jeudi 10 novembre 2022

Teologia humana ... / texto completo

Humana para lá de humana

Jorge Pinheiro



O humano é responsável pelo ontem, pelo hoje e pelo amanhã. É na construção escolhida ou imposta, mas aceita, e na sequência dela, que cada um, que cada uma faz a comunidade humana. As realidades imanentes e transcendentes são vaidades e correr atrás do vento quando é descartado o papel humano de cada dia. Por isso, a teologia exorta à crítica do espírito de religiosidade e chama à liberdade do livre espírito: pensar a imposição para construir além dela. 


Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras”. (Machado de Assis, A Cartomante).


Palavras. Os cristãos acreditam que o universo foi feito pela palavra, o logos joanino. Acreditam que a palavra tem poder, daí que seja o seu sim, sim, e o seu não, não. Mas Machado de Assis nos diz que se faz também por outras palavras. Dessa maneira, o criar e o fazer não são iguais porque as palavras são diferentes. 


Ah! Mas são sempre os mesmos temas: o amor e o desamor, a distância e a saudade, o tino e o desatino, por exemplo. Talvez, mas a diferença é que se faz por outras palavras. E tudo muda...


Grato, não piegueiro. A dizer obrigado porque as contingências não fumegaram o pavio. Lá atrás, o garoto anda pela calçada sem saber que a vida vai além do meio fio, que há lados. E ao atravessar a Rua do Catete as ladeiras sobem em direção à graciosa Teresa. Mas sabe que de carrinho de rolimã se desce mais rápido, da Glória em direção ao Lartigau, cheio de geometrias art-déco, ali, quase na taverna, embora os pneus fiquem à altura da cara. 


E lá na frente o mar. O veleiro. A liberdade, aprendida com Walter, é negociar com os elementos. Ventos e marés. Diante das mareações, a marinharia aqui faz, junto do tio, o menino livre. 


Apresento a teologia humana. E o faço a partir de Machado de Assis, porque fazer teologia é degustar prazeres. Não se faz às correrias, com sofreguidão. É ato delicado, caminhar por palavras, dançando com elas pelo universo em construção.

 

É interessante que Paulo, o apóstolo, diz que somos poiema do Eterno. Poiema, do verbo grego poieo, que deu em português poema e poesia, significa aquilo que é fabricado, produto, projeto de um artesão. Assim, na teologia, logos e poieo andam juntos.

   

Por isso, na teologia, a paixão aproxima, porque é sempre logos e poieo nos diferentes momentos. Que você possa curtir prazerosamente no humano as palavras, as outras palavras, que nos trazem diferentes construções e universos.


Agradecido porque fazer teologia virou sina. O menino lá de trás atravessou o tempo, os jeans, camisetas, cabelos arrepiados, e caiu aqui, do outro lado da vida, na Paulista, Saraiva adentro. Tempo de logos e poieo, o garoto de antes vê a plenitude, mas o homem de hoje entende que o si não é o importante, talvez sim as notas do Murá, os sorrisos e os parabéns que a transcendência montou.


Voltando a Machado: ele fala de palavras mal compostas, palavras decoradas, palavras sussurradas, palavras que se bebem, palavras que reboam, palavras secas, palavras afirmativas, palavras vulgares...


Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar comprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”.


A aparente simplicidade de A Cartomante, publicado originalmente na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, em 1884, é típica de Machado. Talvez essa seja a grande lição do mestre: traduzir o humano com aparente simplicidade. É, digo aparente simplicidade, porque o simples dá trabalho e, ao contrário do que se pensa, nunca é primeiro, mas processo. E esse é o recado. Fazer teologia é descobrir o prazer da palavra curta, na construção muitas vezes trabalhosa que produz aquilo que é poieo. Ou seja, fazer teologia é desconstruir, e na imaginação construir de novo, percorrendo se for possível o caminho de todos, de cada humano. E é assim que, sem estardalhaço, a produção teológica ocupa lugar nos corações, cheia de imagens e significados.


Obrigado pelo agradável, bom e doce que expressa em letras a liberdade do marujo. 


O sondar daquele menino lá atrás ajuda. O olhar deslumbrado porque a vida é a praça, os jardins do Flamengo, os repuxos brancos no entardecer, as pessoas que compõem o cenário como se tivessem sido colocadas lá pelo arquiteto. E o mar... Assim é! A humanidade coroa a Glória. Aceito o prescrito e reconheço.



Tempo quente em Buenos Aires



As tradições coloniais espanholas e portuguesas herdadas e depois recicladas pelas repúblicas autoritárias fizeram das ruas das grandes cidades latino-americanas espaços de trânsito do tripalium e do sofrimento, e dos lares, casamatas de refúgio.

 
Na Argentina a melhor teologia foi construída pela classe trabalhadora. Desde o início do século XX e, depois, no correr dele, com a participação do movimento anarquista e da presença crescente do trotskismo, os trabalhadores descobriram e aprenderam que a liberdade é construída nas ruas, quando se torna espaço de liberdade. 


Muitos podem achar que estou falando de política e não de teologia, mas esta, numa definição de trincheira, é a experiência com a transcendência, que nos faz humanos e existencialmente livres. Nesses dias de Buenos Aires, acompanhei um caso do que estou apresentando teoricamente. Vou contar para vocês.

 
A primeira semana da primavera foi invadida por uma frente polar que derrubou os termômetros. As madrugadas beiraram zero grau, ao menos na sensação térmica, e um vento sudoeste nos fazia andar rápido em busca de abrigo, um café, no mínimo. 


Mas, no dia 25 de setembro de 2009, um acontecimento inesperado começou a elevar a temperatura social. Naquela sexta-feira, os trabalhadores que ocupavam uma planta da Kraft Foods, no bairro de General Pacheco, e exigiam a reintegração de 156 operários despedidos em agosto, enfrentaram a polícia. Foi um choque violento e os operários entrincheirados na fábrica foram desalojados. O saldo foi de 10 feridos e 70 presos. 


Diante do desemprego consumado, de pessoas hospitalizadas e dezenas de presos, o que fazer? A teologia operária brotou naturalmente e entusiástica. A Corrente Sindical Combativa, que tinha liderado a ocupação operária da fábrica, levantou a necessidade, agora, de ir às ruas. Uniram-se os partidos de esquerda, ditos radicais, Movimento Socialista dos Trabalhadores, Partido Operário, Partido dos Trabalhadores Socialistas, Movimento ao Socialismo, Socialismo Revolucionário, as organizações anarquistas, a Comissão Pastoral Social católica, e os maoístas do Partido Comunista Revolucionário. 


As palavras de ordem foram rapidamente unificadas ao redor de um dos pontos centrais da teologia operária, a questão da liberdade, concreta, de vida. Assim, as faixas preparadas para as manifestações exigiam liberdade para os operários presos e reintegração dos trabalhadores despedidos. 


No dia 28 de outubro, centenas de trabalhadores, ativistas de sindicatos e partidos de esquerda e estudantes ocuparam o quilômetro 35 da rodovia Pan-americana e as avenidas Santa Fé e Mayo, numa marcha decidida, guerreira, em direção ao palácio do governo, a Casa Rosada. 


Na teologia construída pela classe operária, a rua se torna um espaço de liberdade, que apesar de ser percorrido em algumas horas, pode criar um tempo de liberdade. E essa liberdade, que nasce do percurso das ruas, rompendo a tradição colonial e republicana autoritária do tripalium, resgata a vida. E como toda boa teologia, não é feita para ser rezada, mas para fazer agir e pensar, extrapola o espaço e a classe que está a lhe dar origem. Envolve toda a sociedade numa discussão sobre a liberdade e a vida. 


E assim foi. A embaixadora dos Estados Unidos, Vilma Socorro Martinez, disse que ela e seus pares estavam preocupados com a situação da Kraft e desejavam a plena aplicação dos direitos dos trabalhadores, mas também o respeito ao direito de propriedade. 


É bom lembrar que a Kraft Foods (antiga Terrabusi) é uma indústria de capital norte-americano e gera cerca de 160 mil empregos na Argentina. 


Os empresários também não ficaram calados, pois o conflito foi considerado, por sua repercussão e extensão, inclusive internacional, um estopim que poderia explodir em outras mobilizações. A União das Indústrias Argentinas e a Coordenação das Indústrias de Produtos Alimentícios se expressaram, ora alertando para o perigo de se optar por demissões em massa, como fez Kraft, ora afirmando que também não se pode permitir que as fábricas sejam ocupadas pelos trabalhadores. 


O certo é que Buenos Aires esteve isolada pelas mobilizações, que bloquearam ruas, avenidas e os principais acessos à capital argentina. E o coordenador do Movimento Bairros em Pé, Roberto Baigorria, disse que através dos protestos os trabalhadores reivindicam participação nos planos sociais e nas cooperativas do governo. 


É a primeira vez, desde 2001, que os trabalhadores, sindicalistas combativos e partidos de esquerda ocupam as ruas do país. 


Na teologia da rua, o espaço pode ser percorrido com vistas à liberdade para os operários presos e reintegração dos trabalhadores despedidos, mas também à alegria e à festa: com fanfarra, bumbos e dança. E assim foi na Plaza de Mayo. Cheios de esperança, nas últimas semanas os trabalhadores argentinos levaram às ruas a promessa de Miquéias: “Ele nos ensinará o que devemos fazer, e nós andaremos nos seus caminhos. Os povos transformarão as suas espadas em arados e as suas lanças em foices. Todos viverão seguros, e cada um descansará calmamente debaixo das suas figueiras e das suas parreiras”. Quando a teologia ocupa as ruas, renasce nas vidas a possibilidade da justiça. 



O gozo em rosa

 

 

As visões de mundo do camponês hebreu e mesmo do judeu do início da era comum eram diferentes das cosmovisões cristãs modernas. Talvez, o que de maior temos a aprender com hebreus e judeus é que a profundidade do texto é a sua humanidade. 

 

Ao mergulhar nessa humanidade temos, então, a possibilidade de encontrar sua transcendentalidade. E isso pode ser alcançado de duas maneiras: a acadêmica, que nos interessa aqui, e aquela da própria vida, quando chegamos lá através da maceração de nossa pessoalidade, da crise, da dor e do risco. 

 

Quando o intelectual judeu Samuel Cahen fez a primeira tradução das Escrituras judaicas para o francês, entre 1831 e 1851, em dezoito volumes – A Bíblia, novas traduções – procurou ir além das traduções anteriores, cristãs. Sua tradução, em edição bilíngue, trouxe para o leitor não-judeu a estrutura hebraica, as construções literárias e os hebraísmos. 


No século passado, seguindo a tradição de Cahen, André Chouraqui construiu uma tradução enciclopédica (1974-1977): a partir de exegetas como Rashi e Ibn Ezra fez a leitura oriental dos textos do testamento judaico. 


Ao compreender com os antigos exegetas judeus que a humanidade do texto é o caminho para o encontro possível com o transcendente, vamos, como exercício exegético, analisar dois versos de histórias e momentos diferentes das Escrituras judaicas. Não podemos esquecer, porém, que a escolástica teorizou modos de ler o quadrivium, conceito derivado da junção de duas palavras latinas: quattuor, que significa quatro, e via, que quer dizer caminho. Temos assim na leitura de um texto quatro vias: literária, pedagógica, teológica e escatológica. Quadrivium é encruzilhada e foi utilizado como hermenêutica por Hugo São Vitor e Tomás de Aquino. Mas, hoje, nas nossas leituras estamos interessados no sentido literário dos textos. 


“Na luta, o homem, ao ver que não podia vencer, bateu no vazio da coxa e enforcou a força de criar de Jacó”. (Gênesis 32.25).


O primeiro verso escolhido, que se situa no primeiro livro, o das origens, fala da luta do patriarca Jacó com um homem – a palavra hebraica no texto é îxe, homem, macho, e não anjo. A tradução SEV (versão de 1569) diz: “Y cuando el varón vio que no podía con él, tocó la palma de su muslo, la palma del muslo de Jacob se descoyuntó luchando con él”. É uma boa tradução, porque a expressão palma “kaph” se refere à cavidade ou parte do corpo que é dobrável ou curva, e “yarek” que foi traduzido por “muslo”, se refere a lombo, ou lugar do poder de procriação. 

 

Na luta com esse que poderia ser seu próprio irmão Esaú ou um dos capangas dele, o homem não conseguiu vencer Jacó. Então, já cansado, o homem recorre ao golpe mais antigo, que acaba com qualquer luta, dá uma joelhada no vazio da coxa de Jacó e estrangula sua força. 


Terminações nervosas, sensibilidades. Escroto, testículos. O chute produz sangramento interno, inchaço, dor. O músculo se retrai, nervos e artérias se enroscam e impedem o fluxo de sangue. O coice foi bravo, a cápsula se rompe e vaza. 


Visto assim, na sua humanidade, o texto fala de dois homens que lutam madrugada adentro, e que um deles, o trapaceiro, é golpeado na força de sua virilidade, sendo derrubado por um golpe em baixo e por baixo. Caído, resfolegando, entre gemidos, pede ao seu oponente um favor: liberdade para seguir adiante. E o homem – Esaú ou um capanga – diz para ele: segue seu caminho, hoje você não trapaceou, você venceu. Arrastando-se, aquele que se agarrou ao tornozelo do irmão, se levanta: foi alforriado, está livre para seguir em frente. 


As escrituras judaicas contêm uma jóia da literatura oriental: o Cântico dos cânticos. O superlativo não existia no hebraico, daí a idéia do mais bonito dos cânticos. O poema conta uma história de amor entre uma moça negra, a Sulamita, e um pastor. 


Para os cristãos, não estamos diante do erotismo oriental, mas de uma alegoria sobre o amor transcendente do Eterno. Agora, porém, neste artigo, nos interessa o caminho que o poema faz na materialidade do erótico humano. Por isso, vamos trabalhar apenas um verso do Cântico dos cânticos, procurando manter viva a expressão e seu conteúdo aparentemente não-religioso. 


“Entra na casa do vinho, o seu estandarte é desejo”. (Cântico dos cânticos 2.4). 

 

Temos no verso em hebraico o verbo “bow” ir para dentro, entrar, que está no grau hifil, causativo, no modo perfeito; a expressão metafórica “bayith yayin”, casa do vinho; “degel” bandeira, estandarte; e “ahabah” que expressa prazer, desejo sexual. A Vulgata de São Jerônimo traduz assim: “introduxit me in cellam vinariam ordinavit in me caritatem”. A tradução italiana de Diodati (versão de 1649) diz: “Egli mi ha condotta nella casa del convito, E l’insegna ch’egli mi alza è: Amoré”. E a tradução SEV de 1569, diz: “Me llevó a la cámara del vino, y puso su estandarte de amor sobre mí”

 

Estamos diante de um poema oriental. A expressão “casa do vinho”, em seu sentido literário, não deve ser tomada literalmente, mas seguindo tradições orientais antigas – e também portuguesas – é uma metáfora, ao modo de “adega do vinho” ou “casa rosada”, entre outras. 


Até o final do século XIX, a moral estabelecia que arte e literatura eram ofensivas aos costumes quando recorressem à sexualidade ou a linguagem incluísse termos licenciosos. Em tais casos, arte e literatura eram consideradas eróticas ou pornográficas, já que não se discerniam os termos. Hoje, entendemos erótico como relativo ao desejo sexual ou que aborda o amor sexual, e pornográfico como aquilo que descreve ou evoca luxúria. 


Como muito desses sentimentos dos oitocentos ainda têm raízes profundas na cultura, o verso acima é canto que choca a mentalidade ocidental, pois a Sulamita, a jovem do Cântico dos cânticos, diz que seu amante a penetra quando ela está menstruada. É o tempo do durante, da casa do vinho, do gozo em rosa. E, assim, a regra da menstruação enquanto tempo de impureza, presente no livro de Levítico (15.19), é derrubada pela relação do casal. Não há nenhuma crítica ao ato, que ela apresenta como uma opção que nasce do desejo. 


E falar de desejo nos remete a um pequeno trecho de outro texto clássico da literatura oriental, as Mil e uma noites – Alf Lailah Oua Lailah – uma coletânea de textos árabes, persas, hindus, siríacos e judaicos. Os contos mais antigos remontam ao século XII no Egito. Mas agora nos interessa a relação do filho do mercador Ghânim e a favorita do sultão, Qût al-Qulûb. 


“Quando o gracioso filho do mercador Ghânim e a bela favorita do sultão foram para o leito, ele queria, mas ela não. Sobre a cintura da amante se podia ler: difícil. A resistência da mulher aumentava o desejo do homem. Os meses passaram e as coisas se inverteram. Quando mais tarde ela lhe dava beijos de incentivo, ele recuava e cada um ia dormir na sua esteira.” 


O filho do mercador e a favorita do sultão enfrentam a intermitência do desejo, mas no verso 2.4 do Cântico dos cânticos a Sulamita e seu amante estão em modulação unissonante: é pra ser, prazer, parônimo. 


Entendemos melhor a presença do erótico nos textos orientais antigos quando lemos Michel Foucault na História da Sexualidade, A Vontade de Saber. Para ele, no Ocidente, existem dois procedimentos diante do bem e do mal do sexo. Um procedimento desconfiado diante das culturas romana antiga, chinesa, hindu, japonesa e árabe, que desenvolveram uma ars erotica. Tal arte tira sua verdade do próprio prazer, entendido como experiência onde não há lugar para proibições, mas também do prazer que pode ser medido pela tesura do corpo e do espírito. Essa arte erótica é experiência e seu conhecimento não tem como ser transmitido pelo discurso. Sua força está no símbolo. 


A cultura ocidental não construiu uma ars erotica, por isso o outro procedimento nasceu de uma scientia sexualis, que gera regras para definir o bem e o mal do sexo. Assim, a sexualidade ocidental é, predominantemente, resultante de um discurso constituído em scientia sexualis, que a religião sacralizou para produzir a verdade sobre o sexo. 


O erotismo está presente nos textos antigos, no Cântico dos cânticos e nas Mil e umas noites, porque é dimensão da sexualidade lida através da ars erotica. Mas é olhado com desconfiança pela moral que repousa sobre a scientia sexualis. Eros é expressão humana e assim deveria ser visto pelos exegetas que se debruçam sobre textos orientais da ars erotica

Ou seja: o verso 2.4, analisado na profundidade do humano, nos fala de desejo, atributo da espécie, que nasce da capacidade de pensar o prazer. A jovem do Cântico dos cânticos não nos diz que durante a menstruação tem mais vontade de transar, mas também não nos diz o contrário. Se é regra, se não é regra, não sabemos. Somos informados, porém, que o desejo é um estandarte. E assim o amante entra na casa do vinho. 



Faz tempo que eu te amo



Il y a longtemps que je t’aime – Juliette (Kristin Scott Thomas) retorna à sua família e à sociedade após 15 anos de ausência. Apesar da longa e violenta separação familiar, sua irmã mais nova, Léa (Elsa Zylberstein), decide abrigá-la em sua casa, onde mora com o marido, as duas filhas adotivas e o sogro. Aos poucos, a trama revela uma questão crucial que subjaz enquanto tragédia que manteve Juliette afastada por tanto tempo da vida em liberdade. 


No filme do escritor Philippe Claudel, cujo nome não era muito conhecido como cineasta, o tema de fundo é a morte doce, ou seja, o ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente de enfermidade incurável que produz dores não toleráveis. 


Juliette levou seu filho Pierre, de seis anos, que estava enfermo, em estado terminal, à morte sem sofrimento, expressão que conhecemos pelo termo grego euthanasía. Ela mesma, médica, fez os testes de laboratório e diagnosticou o estado da criança, que sofria dores terríveis. E lhe aplicou uma injeção letal. A eutanásia ativa é crime na França, e Juliette, considerada culpada, foi condenada a 15 anos de prisão. 


Ela está enferma, que desespero! O devo fazer? 

Ela está enferma, que desespero! Como enfrentar isso?

Que conforto, que remédio? Ó céus, você tem que me ouvir 

Enquanto esse duro mal que está diante, este mal que você vê 

Ferir sem piedade a doçura de seu rosto!

 
[Etienne La Boétie (1530-1563), Elle est malaade, helas! que faut-il que je face?] 


Falar de eutanásia, a morte doce, é tabu, quando não preocupação mórbida. Mas, por incrível que pareça, essa questão está ligada à vida. E aqui desejamos discutir a questão a partir da nova legislação francesa sobre o tema e as reflexões que católicos e protestantes elaboraram na França.

 
O problema que se levanta é: até que ponto se pode ou se deve lutar para diminuir um sofrimento terrível e terminal? A questão colocada é: deve-se finalizar uma vida que não é mais vida consciente e plena? Muitos consideram que tal ação não significa somente liberar da angústia da morte, porque aqui a questão central não mais é a morte, porém por fim a não-vida que se assenhoreou da vida. 


No dia 22 de abril de 2005, a França promulgou uma lei sobre o fim da vida, onde reconheceu o direito ao tratamento médico sedativo cujos efeitos secundários podem ser de antecipar o fim do paciente. 


A lei oferece também ao paciente e sua família a possibilidade de dizer não ao tratamento não razoável, não à reanimação artificial e não aos tratamentos agressivos. Mas a lei também possibilita um relacionamento aberto entre o paciente, sua família e o médico, apoiando este último judicialmente se uma dessas alternativas for a opção, desde que ele forneça informações completas sobre a situação do paciente. 


A lei também dá a qualquer adulto o direito de apresentar diretivas antecipadas para que sua vida não seja prolongada por meios artificiais, em caso de danos físicos ou de degradação física ou neuropsíquica. 


Se você levantar, cruel, o punho à Terra grave

Se for necessário lá no alto que rico se seja, 

Pensa em mim, por Deus, me leve,

Que com um golpe de mão Caronte nos passe a ambos 


Mas, se a lei prevê o direito de deixar morrer, não propõe que se forneça assistência ativa para morrer. A questão aqui é deixar a morte chegar, mas não se trata de por fim à vida. Portanto, a eutanásia ativa não é reconhecida, mas a eutanásia passiva já não é considerada um homicídio. 


É interessante lembrar que 30 anos antes da nova legislação francesa sobre a morte terminal, 1976, o Conselho Permanente do Episcopado francês em nota sobre a eutanásia propôs que não fosse proibido o uso de analgésicos para aliviar a dor, mesmo que indiretamente tal tratamento pudesse acelerar a morte de um paciente em idade avançada.


Ou se é o que dizem os dois irmãos de Helena,

Que um pelo outro no céu, e aqui embaixo se encontram, 

Destina-me à parte enviada. 


