a clara condenação dos ricos e a mais clara ainda opção pelos pobres”. Jaci Maraschin, “A Teologia da Libertação torna-se adulta”, in A maioridade da Teologia da Libertação, Estudos de Religião nº 6, abril de 1989, pp. 7-8. 
[11] J. B. Metz, Sulla teologia del mondo, 1968, p. 11.

PSB, um partido semente -- terceira parte

PSB, um partido semente -- terceira parte
Jorge Pinheiro, PhD


Os socialistas participaram de manifestações públicas pela posse de Goulart. No Estado da Guanabara, Bayard Boiteux,[1] liderança do PSB entre os professores foi preso. A deputada Adalgisa Nery assinou a solicitação de impeachment contra Lacerda que implantou a censura à imprensa e repressão aos legalistas. As manifestações dos metalúrgicos, ferroviários e portuários contaram com a participação dos militantes operários do PSB. Mas o Congresso votou pelo parlamentarismo. Durante o período em que Tancredo Neves foi o primeiro-ministro os parlamentares socialistas cobravam o cumprimento do programa de governo exigindo reformas. 

Tancredo chegou a declarar quando embarcava para Roma que voltaria para responder às interpelações formuladas por deputados liderados por Aurélio Viana. Quando o gabinete Tancredo renunciou, o PSB apoiou a indicação de San Thiago Dantas, mas acabou sendo indicado em solução de compromisso Brochado da Rocha, que ficou apenas dois meses. O gabinete que o sucedeu, dirigido por Hermes Lima que em 1958 mudara para a legenda do PTB, foi na prática presidencialista. João Mangabeira, presidente do PSB, foi Ministro de Minas e Energia no gabinete Brochado da Rocha e Ministro da Justiça no gabinete Hermes Lima.

A renúncia de Jânio Quadros à presidência da República provocara um movimento de defesa da legalidade contra a tentativa dos militares e setores conservadores de evitar a posse de João Goulart. O governo Goulart buscava realizar reformas e para isso procurou apoio na mobilização de sindicatos e nas massas populares. Mas os setores conservadores radicalizavam pela manutenção de seus privilégios. E como pano de fundo, instaurava-se a crise do modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações, alavancado pela atuação estatal na área de bens de capital, no planejamento e nos subsídios. 

Neste cenário o PSB ampliou sua inserção nas lutas sociais e sua participação nos espaços institucionais. No Parlamento, Aurélio Viana, Barbosa Lima Sobrinho, Adalgisa Nery e outros deputados socialistas se tornaram lideranças nacionalmente respeitadas. No movimento estudantil Altino Dantas era a maior liderança do PSB, no movimento sindical urbano Remo Forli, e na luta pela reforma agrária, Francisco Julião. 

Em novembro de 1961, o PSB realizou sua 9a. Convenção, em memória de Osório Borba, que fora jornalista, deputado constituinte e militante do partido, no Rio de Janeiro. As resoluções acentuavam a necessidade de uma frente popular, da unidade das esquerdas e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. No clima de agitação política, poucos à esquerda prestaram atenção à reorganização da direita. Em novembro de 1961, fora criado o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que junto com o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e setores civis e militares desempenhariam papel decisivo na derrubada do governo Goulart. 

Nas eleições de 1962, o PSB cresceu em representação parlamentar, com candidatos próprios ou apoiando candidatos de partidos próximos como na eleição do governador Arraes em Pernambuco. Para Paul Singer, o Partido Socialista estava começando a atrair a esquerda, que estava nos anos sessenta em todos os partidos. O Partido Socialista era o único dos legais, de expressão, que era de esquerda. (...) O Partido Socialista seria assim um pouco como um terreno neutro para a esquerda onde esses vários grupos podiam colaborar com projetos ideológicos, seminários ou criação de frente única (...) o Partido Socialista, com sua modesta sede no centro da cidade, era um terreno em que todo mundo se entendia, podia vir e se sentir à vontade.[2]

No período presidencialista João Mangabeira continuou como ministro da Justiça, mas acabou renunciando ao cargo por discordar de medidas tomadas pelo governo. Dentro do PSB, Mangabeira traduzia o pensamento da ala mais moderada. Os mais radicais cresciam. Apesar das discordâncias, Mangabeira era respeitado como um socialista democrático histórico. 

Em 31 de março se dá o golpe que derruba João Goulart e a democracia brasileira. A tentativa de realização de reformas estruturais daria lugar a uma modernização associada ao capital estrangeiro, excludente da participação popular. Até 1965, quando se deu sua extinção legal, o PSB, através do núcleo paulista, continuou a editar a Folha Socialista. Numa das vendas públicas do jornal, já clandestino, Altino Dantas, que entrara para o partido em 1961, foi preso. Entre uma prisão e outra, o futuro presidente da UNE começou a analisar, assim como milhares de jovens, a possibilidade de uma outra via para a construção do socialismo no Brasil. 


Notas

[1] Anos mais tarde, em 1965, já no Movimento Nacionalista Revolucionário, Bayard Boiteux foi um dos líderes da guerrilha de Caparaó, em Minas Gerais. 
[2] “A história do PSB e a atualidade do socialismo democrático”, artigo citado.