vendredi 2 septembre 2016

PT, a questão proletária e seus conflitos internos

A questão proletária e seus conflitos internos
Jorge Pinheiro, PhD



Ora, fazer uma leitura teológica desse espectro do vermelho e das possibilidades de um partido dos trabalhadores implica em fazer uma discussão sobre as origens proletárias do partido e o que isso significa. Foram condições especiais que levaram a massa proletária e a pessoalidade de jovens sindicalistas, cristãos e socialistas a formarem uma síntese, que correspondeu ao ideal da teonomia. Essa massa orgânica, que nem sempre caminha em direção ao ideal da teonomia, no final dos anos 1970 plasmou-se enquanto massa dinâmica no tempo histórico do final do regime militar. Essa massa em movimento é revolucionária,[1] não só no seu sentido político, mas no sentido de fé espiritual e social, gerou um movimento que a levou a ir além do estado de massa, o que se concretizou na organização do Partido dos Trabalhadores.

Apesar do caminho que fez através da democracia de participação e das mobilizações, isto não evitou que o Partido dos Trabalhadores vivesse desde sua origem os conflitos internos do socialismo,[2] que tiveram como ponto de partida a própria condição proletária do partido. Os conflitos da situação proletária no PT surgiram do fato de que esse proletariado industrial e suas direções sindicais tiveram que se apoiar no princípio burguês de gestão da vida cultural, política e social, e, ao mesmo tempo, se opor ao princípio burguês. Ou seja, os conflitos tiveram por base o fato de que esse proletariado industrial deveria ir além, sobrepujar o princípio burguês com os meios deste mesmo princípio. Esta oposição foi inevitável, porque a existência proletária é expressão do princípio burguês. Estão presentes na própria existência do proletariado e, em especial, em suas direções sindicais, o processo de permanente objetivação, reificação e a ruptura com sua própria origem. 

Então, o proletariado, mesmo estando organizado em sindicatos, não pode reagir ao pensamento burguês com total liberdade e independência. Isto porque não se pode responder à reificação apenas com o ethos, é necessário usar meios políticos. Mas, ao mesmo tempo, a situação dos trabalhadores, a cada ação e manifestação, mostrava a milhões de brasileiros que suas existências estavam em contradição com o destino humano. Foi essa realidade, que o conjunto da sociedade brasileira vivia e sentia, que deu força ao movimento operário e o ligou às reivindações democráticas da sociedade. Foi por isso que o princípio protestante da autonomia teve função especial na compreensão da situação brasileira, pois ao ser olhado a partir da situação proletária, mostrou que a realidade brasileira nos anos da ditadura militar se apresentava como cisão demoníaca ou alienação. Estes elementos que desde o início estiveram correlacionados à situação de classe dos trabalhadores, que formaram a base social do PT, ligados à consciência da necessidade de lutar pelo socialismo, tiveram para os brasileiros uma significação universal. 

E são esses elementos que nos permitem falar de espectro do vermelho, que vão além dos atributos de classe, mas fizeram parte do conteúdo humano levantado nas bandeiras de luta do Partido dos Trabalhadores. Dessa maneira, como em outros momentos da história, setores do proletariado brasileiro descobriram que esses direitos que brotam da autonomia o ligavam a outros grupos humanos e que a miséria tocava tanto seus corpos como suas almas. E que esses elementos originais daquilo que é humano são realidades presentes que os levam à luta contra o princípio burguês. Esta é a razão porque o cristianismo social deve dialogar com o materialismo proletário pela construção de uma nova sociedade. E nesse diálogo deve, também, lembrar ao socialismo que a miséria dos trabalhadores e excluídos não é somente uma miséria econômica e social, mas humana.

Nos primeiros vinte anos da história do PT vimos que a oposição entre a fé cristã e o socialismo não estava na utilização do método dialético e nem mesmo no materialismo, mas na leitura dos fatores intra-históricos, já que para os cristãos sociais a história é definida pela combinação de fatores intra e supra-históricos. A ausência desse elemento transistórico no socialismo materialista tende a levar as correntes socialistas a caminharem numa direção contrária a do próprio socialismo, pois ao não entendem a irrupção do kairós, caminham para o desencantamento. O kairós é um tempo carregado de tensão e transformação, já que nem tudo é possível sempre, nem tudo é verdade em todos os tempos. O kairós reina no tempo presente, que é diferente dos tempos do passado. É nessa viva consciência da história que está enraizada a idéia de kairós, e é a partir dela que deve ser construída uma ação política consciente da história, a revolução.

A concepção conservadora, que se plamou na corrente sindicalista do PT, liderada pela tendência Articulação, perdeu o sentido supratemporal do kairós, e, por isso, o pensamento conservador petista congelou as possibilidades de transformação da realidade brasileira. O mito fundador do PT expressou com profunda riqueza este estado de coisas, com o testemunho de eventos nos quais o partido pode perceber sua origem. Mas, em seu mito fundador ressoam as leis cíclicas do nascimento e da morte, que promete a segurança da origem e o coloca debaixo de seu império. 