Anos depois, em junho de 1991, a Comissão de Ética da Federação Protestante da França também discutiu a questão dos doentes terminais, e considerou que os cuidados paliativos deviam ser desenvolvidos e incentivados. Mas que diante da dor irredutível, quando tais cuidados de nada servissem, o debate sobre a "vida decente" deveria por em cheque o próprio modo de vida das sociedades ocidentais. 


Por isso, os protestantes franceses consideraram que a defesa da eutanásia é uma réplica da tão condenada terapia agressiva, que traduziria a pretensão de nossa sociedade de se considerar senhora e mestra sobre a vida e a morte. Mas, acreditavam que diante do pedido da morte doce, quando se torna impossível lutar pela vida, deve-se ouvir e não julgar.

E por fim alertaram que quer seja permissiva ou restritiva nenhuma lei ou instância moral pode suprimir a responsabilidade ética do paciente, dos médicos e dos amigos. Por isso, a questão não poderia ser legislada de forma apressada, pois o futuro do direito europeu sobre doenças terminais e eutanásia só poderia ser construído a partir de um intenso debate público. 


Tenha, tenha de mim, tenha piedade 

Deixe-nos, em nome de profunda amizade, 

Eu morrer de sua morte, ela viver de minha vida.



A segunda Eva



“Isabel exclamou em alta voz: De onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor?” (Lucas 1.4243).


Embora a dogmática cristã ao falar de duas naturezas do filho se refira ao divino e ao humano, esses dois processos simbolicamente nos falam de duas gerações. E no caso de Maria, fala da filha que é gerada pelo pai, num primeiro momento, e do pai que é gerado pela filha numa universalidade posterior.


“Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho. (...) gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus [théotokos], reza o credo de Calcedônia, 415 AD, que apresenta Maria, a moça de Nazaré, como théotokos, mãe de deus. Nesse conceito há uma desconstrução da patriarcalidade ocidental e, por extensão, da propriedade. O que significa Maria mãe de deus nesta revisão da questão de parentesco? 


Miticamente, Maria aparece nos ícones como aquela que deu à luz deus e, portanto, substituta do pai. Ao mesmo tempo, a defesa daqueles que adoravam Maria através dos ícones era de que quando adoravam não a encaravam como deusa à maneira pagã, mas como aquela que deu à luz deus. 


Esse pensamento percorreu um caminho que levou até a idéia de segunda Eva. Uma revolução na história da linguagem acerca de Maria. E por que segunda Eva? Qual a diferença entre a primeira e a segunda? Há algumas questões intrigantes nesta discussão: a primeira é a idéia de que ela deu à luz deus; a segunda a percepção da necessidade de identificar uma pessoa como a geradora de uma nova criação; e a terceira de que, sendo deus criado e a pessoa geradora da nova criação uma jovem, o gênero feminino ocuparia a centralidade da nova estrutura de parentesco. Vejamos cada uma delas.


Em primeiro lugar, a maternidade não depende de um homem e que, de fato, o pai não é um pai. Na verdade, na universalidade da maternidade da moça de Nazaré, ela se tornou mãe de seu pai e, por extensão, mãe de todos os pais. 


Em segundo lugar, se acrescentarmos o anúncio do anjo Gabriel de que a geração da moça de Nazaré seria fruto do ruach hakadosh, do vento santo, temos a ruptura do significado biológico e cultural da paternidade, o que dá à maternidade caráter suprabiológico e supracultural, já que foram rompidos os laços de sangue. Então, o pai não é mais pai, nem o filho é filho do pai, mas da mãe. Nesse sentido, podemos entender théotokos. Mas tal desconstrução não para aí. A priori há uma realidade natural: inter feces et urinas nascimur. A vulva, a madre aberta pela passagem do primogênito/a permanece presente em nossa cultura e tem a consistência da lei biológica: ninguém chega ao mundo de outra maneira. Não há exceção. Mas em théotokos há a ruptura.

 

Em terceiro lugar, é interessante notar que Pilatos pergunta à multidão quem ela deseja que seja solto: Jesus ou Barrabás? Ora, Jesus é o eterno liberta; e Barrabás, filho do pai. Assim, naquele momento demônico, a multidão pede a morte da liberdade e a permanência da estrutura de parentesco, do filho do pai. Momentos mais tarde, já na cruz, Jesus reafirma a universalidade da maternidade suprabiológica e supracultural e diz ao seu amigo João que Maria é sua mãe, e à Maria que João é seu filho. 


Estamos diante de uma nova estrutura de parentesco, liberta dos laços de sangue, do biológico e dos condicionamentos culturais da patriarcalidade. Aqui encontramos uma ponte de diálogo com a cultura popular brasileira, a estrutura de parentesco matrifocal, que tem como possibilidade de construção o parentesco definido pelo amor, mas também por seu oposto, o abandono. Tal postura leva à escolha adotiva e, nesse sentido, aponta para a liberdade, mas também em posição, à escravidão, ambas, liberdade e escravidão em relação à natureza e às construções daí decorrentes.


Em quarto lugar, extrapola o universo da naturalidade, está embutida em théotokos e aponta para o futuro -- a gravidez e o parto da mulher virgem, que não tem a vulva como caminho, mas acontece na exterioridade do corpo. Assim, a moça de Nazaré, eterna virgem, preanuncia o tempo da maior de todas as desconstruções, a abolição da maternidade e a expansão da matrifocalidade. Essa desconstrução, sem dúvida, transformará a face da história do cristianismo. Mãe de seu pai, a mulher virgem gerará seu pai. E assim construiremos nosso próprio parentesco. 


Nessa construção teológica de expansão da matrifocalidade tomamos como modelo o papel da mulher na família mediterrânea, onde o espaço físico da casa é entendido enquanto categoria de gestão da chefia feminina e de arranjos extensos presentes nos grupos de parentesco. Nesses arranjos a centralidade da figura feminina e do papel exercido pelas mulheres, além de ser traço característico, religiosos ou não, exerce um eixo estruturador, que produz e reproduz modos de ser do modelo familiar. 


A presença matrifocal no modelo mediterrâneo não está associada à idéia de pessoas e comunidades fracas do ponto de vista da sobrevivência, mas denotam a expansão das trajetórias de ascensão das mulheres, que podem ser identificadas como representantes de um tipo de matriarcado. Podem ou não ser chefes da casa, assim como podem ou não ser liderança de extenso grupo familiar, onde homens, pai e filhos, aceitam a chefia feminina. Assim, é importante entender que a matrifocalidade mediterrânea não representa ausência do homem na família ou comunidade, e nem implica em chefia de mulheres solteiras, distante dos agrupamentos familiares, ou solitárias na gerência da prole. 


Teologicamente, a extensão da matrifocalidade é entendida aqui como construção e expansão da imagem de Maria, que concentra poder entendido como força simbólica circulante, que se fundamenta em presença conquistada na trajetória da fé cristã. Essa presença se traduz na definição de espaço espiritual próprio, que é fruto do prestigio adquirido nas comunidades, já que recebe o estatuto de mãe coletiva pela sua trajetória: no caso gerar o pai, e pelo tipo de funções desempenhadas, de parteira de um novo tempo, responsável por trazer ao mundo, com suas próprias mãos, o filho de novas gerações. A este conceito vamos chamar de feminescência.


Aqueles que procuram nas escrituras cristãs textos que possam remeter à tradição matrifocal da moça de Nazaré surpreendem-se com o fato destes textos serem poucos. Além dos relatos agrupados nos evangelhos de Mateus e Lucas nos capítulos 1 e 2, só se menciona Maria em passagens de João 2 e 19. Afora isso, há uma alusão a que o pai enviou ao mundo o seu filho, nascido de mulher, na carta de Paulo aos gálatas (4.4). Da mesma maneira, os estudos das escrituras cristãs mostram que a primeira geração de escritores, como Paulo, Marcos e João, não deu nenhuma importância à memória da moça de Nazaré: não se referiu a ela como virgem mãe e nem deu destaque à história da concepção do filho por ação do espírito. Isso, no entanto, não diminui a importância da matrifocalidade que seria construída com os passar dos anos na fé católica ocidental e oriental.


A raridade dos textos neotestamentários sobre a virgem mãe contrasta com a quantidade de histórias e relatos de milagres que foram se acumulando nos séculos de história da catolicidade. A explicação para isso é que, com o passar dos tempos, a catolicidade foi desenvolvendo uma simbologia matrifocal a partir de aspectos originários de sua fé, procurando relacioná-la com culturas e sensibilidades dos povos aos quais os católicos começavam a anunciar o evangelho. Assim, podemos falar de quatro aspectos na construção da matrifocalidade católica.


Tal matrifocalidade hoje nos lembra afluentes que correm para a formação de um rio. Surge do relato bíblico e da memória da virgem mãe, com a qual a comunidade católica se identifica através do próprio canto da moça de Nazaré, quando diz que “todas as gerações me proclamarão bendita porque o Todo-poderoso fez em mim maravilhas”, conforme Lucas 1.48-49.


Sabemos que o cumprimento dessa profecia veio aos poucos, dando seu salto formal com os concílios da jovem igreja católica. Mas não podemos dizer que o cumprimento dessa profecia de bendição ao pai, pela graça dada à moça de Nazaré, se deve exclusivamente aos católicos. Maria sempre virgem foi vista assim por Lutero, que dedicou a ela seu Magnificat, mas também por Wesley. O que as jovens igrejas reformadas não aceitaram é que se construísse uma piedade cristã a partir de uma teologia matrifocal que colocasse Maria ao mesmo nível do Cristo. Não podemos nos esquecer que certas tradições católicas chamam Maria de co-redentora. 


Paulo afirma em sua primeira carta a Timóteo (2.5) que há um só Deus e um único mediador entre Deus e a humanidade, que é Jesus Cristo. Os catecismos católicos responderam à polêmica suscitada pela matrifocalidade fazendo distinções entre adoração a Deus e veneração à virgem mãe, procurando expressões doces para a matrifocalidade e ligando-a de forma mais íntima à própria piedade ao Cristo. Mas a simbologia matrifocal tem tanta força que, de fato, a leitura patriarcal da trindade fez água: pai e filho perderam importância de forma crescente na tradição popular.

 

Esta situação tem raízes históricas. Uma delas, sem dúvida, foi o analfabetismo das massas e a conseqüente despreocupação em relação à leitura dos textos neotestamentários no longo período de construção da igreja católica, restando ao povo a devoção tradicional combinada às crenças e costumes de suas comunidades. Este tipo de sincretismo foi a regra no mundo antigo que se tornava católico.


Quando o catolicismo entrou no norte da Europa, encontrou os cultos celtas a uma deusa que era a rainha do céu. Logicamente, a síncrese entre a rainha do céu e a virgem foi um processo natural, onde os celtas convertidos atribuíram à imagem de Maria as capacidades e peculiaridades da rainha do céu. Assim, essas percepções se deram cada vez que o catolicismo se inseriu em uma região, assumiu a cultura e procurou traduzir as crenças que lhe eram anteriores a uma forma compatível com a fé católica. 


Na América invadida pelos europeus, a matrifocalidade religiosa se traduzia, em muitas regiões, pelos cultos à terra mãe, e também foram substituídos pelo culto à virgem mãe católica. O mesmo se deu em outros lugares com o culto à deusa lua. O culto asteca à Tonantzim foi incorporado na figura e no culto à virgem de Guadalupe. Este fenômeno é correlacional porque se deu como uma forma de esvaziar um mito da ancestralidade substituindo-o pela devoção católica invasora. Por outro lado, acabou em alguns casos, sendo expressão de inserção do catolicismo nas culturas. Tomemos como exemplo o caso de Guadalupe, onde a devoção a Maria foi proposta como forma de substituir o culto ancestral a Tonantzim, heroína civilizadora. Mas com o tempo, os descendentes dos astecas se reapropriaram da matrifocalidade católica de tal forma que através dela voltaram a expressar a simbologia de sua cultura com seus valores próprios, que de outro modo estaria condenada pela dominação colonial.


O testamento cristão deu continuidade às escrituras hebraico-judaicas a partir da vida e das palavras de Jesus. Quando Lucas conta, no primeiro capítulo do seu evangelho, a anunciação do anjo a uma moça de Nazaré e depois sua visita à prima Isabel (1.36 e seguintes), ele estava recorrendo a alguns relatos proféticos das escrituras hebraico-judaicas, como o relato de Sofonias capítulo 3 e o relato de 2º. Samuel capítulo 6. Se for assim, a idéia da matrifocalidade está explícita, aquela moça simbolizava a figura da comunidade crente. É o símbolo da gente despossuída, fiel a Deus e, ao mesmo tempo, da humanidade nova.


Nesse sentido a figura de uma mulher, mais precisamente de uma moça no desamparo de seu gênero, sintetiza a vocação do seu povo e dos crentes da nova aliança. Ela seria, então, em pessoa a realização plena do que os profetas antigos chamaram de virgem, filha de Sião, referindo-se ao povo fiel, conforme vemos em 2º. Reis (19.21); Isaías 52; Jeremias (31.4 e seguintes); e Sofonias (3.12 e seguintes). A matrifocalidade católica está sintetizada nessa moça sem poderes políticos, mas mãe de deus, e sintetiza a história do Israel fiel à aliança. E é uma parábola da humanidade futura.


É interessante ver como a matrifocalidade católica fortalece e amplia a leitura de gênero presente nas escrituras hebraico-judaicas. Na leitura da criação, narrada no Gênesis, a mulher é produção do pai e culminou sua ação criadora. Em muitos textos bíblicos, embora a mulher seja figura da humanidade em sua relação com o pai, ela mais que nada é esposa. Tal imagem no livro do Apocalipse expande a matrifocalidade católica nascente ao dizer que apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas (12.1). Por trás desta imagem, está o simbolismo matrifocal de antigas ancestralidades e apresenta a vitória da comunidade cristã que enfrentava o martírio e as perseguições. E não foi por acaso, então, que o catolicismo nascente viu nesta imagem da comunidade grávida do messias a figura de Maria mãe.


A construção matrifocal católica criou uma rica simbologia ao redor da moça de Nazaré. É interessante que essa construção procurou na medida do possível partir de bases conceituais neotestamentárias. Assim, a imaculada concepção de Maria, declarada em 1854 pelo papa Pio IX, é fruto, em previsão, dos méritos do Cristo na cruz. Os cristãos católicos diziam assim que o pai preservou a moça de Nazaré do pecado original pelos méritos antecipados da morte do filho. Ela, a moça de Nazaré teria sido a primeira salva, ou seja, com ela aconteceu antes, antecipou-se, a salvação que, pela cruz, os outros filhos receberiam.


Na seqüência da mesma construção simbólica, quando, em 1950, o papa Pio XII tornou dogma a assunção da moça de Nazaré ao céu com corpo e alma, dizia que ocorreu com ela, também em antecipação, o destino de todos, pois os cristãos oram no Credo, creio na ressurreição da carne. É isso e não privilégio dado por santidade própria ou por mérito diverso.

 

Mas ao discutir o fim do parentesco como conseqüência da expansão da matrifocalidade, esses dois dogmas que, talvez por centenas de anos, repousaram no inconsciente cristão, trazem percepções importantes: ela é mãe do pai, mas é santificada e exaltada pela morte do filho que vai nascer. Nesse sentido, o fato de ser mãe do pai/filho que vai morrer, faz dela símbolo perfeito da feminescência. Assim, a feminescência católica traduziria uma revolução, a moça de Nazaré é figura do caminho de toda a humanidade.


O eixo fundamental das escrituras hebraico-judaicas e cristãs é a revelação de que o pai tem um projeto para a humanidade: uma vida de intimidade com ele. Essa intimidade que recebe também os nomes de aliança ou reino de Deus supõe uma proximidade afetiva que lembra a relação homem/mulher. É como um casamento. Ora, a imagem tradicional de deus nas religiões é de um pai dono do poder. Para se ter acesso a esse pai é necessário um intermediário. É como alguém que para ter acesso a um presidente precisa de um intermediário político ou de um padrinho. É essa constatação, num primeiro momento inconsciente, mas que se conscientiza na construção católica e leva ao surgimento e à expansão da matrifocalidade. Por ter sido educado olhando o pai ausente, no caso brasileiro, o povo simples não é diferente das massas dos primeiros séculos do início do catolicismo.


Para ouvir a palavra do pai, as massas recorreram àquilo que as escrituras chamaram de “anjo do Senhor”, emanação visível do pai transcendente. É imagem ou expressão da presença do pai. Em outros lugares, os textos chamam de “glória do Senhor”, o sinal visível da presença do pai. Como no Êxodo, a nuvem que desce sobre o monte Sinai quando o pai fala (Ex 19) ou a tenda na qual o povo consulta o pai. Quando os israelitas acolhem e reverenciam a tenda, a arca, a nuvem ou o vento, sinais da presença divina, não é nenhum destes elementos em si que eles adoram e sim o pai presente através deles.


A matrifocalidade rompe a ausência e o distanciamento paterno. O que ela faz é trazer a realidade da ancestralidade para o presente. Heróis civilizadores deixam de estar no passado e passam a estar no cotidiano da vida, nas coisas que são feitas e que representam no dia a dia a manutenção da vida. Nesse sentido, a expansão da matrifocalidade não é representação do pai ou do filho, mas o fim do parentesco. Diante da matrifocalidade todos são filhos e não há um filho mais importante, porque o primeiro, o mais querido, morreu. E a volta dele, o levantar dele, se dá como memória em todos os demais.


Essa expansão da matrifocalidade, presente no inconsciente cristão, possibilitou a construção de pontes com outras culturas também marcadas pela matrifocalidade. E essa compreensão nos remete às tradições do catolicismo popular brasileiro. Mas, e isso é mais importante, aponta para uma teologia onde a universalidade cristã repousa em colo feminino, substituindo pai e filho, agora frutos da feminescência. E porque uma virgem deu à luz deus e é geradora de nova criação, o gênero feminino e não o masculino passa a ocupar a centralidade da nova estrutura de parentesco dessa nova criação.


Podemos, então, dizer: uma virgem gerou como filho seu criador e tornou-se mãe de seu pai. Estamos diante da desconstrução das relações convencionais de sangue, filiação, paternidade e parentesco biológico, mas, sobretudo, da quebra da naturalidade, da abolição do que restava da maternidade. Essa desconstrução das relações familiares, aqui chamada feminescência, produziu um estado simbólico inovador que transformou a face da história cristã. A partir daí nasceu uma época e, ao mesmo tempo, uma criança. Mãe de seu pai, uma virgem produzida produziu seu produtor. E, assim, desejos de pureza, incorpóreos e virginais da espécie humana são preenchidos pela feminescência da virgem. E, talvez, por isso, católicos ocidentais e orientais olhem com tanto carinho para Maria, a moça de Nazaré.



Notas para uma crônica sobre bruxas e Bruxas



Essas são minhas notas para uma última crônica nesta temporada na Europa. Anotações sobre uma igreja, a Catedral de São Salvador de Bruges. E anotações várias, além dessa primeira.

1. O meu interesse não está exatamente na catedral, mas no paradoxo do nome Catedral de São Salvador de Bruges. Para que o leitor entenda, Brugge/Bruges tem um correlato inglês, Bridge, mas em espanhol e português o nome da cidade pode e deve ser traduzido, se formos traduzir, por Bruxas. Mas é bom dizer que na raiz flamenga brugge significa ponte, porque se acreditava que a bruxa era a ponte entre aquele mundo medieval chato e outro mundo de desejos possíveis.

 
2. Donde, o nome da igreja é Catedral de São Salvador das Bruxas. Mas por que bruxas em Bruges? Bem, para os especialistas, historiadores no caso, esta era uma região de bruxas e feitiçarias, assim como o restante da Bélgica. Por isso, encontramos uma interessante bibliografia sobre a região e as atividades das bruxas. Para os interessados vamos citar dois artigos, um de Gailliard e outro de autor desconhecido, e também o livro de Stalpaert. 


3. Mas quero falar de bruxas e da catedral. E para falar de bruxas vou recorrer a um texto de Luiza Tomita, onde cita o Malleus Maleficarum, documento usado pelos homens da Inquisição: 


-- Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável nas mulheres, pois, segundo Provérbios 30, ela é comparável a um fogo que é preciso alimentar incessantemente, devoradora como o louva-a-deus.

 -- Há três coisas insaciáveis, quatro que nunca dizem: Basta! A quarta é a boca do útero. Pelo que, para saciarem sua lascívia, copulam até mesmo com demônios. 

-- As mulheres saciam os seus desejos obscenos não apenas consigo mesmas, mas também com aqueles que se acham no vigor da idade, de qualquer classe ou condição; causando-lhes, através de bruxarias, de toda espécie, a morte da alma, pelo fascínio desmedido do amor carnal, de tal forma a não haver persuasão ou vergonha que os faça abster-se de tais atos. 


4. Tal obsessão sobre o sexo da mulher, como diz Tomita, traduzia o desejo, o medo e sentimentos confusos, presentes no pensamento e nos escritos da igreja cristã medieval. E como resultado, de 1560 a 1630, a perseguição vitimou cerca de 100 mil mulheres – alguns historiadores falam em um milhão – na França, Alemanha, Suíça, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. 


5. A Catedral de São Salvador das Bruxas foi levantada como igreja de paróquia no século XII e dedicada a São Donato. No século XIV sofreu mudanças e partes seguiram um estilo particular de gótico, o gótico de Escalda, nome do rio que atravessa essa região da cidade. No século XV, o deambulatório com suas capelinhas seguiram o gótico verticalista. 


6. A medievalidade de Bruges com suas ruas estreitas e tortuosas, canais, sombras e imaginações noturnas, não nos remete apenas às bruxas, mas à máfia dos tempos bicudos da alta-modernidade. Por isso, virou filme de Martin McDonagh. Depois de um trabalho em Londres que corre mal, dois assassinos são enviados para Bruges. Objetivo: desaparecerem do mapa por uns tempos. Ray (Colin Farrell) odeia a cidade e está irritado com o insucesso do trabalho. Ken (Brendan Gleeson) se deixa levar pela beleza mítica da cidade. Durante a estadia, sucedem-se encontros estranhos com turistas e residentes: um ator norte-americano anão, prostitutas e uma misteriosa mulher, Clémence Poésy -- Seria uma bruxa? Não se esqueçam que ela foi Fleur Delacour no filme Harry Potter e o Cálice de Fogo. As tais férias acabam quando o chefe, Harry (Ralph Fiennes), telefona a um deles e ordena-lhe que assassine o outro. As ruas das Bruxas tornam-se então um cenário surrealista de perseguições. 


