Católicos e protestantes repensam a revolução -- primeira parte
Jorge Pinheiro, PhD
No final dos anos 60, quando a teoria do desenvolvimento começou a entrar em declínio,[1] a estratégia da revolução conquistou corações e mentes latino-americanos. Intelectuais e partidos políticos de esquerda abandonaram a proposta do desenvolvimento, bandeira levantada entre outros pela Comissão Econômica para América Latina -- CEPAL, ligada à ONU, e promovida pelo governo de John Kennedy através da Aliança para o Progresso, e seguiram os passos de Che Guevara e Fidel Castro.
Dessa maneira, a guerrilha surgiu na Colômbia, Guatemala e Bolívia, e foi-se espalhando pelo resto da América Latina. Seguindo o sentido revolucionário que começou a incendiar o continente, teólogos protestantes, num primeiro momento, e católicos, posteriormente, optam pela estratégia da revolução. Teologicamente, o caminho da revolução levou a uma reflexão que privilegiou a construção teológica a partir da valorização da história, da cultura e da diversidade de formas de manifestação do encontro do ser humano com Deus.
A Teologia da Libertação surgiu assim como fruto de uma reflexão sobre problemas objetivos vividos na América Latina. Opressão e miséria são fenômenos documentados em todos os países latino-americanos. Mas tais fenômenos não são suficientes para explicar o surgimento de uma teologia e dos movimentos de libertação que cresceram a partir da vitória da revolução socialista em Cuba, em 1959. A existência da miséria não basta, é necessário que a pessoa oprimida perceba a necessidade de lutar pela própria libertação. Deve tomar consciência do estado de opressão e entender que tal situação pode ser vencida.[2]
Para além do desenvolvimentismo está uma nova postura, que se transmite depois, rapidamente, à teologia, e será toda uma nova linguagem, uma interpretação econômica, política e, logicamente, teológica da libertação.[3]
A expressão teologia da libertação definiu o sentido dessa reflexão, ao considerar que a libertação é o horizonte regulador da fala sobre Deus e que o Deus do discurso é fonte da libertação. Dessa maneira, nesta construção teológica, Deus se manifesta nos diferentes momentos do processo histórico. A teologia passa, então, a ser força geradora de ações que viabilizam uma práxis, oriundas das necessidades das circunstâncias sob as quais um povo está submetido.
Por isso, a teologia adquire uma importância capital. Antes, nossos sacerdotes iam à Europa cursar Direito Canônico (...), depois fomos fazer sociologia, economia e política, mas agora se redescobriu que é na teologia onde se encontra a questão. Porque a teologia é a conscientização de todo o processo que se está vivendo; é na teologia que se deve começar a insistir, cada um, em todos os níveis, porque é necessário redescobrir os critérios interpretativos de nossa fé, para que, diante de situações novas, possamos também inventar soluções novas. [4]
Assim, o conceito libertação, nos anos 1960/70, surge a partir da realidade cultural, social, econômica e política sob a qual se encontrava a América Latina. E é a partir do quadro vivido no continente que o conceito se consolida. Libertação, então, passa a ser toda “ação que visa criar espaço para a liberdade”.[5] Essa é a origem primeira e o contexto da reflexão teológica que se desenvolveu a partir de uma práxis concreta, num contexto político, social e cultural determinado. Nasceu, a teologia da práxis libertadora. Ou como afirmou Assman em 1972:
Acabou-se o tempo do desenvolvimento e começou a era da libertação, pois que libertação é o novo nome do desenvolvimento. Partir desta situação histórica para refletir sobre a fé cristã não significa limitar o conceito de libertação ao plano econômico (embora aí esteja a prioridade). A libertação do homem no curso da história exige não só melhores condições de vida, uma mudança radical de estruturas, uma revolução social; exige algo mais: uma nova maneira de ser do homem, uma revolução cultural permanente.[6]
Embora tenhamos elaborações como a da Conferência do Nordeste -- Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro[7], de 1962, e Towards a Theology of Liberation de Rubem Alves[8], foi no encontro da Conferência do Episcopado Latino-americano, realizado em Medellín, em 1968, que a Teologia da Libertação adquiriu direito de cidadania.[9]
Partindo das propostas do Concílio Vaticano II, a conferência de Medellín faz três afirmações que nortearam o pensamento dessa teologia, que os países pobres estavam submetidos ao imperialismo; a igreja latino-americana vivia num meio social em processo revolucionário;[10] e que a igreja latino-americana deveria buscar sua transformação, diante da miséria e injustiça.