Por isso, a raiz do pensamento político conservador petista é essa consciência mítica original. Esse é o nó de origem do Partido dos Trabalhadores: a partir da utopia que lhe deu nascimento, parte da militância quis congelar sua saga de origem, eternizando os momentos de vitória do início dos anos 1980. Mas o sentido supratemporal daquele kairós abala o tempo e seus conteúdos e é por isso que a utopia leva à decepção. Ela esquece o presente e se lança à frente, mas este estar no passado ou no futuro faz do presente um tempo pobre, e é isso que desencanta a utopia, principalmente as lideranças sindicais, que estão sob forte pressão do princípio burguês. Daí que a realização da espera socialista não pode ser entendida como um conceito meramente empírico, pois a utopia é impotente para enfrentar os poderes da sociedade. Quando o PT não se questiona a respeito da promessa socialista, sua espera deixa de estar orientada em direção à realização, pois a esperança exorta a luta política a caminhar na direção do presente prometido. A ação dinâmica dos trabalhadores deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, mas não se alcança uma existência humana isenta de ameaça. Por isso, o princípio último da justiça é o reconhecimento da dignidade do ser humano como pessoa e dos ameaçados pela injustiça.

O PT, sem dúvida, foi além do colocar-se como realidade dada. Fez a experiência de uma exigência que o separou do imediato da concepção socialista e o levou a colocar-se diante da pergunta: por que o PT é assim?[3] Esta pergunta quebrou o ciclo nascimento/morte e lançou o PT numa realidade nova e desconhecida. A pergunta pela razão de ser do PT é a exigência de algo que tem que se tornar realidade. Quando se faz a experiência desse tipo de exigência não se está mais colado à origem. Vai-se além da afirmação do que já está. A exigência nomeia o que deve ser. E o que deve ser não é determinado com a afirmação daquilo que é, significa que tal exigência impôs ao PT o incondicional. 

O questionamento pela razão de ser do PT está fora dos limites da origem e através dela o partido deve alcançar algo incondicionalmente novo. Este é o sentido da exigência: quando o Partido dos Trabalhadores, por ser um partido dividido, que tem contradições, faz esta experiência, ele detém um conhecimento próprio, por isso é possível ir além daquilo que o cerca. Tal é a liberdade do partido: suas lideranças e suas bases não têm vontades livres de circunstâncias e situações, mas também não estão presas ao que está dado. A existência e ação petistas não estão amarradas na simples propagação de sua origem. Quando esta consciência se impõe, para lideranças e bases, podem ser rasgados os laços da origem, o mito original será quebrado. Essa ruptura do mito original pelo incondicional da exigência é a raiz do surgimento do pensamento democrático no Partido dos Trabalhadores. Mas, essa concepção democrática, que é progressista, tem seus limites, pois considera a utopia um alvo colocado à frente, que se realiza a conta-gotas, que não se apresenta enquanto revolução. Assim, os tempos tornam-se sem decisão. 

Nessa concepção democrática, e aqui estão representados os socialismos reformistas no PT, existe uma tensão diante daquilo que o partido foi, pois a consciência de que o alvo se dá por etapas leva a um compromisso continuado com o passado, por isso a concepção democrática em si mesma não oferece opção ao que está dado. Transforma-se em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade última. Esse progressismo mitigado é a atitude característica das tendências do socialismo reformista no PT e é uma ameaça, pois significa a supressão do kairós, do anúncio da plenitude dos tempos. Esse socialismo reformista é o grande adversário da autonomia crítica.

Mas, a exigência que o Partido dos Trabalhadores faz na experiência diante do que é incondicional não é estranha a sua história. Se fosse estranha, o PT não poderia entender tal coisa como exigência. Se ela toca sua militância é porque coloca diante de seus olhos a sua essência enquanto exigência. Funda-se, então, a incondicionalidade, a irrevogabilidade com que o dever-ser confronta a cada dia o partido e exige ser afirmado por ele. Se a exigência da incondicionalidade do PT é sua própria essência de um partido de trabalhadores, nascido das lutas sociais, a essência do PT encontra seu fundamento na sua origem e, então, a providência e o destino não pertencem a mundos diferentes. 

A pura consciência mítica original ignora todas as ambigüidades da origem. É por isto que esta consciência está presa à origem e considera sacrilégio toda a ultrapassagem da origem. Só a consciência que faz a experiência da exigência daquilo que é incondicional se livra dos laços de origem e se apercebe da ambigüidade da origem. Por isso, um partido de trabalhadores não recebe sua exigência incondicional de partidos não-operários e não-socialistas: é no encontro com as massas em movimento que a exigência torna-se concreta. Seu conteúdo é reconhecido pelas massas com a dignidade de partido dos trabalhadores, dignidade para ser livre, portador da realização daquilo que aponta à origem. 