7. E não se esqueça, há um dia das feiticeiras na Bélgica, é o 27 de Julho, com direito a procissão das bruxas e tudo. 


8. Essa história de bruxas nos remete à obsessão por amuletos na Idade Média, que estava ali-ali com a feitiçaria. Umberto Eco nos conta uma história que para mim raia a loucura. Diz ele, que “o prepúcio de Jesus estava exposto em Calcata (Viterbo) até que em 1970 o pároco comunicou o seu sumiço. Mas reivindicaram a posse da mesma relíquia Roma, Santiago de Compostela, Chartres, Besançon, Metz, Hildesheim, Charroux, Conques, Langres, Amberes, Fécamp, Puy-en-Velay e Auvergne. O sangue que brotou da ferida lateral, recolhido por Longino, teria sido levado para Mântua, mas outro sangue conserva-se na basílica do Sangue Sagrado em Bruges, na Bélgica”. 


Assim, de novo, Brugge/Bruges/Bruxas volta à berlinda e uma igreja, a Basílica do Sangue Sagrado, aparece como guardiã de uma relíquia inusitada. Que a engenharia genética não leve isso muito a sério... 


9. Para os finalmentes me pergunto: salvador de quem? Das bruxas ou daqueles que queimavam mulheres? Salvador das bruxas não poderia ser, pois como diz Tomita, para Santo Agostinho, a abominação da bruxaria surgiu da ligação entre a humanidade e o diabo: a mulher para tornar-se bruxa deveria renunciar a fé católica; dedicar-se de corpo e alma à prática do mal; ofertar crianças não batizadas ao demônio; e entregar-se aos atos carnais com íncubos e súcubos. 


10. Na Catedral de São Salvador das Bruxas, hoje uma igreja protestante, temos obras de arte. Entre elas, tapeçarias que decoram as paredes da nave, tecidas em Bruxelas por Van der Borcht, em 1730. São exuberantes. Sob o altar está uma escultura do Deus Pai, em mármore branco, feita por Arthur Quellin. À direita do prédio está o museu da catedral. Nele, há pinturas flamengas, jóias e relicários ouro e prata. 


Para as bruxas do século XXI sobrou uma procissão no dia 27 de julho. 



A paixão explode em chamas 



Imaginei um pensar transverso entre Teresa de Ávila (1515-1582), Baruch de Spinoza (1632-1677) e Georges Bataille (1897-1962). Não uma conversa que deve levar a leituras definitivas, mas a matutar percepções sobre a experiência religiosa, a paixão e a morte. Assim, lemos Teresa em Versos nacidos al fuego del amor.


Vivo sin vivir en mí,
y de tal manera espero,
que muero porque no muero
 


Spinoza considerava a teologia um pensar primevo, que caía muito bem na construção pré-científica da realidade, mas não na sua contemporaneidade. Achava que a tal busca das últimas causas não acrescentou nada à compreensão da natureza. E, que, só quando a humanidade parou de olhar para cima e olhou para si própria e ao seu redor pode pensar a física e as ciências possibilitaram a expansão do conhecimento. Gosto de Spinoza, mas acho que estava enganado ao colocar a teologia fora do humanismo e do naturalismo que defendia. Na verdade, se olharmos a teologia e, por extensão, a experiência religiosa apenas como formas de um supranaturalismo, elas se mostram, sem dúvida, superficiais. 


Vivo ya fuera de mí 
después que muero de amor; 
porque vivo en el Señor, 
que me quiso para sí; 
cuando el corazón le di 
puse en él este letrero: 
que muero porque no muero. 


Há algo no pensar de Spinoza que é desnorteador, em parte por sua veracidade: o comportamento humano deve ser explicado de modo semelhante ao dos demais comportamentos na natureza. E a partir daí ia fundo, radicalizava: a princípio, não há liberdade, nem responsabilidade no comportamento humano. O fazer humano, até o mais íntimo, deve ser explicado por suas causas mecânicas, como fenômenos da natureza. Assim, bom é simplesmente aquilo que dá prazer; e mal o que causa dor. Mas, o que isso significa, amigo Spinoza? 


Esta divina prisión 
del amor con que yo vivo 
ha hecho a Dios mi cautivo, 
y libre mi corazón; 
y causa en mí tal pasión 
ver a Dios mi prisionero, 
que muero porque no muero. 


Gostaria que você, amigo Spinoza, tivesse lido as confissões de uma jovem monja carmelita, chamada Teresa, no Livro de sua vida, onde contou um dos seus muitos momentos de êxtase:


“Vi nele uma comprida lança de ouro e sua ponta parecia ser um ponto de fogo. Parece que ele a enterrou muitas vezes em meu coração e perfurou minhas entranhas. Quando retirava a lança, parecia também retirar minhas entranhas e me deixar toda em fogo do grande amor de Deus. A dor era tão grande que me fazia gemer, porém, a doçura dessa dor excessiva era tal que eu não podia pensar em ficar livre dela... A dor não é corporal, mas espiritual, embora o corpo tenha sua parte e mesmo uma grande parte. É uma carícia de amor tão doce, que então acontece entre a alma e Deus, que rogo a Deus em sua bondade faça com que seja experimentada por quem possa pensar que estou mentindo”. 


Vamos ouvir um pensador maldito, Bataille. Para ele a experiência religiosa está marcada pelo prazer. O prazer de viver. E é esse tropismo ao prazer que leva à superação, no cristianismo, da acentuação de uma teologia do pecado, com sua culpa infindável. Mas, aqui estamos diante de um paradoxo, pois a tradição cristã enfrenta esta pedra de tropeço, pois enquanto construção simbólica pesa sobre ela a sombra de um instrumento de tortura do qual pendeu seu fundador. De todas as maneiras, mesmo sem negar a culpa, a experiência religiosa recupera o prazer de viver e leva o fiel em êxtase a saborear as frutas que a vida oferece, doces e amargas.  


¡Ay, qué larga es esta vida! 
¡Qué duros estos destierros, 
esta cárcel, estos hierros 
en que el alma está metida! 
Sólo esperar la salida 
me causa dolor tan fiero, 
que muero porque no muero. 


É por isso que Teresa, em meio à solidão da cela, falava da liberdade do êxtase.


“Durante os dias em que isso acontecia, ficava meio abobada; não queria ver nem falar, mas ficar abraçada com meu sofrimento que para mim era a maior glória. Isto ocorria algumas vezes, quando o Senhor queria que me viessem estes arrebatamentos intensos, que mesmo estando entre pessoas, não podia resistir. Antes que esse sofrimento de que falo agora comece, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para dor e padecimento, porque logo vem o gozar”. 


E Bataille, em O Erotismo, ao falar sobre a experiência mística, que está presente em todos os movimentos cristãos, mesmo os mais conservadores, diz que, como a proibição criou, na violência organizada das transgres­sões, o erotismo inicial, ao proibir a transgressão organizada, por sua vez aprofundou os graus da expressão sensual. E dá como exemplos as noites dos sabbats, ou da solidão celas, onde, por exemplo, o marquês de Sade escreveu Cent Vingt Journées. E cita Baudelaire quando afirmou que a única e suprema volúpia do desejo jaz na certeza de fazer o mal. Ou seja, homem e mulher sabem que é no mal que se acha a volúpia.


¡Ay, qué vida tan amarga 
do no se goza el Señor! 
Porque si es dulce el amor, 
no lo es la esperanza larga. 
Quíteme Dios esta carga, 
más pesada que el acero, 
que muero porque no muero. 


Bem, se o prazer se liga à transgressão, como explicar o êxtase religioso, que não produz culpa? E aí é onde Bataille dá um show de bola, e completa Spinoza quando aquele criticava o pensar teológico. Para Bataille, o mal não é a transgressão, é a transgressão condenada. O mal é o pecado. E foi do pecado que Baudelaire falou. Da mesma maneira, as narrações dos sabbats falam de uma procura pelo pecado. Mas, Sade e Teresa negam o mal e o pecado, embora trabalhem com a idéia da irregularidade para transmitir o desencadeamento da crise voluptuosa. 


Sólo con la confianza 
vivo de que he de morir, 
porque muriendo, el vivir 
me asegura mi esperanza. 
Muerte do el vivir se alcanza, 
no te tardes, que te espero, 
que muero porque no muero. 


O cristianismo negou o caráter sagrado da atividade erótica encarada na transgressão. E os místicos negaram o que a igreja considerava divino. Nessa negação, o cristianismo, com o tempo, perdeu o poder religioso de evocar a pre­sença demoníaca: perdeu-o na medida em que o diabo deixou de estar na base de qualquer perturbação fundamental. Hoje, os movimentos ligados ao neopentecostalismo estão fazendo o caminho inverso. Mas, o certo é que os místicos, aqueles que foram marcados pela experiência religiosa do êxtase, deixaram de acreditar no mal. Desse modo, encaminharam-se para um estado de coisas em que o erotismo, deixando de ser um pecado, deixava de ser uma certeza de fazer o mal. Já na experiência profana, somos chamados a dar atenção a Spinoza, o erotismo seria pura mecânica animal. Mas, a partir da experiência religiosa e, mais exatamente, do êxtase místico, como aqueles de Teresa de Ávila, há um ultrapassar, sem que isso signifique voltar ao ponto de partida. 


Mira que el amor es fuerte, 
vida, no me seas molesta; 
mira que sólo te resta, 
para ganarte, perderte. 
Venga ya la dulce muerte, 
el morir venga ligero, 
que muero porque no muero. 


E por quê? Porque, nos explica Bataille, há na liberdade a impotência da liberdade, mas nem por isso a liberdade deixa de ser disposição de nós por nós próprios. As a­ções dos corpos podem, na lucidez, abrir-se à recordação inconsciente duma metamorfose infindável, cu­jos aspectos não deixarão de estar disponíveis. Veremos, então, que, por caminhos não prescritos o erotismo se reencontra. Chegamos, então, ao erotismo dos corações, ao erotismo mais ardente, quando, aparentemente, o erotismo dos corpos já sucumbiram. E voltamos aos Versos nacidos al fuego del amor.


Vida, ¿qué puedo yo darle 
a mi Dios, que vive en mí, 
si no es el perderte a ti 
para mejor a Él gozarle? 
Quiero muriendo alcanzarle, 
pues tanto a mi Amado quiero, 
que muero porque no muero. 


Ou como diz uma canção, lá no primeiro Testamento, o desejo é poderoso como a morte; e a paixão é forte como a sepultura. O desejo e a paixão explodem em chamas e queimam como fogo furioso. 



O pesadelo belga



Eu começaria dizendo que os belgas são conhecidos por seu bom humor, por produzirem um bilhão de litros de cerveja/ano e consumirem, também anualmente, oito quilos de chocolate por habitante. Para nós, o país não é grande, quase uma Alagoas, e cerca de 10 milhões de habitantes.

 
A crônica teve início em Bruges, a Veneza do Norte, flamenga e medieval, que sobreviveu às guerras e hoje é patrimônio tombado pela ONU. Minha cicerone é Marcela Duarte. Ela me levou até uma esquina e me mostrou uma livraria, Degheldere, em Leemputstraat, 2. Olhei e me arrepiei: na vitrine, livros sobre Hitler, sobre as operações militares do exército nazista e seus generais. A extrema-direita é real e ativa.

 
Tal realidade me levou a correlacionar politicamente três questões: o federalismo, os nacionalismos e as direitas na Bélgica.

 
A Bélgica é uma monarquia constitucional parlamentar. Possui um parlamento federal e três parlamentos regionais, que representam as nacionalidades e regiões: Valônia, de idioma francês; Flandres, de idioma flamengo; e o extremo-leste de Flandres, de idioma alemão. 


A Bélgica precisa para sua sobrevivência de um projeto político comum, construído por todas as nacionalidades envolvidas na federação, e de respeito pela diferença.

 
Dentro da tradição socialista, a questão nacional sempre foi diluída no sonho da internacionalização do mundo do trabalho e, por extensão, de toda a humanidade. Kautsky, Berstein, Luxemburgo debruçaram-se sobre a questão nacional sem chegar a um acordo. E na formação da própria União Soviética, o projeto federal foi esmagado pela ditadura. Ou seja, pelo estado centralizado a partir de um centro de poder.

 
Paul Tillich fez uma leitura das correlações entre cristianismo e socialismo, onde procurou, a partir da solidariedade ética, apresentar soluções para os problemas enfrentados pelo socialismo.

 
Entendeu que uma ética solidária possibilita um objetivo estável para os desafios sociais, pois pode reunir o que está separado e mudar o que não deve ser, apesar da separação tomar diferentes formas através dos tempos, das relações e das circunstâncias.

 
Assim, a ética solidária na construção do socialismo deveria partir da intuição criadora para superar a separação. Não poderia se contentar com velhas receitas, mas imaginar novas soluções. Não poderia ficar presa às regras e, embora parta delas e seja inspirada por elas, deveria modificá-las e atualizá-las em função das novas situações que se apresentam. 


Tal ética levaria a uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social: faria a crítica daquela ordem erigida sobre o egoísmo político e econômico, e proclamaria a necessidade de uma nova ordem, na qual o sentido de comunidade fosse o fundamento da organização social.

 
A solidariedade ética denuncia o egoísmo da economia das multinacionais e dos governos que servem a elas, que levam à expropriação de muitos em benefício de poucos, e propõe uma economia solidária onde a alegria não seja apenas fruto do ganho, mas também do próprio trabalho.

 
A ética da solidariedade condena o egoísmo de classe, onde cada qual procura enriquecer através da exploração de seu próximo, e as conseqüências desse processo, como o privilégio da educação para uma elite. Mas nega também a afirmação da guerra e propõe a supressão das classes, o fim dos privilégios em cargos e funções e da exploração de setores profissionais por outros.

 
Mas voltemos ao caso belga, onde os partidos de centro-esquerda se posicionam relativamente à vontade na federação, embora este não seja o caso das direitas e, principalmente, das direitas às extremas. Não que partidos de direita sejam incompatíveis com o federalismo. Porém, na Bélgica, o federalismo tem que encarar duas propostas centrífugas das direitas. Uma que, em nome do “povo” de determinada nacionalidade, propõe que essa nacionalidade represente hegemonicamente o estado federal; e outra que, também em nome de determinada nacionalidade, reivindica separação e, por extensão, o fim do federalismo.

 
A partir dessas duas propostas nacionalistas temos os movimentos das direitas e extrema-direitas belgas em suas correlações com o estado federal. Ambos são movimentos centrífugos. O Front Nacional/FN, francófono; e o Front nouveau de Belgique/FNB, também francófono, por exemplo, são partidos que defendem a hegemonia da Valônia sobre o conjunto da federação. E assim cumprem um papel centrífugo.

Já o partido Vaams Belang, flamengo, ultranacionalista e fascista, defende a separação nacional de Flandres, e cumpre também um papel centrífugo.

 
Os belgas, diferenças à parte, são orgulhosos de sua cultura e arte. Na pintura são impressionantes: podemos falar de Melchior Broederlam, Jan Van Eyck, Quentin Metsys, Peter Bruegel de Alt, Peter Paul Rubens, mas também da Art Nouveau, de Henry Van de Velde, um dos fundadores do Bauhaus, e, para meu deleite, de Hergé, que criou Tin-Tin. Mas, mesmo com crise o humor belga permanece.

 
Mas voltemos às nacionalidades. É possível reunir os diferentes partidos da direita e da extrema-direita concorrentes dentro do Estado federal? Para uma resposta coerente com a realidade política da federação vou recorrer ao jornalista Herwig Lerouge, editor da revista Études marxistes, e especialista em questões da extrema-direita.

 
Para ele, as atuais propostas de reforma do estado, apresentadas pelas direitas, escondem uma agenda neoliberal que traduz os desejos das multinacionais travestidas de nacionalistas, onde o objetivo é fraturar a federação e dividir o mundo do trabalho. Ou seja, as multinacionais querem derrotar as conquistas trabalhistas e salariais, e para isso precisam quebrar as entidades de classe e seu poder de mobilização.

 
Assim, as direitas e as extrema-direitas da Valônia, de Flandres e do extremo-leste de idioma alemão, quer se choquem ou não, são fatores de debilitamento das propostas que podem levar a reformas institucionais e fortalecimento do estado belga.

 
Hoje, então, esses movimentos nacionalistas transformaram-se em árbitros de qualquer processo de reforma. Eis o impasse que assombra a Bélgica e, por extensão, a própria Comunidade Européia, já que o Parlamento europeu está sediado em Bruxelas.

 
É interessante que Lerouge, embora eu não saiba se ele conhece os trabalhos de Tillich, propõe uma reforma do estado belga baseada na solidariedade. Para ele, a solidariedade é o antídoto para o separatismo nacionalista que envenena a política no país.

 
Considera que é importante manter a solidariedade entre as regiões e comunidades, embora afirme que a ameaça de separação seja real. Para Lerouge, o federalismo, ao contrário do que muitos pensam, leva ao desequilíbrio e ao distanciamento das nacionalidades quando o assunto é a política federal. Por isso, advoga um estado não federativo.

 
À maneira tillichiana, Lerouge propôs a mobilização contra as tendências separatistas, afirmando que ninguém ganhará com o fracionamento da Bélgica. Daí a campanha que lançou: "Sauvons la solidarité".

 
Estamos torcendo, com ele, para que a solidariedade mantenha a Bélgica unida e criativa.

 


Aquele que matou Ícaro



Peça em três atos. Todos os personagens estão em cena desde o início, apenas o jogo de luz define o cenário, quando os personagens em cada ato são iluminados. Quando um personagem fala, a luz vai se tornando mais intensa. Quando ele se cala, a luz declina. E quando o outro personagem fala, iluminado, vive processo idêntico. No palco há um espelho, que fala como imagens de televisão. As imagens em bricolagem desfilam enquanto Macário, o espelho, fala. Mas, outras montagens, cenários e luzes são possíveis. O diretor define. Para os leitores, fica o desafio: façam a leitura do texto em voz alta. Depois dos ensaios, convidem os amigos e vizinhos. Encenem. O teatro faz bem à alma.


Primeiro ato

Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 


Dédalo -- Bom dia, Macário.


Macário -- Bom dia, Dédalo.


Macário (continua) -- Por que você abandonou Ícaro, como Jefté fez com a menina? Eu bem que avisei você, Dédalo. Eu disse para você não fazer como Jefté, que disse: eu queimarei em sacrifício aquele que sair primeiro da minha casa para me encontrar quando eu voltar da guerra. Eu o oferecerei em sacrifício ao Eterno. Você tinha que dominar a sua arte, caso contrário ela se tornaria inimiga, se colocaria à porta do seu coração como uma fera querendo saltar em cima e devorar você. Cabia a você dominá-la.


Dédalo -- Dominá-la! Dominá-la! O que significa isso, Macário? E quando eu me engalfinho com ela, quando dou pernada e levo sopapos da minha arte, para ter controle sobre ela, já não estou tão envolvido, que de bela fera imaginada ela já não é realidade vivida no peito que dói?


Macário -- Mas eu vi quando você abandonou Ícaro. Você o levou lá para cima, acima das colinas, das pastagens de Creta, vagando pelo azul, e não ficaram os dois, um e outro, o par olhando para as ondas debaixo. E vagou com as nuvens, flutuou na imensidão, cheio de prazer e realização. Coitado de você Dédalo, arquiteto de engenho e arte. Você se bastou, deixou o menino se esgueirar alucinado em direção ao sol forte.


Dédalo -- Para você é fácil julgar, Macário. Você é reflexo da minha loucura, assim como foi reflexo dos caminhos de meu filho. Você é meu inverso, como foi dele, você se mexe, mas está fixo. E quando a gente é um ponto fixo e o resto é cenário é fácil julgar. Você é o sagrado que me consome. Você é a minha dimensão apofática, negação daquilo que sou, é martírio, cruz, morte. Através de você mergulho nas trevas. É isso mesmo Macário, reconheço a minha arrogância e desejo, esse é o meu desejo, que no reconhecimento do desvario possa conhecer para além da razão.


Macário -- Eu sei que é por isso que nos vemos todos os dias. Que é por isso que você levanta, fica diante de mim e começamos a conversar. Eu, Macário, sou misterium tremendum que esmaga e leva o medo até a profundidade da sua alma. Esse temor qualitativo, motivo para reflexão e energia, faz de você meu adorador.


Dédalo -- Eu sei, Macário, meu senhor, que necessito ser como você. Quero incorporar aquilo que me é distinto. Mas, apesar de nossa intimidade a cada manhã, permanece esse abismo entre eu, adorador, e você, sagrado. Desejo saltar o abismo que nos separa, e talvez seja esse o móvel que faz de mim espiritual, ao imitar a queda de Ícaro, o amor do filósofo e a insanidade da juventude. Talvez...


Macário -- Agora, não dá mais, Dédalo! Eu vi você abandonar Dédalo. Você o derrubou, você derreteu as asas dele. Com sua imaginação, com suas mãos de escultor você o puxou para a imensidão do Egeu. Você não o olhou nos olhos. Olhos nos olhos. Dois de realização, egocentrados, dois de terror, caindo no abismo. E você continuou seu vôo de prazer profundo. Esqueceu, abandonou, não viu o rosto aterrorizado que mergulhava. Profundo, vil prazer. E você, mestre, fez os olhos temerosos saltarem. Eu vi, Dédalo. E isso você vai ver também, a cada manhã que olhar para mim.


Dédalo -- Ah! Querido Ícaro, estou perdido nos meus labirintos. Vejo seus cabelos cacheados, os olhos negros, instigantes, voadores. O rosto de jovem que sonha, queimado pelo sol esperto. Ah! Miserável homem que sou, quem livrará o meu corpo da morte?


Macário -- Dédalo, a sua confusão já não está, mas também não estão a escultura e o vôo. Você matou Ícaro e metade da sua alma se foi. Vou colocar no seu rosto, a marca dos olhos desesperados, que olham para além do que todo mundo vê. E as pessoas que olharem para você verão que você vê o que elas não vêem. E fugirão de você por isso. E não matarão você porque vão ficar com medo. E essa será a vingança que Ícaro me autorizou dar a você. Vagar sem esperança pelo labirinto da vida. 


Segundo ato

Ao entardecer, num orquidário em Jardim, na chapada do Araripe.


Carvoeiro – Eu vejo a dor de Dédalo de maneira diferente. Dédalo sempre esteve sujo como eu. Bicho humano vivia na sombra. Vou prosar uma toada. Dédalo estava preso na mina, que tinha só uma luz do sol iluminada na entrada. Lá desde a infância teve a cabeça e as pernas amarradas de movimentos. Bicho preso, só conseguia ver o que estava diante. Não tinha voltar do rosto e olhar para trás. Mas, atrás dele, a luz do candeeiro do céu alumiava. Entre a ilustração e Dédalo havia um caminho, mas também um tapume alto. Lá estava Dédalo, libertário, infância adentro...