Assim, a Conferência do Episcopado Latino-americano não viu a libertação reduzida à esfera espiritual, mas enquanto ação transformadora que se estende ao ser humano como totalidade, cobrindo as esferas das relações familiares, sociais e políticas. Se por um lado, as opressões do ser humano latino-americano direcionaram a teologia da libertação, por outro, ela também sofreu influência de teólogos europeus que procuraram interpretar a mensagem de Cristo e a história da salvação em base política. Esses teólogos, entre os quais podemos citar J. B. Metz, H. Cox e J. Moltmann negavam a interpretação escolástica e as abordagens existenciais e procuravam na práxis política uma interpretação da mensagem cristã. Ou como diz o próprio Metz:
"A salvação a que se refere a esperança da fé cristã não é uma salvação privada. A proclamação desta salvação empurrou Jesus para um conflito mortal com os poderes políticos de seu tempo. Sua cruz não está no privatissimum da esfera indivíduo/pessoa, e muito menos no sanctissimum da esfera puramente religiosa. Ela está além do umbral da reservada esfera privada ou da protegida esfera puramente religiosa. Ela está ‘fora’, como formula a teologia da Carta aos Hebreus. O véu do templo foi definitivamente rasgado. O escândalo e a promessa desta salvação são públicos". [11]
Notas
[1] A teoria do desenvolvimento delineou nos anos 60 um novo tipo de relações entre países ricos e países do Terceiro Mundo, de mais cooperação e assistência. Foi defendida por organismos internacionais e, também, por bispos e teólogos latino-americanos. “Medellín se encontra hoje no que chamamos de passagem do desenvolvimentismo para a teologia da libertação. O que significa o desenvolvimentismo? Que existem sociedades desenvolvidas e sociedades subdesenvolvidas, logo é necessário desenvolver as segundas. Mas o desenvolvimentismo pensa que deve-se desenvolvê-las segundo o modo e o modelo das desenvolvidas. (...) Isso é o que pensa o desenvolvimentismo e está um pouco presente ainda em Medellin”. Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, Buenos Aires, Latinoamérica Libros, 1972, p. 108.
[2] Enrique Dussel, História da la Iglesia en América Latina, medio milenio de coloniaje y liberación (1492-1992), Madri/México, Mundo Negro-Esquilla Misional, 1992, p. 218-220.
[3] Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, op. cit., p. 109.
[4] Enrique Dussel, Caminos de la liberación latinoamericana I, op. cit., p. 170.
[5] Leonardo Boff, Teologia do cativeiro e da libertação, Petrópolis, Vozes, 1980, p. 87.
[6] Hugo Assman, Religione, oppio o strumento di liberazione?, IDOC-Mondatori, Verona, 1972, p. 164.
[7] A Conferência do Nordeste teve três blocos de trabalhos publicados pela Confederação Evangélica do Brasil: os estudos da I Reunião de Consulta sobre a Responsabilidade Social da Igreja, realizada de 15 a 18 de novembro de 1955, e publicado em março de 1956; os documentos preparatórios da Conferência do Nordeste, em especial os textos de Celso Furtado e de Joaquim Beato; e os dois cadernos, Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro, publicados em 1962. Na sequência apresentamos os trabalhos publicados, por data, autor (ou grupo de estudo) e título: 1955, CEB/CIS, “Estudos sobre a responsabilidade social da igreja”; 1962, Almir dos Santos, “Cristo e o processo revolucionário brasileiro”; 1962, Celso Furtado, “Reflexões sobre a pré-revolução brasileira”; 1962, Celso Furtado, “O NE no processo revolucionário brasileiro”; 1962, Edmundo K. Sherrill, “A missão total da Igreja numa sociedade em crise”; 1962, Ernst Schilieper, “A Igreja e a sua responsabilidade social”; 1962, Gilberto Freire, “O artista: servo dos que sofrem”; 1962, João Dias de Araújo, “A revolução do reino de Deus”; 1962, Joaquim Beato, “Ideologia cristã como base para a ação social da Igreja”; 1962, Joaquim Beato, “Os profetas em épocas de transformações políticas e sociais”; 1962, Juarez R. B. Lopes, “Resistências à mudança social no Brasil”; 1962, Paulo Singer, ‘”Mudanças sociais na história contemporânea”; 1962, Sebastião G. Moreira, “Cristo, a única solução para o Brasil”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo urbano”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo industrial”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira econômica, Grupo rural”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo educacional”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira cultural, Grupo de arte e comunicação”; 1962, Grupo de Estudo, “Fronteira estudantil, Grupo estudantil”; 1962, Curt Kleemann, “Encerramento da Conferência do Nordeste”; 1962, Apêndice, ‘Cidadania responsável nas situações históricas”.
[8] Rubem Alves, Da Esperança, Campinas, Papirus Editora. Towards a Theology of Liberation, Corpus Book, Washington, 1969. Trad. João-Francisco Duarte Jr.
[9] R. Vidales, Acquisizioni e compiti della teologia latinoamericana, Roma, Concilium, 1974, nº 4, p. 154.
[10] “Os teólogos apenas analisam a situação social, política e econômica do nosso mundo contemporâneo e apenas constatam a existência dessa luta de classes que é sempre deplorada por eles. Nenhum teólogo da libertação achará o evangelho classista no sentido sociológico moderno. Por outro lado, seríamos cegos se não percebêssemos no evangelho a clara condenação dos ricos e a mais clara ainda opção pelos pobres”. Jaci Maraschin, “A Teologia da Libertação torna-se adulta”, in A maioridade da Teologia da Libertação, Estudos de Religião nº 6, abril de 1989, pp. 7-8.
[11] J. B. Metz, Sulla teologia del mondo, 1968, p. 11.
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