Reconhecer nas massas em movimento uma dignidade igual ao de partido dos trabalhadores é justiça: e a exigência que arrasta um partido de trabalhadores à ambigüidade da origem é a exigência de justiça. A origem não rompida conduz a poderes em tensão que procuram a dominação tanto do partido como a imobilização das massas. Quando a origem é rompida vem o poder de ser partido dos trabalhadores, o declínio dos poderes julgados por seu sacrilégio, de acordo com a ordem do tempo. 

Diante do poder e da impotência de ser partido de trabalhadores, opõe-se a justiça, que provém do dever-ser. Portanto, não há uma simples oposição, porque o dever-ser é a realização do ser partido de trabalhadores. A justiça é o verdadeiro poder de ser PT. Nisto se torna realidade o que é apontado na origem. Na relação entre as diferentes tendências existentes no partido e as duas grandes vertentes de pensamento político, democracia radical versus socialismo, a exigência deve predominar sobre a origem, e a justiça sobre o poder de ser partido de trabalhadores. 

A pergunta pela razão será superior à da providência. O mito original não deve representar no pensamento político mais do que uma crença desvelada. Esse é o caminho da utopia socialista. Sem o espírito utópico socialista não há protesto, nem transformação. Assim, a realização do criticismo profético se encontra além do tempo, lá onde a utopia socialista pode perder força, mas sua ação continua presente. Mas toda transformação exige uma compreensão do momento vivido, deve entender que há um choque entre a utopia socialista e o kairós. É a partir dessa compreensão do que significa o espírito crítico do profetismo no tempo presente, que se deve voltar ao kairós, à revolução que abala o tempo e os lugares, mas agora com novos conteúdos, construído enquanto responsabilidade inetulável. 

E tal desafio não pode ser resolvido por um líder, por mais que expresse a utopia petista: o sujeito da transformação será, em última instância, a comunidade dos excluídos em movimento. Ora, as raízes do pensamento político petista mantêm relações que vão além da soma de diferenças, porque a exigência predomina sobre a origem. E quando decisões são requeridas, o conceito tradicional de compreensão da realidade não é aplicável, porque não é possível entender o socialismo quando não se experimenta a exigência da justiça como uma exigência incondicional. Quem não é confrontado por esta exigência não pode falar de socialismo, a não ser enquanto expressão externa. Aqui reside a polarização de opiniões que a discussão sobre socialismo e democracia gerou dentro do Partido dos Trabalhadores. 

Frente à realidade das tendências e das diferentes raízes de pensamento político, está posto que toda ação política dentro do partido, mas também diante da sociedade, requer autoridade, não só no sentido do uso do poder, mas também em termos de consentimento manifesto das pessoas. Tal consentimento só é possível quando o partido representa uma idéia que tenha significado para todos. Existe, pois, na esfera política uma relação entre a autoridade e a autonomia. Exatamente por isso, autoridade e autonomia estão presentes no Partido dos Trabalhadores e não podem existir sem a correção da democracia, enquanto mediação, e do direito de tendências. 

Isto porque o socialismo proposto pelo PT colocou a questão da possibilidade de que a vida tenha sentido para todas as pessoas e que deveria se esforçar para responder a esta questão no plano da realidade e do pensamento. Já os cristãos sociais dentro do PT acrescentaram algo a essa compreensão ao dizer que o socialismo não deve ser apenas um movimento político, pois é maior que o próprio movimento das massas trabalhadores: deve ser um movimento que procure apreender cada aspecto da vida e cada grupo da sociedade. 

Para os cristãos sociais dentro de um partido de trabalhadores este seria o desafio: manter o socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia; ser democrático, participativo e representativo, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz do criticismo profético que se projeta além das classes, neste agora onde a utopia socialista deve parir o kairós, a revolução.


Notas
[1] Paul Tillich, “Masse et Esprit. Études de philosophie de la masse” in Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Paris, Genebra, Québec, Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992. 
[2] Jorge Pinheiro dos Santos, “Socialismo e religião no processo de fundação do Partido dos Trabalhadores, uma leitura a partir de Paul Tillich”, Correlatio 4, dezembro 2004, São Bernardo do Campo. Site: www.metodista.br/correlatio 
[3] Jorge Pinheiro, “Politique et religion, un éclairage tillichien sur le socialisme brésilien”, in Marc Boss, Doris Lax, Jean Richard (orgs.), Ethique sociale et socialisme religieux, Munique, LIT Verlag Munster, 2005.



Ou como dissemos acima, para os cristãos sociais dentro de um partido de trabalhadores este seria o desafio: manter o socialismo de origem, sem se deixar congelar por ele; projetar seus sonhos, sem sacrificar vidas no altar da utopia; ser democrático, participativo e representativo, quando a intolerância e o arbítrio marcaram e fazem parte da tradição política brasileira. E ser voz do criticismo profético que se projeta além das classes, neste agora onde a utopia socialista deve parir o kairós, a revolução.