Maquinista – Não sei aonde você quer chegar, mas Dédalo é um do protesto. Está livre para criar e fazer. Com ele não tem contras, é ranzinza para a norma dos deuses. As amarrações antigas não têm para ele, o que é engenharia é bom. Legal é novidoso, é bênção buscada. Vou ficar afluente! Ser ourudo está no ninho do coração de Dédalo e não conseguir é pecado.


Guarda-chuva – Não sei não. Vocês são complicados. Acho que já está escrito quando se nasce. Sou guarda-chuva e aqui todo mundo me conhece assim. Quando cheguei, ela estava na cama aos berros. Fiz psiu para se acalmar, embora berrar não fosse mau. Peguei jornal e coloquei debaixo dela. Peguei a minha tesoura, linha de algodão e cortei em três pedaços de vinte e cinco centímetros. Peguei o cobertor, na verdade uma colcha fina que estava ao lado da cama. Dobrei em três e coloquei em cima da mulher. Minhas mãos estavam limpas, mas eu esfreguei com álcool.


Carvoeiro – Espera aí guarda chuva, eu quero continuar. Dédalo se livrou dos nós, das amarrações, mas não da astúcia das idéias. Desatado, levantou, voltou a cabeça, andou, olhou para a luz. Como o filho, Dédalo sofreu muito: a iluminação foi coisa de dor, mas o deslumbrou e ele não conseguiu ver as gentes por inteiro. Foi isso que aconteceu com Dédalo, o engenho e a arte dançaram na frente dos olhos dele e queimaram! Que confusão, as verdades doeram, e a astúcia das idéias foi bem mais amistosa do que o mundo transiluminado pelo candeeiro do meio-dia! O filho despencou lá de cima e Dédalo foi para a Sicília.


Maquinista – Dédalo se lançou, cheio do espírito, no criar e fazer no mundão besta. É arquiteto virtuoso, de virtude aburguesada. É puro dos modernosos, cheio de economias e racionalidades, e quer que tudo que é criatura seja trabalhador sóbrio e industrioso, aferrado no manejo, destinado na vida amarrada pelos divinos. Dédalo quer tudo que é criatura debaixo do mando dele, que é decreto eterno vindo dos deuses.


Guarda-chuva – Sei não. Vocês são complicados. Acho que coisa má nasce feita. Quando as contrações aumentaram e a bolsa d´água rompeu, coloquei os dois travesseiros que encontrei para amparar a cabeça e as costas da mulher. Ela começou a fazer força, retinha a respiração e segurou as coxas por trás dos joelhos, puxando as pernas. Apareceu a cabeça. Coloquei uma toalha embaixo das nádegas dela. Mas eu não tinha outra toalha para colocar entre as pernas da mulher. Amparei a cabeça roliça da criança com as mãos em concha. Tinha uma membrana, mas retirei. Para complicar, o cordão veio enrolado no pescoço. Coloquei um dedo por baixo do cordão, afrouxei e passei o cordão por cima da cabeça. Disse para a mulher parar de fazer força. Eu queria que a criança nascesse feliz, sorrindo, sem ruína da vida.

 

Maquinista --- A sina de Dédalo é essa, ficou na especialização, esqueceu que casa de gente é terra e céu. Dédalo é ciborgue, meio gente, meio máquina, e quando fala faz ruído de máquina. E não fala sem máquina. Dédalo tem o estilo da máquina e vai parir máquinas até a última gota de combustível. Mesmo no céu, está preso na mina, como disse o carvoeiro, mas a mina é de ferro, sistema de uso e danação das idéias livres e do fazer gostoso. 


Guarda-chuva -- Principio a entender, mas não sei se concordo com vocês. Quando um ombro começou a sair, amparei, e o outro veio saindo também. Segurei o resto do corpo com as mãos. Não puxei o menino, que poderia se chamar Dédalo. Por que não? E o resto do corpo veio em baba de quiabo. Retirei as gosmas da boca e do nariz com um pano. Segurei de ponta cabeça e o resto da baba saiu. Chorou raivoso o choro dos infelizes. Coloquei-o de costas, amarrei o cordão com as linhas de algodão. Dei dois nós, um mais ou menos a quinze centímetros e outro a vinte centímetros do umbigo. Cortei entre os nós. E fiz depois um terceiro nó a dez centímetros do umbigo e cobri o umbigo com um tampão. Entreguei Dédalo para a mãe. Ele já estava agasalhado. Cobri a mulher e fiquei esperando aquela água-viva vir escorrendo. Coloquei num prato, cortei em pedaços pequenos e dei para ela comer. Eu não jogo a vida fora. Por isso, sou guarda-chuva de fama aqui no Jardim.


Terceiro ato

Ao amanhecer, no palácio de Cócalo, rei de Câmico, na costa meridional da Sicília. 


Dédalo -- Que tristeza profunda! Minha sem-vida começa agora, é vazio, não há reino, nem fé, nem paciência. Não há utopia: perdi os sentidos, o êxtase, o presente também.


Macário -- É isso mesmo, Dédalo. Para você não há mais iluminação, nenhuma notícia boa. Você começou a vagar com desespero, sem perspectiva, cheio de medo. E olhar o mundo assim é terrível. Não há mais fonte inesgotável para a imaginação, não há mais transformação. Não há mais possibilidades emergentes à luz do futuro prometido.


Dédalo -- Estou na Sicília, no palácio de Cócalo, e o que vejo? Gente sem âmago, só pedaços. Não há sinais, nem caminho. Não há sentido cronológico de término, não há a absoluta necessidade de pensar o fim, não há kairos, significado maior e profundo na história. Não há expectativa, lúdico, alegria, não há um momento de grande emoção.


Macário -- É a sina de olhar o mundo sem ter Ícaro junto. O que parecia ser bom, ao deixar o labirinto para trás, é queda e perda de sentido. A alegria, felicidade e destino escorrem entre os dedos. Sem Ícaro você é só infeliz. E assim fica o que você vê. Por isso, você precisa cada vez mais de mim. Por isso, todos os dias, você tem que olhar e conversar comigo, ver o vivo e o morto, chorar e ter medo. Não há salvação para você. Infeliz, porque o sol derreteu a aventura e o risco. Não há mais tempo oportuno, não existe para você um começar agora de esperança. 



O profeta e o espelho



Abandonai as cavernas do ser. Vinde, o espírito se revigora fora do espírito. Já é hora de deixar vossas moradas. [Cartas aos Poderes, Antonin Artaud].

 
Foi surrealista. Antonin Artaud (1896-1948) criou o Teatro da Crueldade. Suprimiu os diálogos, a organização cênico-espacial e os meios de atuação tradicionais do teatro, e incorporou novos conceitos de gestualidade. Foi um dos fundadores do Teatro Alfred Jarry, em Paris. Sofreu de enfermidades físicas e beirou a demência, e não foi aceito pela crítica e pelo público da época. Hoje, é influência viva em escolas teatrais experimentalistas e entre diretores e atores. A ele dedico in memoriam...

 

Na fronteira do mundo, o profeta olha para o cristal límpido


Profeta -- Quero falar, dizer para você o perigo que está correndo...


Espelho -- Bobagem, sempre consegui resolver os meus problemas. Às vezes, é verdade, de forma meio violenta, com um pouco de sangue, mas aqui estamos nós, sobrevivendo.

 
Profeta – Não, eu preciso... Ouça ao menos um pouquinho do que tenho a dizer. Se não falar não vou poder dormir. Estou angustiado, desesperado com a situação...


Espelho – Então vá lá. Fale. Não quero ver você neste estado.

 
Profeta – O Eterno disse: coitada da cidade, orgulho e coroa dos bêbados! Ai dessa bela cidade que fica acima de terras boas! Os seus moradores estão embriagados, e a beleza da cidade desaparece como uma flor que murcha.


Espelho – Mas porque ele diz isso? O que tem contra a cidade? Isso me deixa irritado, ele está sempre contra. Ele é do contra.

 
Profeta – É por isso que preciso falar, para que você compreenda e viva. Há uma razão para a destruição: você. Você está plantando tudo isso. Será que não entende?

 
Há outros que andam tontos por terem bebido muito vinho, que não podem ficar de pé por causa das bebidas: são os sacerdotes e os profetas, que vivem embriagados e tontos. Os profetas, quando recebem visões do Eterno, estão bêbados, e os sacerdotes também, quando julgam os casos no tribunal. As suas mesas estão cobertas de vômito, não há um só lugar que esteja limpo.”

 
Espelho – Não dá para entender. Ele está falando de você, acusando, está falando mal de você. Afinal, você é um profeta, não é?

 
Profeta – É verdade, eu e você somos iguais, embriagados, sentados no vômito, fedendo. É por isso que estou desesperado, clamando por nós dois. Mas se você ao menos prestasse atenção. O seu desprezo só aumenta a distância...


Espelho – Não encha o saco, não somos crianças!

 
Profeta – Se você não quiser ouvir, estrangeiros vão falar em nome do Eterno. Estou lhe dizendo, o Eterno lhe dará descanso, ele lhe dará segurança. Mas você não quer ouvir. Por isso, o Eterno vai cuidar de você como se fosse criança. Você tentará andar, mas cairá de costas; vai se machucar, cairá em armadilhas, será preso.

 
O maravilhoso está na raiz do espírito. Nós estamos dentro do espírito, no interior da cabeça. Idéias, lógica, ordem, verdade, razão: tudo oferecemos ao nada da morte. Cuidado com as lógicas, senhores, cuidado com as lógicas. Não imaginam até onde pode nos levar o ódio.”

 
Espelho – Chega! Fizemos sim um acordo com a morte. Mas fizemos porque é o jeito de darmos um basta ao caos. Estamos organizando a casa. Talvez, custe um pouco de sangue, talvez a morte se faça presente, mas não há outro jeito.

 
Profeta – Discordo. Você não precisa viver com medo.

 
Por isso, o Eterno diz: Estou colocando sobre esta cidade uma pedra, uma pedra pesada, enorme, que eu escolhi para ser a pedra principal do alicerce. Nela está escrito isto: Quem tem fé não tem medo. Como prumo usarei a justiça e a honestidade – serão a minha medida.”

 
Espelho – E a morte? O que faço com ela? Ai! Na verdade, já não sei qual é melhor, o medo, a insegurança, ou esse acordo com a morte.

 
O acordo que vocês fizeram com a morte será anulado, o que vocês combinaram com o mundo dos mortos será desfeito. E, quando chegar a terrível desgraça, ela arrastará vocês como se fosse uma enchente. Todas às vezes que chegar, ela os arrastará; chegará todos os dias, de manhã e de noite. Cada mensagem do Eterno trará um novo pavor. Vocês serão como a pessoa de que fala aquele provérbio: A cama é tão curta, que ela não pode se deitar, o cobertor é tão estreito, que não dá para ela se cobrir.”

 
Profeta – Sente-se aqui ao meu lado. Vou falar e você vai ouvir... Certa vez, Artaud disse que os céus respondem à nossa atitude de absurdo insensato. Que o hábito que temos de dar as costas às perguntas não impedirá que os céus se abram no dia estabelecido. E que uma nova linguagem se instale no meio de nossas imbecis transações, das transações imbecis de nossos pensamentos.

 
Espelho – Deixa eu abraçar você. Eu amo... Queria tanto que Artaud, Bataille e os outros estivessem aqui. Vamos ouvir...

 
Escutem o que vou dizer! Dêem atenção à minha mensagem! Um homem que está preparando o terreno para semear trigo não gasta todo o seu tempo arando a terra, cavando e remexendo nela. Depois de ter aplanado a terra, ele semeia o endro e o cominho e planta o trigo, a cevada e outros cereais nos lugares certos. Ele faz tudo direito porque o Eterno lhe ensinou. E no tempo da colheita ele não usa um instrumento pesado para debulhar os grãos de endro e de cominho; ao contrário, ele usa varas pequenas e leves. Quando malha o trigo, ele não continua malhando até quebrar os grãos. Ele sabe passar a carreta por cima das espigas sem esmagar os grãos. Esse conhecimento também vem do Eterno. Os seus planos são maravilhosos, e ele é sábio em tudo o que faz.”

 
Profeta – Quem sabe ainda haja vida para nós?

 
No mundo sem porteira, o cristal vê o profeta translúcido. 



Miss Météores

Ou da morte e da consciência

 . 


Estou no Buffalo Grill ouvindo country, comendo burguer e lendo Bernard Reymond, À decouverte de Schleiermacher. É, em Paris, nem sempre faço como os franceses. Mas não dá para esquecer que estou aqui, e eu nem quero.

 
Caí por essas bandas da Gare du Nord porque daqui a pouco parto para Bruxelas, para a casa de Marcela, minha filha. E para assistir ao show Miss Météores, de Olivia Ruiz, a nova Piaf, no Ancienne Belgique, Anspachlaan, 110. É a casa de show mais badalada de Bruxelas. Gosto de cebola roxa e esta está simplesmente deliciosa. As cebolas roxas são como as outras, só que mais suaves. Boas para comer cruas. Não, não estou tomando Coca-Cola. Nem vinho. Parei no suco de laranja.

 
Não sei por onde começar, 

Eu devo viver a lua ou minha bela estrela 

Até que a vida acabe por passar, 

Ou provocar o destino fatal 


Paris desvenda meu amor,

Perdida entre toda essa gente,

Paris entrega meu amor

Eu estarei sobre a ponte dos amantes 

(Olivia Ruiz, Paris)

 
Acho que devo dar sequência a uma crônica anterior. E começarei dizendo que a fé parte da experiência e da compreensão teológica de que não existe acaso ou coincidências. A existência é sempre permeada pela atualidade e pela contingência através das quais se faz presente o incondicionado.

 
Por isso, a expressão “faça sem culpa” não procede: em primeiro lugar, porque para além do mal fazer ou do não fazer bem está a consciência ontológica da morte, que se traduz existencialmente como ausência e separação. E foi esse estar diante da morte que fez o hominídeo dar o salto existencial/ antropológico: passar de homo sapiens a sapiens sapiens. Conhece a morte, sabe que vai morrer e passa a temer a ausência e a separação definitivas.

 
Tanta gente e tão poucos olhares,

Tanta gente e tão poucos sorrisos 

Nunca têm tempo de se oferecer ao acaso,

Tão pouco tempo que a gente gostaria de acabar 


Paris desvenda meu amor, 

Perdida entre toda essa gente, 

Paris entrega meu amor 

Eu estarei sobre a ponte dos amantes 


Em sua carta aos Romanos (5.12), o apóstolo Paulo explicita esse processo de construção do humano ao afirmar que a hamartia entrou na vida humana por um primeiro, e com a hamartia, a consciência da morte. Ora, hamartia era uma expressão militar dos gregos que se referia ao ato do arqueiro errar o alvo, quer no treinamento, quer na batalha. Paulo utiliza a expressão no sentido de que vivemos sempre sob a possibilidade de errar os alvos existenciais. Por isso, a compreensão de hamartia é ausência, separação, alienação, já que implica em distanciamento do objetivo existencial. Para um vôo antropológico sugiro o livro de Philippe Ariès, já traduzido para o português, O Homem diante da Morte.

 
Errar o alvo, ou seja, ausência, separação, alienação, enquanto estado da existência, leva à compreensão da origem do humano enquanto tal. E Paulo fala, então, da consciência da morte. Para o apóstolo, o estado de ausência, separação e alienação na existência produz uma consciência matricial, a consciência da morte.

 
A partir da consciência da morte temos a consciência do divino, a consciência da diversidade, já que não somos bichos e, por extensão, não somos apenas natureza, a consciência de que podemos escolher, e a consciência de que coisas e ações podem ser boas ou não. Dessa maneira, hamartia implica em conseqüências: necessidades diante da lei, daquilo que é ou está frente à existência, e possibilidades diante da liberdade, daquilo que não existe, mas pode ser criado.

 
Um pouco cansada 

Ela avança em meio à multidão 

em sentido contrário 

Um barco embriagado sobre a onda 


Bela Paris, seja generosa

para com a minha pobre alma triste

Eu direi por toda parte que és maravilhosa, 

Se você me encontrar um único eu te amo 


Assim, diante da ausência, do distanciamento e da alienação presentes e futuras estão necessidade e lei e possibilidades e liberdade, que não se excluem: estão correlacionadas na existência humana, fazem parte do estado da existência.

 
Quando proferimos o “fazer sem culpa” rebaixamos a consciência ante os desafios da existência e negamos possibilidades: perdemos esperança e liberdade. E assim a vida é corroída pelas bordas.

 
Em se falando de tristeza, vejam Olivia Ruiz interpretando Piaf. Mas, não se esqueçam que Olivia é boom entre os roqueiros na Europa. E, sem dúvida, como sempre acontece, é bem melhor ver e ouvir ao vivo. 


Lá fora a primavera está nublada, garoenta, nos 15 graus. Toda gente meio que esperando um pouco mais de frio, encasacados, à exceção de uma moça de mini-saia. De onde ela veio? Mistérios da urbanidade global.

 
Gosto de estar brasileiro. Não, não sou um cidadão do mundo. Percebo o mundo a partir de minha brasilidade, de meu gênero, de minha idade. E, por que não, das letras que me fazem delirar. Afinal, como canta Olivia Ruiz: 


Paris encontra meu amor,

Perdida entre toda essa gente,

Paris entrega meu amor

Eu estarei sobre a ponte dos amantes


Daqui a pouco, de TGV, estarei em Bruxelas. Chez Marcela.

 


Matei porque me pisou



Multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. 


A violência estabelece uma proposição: um princípio atemporal e não espacial, sobre o qual a razão titubeia, uma vez que aparentemente transcende a concepção de humanidade, mas, ao mesmo tempo, reduz qualquer expressão humana. Parece estar além da razão: é impensável.

 

Podemos, no entanto, partir do postulado de que há uma violência ontológica, que antecede toda violência manifesta. Esta causa maior é a raiz sem raiz de tudo que foi e é violência. Despida de atributos não tem, a princípio, nenhuma relação com a violência expressa. É  a violência que é e está além da razão de ser violento.


"Há uma grande bomba atômica no Rio de Janeiro que tentam esconder, mas que dá sinais de que está pronta para explodir, como agora", afirmou um morador.

 

O que é violência está simbolizado no ser violento sob dois aspectos: por um lado, é o não-espaço da subjetividade, aquilo que a mente não pode excluir, nem conceber por si mesma. Por outro lado, a violência incondicionada é dinâmica. A consciência é inconcebível quando separada do movimento, pois é ele que leva à mudança. Tal aspecto da violência é simbolizado na ideação “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”. Um símbolo gráfico da violência presente no parir a vida. Este axioma fundante da violência, ontológico, remete àquilo que podemos simbolizar como características trinitárias da violência.

 

A natureza da causa da violência, derivada de causa aparentemente sem causa, aflora como consciência da violência, impessoal, que permeia a natureza. Esta causa da violência é o campo da consciência, que transcende a relação com a existência e da qual a existência consciente é um símbolo condicionado. Mas, ao atravessar pela negação a dualidade entre existência e consciência, sobrevém a tríade da violência: o espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência.


"Você vê meninas de 13 anos - uns bebês - grávidas, com outros bebês na barriga, vê garotos de 15 anos que dizem abertamente: morrer, para mim, é lucro. Não têm auto-estima, nenhuma perspectiva de futuro, e ninguém faz nada, nem escola, nem governo, ninguém está preocupado com eles", disse outro morador do Rio.

 

Espírito de violência, a consciência da violência e a matéria da violência devem ser consideradas não como independentes, mas correlações que constituem a base do ser ou estar violento. Considerada esta trindade ontológica da violência como a raiz da qual procedem todas as manifestações violentas, a expressão “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos” assume o caráter de ideação do que ainda não é humano. Ela é a fonte da força de toda violência individual e social e fornece os elementos para a análise da violência que perpassa o humano e sua história. Tal raiz pré-humana é o absoluto expresso no “multiplicarei o teu sofrer e a tua conceição: em dor darás à luz filhos”, base da violência objetiva. Tal ideação do porvir humano é a raiz da violência individual e social, porque a substância pré-humana é o substrato da matéria violenta em seus diferentes graus.


A correlação dos aspectos da violência ontológica, de origem, é fundante da existência enquanto violência manifesta. A ideação da humanidade, separada de sua substância, não se manifesta como violência individual e social, uma vez que é somente através de um veículo, a alienação da ideação, que a violência aflora como violência que é, como ato alienado que necessitou de base física para apresentar-se como momento de uma complexidade maior, natural e humana. Da mesma forma, a substância do humano, separada da ideação da humanidade, permaneceria como uma abstração da qual a violência não poderia emergir. A violência-manifesta, assim, é permeada pela correlação, que é fundamento de sua existência como violência que se manifesta.


"A polícia deixa um rastro de insegurança e de prejuízo na comunidade, comércio fechado, escolas sem aulas, população com medo. E esta não é uma situação do Rio de Janeiro, é nacional, é internacional. Os maiores consumidores de drogas são os Estados Unidos, que são contra a legalização porque interessa alimentar a guerra do tráfico, as armas de um lado e de outro", afirmou um funkeiro carioca.


As correlações entre violência-manifesta, espírito e matéria da violência são símbolos da violência ontológica, presentes no universo manifesto da violência. Essa correlação é alienação existencial, a ponte através da qual as idéias são impressas enquanto substância da natureza da violência, presentes na forma de leis da natureza e da sobrevivência do humano. A alienação, dessa maneira, é dinâmica da ideação do humano, é meio que guia a manifestação. 


Ou como disse Lameque, ser violento mítico consciente do ciclo da violência, apresentado nas escrituras hebraicas: “Ada e Zilá, ouçam a minha voz. Escutem, mulheres de Lameque, as minhas palavras: matei um homem, porque me machucou. E um jovem, porque me pisou. Se sete pessoas foram mortas para pagar pela morte de Caim, então, se alguém me matar, serão mortas setenta e sete pessoas da família do assassino”.


A consciência humana procede também da ideação da violência e fornece os meios que possibilitam à violência individualizar-se como substância do humano. A alienação em suas manifestações é o elo entre o espírito e a matéria da violência, presença que, dialeticamente, equilibra vida e morte, permanência e destruição.



Surrealismo místico



Paul Tillich, colega de viagem, em Teologia da Cultura, diz que a consciência imediata do incondicionado não tem caráter de fé, mas é auto-evidente. E que a fé contém certo elemento contingente e exige risco: combina a certeza ontológica com a incerteza a respeito de todas as coisas condicionadas e concretas. Chamo esse fato de surrealismo místico. Vou ilustrar.

 

Tomei o vôo TAM 8098 para Paris. Saí de São Paulo no dia 12 de maio (2009), às 19h45, com a alegria normal de um mortal que pretende estar de corpo presente no XVIIIe Colloque de l’Association Paul Tillich d’expression française. Acho que você também, leitor, estaria alegre. No mínimo porque o seu editor pagou os direitos autorais devidos e você não teve que enfiar a mão no bolso.

 
Nada mais justo que, à hora do jantar, diante da pergunta da aeromoça – o que o senhor deseja tomar? –, você dissesse: um tinto, por favor. E lá vem, para acompanhar a massa do avião, o vinho.

 

Tudo corre como planejado, quando, de repente, na poltrona da frente, um senhor pesado na sua obesidade reclina-se repentinamente. E o vinho todo é derramado no meu colo. Escorre por entre as pernas e se deposita ao fundo, me encharcando por completo. Mas, como se não bastasse, parte dele é derramado exatamente sobre o volume de Teologia da Cultura, em português, que acabou de ser lançado e que estou levando de presente para a associação tillichiana francesa.

 
O que você faria, além de chamar a aeromoça, como a criança que grita pela mãe diante de desastre semelhante? Como você se sentiria, além do desespero irado por saber que vai atravessar a noite com a calça e, em especial, os fundilhos molhados? Sem falar no cheiro do vinho impregnando o corpo e o friozinho desagradável produzido pela combinação líquido derramado e ar condicionado meio para o gelado.

 
A noite foi ruim. Habitada por pesadelos e uma ideia a martelar: cuidado com o vinho. Ah! meu Senhor, então, é isso? Ter cuidado com o vinho? Mas o que significa ter cuidado com o vinho? Segurar bem o copo para que não derrame, ou não bebê-lo? E o que significa não bebê-lo? É não bebê-lo muito, só um pouquinho ou nada? Puxa, não bebê-lo nada? Tem certeza? Nadinha, mesmo? Mas estou chegando a Paris!

 
Cheguei e me instalei no Au Pacific Hotel, ali na rue Fondary 11, perto da madame Eiffel e do senhor Seine. Recomendo o hotel. Simpático, bom atendimento, muito limpo e preços dignos. Não é merchandising não. É que gosto de dar dicas de viagem.

 
E à tarde, depois do banho tomado e da roupa trocada, fui a Saint Germain de Prés, fazer a ronda turística intelectual nos cafés, nas livrarias, lembrar um pouquinho de Wilde, de Hemingway no Les deux magots e de Sartre e Beauvoir por ali. Essas coisas.

 
Mas eis que ao deambular pelas redondezas, dou de cara com uma loja do Nicolas, que há quase um século tem uma atrativa especialidade: vinhos. E na vitrine vejo garrafas de pequenas colheitas artesanais de várias partes da França. Procuro uma da minha região ou próxima. Fiz parte de minha pesquisa de doutorado no sul da França, na Faculdade Protestante de Teologia de Montpellier, e elegi a cidade como minha casa francesa. E voltando à vitrine, eis que vejo Les petites récoltes, vin de Pays de la Cité de Carcassone.

 
Carcassone é uma cidadezinha medieval, murada. Está no sul da França e é aquele lugar de conto de reis e rainhas, magos e fadas. Torres, muralhas, pontes, ruazinhas. E vinho artesanal, lá perto do meu pedaço francês.

 
O rótulo da garrafa escrito à mão, e o preço tão em conta que eu não conto. Senão algum leitor pode duvidar e eu vou ficar mal na estória. Entrei, comprei, saí e me perdi. É isso mesmo, a poucas quadras do hotel, tendo a madame Eiffel como referência visual, me perdi ao tentar voltar a pé. Com le vin de Pays de la Cité de Carcassone numa sacolinha, parece, fiquei dando voltas sem achar o caminho. Três horas dando voltas. Até que me sentindo meio Balaão, um profeta meio louco do testamento hebraico, voltei à conversa que tinha iniciado no avião. É nem um pouquinho, mesmo, não é? Está bem, o Senhor me leva de volta ao hotel, e não pode ser de táxi, porque senão não tem graça. Já estou tri cansado. E eu não vou beber desse cintilante petites récoltes de la Cité de Carcassone.

 
Dito e feito. A cem metros encontrei o metrô. E eu estava, depois de andar tanto, a apenas uma estação de metrô do hotel.

 
Por isso, Tillich diz que o risco da fé não é arbitrariedade: resulta da união do destino com a decisão. Baseia-se num fundamento que não é arriscado: a consciência do elemento incondicional em nós e no mundo. A fé só pode ser justificada e é possível nessa base. Ou, como eu disse no início, isso é surrealismo místico. Ou como nos ensina Troeltsch, o discurso teológico não pode ser apenas o discurso objetivo da fé de uma comunidade cristã. Quando se fala de fé, o teólogo deve estar envolvido, deve se comprometer.

 
E, assim, passei o meu primeiro dia em Paris, nessa temporada francesa, a pão e água. A bem da verdade, baguette e Pérrier. 



Diadorim e Jael para homem nenhum botar defeito



Deu-me uma vontade danada de falar de duas mulheres-guerreiras, que fogem aos parâmetros de gênero colocados pela cultura patriarcal judaico-cristã. A primeira faz parte da literatura brasileira, é Diadorim.

 
De Diadorim, disse Guimarães Rosa, através de Riobaldo, no Grande sertão: veredas -- “montado à baiana, gineta, com estribos curtos e rédea muito ponderada, bridando bem, em seu argel travado, às upas: cavalo bulideiro, cavalo de olhos pretos conforme como a noite”.

 
“Guerreava delicado e terrível nas batalhas. (...) Como era que era: o único homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro”.
 


Mas Diadorim, “que quando ferrava não largava” tinha um inimigo nomeado: Hermógenes. 


“Vigiei Diadorim; ele levantou a cara. Vi como é que olhos podem. Diadorim tinha uma luz. Reponho: em tanto já estava noitinha, escurecendo; aquela escuridão queria mandar os outros embora. O que Diadorim reslumbrava, me lembro de hei-de me lembrar, enquanto Deus dura. Mas, entre nós dois, sem ninguém saber, nem nós mesmos no exato, o que a gente acabava de fazer, entestando nos fundos, definitivamente por morte, era o julgamento do Hermógenes”.

 
“Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse…

 
“Diadorim - nu de tudo. E ela disse: -- A Deus dada. Pobrezinha...”

 
“E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu não contei ao senhor - e mercê peço: -- mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube… Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita… Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d'arma, de coronha…”

 
Para Ana Luiza Martins Costa, quando se lê Grande sertão: veredas, no título está presente a ambigüidade: vereda como caminho e como ausência de caminho, como lugar aprazível e como lugar perigoso, enganador como o demo.

 
Se Diadorim, afirma Martins Costa, possui traços femininos, também reúne em as qualidades masculinas mais valorizadas no mundo jagunço, onde “homem é rosto a rosto: jagunço também: é no quem-com-quem”: a coragem e a ferocidade na luta. Sempre pronto para o combate, Diadorim “se fazia em fúria”, “de pancada”, “ansiando raiva”. 


A segunda mulher-guerreira é Jael e faz parte da literatura hebraica antiga. Dela nos conta Juízes 4.

 
“Porém Sísera fugiu para a barraca de Jael, mulher de Héber, o queneu. Ele fez isso porque Jabim, rei de Hazor, estava em paz com a família de Héber. Jael saiu da barraca para encontrar Sísera e lhe disse: — Entre, meu senhor. Entre na minha barraca. Não tenha medo. Então ele entrou, e Jael o cobriu com um tapete. E Sísera pediu a ela: — Por favor, me dê um pouco de água porque estou com muita sede. Ela abriu um odre de leite e lhe deu de beber. Depois cobriu Sísera de novo. E ele disse: — Fique na porta da barraca e, se alguma pessoa vier e perguntar se há alguém aqui, diga que não”.

 
“Sísera estava muito cansado e caiu num sono profundo. Aí Jael pegou um martelo e uma estaca da barraca, entrou de mansinho e fincou a estaca na cabeça dele, na fonte. A estaca atravessou a cabeça e entrou na terra. E ele morreu. Quando Baraque chegou, perseguindo Sísera, Jael saiu para encontrá-lo e disse: — Venha cá, e eu lhe mostro o homem que você está procurando. Então Baraque foi com ela e encontrou Sísera no chão, morto, com a estaca atravessada na cabeça”.

 
Jael, a cabra selvagem, no século XII a.C. matou Sísera, o chefe das milícias cananéias. Débora, profeta efraimita, disse que Jael era a mais abençoada das mulheres, porque pegou uma estaca numa mão e uma marreta noutra e esmagou a cabeça de Sísera, furou e deixou a cabeça dele em pedaços.

 
É isso mesmo, dançando Débora cantou que Jael foi a mais bem-aventurada das mulheres porque Sísera, o diabo encarnado, isso sou eu quem está dizendo, caiu morto aos pés dela.

 
A história em Juízes 4 fala de uma época violenta, como os sertões das Gerais de Guimarães Rosa. Jael não era efraimita e juntamente com seu homem, Héber, fazia parte de um clã nômade, queneu. Mas por bravura guerreira foi elogiada por Baraque, mor chefe da jagunçada efraimita. E foi bem-vinda no bando.

 
Assim, num momento de dispersão dos clãs hebreus, Débora convocou Baraque e seus guerreiros para lutar. O texto de Juízes 4 mostra a liderança de Débora, assim como a coragem de Jael, em oposição à debilidade de Baraque e a miserabilidade de Sísera. O texto ressalta o papel carismático da profeta ao exortar homens atemorizados e convocar os clãs à união. Essa fé é dançada com gritos de vitória e o ritmo quente da música cananéia-palestina. Mil e trezentos anos depois, na epístola neotestamentária aos Hebreus (11.32), o autor fará menção ao tempo dos juízes, citando Baraque, mas omitindo Débora e Jael. Por que?

 
No que se refere a Diadorim e Jael, é necessário desconstruir as idéias de exclusão da mulher-guerreira e analisar o contexto dos relatos sob uma nova leitura de gênero. Ou como diz Walnice Nogueira Galvão, para se compreender a mulher-guerreira é preciso compará-la: ela não é mãe, nem esposa, nem prostituta, nem feiticeira. Ela é outra e deve ser procurada ali onde não estão as anteriores (p. 34). Assim teremos Diadorim e Jael para homem nenhum botar defeito.

 


A propósito de Tillich



Sem uma relação universal com o humano a noção de chamado profético não é a medida correta para se construir uma teologia. Ou seja, não se pode construir uma teologia apenas sobre o terreno da transcendência. É importante, porém, entender que não existe uma interpretação absoluta do humano, já que a comunidade humana não é uma grandeza estática, mas se realiza de forma dinâmica no ato de existir. Por isso, não se pode subscrever nem a construção de uma teologia absoluta, nem uma construção de tipo racionalista.


Toda compreensão do humano e como conseqüência toda teologia são concretas. Esse humano se situa no kairós, naquele momento determinado, pleno. Sua universalidade comporta riscos concretos. Ele não se move num universal abstrato, separado do tempo e da situação atual. O que é válido tanto para a pessoa, quanto para a teologia.


Exatamente por isso, toda teologia comporta dois aspectos: aquele traz o pensar teologicamente de volta à sua origem, ao fundamento do humano; e outro que indica seu caráter particular, sua inserção na finitude.

 

Assim, a realização do humano deve se orientar em direção a ele próprio, na medida em que essa manifestação de sua origem criativa remete ao que é transcendente. Ela exprime o que lhe próprio, suas solidariedades no plano formal e sua finitude. Por isso, a teologia transporta ao transcendente e à vida, que em última instância são o bem decisivo de nossa existência concreta.


Dessa maneira, posicionar-se por uma teologia que parte do humano é posicionar-se por uma teologia da vida. E tal compreensão leva ao desenvolvimento criativo e estratégico deste humano enquanto vida que brota na história, criadora do novo.


A chamada a um posicionamento capaz de julgar e transformar, de resistência à barbárie, deve levar à necessidade de elaborar uma mensagem para o mundo simples. Mensagem de esperança. Nesse contexto, as pessoas têm autonomia, mas estão inseguras na sua autonomia. Isto leva as religiões à tentativa de emancipá-las da autonomia através da submissão à hierarquia e à tradição. Mas não podemos esquecer que na autonomia algo já foi experimentado, e esta é uma experiência que une aquele que protesta àqueles com autonomia secular.


O conceito de situação-limite, que se traduz como ameaça final à existência, é o diferencial do protestantismo. Esse conceito nasceu em torno da leitura da justificação pela fé, já que a vida em liberdade significa a aceitação da incondicionalidade de se realizar a verdade e fazer o bem. No reconhecimento da existência da situação-limite está a diferença entre as religiões que profetizam a favor da hierarquia e da tradição e o princípio protestante. A justificação pela fé é, então, entendida a partir da situação-limite.


Na verdade, o cristianismo tem mais afinidades com determinadas formas de organização social, porque a teologia leva a uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. A teologia condena o egoísmo internacional da força, que justifica a violência e a guerra sobre continentes, nações e povos, prega a submissão das nações, ricas ou  pobres, propõe a construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a um internacionalismo real entre as nacionalidades.


Muitos dirão que eliminar o egoísmo como forma de estímulo diminuirá o desenvolvimento e reduzirá a produção. A partir da teologia, vemos que a pessoa não existe para a produção, mas esta supre necessidades e, por isso, o objetivo não é a produção da maior quantidade possível de bens para uma classe em particular, mas a produção de bens necessários à vida para o maior número de pessoas.


O princípio da crítica e das ações protestantes leva a uma teologia não limitada ao sujeito, mas que se realiza na comunidade e, em última instância, na massa orgânica. É a partir desse ponto de vista universal, da teologia do humano, que remete ao finito, mas também ao incondicional , que se operam o protesto e a transformação. 


Autonomia e protestantismo são processos históricos que se complementam, mas que não são idênticos. O processo de autonomia vivido pela sociedade européia no período que se abriu a partir do Iluminismo, e que pôs em xeque a tradição e o autoritarismo, serviu de base para a ação protestante.


A autonomia é o momento supremo da razão e da imanência, e é a partir daí que o protestantismo construiu um sentimento unitário da vida e do mundo, embora sua originalidade não se limite aos conceitos, mas à experiência. 


Não devemos entender o protestantismo como confissão exclusiva, mas como brotar de fé que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé é hostil aos domínios que se colocam como senhores da vida e da morte. Nesse sentido, é uma experiência da profundidade última e a supressão do em cima absoluto e do embaixo relativo.


O espírito que move os movimentos da contracultura traduz uma vibração de graça e fé que circula nas massas, e não deve ser negado pelo protestantismo, ao contrário, é a partir daí que o protestantismo pode fecundar a autonomia dos movimentos das comunidades.  


Estes são os fundamentos de uma unidade entre o protestantismo e os movimentos das comunidades no Brasil, que deve ser mais que uma associação, que pode traduzir um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. 


Mas há limitações na utopia da contracultura. A utopia quer realizar a eternidade no tempo, mas esquece que o transcendente abala o tempo e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. O neoliberalismo no terceiro mundo, em grande parte, é o resultado da utopia desencantada.


É aí que entra o kairós, enquanto idéia que nasce da discussão com a utopia. O kairós comporta a irrupção da eternidade no tempo, o caráter decisivo desse instante histórico enquanto destino. Mas tem a consciência de que não pode existir um estado de eternidade no tempo, a consciência de que o eterno é, em sua humanidade, aquele que faz a irrupção no tempo sem, contudo, fixar-se nele.


Assim, a realização da visão profética se encontra além do tempo, lá onde a esperança utópica pode desaparecer, mas não a sua ação. 


A resistência à barbárie é tarefa protestante, que deve elaborar uma mensagem consciente, de esperança. Nesse contexto, o princípio protestante envolve um julgamento e relaciona este julgamento com a situação humana inteira, não deixando de lado nenhum aspecto da existência. Nesse sentido, crítica e necessidade de transformação levam, nesta contemporaneidade, ao princípio protestante. O que fica óbvio, em situações-limite, que ameaçam a vida. Para o princípio protestante, a situação dos trabalhadores não é algo opcional, que podemos considerar ou não. 


Metodologicamente, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na crítica protestante um choque entre esse kairós e a utopia. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais que encarne o protestantismo. O sujeito da transformação será, em última instância, a massa.


A imediaticidade da massa faz com que desabroche nela movimentos que estavam inibidos no indivíduo, o que traz à tona um princípio imediato: a disponibilidade à compreensão do momento presente. Essa imediaticidade é o que leva a massa a ações destruidoras ou à novidade criadora. 


Ao lado da imediaticidade, os aspectos emocionais e intelectuais são amplificados. As forças do entusiasmo e da coragem são amplificadas de tal modo que podem levá-la ao sacrifício e à destruição. A massa se eleva acima das consciências individuais com intuições simples, mas com clarividência. Este processo prepara a construção de um novo momento presente. Quando a massa vive esse processo, religião e cultura se misturam, e ela se torna massa mística.


Assim, o movimento da massa torna-se dinâmico, indo da mecanicidade da industrialização em direção à transformação da sociedade, em direção à sua própria libertação. O movimento dinâmico da massa parte da massa mecânica, já existente ou em vias de aparecer, e visa a supressão da massa, visa à massa orgânica.


Temos aqui uma compreensão diferente daquela de Gramsci, que entende a vanguarda enquanto intelectualidade orgânica, mas não vê a massa em processo dinâmico que pode levar ao surgimento de uma massa orgânica. Por isso, a crítica protestante não se limita ao protestante ou ao intelectual, é um processo maior que tem na massa orgânica uma tripla ação, de protesto contra o arbítrio e a opressão, de liderança social e de transformação da situação-limite.  


Ao lado da desconfiança e da resistência há um desejo de governar de outro modo, que se situa na atitude protestante. Temos como pontos de ancoragem o retorno aos clássicos da contracultura, a invocação do direito contra a presença do arbítrio e o raciocínio científico contra o peso da autoridade. É certo que esse protesto faz prevalecer um universal contra um sistema de exclusão particular, mas o faz no interior de um dispositivo que liga estreitamente tempo presente e kairós. 


O protestar e o clamor não são vida, mas visam restaurar a vida sob ameaça na situação-limite. A luta contra o arbítrio localiza-se nas fronteiras desse próprio arbítrio. Assim, a ética se constrói no nível material do tempo presente, no confronto das relações de domínio e pessoalidades. 


A partir dessas relações de domínio se dá a passagem do campo estratégico de forças sem sujeitos em direção à razão transformadora da massa orgânica. Mas, será que a transformação social, que se dá como síntese de uma ação violenta, num primeiro momento, para depois passar a ação construtiva, tem um componente que não é instrumental, mas mediações de nível prático?


Se a estratégia de formação de uma comunidade política de trabalhadores, de massas, visa chegar a um fim exitoso é preciso perguntar se esse fim é uma mediação ou um fim. Ou, em outras palavras, quem é este sujeito das transformações e como se articula o intelectual com este sujeito histórico? 


A formação de uma comunidade política de massas como estratégia apoia-se na fórmula de que a contracultura não está ligada à organização dos trabalhadores, mas que eles próprios, os trabalhadores, são movimento que dialeticamente se confronta no dia-a-dia da vida com a sociedade de classes. Assim, o sujeito de todo movimento de contracultura é a massa orgânica ou consciência ilustrada, o povo filósofo do jovem Marx. 


O intelectual, por vir de uma classe estranha ao proletariado, adere à contracultura não por sentimentos de classe, mas por superação. Por isso, está mais exposto às oscilações oportunistas do que a massa orgânica, o proletariado ilustrado, elite e vanguarda do proletariado. Essa massa orgânica não perde o vínculo com o chão materno e encontra em seu instinto de classe um apoio mais seguro. Ora, a massa orgânica não é apenas uma massa que protesta, que simplesmente procura realizar os fins que as táticas e as circunstâncias impõem. Seu êxito é uma possibilidade, mas sempre traduz a teologia proposta. Assim, quando se trata de libertar os excluídos, o êxito dependerá de suas condições de possibilidade, ou seja, será impossível separar kairós e utopia.


A teologia deve integrar os princípios enunciados na escolha de fins, a estratégia; os meios, a tática; os métodos, os modos de organização, que devem levar ao princípio do protesto histórico de transformação. 


Se entendermos o conceito de massa enquanto movimento que caminha através do princípio da crítica e da ação transformadora, é fácil ver que chegado um determinado momento os trabalhadores reivindicariam a formação de um partido próprio. É o dinamismo revolucionário, já que o entusiasmo dessa massa dinâmica faz dela veículo do destino. E onde entra aí a questão da revolução? O discurso teológico é o elemento fundante da transformação prática, isso leva, no sentido estrito, a uma teologia de transformação não reformista, à transformação plena. Mas, a transformação caminha sempre sobre o fio da navalha: de um lado está o anarquismo contrário à unidade da massa orgânica e de outro o reformismo pró-integração. Por isso, estratégia e tática devem partir de critérios definidos e de um princípio teológico geral que possibilitem cumprir às mediações existentes.


Os fins estratégicos devem ser enquadrados dentro desses princípios teológicos gerais, a fim de que, com factibilidade, se possam negar as causas da negação dos excluídos. Esse é um momento negativo do protesto, onde os meios deveriam ser proporcionais àqueles contra os quais o protesto era feito. Mas se por um lado o protesto traduz uma ação desconstrutiva, por outro promove transformações construtivas. Leva a uma nova ordem com base num programa planejado que é realizado progressivamente, mas nunca totalmente. O kairós confronta a utopia e a fecunda, transformando-a em utopia possível.


Cabe ao intelectual enquanto pessoa levantar a teologia como protesto negativo diante de uma sociedade que vive uma situação-limite. A esse intelectual cabe a co-responsabilidade solidária, que parte do critério vida versus morte. Sem dúvida, o intelectual é desafiado a caminhar com dignidade na senda fronteiriça, entre os abismos da cínica irresponsabilidade diante dos excluídos e da paranóia fundamentalista.


Tal visão abre perspectivas para a compreensão da teologia e a análise de diferentes situações históricas – pode e deve lançar luzes sobre nossas críticas e ações diante do quadro político que temos pela frente.



Sobre o não-ser para viver o ser



Compreendi que não há nada melhor do que a gente ter prazer naquilo que faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-ser? – perguntou Qohélet.

 
Qoh procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a morte e a vida. E procurou refúgio na sofia grega. O texto hebraico de Qohélet, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, e se apresentou com a apodadura de Salomão.

 
Qoh procurou entender o ser e o não-ser – aquilo que está fora, além da existência – no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

 

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-ser, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do ser. Qohélet – em português Eclesiastes e, segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe – de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da morte e da vida e nos levou a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência – terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. Qoh numa abordagem existencial discute o ser, sua integralidade e potencialidades.

 
Mas ele não foi o único a pensar a não-existência e a existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se existisse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, em formulação matemática (pv¬p)v(p^¬p), a proposição “pv-p” é verdadeira. Mas “v” é verdadeiro se e somente se “p” for verdadeiro. Na lógica proposicional do filósofo pré-socrático temos, então, a negação de “p”. Donde, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento.

 
É interessante que Qoh apresentou o não-ser, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também vão ser esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos seremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.

 
Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

 
A consciência do não-ser remete ao sentido do ser. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: não dá para dizer que algo existe; se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros. 


Já o argumento de Qoh, a partir do não-ser, afirma o sentido do ser, único conhecido. A negação do não-ser de Qoh expressa o desejo de ser em abundância, enquanto está, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O ser existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do ser, a intensidade das ações do ser do que ficar na espera do não-ser. Assim, quando o não-ser sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter sido plenamente, com intensidade, de forma abundante.

 
E, por isso, Qoh nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça desse mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-ser é nada e no nada nada se faz, e no não-ser não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do ser, vamos repousar no nada.

 
O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada ser na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-ser não é uma fratura do tempo, é tempo da história. Qoh não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão de Qoh é que temos de ser no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-ser.

 


Dá para ver o caminho?



O velho protestantismo está cada vez mais distanciado dos novos movimentos de lastro cristão. Não se pode mais ignorar as significativas diferenças que há entre eles, sob pena de cometer equívocos nos resultados das pesquisas. O pesquisador atual não pode furtar-se ao, às vezes, penoso labor de precisar classificações e conceitos. É preciso que distinga bem, ao estudar qualquer novo movimento religioso, o limite exato em que o velho protestantismo deixa de estar presente. Quando seus princípios básicos de liberdade – a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes – não estiverem presentes ou se apresentarem obscurecidos por outras práticas religiosas, não há mais protestantismo”. Antonio Gouvêa Mendonça. 


A academia em suas análises sobre o fenômeno evangélico brasileiro na alta-modernidade urbana criou três lugares comuns: mercado, trânsito religioso e fundamentalismo. Na verdade, essa leitura reducionista da realidade traduz um defeito que nasce de suas bases teóricas de análise, fundamentadas sobre os “trois petits cochons” da sociologia: Marx, Durkheim e Weber. É a partir dessa trindade que nossos estudiosos se debruçam sobre o fenômeno religioso. Esses três pensadores das ciências sociais, por mais importantes, tinham em comum um ponto de partida no mínimo questionável: a idéia de que a religião é sempre conseqüência, resultante de fenômenos ou situações sociais e nunca fenômeno fundante, embora relacional com contexto cultural de época, situação e geografia. 


Quando o fenômeno evangélico explodiu no Brasil, a partir dos anos 1950, a sociologia brasileira encontrava-se desarmada para analisar e entender o que estava a acontecer. Isto porque suas bases situavam-se nos séculos dezoito e dezenove. É verdade que grandes processos de revolução religiosa já tinham acontecido no mundo moderno, a começar pela Reforma na Europa, com seus desdobramentos continentais nos Estados Unidos. Isso só para falar do movimento protestante no Ocidente. 


Mas conhecemos as dificuldades de Marx para entender o fenômeno religioso como fundante e criador de contextos e novas relações dentro de determinada sociedade. Durkheim embora caminhe no sentido de entender estruturalmente o fenômeno religioso, construindo conceitos e parâmetros a partir das religiões antigas, ditas primitivas, e não monoteístas, formata leituras que até hoje são recitadas como compreensões definitivas sobre o fenômeno religioso, as estruturas dessas instituições e a relação entre líderes e fiéis. 


Depois que o pensamento marxiano entrou em crise, fato marcado nas universidades européias, Weber foi tirado do ostracismo e passou a ser reverenciado, assim como todo o historicismo alemão. Ora, se partimos daqueles que influenciaram o historicismo de Weber, em especial Ritschl e Troeltsch, vemos que eles consideravam o fenômeno religioso que estudavam típico ao Ocidente e, mais ainda, europeu. Dessa maneira, Weber entendeu o calvinismo como base para a expansão do capitalismo nos Estados Unidos, principalmente. 


O que poderia fazer a sociologia brasileira diante da explosão do fenômeno evangélico no Brasil a partir dos anos 1950? Ora, voltar aos pais da sociologia. E assim foi. E assim é. E a explosão do fenômeno evangélico passou a ser olhada como efeito de causas como a migração, a urbanização e a ruptura com a estrutura agrária e patriarcal. 


Mas, com a débâcle do marxismo, nos anos 1980, e o boom neoliberal que varreu o mundo, a sociologia trouxe o neoliberalismo travestido de espírito crítico para dentro da casa e passou a ver o fenômeno evangélico no Brasil apenas como um subproduto do mercado capitalista. 


Donde, as idéias de mercado e seus componentes se transformaram em conceitos da sociologia e instrumentos de análise para o fenômeno religioso. Vendo dessa maneira o fenômeno evangélico, a sociologia reduziu o fenômeno, jogou fora todas as experiências anteriores que ajudaram a construir o Ocidente protestante e criou outro conceito, o de trânsito religioso. E tudo que passou a acontecer no Brasil virou trânsito religioso. Mas, e antes em outras regiões do planeta? Foi o trânsito religioso que mudou a cara da Alemanha, dos países nórdicos ou mesmo da Inglaterra e Estados Unidos?


Porque lá podemos utilizar o conceito de conversão trabalhado por Weber e por que não aqui? Sabemos, claro que sabemos, que as condições são diferentes. Mas, em relação ao fenômeno evangélico brasileiro duas componentes dificultam a análise: o preconceito diante de algo que impacta e desnorteia o mundo acadêmico e a limitação de suas bases teóricas. 


Definidos assim os limites necessários, afirmamos a importância de Marx, Durkheim e Weber para a sociologia e para todos aqueles que se dedicam ao estudo da religião. Agora, no entanto, queremos utilizar como referencial um trabalho de Paul Tillich, Teologia da Cultura. Desejamos, dessa maneira, a partir da teologia da cultura, analisar a relação entre evangelicalismo, urbanização e a busca por fundamentos, e construir uma leitura própria dos caminhos transitados pelo evangelicalismo urbano brasileiro, em suas diferentes formas. Mas também, aqui neste transposto, vamos caminhar com Orlando, que vencido por Medoro na luta pelo amor de Angélica, é tomado pela loucura, segundo relata Ludovico Ariosto (1474-1533) no poema épico Orlando Furioso, em tradução de Pedro Garcez Ghirardi.

 

Cansado cai, e aflito, no
relvado,
Fita os olhos nas nuvens, e
emudece.
Sem dormir, sem comer, fica
parado
Enquanto o sol três vezes
sobe e desce.


Uma das questões que nos perguntamos quando relacionamos cidade e religião é se, de fato, o evangelicalismo outorga sentido às massas urbanas. Na verdade, podemos dizer que o ser humano é um ser potencialmente espiritual, e que essa espiritualidade pode se expressar de várias formas, mas que a religião no mundo urbano, nos grandes centros brasileiros, ocupa um espaço privilegiado enquanto tradução dessa espiritualidade, isso é verdade. Ora, a espiritualidade é a dimensão da profundidade do espírito humano, busca do sentido da vida, e no mundo urbano brasileiro essa busca, por vários fatores, é incrementada e direcionada ao evangelicalismo. Basta ver que no Brasil urbano a igreja evangélica cresceu cerca de 250%, dados de 2009, nos últimos dez anos. Assim, se a população brasileira urbana é religiosa, essa religiosidade é catalisada pelo permanente processo de evangelização protestante dos últimos cento e cinquenta anos.

 

Que a espiritualidade traduzida nas religiões das cidades da alta modernidade está presente em todas as ações do espírito humano, na ética, na estética, no conhecimento, isso é fato registrado pelas ciências da religião e pela teologia. Por isso, quando na cidade alguém conscientemente rejeita a religião, ou seja, se diz agnóstico ou ateu em nome de uma ética, de uma estética, ou por causa da busca de conhecimento, está a rejeitar a religião em nome da religião. Isto porque ela é o fundamento, a profundidade e a substância da vida espiritual do ser humano.


De forma geral, numa leitura antropológica cristã, podemos dizer que espiritualidade é aquela relação da pessoa com a transcendência. Nesse sentido, a espiritualidade é a totalidade da vida. A religião, por sua vez, traduz a dimensão dessa espiritualidade. Por exemplo, quando multidões assistiram ao filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e foram despertadas, cada qual à sua maneira, para a miserabilidade humana, temos aí uma expressão da espiritualidade. As experiências humanas com o que é sagrado envolvem escolha, disciplina e prática e levam o ser humano às experiências religiosas, porque a religião traduz o que é sagrado para a vida da pessoa. Dessa forma, a espiritualidade sempre será traduzida em religiosidade, mas na globalidade de forma mais contundente enquanto fenômeno urbano.


Em relação à realidade brasileira percebemos no cristianismo mais diversidade confessional do que religiosa. Oitenta e nove por cento dos brasileiros confessam ser cristãos, e esta espiritualidade está presente no desejo de justiça social e solidariedade. Diante dessa espiritualidade cristã diversificada, podemos dizer que quase todos os brasileiros são cristãos em alguma medida. Tomemos como exemplo a igreja católica, que não pode ser analisada como uma, pois abriga diferentes manifestações de religiosidade. Além dessa pluralidade católica, há centenas de igrejas protestantes/ evangélicas que incluem as históricas de migração e missão, as pentecostais históricas e as neopentecostais.


A dor aguda o deixa
exasperado
E tanto vai crescendo, que o
enlouquece.


Em razão disso podemos dizer que enquanto fenômeno urbano o evangelicalismo é fator de agregação e desagregação. Podemos, até explicitar essa dualidade com um exemplo recente. Durante os anos da ditadura militar no Brasil, algumas igrejas e denominações apoiaram o governo militar, a repressão, e tivemos até casos de torturadores protestantes e evangélicos, membros de igrejas importantes. Assim, o evangelicalismo é desagregador quando se liga à corrupção, ao clientelismo e às benesses. Mas agrega quando defende a vida humana. Com isso, constatamos que o evangelicalismo pode ser uma coisa ou outra ou mesmo, dialeticamente, ambas.


Essas são marcas da história protestante/evangélica recente. Mas, é claro que seria um erro uniformizar a atuação dos protestantes e evangélicos no período dos governos militares, até mesmo porque protestantes foram torturados. O certo é que pessoas, em nome da agregação, do fanatismo e de preconceitos, foram cúmplices de torturas e mortes. 


Ao quarto dia, o furor dele
se apossa,
Couraça e malha em fúria
ele destroça.



O universo na mística judaica – I



Aos olhos de Hitler e de seus fiéis, conforme descreve Raphaël Draï, existia um perigoso pensamento judaico, caracterizado por sua essência maléfica, inspiradora da física de Einstein, da literatura de Kafka, da música de Schoenberg e da psicanálise de Freud. [La Pensée Juive et L’Interrogation Divine, Exégèse et Épistémologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1966, p.1].

 
Deixando de lado os delírios hitlerianos, podemos dizer que há um criativo pensamento judaico que, através dos séculos, soube combinar Torah e conhecimento, ética e epistemologia. Nosso propósito é, numa primeira aproximação, mostrar que os estudos judaicos dos conteúdos de Gênesis Um produziram uma epistemologia que interliga o conceito espaço/tempo em Gênesis Um com a teoria da relatividade. Essa dialética tem especial importância para a teologia, já que a partir dela podemos entender melhor a literalidade poética de Gênesis Um.

 
“No começar Deus criando o fogoágua e a terra./ E a terra era lodo torvo e a treva sobre o rosto do abismo/ E o sopro-Deus revoa sobre o rosto da água”. [Augusto de Campos, Bere’shith, A Cena da Origem, São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 45].

 
O desafio maior para quem analisa significações é o próprio exercício da leitura. O desejo de conservar a linguagem pode levar a uma solução oposta àquela se pretende. Considerar o simbólico como abstrato e irrelevante é, em última instância, separar signo e objeto. Assim quando um texto passa a ser apenas e somente um conjunto fechado costumamos dizer que compreendemos o referido texto. Mas ao fazer isso, na verdade, eliminamos a possibilidade de restaurar sua intenção original e de ultrapassar a literalidade para captar o sentido primeiro de seu autor. Logicamente, esse midrash tem como ponto de partida, e exige como garantia, a compreensão do primeiro discurso.

 
Em novembro de 1942, o poeta e crítico Ezra Pound afirmava que “o mistério profundo da vida é descobrir porque os outros não compreendem aquilo que se escreve e diz. A coisa parece simples e clara ao escritor, mas outros o tomam em sentido diferente. E se gastam anos para saber porque e como” [Ezra Pound, Lettere 1907-1958, Milão, Feltrinelli Editore, 1980, p. 7].

 
Logicamente, como autor e crítico, Pound falava de hermenêutica em seu sentido laico. Ou seja, quando um texto pode ser percorrido em sua literalidade, e a partir daí é possível arrancar do discurso poético os elementos lógicos que lhe deram constituição. Mas mesmo assim, como alerta Pound, isso pode transformar-se em tarefa de anos.

 
Interpretar um texto considerado revelado, quando há um processo constante de interação dele com suas interpretações, arrancar dele significações é um desafio que não se resume à vida de uma pessoa ou a um curto período de anos. É nosso pressuposto que Gênesis Um enquanto palavra/ordem do Eterno apresenta mais receptáculos do que é perceptível na leitura de toda uma geração. Aqui há uma dialeticidade que permanece no equilíbrio de seus contrários, sem síntese definitiva: a revelação, essa interação do texto com suas interpretações, dá-se através da linguagem humana. Nossa necessidade histórica de interpretar nasce daí, dessa inadequação entre significante e significado.

 
“A tarefa do intérprete consiste, pois, na explicitação da mensagem divina, através do raciocínio bem dirigido. As conclusões a que se chega nada acrescentam ao significado do texto, pois já estavam contidas ali desde sempre; embora para ele sejam novas, uma vez que diferem do que está escrito, em si mesmas não o são, porque estavam gravadas no subsolo do texto que se interpretou. Contudo, sendo a Bíblia obra de um ser infinito, as interpretações jamais se esgotam. Cada novo corte no texto aprofunda o seu sentido, mas é sempre possível avançar mais. Elas se sucedem através do tempo, porém, por mais surpreendentes que pareçam, têm a garantia de se situarem no mesmo campo inicial”. [Renato Mezan, Freud: A Trama dos Conceitos, São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 342].

 
Por isso, parto do pressuposto de que a Judische kopf nos últimos 1.900 anos apresentou uma hermenêutica bastante criativa de Gênesis Um. Esse midrash não ficou restrito aos círculos rabínicos, mas fez parte da tradição e da cultura do judaísmo através dos séculos. Escritores, artistas e cientistas judeus utilizaram esses conhecimentos em seus campos de trabalho. Einstein conhecia essas fontes, em parte desconhecidas para o mundo cristão, mas ricas e cheias de significados para todo intelectual judeu. Por isso, esta releitura da teoria do caos tem como roteiro a cosmogonia judaica e as idéias centrais da teoria da relatividade.

 
Albert Einstein era judeu. Foi um sionista militante durante toda sua vida, a ponto de em 1952 lhe ser oferecida a presidência de Israel. Não aceitou. Estava casado com a física. “As equações são mais importantes para mim porque a política é feita para o presente, ao passo que uma equação é algo para toda a eternidade”. [Stephen W. Hawking, Uma Breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 240-241].

 
O tzimtzum

 
O judaísmo mostrou uma coerência em relação à hermenêutica de Gênesis Um. O retrair-se do Eterno para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo, é desenvolvido na teoria da contração, em hebraico tzimtzum. Essa teoria formalizada pelo Rebe Luria (1534-1572) é uma das concepções mais surpreendentes do pensamento judaico. Isaac Luria, um dos maiores expoentes da tradição mística do judaísmo, nasceu no Cairo, mas desenvolveu seu ministério em Safed, na Palestina.

 
A expressão tzimtzum significa originariamente concentração, mas acabou sendo entendida como retirada. Segundo Scholem, Luria partiu de textos do Midrash, onde encontramos que o Eterno concentrou sua Shekiná, sua presença no Santo dos Santos, Assim todo seu poder retraiu-se num único ponto. Foi daí que surgiu a expressão tzimtzum. [Exod Raba ao Êx 25.10, Lev. Raba ao Lv 23.24; Pessikta de Rab Kahana, Ed. Buber 20a; Midrasch Schir Ha-Schidim, Ed. Griinhut, 1899, f. 15b, apud Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 263].

 
Infelizmente, as duas idéias, concentração e retirada, que deveriam ser entendidas como complementares, já que o Eterno se retira e então concentra a sua luz sobre este ponto, dividiu os estudiosos em dois grandes grupos: os que defendem o tzimtzum como base para a doutrina da creatio ex nihilo e também para aqueles que defendem a doutrina da emanação (em hebraico atsilu) ou processio Dei ad extra


O próprio Luria torna-se o principal expositor do processio Dei ad extra, que tem por base não um processo no tempo, mas uma estrutura da realidade, enquanto emanação, criação, formação e ação. Assim, para Luria e seus discípulos, níveis inferiores de realidade emanaram de níveis superiores que, por sua vez, tiveram origem no Eterno. Dentro dessa concepção há um midrash, a teoria do vaso quebrado, que trabalha com a hipótese de que o mundo foi feito de remanescentes de mundos anteriores, que o Eterno havia destruído. Uma conhecida lenda rabínica explica esse processo como o desprender de uma chama de carvão da roupa do Eterno. 


“No princípio (Gênesis 1.1), a vontade do Rei começou a gravar signos na esfera superior. Do recesso mais oculto, uma negra chama brotou do mistério do ein sof, o Infinito, como um novelinho de massa informe, como que inserido no aro dessa esfera, nem branca nem preta, nem vermelha nem verde, de nenhuma cor. Somente depois de distender-se como um fio, produziu ela cores para luzir em si. Do âmago da chama, jorrou uma fonte da qual brotaram cores e se espalharam sobre tudo embaixo, oculto na ocultação mais misteriosa do ein sof. Mal rompeu ela, inteiramente irreconhecível, seu círculo de éter, sob o impacto da irrupção, um ponto oculto, superno fulgiu da irrupção final. Aquém desse ponto está excluído todo conhecimento e por isso ele é chamado reschit, princípio, a primeira palavra do Todo” . [O Princípio, Sefer ha-Zohar (Livro do Esplendor), apud J. Guinsburg, Do Estudo e da Oração, SP, Perspectiva, 1968, p. 605].

 
Apesar de sua riqueza teológica, podemos classificar a doutrina da emanação como um evolucionismo teísta, que define o mundo material como o desdobramento do Eterno em diferentes níveis. E porque o mundo existe dentro do Eterno, o processio Dei ad extra leva à pergunta pelo que existe de divino nos fenômenos do cotidiano.

 
Se entendermos, porém, a teoria do tzimtzum, como a relação dialética de dois movimentos, o da retirada e o da concentração ficará mais fácil aproveitar os estudos de Luria. O tzimtzum explica o recuo do Eterno para permitir que surgisse o vazio, o nada, e nele o universo. Como o Eterno é infinito, sem o tzimtzum não haveria o nada no qual pudesse produzir a estrutura espaço/tempo de uma criação separada.

 
É interessante notar, que se por um lado a dialética da autocontração e concentração divinas deu origem ao mundo material, o choque entre o movimento restritivo e o transbordante amor do eterno criou também a possibilidade do mal. Nesse sentido, a cosmogonia judaica vê o surgimento do universo em primeiro lugar como consciente autolimitação e na seqüência como revelação e julgamento. E como julgamento é a imposição de limites, julgamento faz parte da revelação, que se expressa pela primeira vez como criação do Eterno. Em outras palavras: se o mal é uma probabilidade que surge da dialética amor/ retração, o julgamento passa a ser inerente a tudo na criação, já que todas as coisas estão determinadas por seus limites.

 
A tradição do debate sobre a creatio ex nihilo é antiga no pensamento judaico. Na verdade, podemos dizer que começa a ser realizada no segundo século. Por isso, não é de estranhar que encontremos reflexões profundas sobre Gênesis Um nos séculos posteriores. Assim, em um dos textos mais representativos do pensamento caraíta, movimento medieval de retorno à letra da Escritura, considerado por muitos um protestantismo judeu de coloração pietista, a “Explanação dos Mandamentos”, de Aha Nissi ben Noah de Bassorá, que ensinou em Jerusalém na segunda metade do século IX, lemos:

“No primeiro dia, Deus criou sete coisas: o céu, a terra, as trevas, a luz, a água, o abismo e o vento (Gn.1:1-12). Primeiro criou tohu e bohu (a solidão e o caos), dos quais surgiu a terra (Gn.1:1-2). Criou as trevas: ‘Ele formou a luz e criou as trevas’ (Isaías 45:6). Criou o vento, conforme a palavra: ‘e criou o vento’. Criou a água, pois com a criação da terra havia água. Criou o abismo, para que a água tivesse uma profundidade e uma submersão. Criou a luz (Gn.1.3). Para a criação do mundo foram necessárias quatro coisas: a ordem, o trabalho, a determinação e a proclamação” [Nissi ben Noach, Explanação dos Mandamentos, apud J. Guinsburg, op. cit., p.309].

 
Nesse texto aparentemente tão simples, encontramos uma idéia fundamental: tohu (sem forma) e bohu (vazio) fazem parte da criação e para que haja criação é necessário ordem.

Outro pensador judeu, que fez oposição ao pensamento caraíta, foi Saadia Gaon (892-942). Influenciado pela efervescente teologia do Islã e pelo pensamento helenístico clássico, Gaon combateu a presença heterodoxa, de tendência maniqueísta, os remanescentes de Filo e a crítica gnóstica. Seu texto sobre a doutrina da creatio ex nihilo é de uma profunda beleza, apesar de apresentar imperfeições normais ao conhecimento da época, como, por exemplo, sua visão geocêntrica. Mas, de forma brilhante enfrenta opositores bem parecidos aos que encontramos hoje em dia.

 
“Aqueles que acreditam na eternidade do mundo procuram provar a existência de algo que não tem começo nem fim. Por certo, nunca depararam com uma coisa que percebessem, pelos sentidos, sem ser começo nem fim, mas procuram estabelecer sua teoria por meio de postulados da razão. Semelhantemente, os dualistas empenham-se em provar a coexistência de dois princípios separados e opostos, cuja mistura fez que o mundo viesse a ser. Sem dúvida, nunca testemunharam dois princípios separados e opostos, nem o pretenso processo da mistura, mas tentaram suscitar argumentos derivados da razão pura em favor de sua teoria. De maneira similar aqueles que acreditam numa matéria eterna consideram-na como um hilo, isto é, algo em que não há originalmente qualidade de quente ou frio, de úmido ou seco, mas que se transforma por uma determinada força e assim produz aquelas quatro qualidades. Indubitavelmente, seus sentidos nunca perceberam uma coisa carente de todas essas quatro quantidades, nem jamais perceberam um processo de transformação e a geração das quatro qualidades como é sugerido. (...) Assim sendo, é claro que todos concordam em admitir alguma opinião concernente à origem do mundo que não tem base na percepção sensorial” . [Saadia Gaon, Criação Ex-Nihilo apud J. Guinsburg, idem, op. cit., p. 316].

 
Para sua defesa da criação ex-nihilo, Gaon trabalhou com quatro argumentos, três dos quais muito bem expostos: de finitude do universo, estrutura e acidentalidade.

 
“Continuou a afirmar que nosso Senhor, louvado e enaltecido seja, informou-nos que todas as coisas foram criadas no tempo, e que Ele as criou do nada (...). Ele nos comprovou essa verdade por meio de sinais e milagres, e nós a aceitamos. Examino ainda mais nesta matéria com o intuito de saber se ela podia ser comprovada por especulação como foi comprovada por profecia. Achei que era este o caso por certo número de razões, da quais, devido à brevidade, selecionei as quatro seguintes: 1. A primeira prova baseia-se no caráter finito do universo (...). 2. A segunda prova é derivada da união de partes e da composição de segmentos. Vi que os corpos consistem de partes combinadas e de segmentos ajustados entre si (...). 3. A terceira prova baseia-se na natureza dos acidentes. Verifiquei que nenhum dos corpos são desprovidos de acidentes que os afetem direta ou indiretamente. Animais, por exemplo, são gerados, crescem até que alcançam sua maturidade, então, definham e se decompõem. Então eu disse a mim mesmo: Será que a terra como um todo é livre destes acidentes? (...) 4. A quarta prova baseia-se na natureza do tempo. Sei que o tempo é triplo: passado, presente, futuro. Embora o presente seja menor do que qualquer instante, tomo o instante como se toma um ponto e digo: Se um homem tentasse em seu pensamento ascender deste ponto no tempo ao ponto mais elevado, ser-lhe-ia impossível fazê-lo, porquanto o tempo é agora admitido como infinito e é impossível ao pensamento penetrar no ponto mais remoto daquilo que é infinito.” [Saadia Gaon, Quatro Argumentos para a Criação, idem, op. cit., pp. 317-320].

 
De todos os pensadores judeus medievais, talvez o mais conhecido fora dos meios judaicos, seja o talmudista francês Shlomo bar Itzhak, o rabi Rashi de Troyes (1040-1105). Exegeta, Rashi apresentou uma tradução para o versículo um de Gênesis que leva em conta estrutura e acidentalidade: “No princípio, ao criar Deus os céus e a terra, a terra era vã...” E segundo seu midrash, o texto não está preocupado em mostrar a ordem do surgimento do universo, mas em afirmar o ato criador do Eterno. Rashi mostrou-se preocupado com o sentido literal, mas definiu claramente sua hermenêutica:

 
“Todo texto se divide em muitos significados, mas, afinal nenhum texto está destituído de seu sentido literal” [Herman Hailperin, Rashi and the Christian Scholars, Pittsburgh, University of Pittsburgh Press, 1963].

 


O universo na mística judaica – II 



Para os rabinos expositores da criação ex nihilo (a partir do nada), assim como para os defensores do processio Dei ad extra (processo dentro do Eterno) a intenção primeira de Gênesis-Um é apresentar o Eterno como criador, que utiliza tohu e bohu (sem forma e vazio, o caos) como matéria-prima para a formação do universo. E é a partir dessa relação entre surgimento do universo e revelação, que os estudiosos judeus entenderão a redenção, já que o estágio final do mundo revelado significa uma volta ao começo, uma nova criação.

 
A Redenção deveria ser conseguida não por um movimento tempestuoso na tentativa de apressar crises e catástrofes históricas, mas antes pela remarcação do caminho que conduz aos primórdios da Criação e da Revelação, ao ponto em que o processo do mundo (a história do universo e de Deus) principiou-se a desenvolver-se dentro de um sistema de leis. Aquele que conhecia a senda pela qual viera podia ter esperanças eventualmente de poder retornar sobre seus passos”. [Gershom Scholem, A Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p. 248].

 
Assim, mais do que qualquer intencionalidade em apresentar a cronologia do surgimento do universo, Gênesis Um apresenta uma ordem enquanto dialética da estrutura e acidentalidade. Esse processo é interpretado por Scholem como “o primeiro ato, o ato do tzimtzum, no qual Deus determina e (...) limita a Si mesmo, é um ato de julgamento que revela as raízes dessa qualidade em tudo o que existe. Essas raízes do julgamento divino subsistem em mistura caótica com o resíduo da luz divina que remanesceu, após a retirada ou retraimento original, dentro do espaço primário da criação de Deus. Então um segundo raio de luz emanado da essência do Ein-Sof traz ordem ao caos e põe o processo cósmico em movimento, ao separar os elementos ocultos e moldá-los em nova forma” [Iossef ibn Tabul in Gershom Scholem, Kiriat Sefer, vol. XIX, pp. 197-199]. 


E dois escritos antigos nos mostram que a hipótese da creatio ex nihilo tem base num texto do profeta Isaías, “assim diz Adonai, teu redentor, aquele que te modelou desde o ventre materno. Eu, Adonai, é que fiz tudo, e sozinho estendi os céus e firmei a terra. Com efeito, quem estava comigo? ” (Is 44.24), como num apócrifo intertestamentário: “Eu te suplico, meu filho, contempla o céu e a terra e observa tudo o que neles existe. Reconhece que não foi de coisas existentes que Deus os fez, e que também o gênero humano surgiu da mesma forma”. 2 Macabeus 7.28. 


À primeira vista, a cosmogonia judaica define a centralidade de Gênesis-Um no ato criativo do Eterno apenas enquanto espacialidade. Seria uma busca do lugar, da centralidade espacial. O que leva alguns especialistas a afirmarem que não há nenhum elemento espaço-temporal em Gênesis. Mas, isso não é verdade. Em 1740, Anton Lazzaro Moro, cristão novo, geólogo e exegeta italiano, desenvolveu uma sofisticada defesa da hipótese espaço-temporal em Gênesis Um. Dizia ele que tudo que está “envolto e fechado” precisa de um tempo para libertar-se e tornar-se evidente, e que o Eterno, ao criar a natureza, colocou-se como administrador das leis criadas. Daí concluiu:

Quando a Escritura afirma que ‘Spiritus Dei ferebatur super aquas (...)’ indica uma função que traz consigo sucessão de tempo” [Anton Lazzaro Moro, De Crostacei e degli altri Corpi Marini che si Truovano su Monti, 1740, apud Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos, São Paulo, Editora Unesp, 1992, p. 345].

 
Desenvolvendo sua tese espaço-temporal, explicou que toda a criação sofreu duas produções diferentes, que precisam ser cuidadosamente separadas: “a primeira é a do nada pela mão imediata do criador; a outra provém do seio das segundas causas acionadas pelo administrador da natureza. A primeira produção é instantânea e é ato divino proporcionado pela onipotência e eternidade de Deus; a segunda [produção] implica que o ato divino seja adaptado às exigências da natureza que Deus estabeleceu em cada coisa” [idem, op. cit., p. 345]. 


A partir daí sua cosmogonia é surpreendente. Explica que foi o Eterno quem moveu circularmente “a celeste matéria de todo o planetário vórtice”, obrigando essa matéria que formaria o Sol a colocar-se no lugar que lhe era destinado. Constatando que seja qual for a velocidade que se queira atribuir ao movimento diário do Sol e de seu vórtice, “isso não aconteceu num só dia e em só vinte e quatro horas”.

 
A formação do Sol, assim como a produção dos planetas, “comprova que aqueles seis dias não foram de medida igual aos dias modernos, mas que foram espaços de tempo de duração muito mais longa, ou seja, de uma duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos; espaços esses que foram chamados dias, conforme o costume freqüentemente usado nas Escrituras de exprimir com o nome de dias certos espaços de tempo longos e indeterminados”, afirmou Moro [idem, op. cit., p. 347].


É interessante ver como a física do século XX, principalmente aquela que sofreu influências dessa mesma cosmogonia, traduziu para uma nova linguagem antigos conceitos.

É verdade, que desde Aristóteles a ciência avaliou equivocadamente o conceito tempo, considerando-o absoluto, sem relação imediata e causal com o espaço. Pensou um tempo sem ambigüidades, achando que se fosse medido corretamente, entre dois espaços ou eventos, o intervalo de mensuração seria sempre igual. Durante séculos, inclusive para Newton, o tempo foi independente do espaço. Mas, em 1905, Einstein tornou pública uma nova teoria de espaço, tempo e movimento, que ele chamou de relatividade especial. Comprovada em experiências de laboratório, essa teoria, aceita pela maioria dos físicos, levanta algumas hipóteses, como a equivalência da massa e da energia, a elasticidade do espaço e do tempo e a criação e destruição da matéria. Dez anos depois, na seqüência da teoria anterior, Einstein publicou a sua teoria da relatividade geral, com novas afirmações: a curvatura do espaço e do tempo, a possibilidade de que o universo seja finito, mas ilimitado e a possibilidade de o espaço e o tempo se esmagarem, deixando de existir.

 
Estas considerações levou-nos a conceber teoricamente o universo real como um espaço curvo, de curvatura variável no espaço e no tempo, de acordo com a densidade de distribuição da matéria, susceptível porém, quando considerada em larga escala, de ser tomado como um espaço esférico. Esta concepção tem, pelo menos, a vantagem de ser logicamente irrepreensível, e de ser aquela que melhor se cinge ao ponto da teoria da relatividade geral”. [Albert Einstein, Considerações Cosmológicas sobre a Teoria da Relatividade, in O Princípio da Relatividade, H. A Lorentz, A. Einstein, H. Minkowski, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1958, pp. 239-240].

 
E ao criticar a teoria do tempo absoluto, Einstein mostrou que à medida que o deslocamento de um objeto se aproxima da velocidade da luz, sua massa aumenta mais rapidamente, de forma que gasta mais energia para aumentar sua velocidade. Por isso, muito possivelmente nunca possa atingir a velocidade da luz, pois deixaria de ter massa intrínseca. O importante dessa teoria é ter modificado a compreensão de tempo e de espaço. Antes, considerava-se que a velocidade da luz fosse a distância que ela percorre, dividida pelo tempo que leva para fazer isso. Agora, compreendemos que a velocidade pode ser a mesma, mas não a distância percorrida. A partir da teoria da relatividade, o conceito de simultaneidade, ou seja, da existência de um mesmo momento em dois lugares diferentes, deixou de ter qualquer significado em termos de universo.

 
O tempo não-determinado

 
Em linguagem da física da relatividade o tempo gasto é a velocidade da luz multiplicada pela distância que a luz percorreu. Temos então várias medidas de tempo, ou seja, medições diferentes entre dois eventos ou espaços. Gênesis nos apresenta este conceito de tempo com yom que aparece como tempo não determinado/quando em Gn 3.5; tempo não determinado/período em Gn 1.14, 16, 18; tempo não determinado/época em Gn 2.4.


Deixamos de ter, então, dois conceitos separados e absolutos: o tempo e o espaço, para termos um, o espaço-tempo. Ora, um evento é algo que acontece num determinado ponto do espaço e logicamente num tempo também determinado. Só que não há separação entre essas duas unidades. Uma das premissas da teoria da relatividade, conforme expõe Stephen Hawking, é que o tempo corre mais lentamente perto de um corpo volumoso [Uma breve História do Tempo, Rio de Janeiro, Rocco, 1988, pp. 35-60]. Assim, na Terra, para tomarmos um exemplo próximo, o tempo é mais lento que em outros planetas ou luas de menor massa. Isto porque existe uma relação entre energia da luz e sua freqüência. Quanto maior a energia, maior a sua freqüência.

 
Dessa maneira, à medida que a luz percorre verticalmente o campo gravitacional da Terra perde energia e sua freqüência diminui. Em outras palavras, espaço e tempo são quantidades dinâmicas. Quando um corpo se move no universo afeta a curva do espaço-tempo e, por sua vez, a curva do espaço-tempo afeta a forma como os corpos se movem e as forças atuam. Só que, e esse conceito é importante para a relatividade geral, não há como falar de espaço-tempo fora dos limites do universo. Essa premissa é interessante, pois descarta a idéia de um universo imutável, que sempre existiu, para trabalhar com a possibilidade de um universo que teve início e é plástico.

 
Assim, para a teoria da relatividade o universo teve começo como singularidade, o possível Big Bang, e deverá ter um fim também singular, o possível Big Crunch. E como o espaço-tempo é finito, mas sem limites, o Big Crunch poderia levar a uma concentração de energia tal que muito possivelmente possibilitaria a formação de um novo universo.

 
De forma semelhante, se o universo explodisse novamente, deveria haver outro estado de densidade infinita no futuro, o Big Crunch, que seria o fim do tempo. Mesmo que o universo como um todo não entrasse novamente em colapso, haveria singularidades em algumas regiões determinadas, que explodiriam para formar buracos negros. Essas singularidades seriam o fim do tempo para quem ali caísse. Na grande explosão e demais singularidades todas as leis são inoperantes. Então, Deus ainda teria tido completa liberdade para escolher o que aconteceu e como o universo começou”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 236].

 
Ora, como a expansão do universo implica em perda de temperatura, que é uma medida de energia, quando o universo dobra de tamanho, sua temperatura cai pela metade. Assim, quando o Eterno criou o universo, supõe-se que tinha tamanho zero e temperatura infinitamente quente. Mas à medida que se expande, a temperatura cai. Isso explica porque o universo é tão uniforme, e parece igual mesmo nos mais diferentes pontos do espaço. Uma das consequências, caso consideremos o fiat divino como o Big Bang, é que a partir da grande explosão não houve tempo de a luz se deslocar por ilimitadas distâncias. É por isso que Gênesis apresenta em primeiro lugar tohu e bohu, as trevas e o abismo, e só no versículo três o surgimento da luz.

 
É interessante ver que uma das possibilidades que alguns físicos baralham é a de que o Eterno escolheu a configuração inicial do universo por razões que não temos condições de compreender. Consideram que os acontecimentos da criação não se deram de forma arbitrária, mas refletem um ordem comum. Hawking opta por uma variável que chama limitação caótica ou escolha ao acaso. Dentro desse ponto de vista, o universo primordial surgiu como caos. Ora, a segunda lei da termodinâmica mostra que há essa tendência no universo, e que a ordem e o equilíbrio, ou seja, a vida, que é a forma mais organizada da matéria, surge como oposição a este caos.

 
Einstein uma vez formulou a pergunta: ‘Que nível de escolha Deus teria tido ao construir o universo?’ Se a proposta do não limite for correta, ele não teve qualquer liberdade para escolher as condições iniciais. Teria tido, ainda naturalmente, a liberdade de escolher as leis a que o universo obedece. Isto, entretanto, pode não ter sido um grau assim tão elevado de escolha. Pode ter sido apenas uma, ou um pequeno número de teorias completas unificadas, tal como a teoria do filamento heterótico, que são autoconsistentes e permitem a existência de estruturas tão complexas quanto os seres humanos, que podem investigar as leis do universo e fazer perguntas acerca da natureza de Deus”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., p. 237].

 
E Prigogine e Stengers explicaram que “toda variação de entropia no interior de um sistema termodinâmico pode ser decomposta em dois tipos de contribuição: a entrada exterior de entropia, que mede as trocas com o meio e cujo sinal depende da natureza dessas trocas, e a produção de entropia, que mede os processos irreversíveis no interior do sistema. É essa produção de entropia que o segundo princípio define como positiva ou nula”. [Ilya Prigogine e Isabelle Stengers, Entre o Tempo e a Eternidade, São Paulo, Companhia das Letras, 1992, p. 53].

 
E a partir da termodinâmica, Hawking trabalha com as setas do tempo. “As leis científicas não distinguem entre as direções para frente e para trás do tempo. Entretanto, há pelo menos três setas de tempo que distinguem o passado do futuro, que são a seta termodinâmica, direção do tempo em que a desordem aumenta; a seta psicológica, direção do tempo na qual se recorda o passado e não o futuro; e a seta cosmológica, direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. Demonstrei que a seta psicológica é essencialmente a mesma que a termodinâmica, de modo que ambas sempre apontam para a mesma direção. A proposta do não limite para o universo prevê a existência de uma seta termodinâmica do tempo bem definida, porque o universo deve começar num estado plano e ordenado. E a razão por que se observa esta seta termodinâmica se adequar à cosmologia é que os seres inteligentes só podem existir na fase de expansão”. [Stephen Hawking, idem, op. cit., pp. 210, 211].

 
Coerente com sua visão de que o Eterno não joga dados com o universo, Einstein combateu às teses de acausalidade na mecânica quântica, defendidas pelas escolas de Copenhagem e Gottingen.

 
Não posso suportar a idéia de que um elétron exposto a um raio de luz possa, por sua própria e livre iniciativa, escolher o momento e a direção segundo o qual deve saltar. Se isso for verdade, preferia ser sapateiro ou até empregado de uma casa de jogos em vez de ser físico”. Citado por Franco Selleri, Paradoxos e realidade, Ensaios sobre os Fundamentos da Microfísica, Lisboa, Fragmentos, 1990, p. 41.

 
Em 1944, voltaria à carga: “Nem sequer o grande sucesso inicial da teoria dos quanta consegue convencer-me de que na base de tudo esteja o indeterminismo, embora saiba bem que os colegas mais jovens considerem esta atitude como um efeito de esclerose. Um dia saber-se-á qual destas duas atitudes instintivas terá sido a atitude correta”. [Einstein, idem, op. cit. p. 59].

 
Ao finalizar este artigo desejo colocar em relevo algumas constatações presentes nessas reflexões sobre a origem do universo a partir da mística judaica.

 
A primeira é que a descrição do primeiro versículo de Gênesis-Um está fora do espaço-tempo. O surgimento do espaço-tempo teve início com o caos, que não deve ser entendido como negação ou pura ausência, mas como entropia. É universo espaço/temporal que repousa nos quatro conceitos enumerados por Noach: determinação, proclamação, trabalho e ordem.

 
Em segundo lugar, o tempo de Gênesis Um não é o tempo que conhecemos e no qual nos movemos, mas é o tempo da ordem/organicidade, tempos não determinados, épocas. Ou seja, o surgimento do universo implicou na expansão do espaço-tempo, assim o espaço-tempo de Gênesis 1.3 é totalmente diferente do espaço-tempo de Gênesis 1.12.

 
E, por fim, a expressão hebraica yom, presente nos textos de Gênesis Um, também não é a medida dos dias atuais, mas espaços de tempo de duração longa ou de duração proporcional à atividade das causas segundas e à exigência dos efeitos produzidos. Tivemos, então, um processo de expansão permanente, dentro dos limites das leis naturais e da liberdade de possibilidades.



Os três demônios



 “Já que (...) não posso infundir a fé no coração de ninguém, não posso, nem devo obrigar ou coagir ninguém a isso, pois Deus opera isso sozinho e vem habitar anteriormente no coração. Por isso, se deve deixar a palavra livre e não querer juntar nossa obra a ela: nós certamente temos o ius verbi, mas não a executionem. Cabe-nos pregar a palavra, mas as conseqüências pertencem unicamente ao agrado de Deus”. [Lutero, reformador do século 16].


Shedu


Estamos no passado, não muito distante, mas no passado. O lugar, uma terra arrasada. Um paraíso devastado pela guerra e pelo abandono. Um demônio, chamado Shedu comeu e refastelou-se: atum grelhado na brasa, com repolho vermelho e vinho branco. Tomou um café com pouco açúcar e acendeu o cachimbo. Esticou-se embaixo da velha figueira. A tarde era pesada e excessivamente quente, como só aquela terra sabia ser. Virou-se para um outro demônio, de nome Nebo, e comentou:


-- Ah! Como é bom ser um sátiro, querido mestre da loucura e das palavras mortas.


Deu uma risadinha e terminou a frase, meio melancólico.


-- Como eu gosto de trabalhar com Astarote.


O demônio Nebo, mimetizado no verde, de barriga para cima, gostava de ouvir seu parceiro. Gostava de passar as tardes nos campos estorricados, infernizando a vida de quantos homens e animais, perdidos de suas rotas, aparecessem por ali. E entendia perfeitamente aquele ódio demoníaco que Shedu nutria por Astarote.


Astarote era um demônio sexual. Os humanos tinham vários nomes para ele: Ásera, Astarte, Attart, Ihstar, Afrodite, conforme o país e o rito de adoração que lhe ofereciam. O próprio Salomão, rei de Israel, prestou-lhe culto e chegou a edificar um templo em sua honra, perto de Jerusalém. Descaracterizado, Astarote tinha uma pele esverdeada, num tom escuro, um hálito sulfuroso e uma mente totalmente degenerada. Usava uma cabeça de touro como símbolo de soberania. Sempre passava voando por cima das videiras calcinadas, despertando no demônio Shedu um ódio especial, uma ira assassina, um desejo de parceria que ele há muito tempo não tinha. 


Shedu deu mais uma baforada e colocou o cachimbo de lado. Tirou uma cebola do bolso e deu uma boa mordida. Depois disse para o demônio que o ouvia:


-- Nebo, meu desgraçado amigo, há anos atrás, fui dono de um homem alucinado. Foi uma experiência inesquecível. Viajemos no tempo e quem sabe talvez você entenda a lógica de meus ódios.


Tudo começou numa linda primavera terrestre. Havia um sujeito duro de coração. Perverso para nenhum demônio colocar defeitos. Nós nos conhecíamos, conversávamos pelas madrugadas e ele sempre me ouvia. Uma noite ele se entregou a mim. Queria a minha maldade e eu não lhe neguei. Mais tarde, deu o seguinte depoimento aos soldados que o interrogavam:


Havia um sonhador, um doido, sei lá. Já tinha estrangulado várias pessoas. Uma coisa feia. Sempre igual. As moças eram atacadas de madrugada, mordidas, esganadas e tinham seus olhos arrancados. Sim. Era exatamente assim. Mordidas nos ombros, no pescoço, no rosto, estranguladas. Os olhos arrancados. E tudo em apenas um mês. Foi pelo pânico que resolveram evacuar o hospital. Eu, porque não tinha para onde ir, fiquei. E comigo ficou a frase do jovem Gramsci: “Velhos, porque o destino nos fez nascer numa idade velha”. 


Dez da manhã. A moça, jovem, usava uma saia justa e blusa de malha. Insinuante, lembrava o vermelho. Convidei-a para conhecer o hospital. Ela riu, nervosa, e entramos. Sem proferir palavras, eu cantava.


-- Amelita, querida Amelita... si yo pudiera, como ayer, querer sin presentir.


Sempre gostei de tangos. É a nostalgia, ela me agarra e não me solta mais. Atravessamos o salão de entrada do hospital. Ela na frente e eu atrás. Começamos a subir as escadas.


-- Si yo tuviera el corazón, el mismo que perdi...


Só minha respiração quebrava o silêncio. Chegamos ao primeiro andar. Continuamos. Íamos para o segundo. 


--... es posible que a tus ojos, que me gritan su cariño, los cerrara com mis besos.


Ela parou. Segurei seus quadris. Sentia a carne rija sob a saia justa. Devagar, bem devagar. 


--... me abrazaria a tu ilusión....


Num salto ela se voltou. Senti uma dor profunda no rosto e gosto de sangue. Ela deu-me duas, três mordidas. Todas no rosto. Suas mãos me apertaram o pescoço. Caímos. Senti a dor de minhas costelas na batida com os degraus. Ela por cima.


Interessante, não senti medo. O gosto de sangue, a dor, a luta. Era um mergulho, apenas isso. Suas mãos foram largando o meu pescoço. Ficamos quietos não sei quanto tempo. Shedu sempre diz que não há lugar tranqüilo na cidade dos homens, mas estávamos silentes, eu e meu monstro. Essa é a paz que Shedu me prometeu. Eu e meu monstro, um sentindo o hálito do outro, a gente se rasgando, xingando, lutando, sentindo o rosa e o vermelho, dançando nas cores. Sem uma palavra.


Quietos, ouvimos passos. Alguém subia as escadas. De maneira calma, como se tateasse os degraus com os pés. Terminou os dois primeiros lances, chegou bem à nossa frente e perguntou:


-- Quem está aí?


Segurava o corrimão. Cega. O que estaria fazendo ali, essa cega e seus fantasmas? 


Estendi a mão direita. Ela a tocou e subiu alguns degraus. Eu e a moça bonita não nos mexíamos. A cega subiu e sentou-se quase à altura da minha cabeça, ao meu lado. Brinquei de dedos com os dedos. Ela quieta, parecia estar presa no tato. Que sensação pode ser tão profunda? Sei que sentia formigas e espelhos pelo corpo. Eu sentia dor, o peso de meu monstro, o sangue, a respiração quase parada.


Dizem que eu sou louco. Não sou, não. Lembro-me perfeitamente. O hospital foi se enchendo de gente, que brotava das paredes, do chão ou deslizava do teto. Primeiro, apareceram dois soldados doentes, que subiram as escadas e queriam ir para o segundo andar. Mas como nos encontraram no caminho, desistiram. Ficaram no primeiro andar mesmo. Uma mulher grande e forte desceu do lustre e eu já não sabia se era a chefe das enfermeiras ou oficial. Também não nos incomodou.


A vida voltou ao velho hospital. Havia burburinho, gente arrastando doentes, enfermeiras, a mulher grande e risos. Mas ninguém nos importunava. E nós três ali, quietos, sentindo aquela paz de formigas.


O soldado doente, que tinha ficado no quarto bem em frente à nossa escada, abriu a porta devagarzinho e fez um gesto para mim. Chamava a moça bonita. Ela virou o rosto para a porta, sorriu como uma fada e saiu de cima de mim. Como um gato, sem fazer ruído.


A partir desse momento, eu e a cega não nos separamos mais. No meio da dor, andávamos tropeçando pelos campos, eu em minha velhice, ela em sua cegueira.


O comando militar da cidade já havia informado que haveria novos bombardeios. Na segunda semana de abril foi lindo e triste. Bem de manhã, uma névoa cobria o campo e a casa dos oficiais, que não ficava muito distante do hospital. Todos gritavam. Junto com a garoa fina caiam as bombas. De uma das rampas da casa, por entre o verde, corriam meus irmãos, vivos e mortos, com estrelas no coração.


Fogos de artifício de carne e sangue desenhavam flores no céu. Eu e a cega, de mãos dadas, via e ouvíamos o dum-dum dos tambores e a festa vermelha do fim dos dias. De repente, veio a ordem de debandar. Saíram os carros negros, limpos, fugindo para não sei onde. Os soldados corriam e desapareciam, como se fossem névoa, apenas névoa. E aqui no hospital, eu e a cega caminhávamos no vazio. Mais uma vez estávamos sós.


Fomos caminhando devagar para longe do prédio. Era melhor deixá-lo morrer sozinho, comido pelo mato, vendo suas paredes caírem de cansaço e de velhice. Igual a mim, eu acho.


Não, valorosos soldados, não sei o nome de ninguém. Nunca me preocupei com nomes. Nunca me lembrei de guardá-los. Do general sei que era imponente, mas triste. Gostava de ouvir os pássaros de manhã e à tarde escutava uma ninfa tocar cítara. Era triste e só.


Ah! O meu monstro. Foi meu apenas durante algumas horas. Também não sei dos meus irmãos. Ouvi dizer que os piedosos subiram aos céus, mas disso Shedu nunca fala. Não sei. É muito difícil saber dessas coisas. E eu não sou um homem sábio.


-- E a cega?


Fiquei com medo. Sei que o general de vocês é diferente, que acredita no que faz e no que diz e pretende fazer com que o país volte às normas da legalidade absoluta, com a supressão do arbítrio e dos sonhos. E eu fiquei com medo.


Chovia. Era difícil andar. Eu por causa da velhice e ela porque tropeçava nas raízes. O mergulho, era isso que eu tinha na cabeça. Nem mais, nem menos. Paramos ao lado de uma poça. O longe roncava como fera. Não sabia se o futuro começava ou se o passado cochilava. Devagar, segurei sua cabeça e enfiei na lama. Ela deixou. Seu corpo se contorceu um pouco, com arrancos. Meu medo foi passando. Levantei seu rosto. Éramos iguais os dois, mortos, com máscaras de lama.


Segui sozinho, sentindo uma paz esquisita. Acho que é a mesma paz que sentia o velho hospital depois do bombardeio. Não sei. Sinceramente, valorosos soldados, não sei mais nada. O seu nome... Não me lembro bem, mas parece que era Dolores. É, só poderia ser Dolores.


E assim, caro Nebo, o corpo que eu consegui a duras penas, e que me deu tantos prazeres, foi fuzilado numa tarde de setembro. E como você pode ver, esse súcubo infernal só apareceu para bagunçar o coreto. Com o fim da guerra e sem corpo em que me agarrar, resolvi mudar de ares. Cheguei aqui como ave de arribação, sem eira, nem beira, agarrado num mestre de artes marciais, mas logo encontrei quem eu procurava.


Nebo


Noite alta, o demônio Nebo, mestre da loucura e palavras mortas, ficou pensando na viagem e na última coisa que seu parceiro Shedu, morador das ruínas de Edom, dissera antes de se retirar para o oco de sua figueira: “Demônio bem sucedido trabalha em equipe. Nós estamos incompletos. Astarote é a parte que falta para criarmos o inferno que desejamos”. Palavras difíceis, como poderia catalogá-las?


Detesto essa terra, mas adoro essa hora da meia-noite. Pensou. Sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. Essa é a hora dos meio-tons. Não está gelado, mas faz frio. Está escuro, mas não completamente. Existe o mais e o menos. É a hora mais difícil para os humanos. Eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. Ao menos uma folha, mas nada. E eu também fico quieto, acompanhando a ordem natural do momento. É certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. Mas eles nem percebem. São seres medrosos.


Às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. E fica mais escuro. É aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. É o momento. Vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. Sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da desolação e começo a falar com os mortos.


Sou filho de Merodach e Sarpanitu. Vivi e fui adorado em Borsipa, mas na primavera desse país, Shedu ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. Um lamento do fundo das trevas. Era eu. Tinha sido desterrado, exorcizado para os confins do inferno. Depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. É aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há 12 mil anos acendo o Osorno.


E lá em baixo, no Llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. Sua presença imponente domina a paisagem.


Quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. Na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. Depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. Fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos.


Gosto do gelo das geleiras. Esta é a minha casa, a casa do demônio. E foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos do meu amigo Shedu, o demônio das onze horas.


Posso estar velho e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. Gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens.


Falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. Mas é minha especialidade. A memória humana é uma colcha de sensações. Eles sempre se lembram da dor das pedras. O momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. Assim são eles. Suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. Tudo fica escrito. Até as marcas da saudade não se apagam. E para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.


Aprendi a caçar os fantasmas humanos. Mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, ressuscito cadáveres antigos e mal cheirosos. Não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero.


Quem me ensinou esta especialidade demoníaca foi Shedu. No início ele me disse que o mundo das palavras mortas fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. Bastava aprender, com ele, a viajar na memória dos humanos. Sempre levo comigo uma bolsa. É a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. São palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. Ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. São palavras de pobre, como guspe, frio e maleita. São palavras quatrocentonas, como treme-treme e sezão. Junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.


Tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. E aí, sozinho, vou colocando cada uma delas na sua forma. E ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. E vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. O demônio é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho Nebo a uma centúria de formigas flamejantes. Na Semana Santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. E a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. Ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. É a porta de entrada da minha casa.


Ao contrário de nós demônios, na vida dos homens sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. Lembro-me de um jornalista carioca, que na madrugada de 23 de abril, dia de Ogum, foi fazer uma reportagem na floresta da Tijuca. Ele trabalhava na revista Manchete. Era auto-suficiente e não tinha dúvidas quanto à sua capacidade profissional. Vivia com uma jovem, bisneta de escravos, e, no fundo do seu coração, queria ser o dono do mundo. Nessa época, eu, Shedu e Astarote trabalhávamos juntos. Tínhamos organizado uma grande festa.


Era noite de lua cheia. Corpos endemoniados tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. Representavam os mortos: os esquecidos e os lembrados. No meio do círculo, muita comida. Do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. Sons de cantar, dançar e de fazer sexo. Nunca me esqueço. O luar cobriu a floresta. Astarote vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de Shostakovitch penetrou no labirinto e depositou um feto, a pequena Gaia, numa cova rasa. Eu, cheio de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de Artaud, poeta maldito: "... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus (...), o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado". 


E como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos malditos, loucos e suicidas. Foi então que apareceu o rapaz. Ele olhou, mas não viu. Nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos. Astarote, toda sensual, chamou:


-- Luís, entra na roda.


Ele levou um susto. Não entendeu como sabíamos o nome dele. Mas cheio de orgulho, aceitou conversar.


-- Quem é você?


Astarote respondeu:


-- Você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.


Na verdade, o corpo de Astarote era lindo aos olhos humanos. Usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. Sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. Sob a luz da lua, a cena era encantadora. Os atabaques batiam no ritmo do coração. O ar era de sensualidade e magia. Cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu:


-- Não posso entrar aí. Sou filho de Ogum. Meu orixá não permite, ele é o senhor da guerra.


Era mentira, nós sabíamos. Ele não tinha nenhum acordo com nenhum dos nossos. Mas nós adoramos a mentira. Ah! Se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. Quisemos saltar dentro dele. Era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. Partimos para o ataque, mas uma espada flamejante nos impediu. 


-- Ele pertence ao Deus criador dos céus e da terra. Aceitou o Senhor e o Senhor o recebeu. Estão proibidos de fazer nele morada e de tocar na vida dele. Esta é uma ordem do Senhor dos senhores, diante do qual se dobrará todo o joelho, tanto no céu, na terra, como embaixo da terra.


Aquela luz brilhava demais. Feriu nossos olhos, apavorou nossos corações, lembrou-nos da condenação eterna. Nossa festa tinha chegado ao fim. O ódio estremeceu os corpos que ocupávamos. Urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. Depois, semimortos, os abandonamos ali. A partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.


Nenhum encontro é casual. Há sempre aquele que busca. Só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. Descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.


No verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. Transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. Sobrevôo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. As folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. E o tempo, para que serve? Eu o transformo na memória da solidão. Minhas palavras são punhais assassinos. Elas amedrontam a noite e congelam o dia. E eu fico encantado, como num conto de fadas. Afinal, sou Nebo, mestre da loucura, um demônio muito especial, cheio de malícia e de palavras mortas. 


Astarote


Astarote transformara o útero de Yasmin numa caverna maldita. O demônio rompera as cadeias da forma e do espaço. Como fêmea, nua e sensual, abriu uma gaveta e olhou dentro. Enrugado e ressecado, um feto jazia inerte. Seus olhos grandes estavam espantados, como se tivessem sido cegados por trevas eternas. Seu rosto chupado e suas mãos estendidas pareciam pedir perdão por alguma coisa. Astarote, cheio de ódio pela vida, pegou o feto no colo, cantou uma cantiga de ninar e depois perguntou:


-- Como vai esse serzinho desprezível?


Guardou o feto de novo no armário. Seu pensamento sobrevoou as antigas terras da Síria e Palestina. Viu homens e mulheres lhe prestando culto. Prostitutas cultuais oferecendo amor e fertilidade. Promessas de prosperidade e bom augúrio. Abriu uma segunda gaveta. Um tumor vermelho, do tamanho de um ovo de galinha, vivo e palpitante olhou para o demônio. Astarote riu e sibilou com raiva:


-- Os homens sabem que são frágeis diante da vida. Temem o desfecho. A morte, tumor querido, rasga a esperança. O meu prazer consiste em atapetar o caminho do inferno.


E fechou a gaveta de um golpe.


Abriu, então, uma terceira gaveta e tirou de lá as memórias vividas com os demônios Shedu e Nebo.


Eu me lembro quando caiu a primeira bomba. Afinal, poucas vezes em toda a minha existência participamos de uma destruição tão organizada. Durante anos, planejamos cada detalhe, tomamos posse de homens e mulheres de partidos políticos, pensamentos e sonhos aparentemente diferentes. Demônios da guerra chegaram aos milhares, dominaram os ambientes e planejaram todas as ações. Nós auxiliamos. A meta era incrementar o ódio a todos os níveis.


Eles eram quatro adultos e quatro crianças. Todos cobertos com chagas e doenças de pele, que produziam pus amarelo forte e cheiro de enxofre. Os cabelos tinham caído parcialmente, o que lhes dava uma aparência de bonecos maltratados. E todos tinham perdido os dentes.


Empestiados, fedorentos, maltrapilhos. Estavam imersos na angústia. As dores e o sofrimento apontavam como única saída o suicídio. Mas um poder que, sem dúvida, não vinha deles, os empurrava para frente. E foi essa vontade de viver, que os levou a se ajudarem mutuamente. A cidade parecia uma escultura derretida, com formas infernais, um silêncio de túmulo e um cheiro de podre que nunca desapareceu.


Toda a água de superfície estava contaminada e queimava como fogo, quando em contato com a pele ou os lábios. Havia uma pequena fonte subterrânea, um olho d’água. Eles se protegiam do sol e da chuva que queimava num galpão de madeira, sem janelas. Era a única sensação agradável que sobrara: a de estar na sombra.


Era o inferno. Uma parceria perfeita entre demônios e homens. Nós o criamos com toda a força de nossa obstinação e o fizemos pior e mais terrível que todas as lendas e histórias que ouvíramos antes. Não havia uma única árvore viva em dezenas de quilômetros. Nenhum pássaro cruzava os ares. Até os insetos tinham desaparecido. De vez em quando, encontravam debaixo de alguma pedra um escorpião solitário. E ficavam olhando com um misto de desespero e dor. O escorpião, para eles, era o irmão na sobrevivência. Muitas vezes, olhavam e começavam a chorar. Era um diálogo patético.


À noite, quando não fazia tanto calor, plantavam hortaliças e com cuidado regavam planta por planta. Cobriram a plantação com um telhado improvisado, para que não estorricasse sob o sol ou morresse com a chuva.


Ter relações sexuais era horrível e doloroso. O contato das carnes queimadas pela radiatividade, o cheiro que exalavam, a penetração num organismo doente e quase podre inviabilizava o amor. Além do mais, tinham medo de ter filhos deformados.


Eu, Shedu e Nebo realizávamos nosso ódio. Nós demônios odiamos a espécie humana. Se é impossível vencer quem os criou, ao menos resta-nos a possibilidade de destruir a criatura. Um ser feito do pó da terra, algo tão material, frágil e passageiro não merecia ter os privilégios que tem, nem mesmo a semelhança com aquele que os criou. Nós nos rebelamos sim. E somos movidos pelo ódio, nos movemos nas sombras, queremos a morte e em nós não há lugar para arrependimento. Nosso objetivo é roubar, matar e destruir. E naqueles dias conseguimos isso como nunca antes. Mas temos inimigos. Inimigos que se tornam poderosos porque se unem à fonte da vida, àquele que é senhor sobre todos, inclusive sobre nós. Esses inimigos são os que levam o nome de cristãos. É preciso destruir os humanos rapidamente. Caso contrário, em Cristo surgirá uma nova espécie e esta, sem dúvida, será superior e imortal.


Em meio àquela destruição apareceu, não sei de onde, protegido por anjos, um missionário. E ele contou muitas histórias para aqueles homens e mulheres, de olhos rasgados, que desconheciam a Jesus, o Cristo, e o reino de Deus.


-- Havia um lugar além do Universo, um mundo de estrelas, habitado pelo Deus único, criador e eterno. Ele estava rodeado de seres criados de excepcionais poderes. Acontece que esses seres não tinham o privilégio da reprodução, nem o prazer do gozo do mundo material. Eram apenas seres de poderes excepcionais.


Mas Deus decidiu criar uma nova espécie, com a qual pudesse se relacionar, manter parceria, que participasse de seus objetivos e metas. Mais do que criatura, filhos. Ligados ternamente ao Criador, que se recriando povoassem uma região sem fim destinada a eles: o Universo. Assim, em amor, Deus escolheu um mundo pequeno e, num jardim previamente plantado, criou um ser lindo, perfeito.


Astarote parou de pensar na guerra. Olhou para as paredes do útero e urrou: Shedu, Nebo, Astarote! Demônios de um mundo vazio! Senhores isolados! Perdidos na solidão eterna! Quanto mais gritava, mais disforme e contraído ficava. Parecia agora não uma jovem sensual e lasciva, mas uma mancha de sangue, grudada nas entranhas invadidas. Teatralmente, perguntou-se:


É possível apunhalar o amor?

Qual é mais digno:

O ódio de Medeia, a mãe,

Ou o amor de Édipo? 

Qual é mais ódio? Qual é mais amor?

O amor se esconde

Sob os escombros da cidade, na galeria inundada do metrô,

Atrás da máquina de Coca-Cola.

O velho amor dos séculos,

Repetido, gasto, se esconde,

Ele é xingado,

Virou merchandising,

Foi despido

E crucificado nu

Numa esquina da 5th Avenue.

É possível apunhalar o amor?


Sua gargalhada ecoou através de cada milímetro daquele corpo doente. E pensou que, à maneira de Nebo, o demônio das palavras mortas, ele também sabia fazer poesias.


Odeio. Odeio os ensinamentos do missionário. Mas, o que ele ensinou àqueles miseráveis, mortos-vivos do terror nuclear, fez deles seres novos. Salvos. Reconstruídos espiritualmente pela engenharia genética da vida eterna em Jesus, o Ungido de Deus. Em poucos anos, todos estavam mortos, adultos e crianças, mas ressuscitarão, livres e eternos. Belos. Novinhos em folha. E eu perdi. E me revolvo de ódio no sangue dessa desgraçada, só de pensar que perdi, que apodrecerei, eu também, fechado eternamente em trevas.


E Deus disse para Caim: se você tivesse feito o que é certo, você estaria sorrindo, mas você agiu mal, e por isso o pecado está na porta, à sua espera. Ele quer dominá-lo, você precisa vencê-lo



Torre de névoa



Conheci Florbela, a poeta, em 1961. Fui apresentado por Clara Sílvia, uma amiga comum. A partir daí sempre conversamos. Três casamentos, duas tentativas de suicídio fracassadas e uma terceira bem sucedida, fez dela uma das primeiras amigas feministas. Apaixonada e erótica. E quando canta seus amores, reais ou não, às vezes, digo: acho que você está falando da minha tresloucada paulicéia. Ela não responde. Deixa que eu faça, liberto, minha viagem. Por causa dessas travessias, convidei Florbela para opinar neste texto. E ela aceitou.


A Reforma protestante desde os seus primeiros momentos buscou fundações. Conhecemos os princípios basilares apresentados por Lutero: a justificação pela fé, a sola scriptura, o livre exame e o sacerdócio universal dos crentes. A partir desses conceitos de liberdade surgiu um conjunto de princípios em cima do qual se levantou a teologia reformada. Tal construção foi vista como base que legitimou e autorizou a expansão de uma das maiores revoluções religiosas da história humana. E, assim, surgiu a teologia do catolicismo reformado como fundamento de todos os protestantismos e também dos evangelicalismos, com seus diferentes matizes e leituras.


No Brasil, a sociologia viu o movimento evangélico como fundamentalista, passou a ver apenas o seu lado integrista. É certo que o movimento evangélico é fundamentalista, e Antonio Gouvêa Mendonça explicou: 


Seu apego à letra da Bíblia, ao mesmo tempo em que a interpreta dogmaticamente, tem engessado o protestantismo no cipoal da ortodoxia mais fria que pode existir. O fundamentalismo, além de violar o sagrado princípio da Reforma, que é livre exame – por ter-se especializado em publicar Bíblias com notas e referências, verdadeiros tratados teológicos --, voltou a submeter o protestantismo a um simples sistema de crenças ao qual o fiel se submete intelectualmente”.


Na verdade, a utilização da expressão fundamentalista para o evangelicalismo brasileiro ou setores dele não está errada, mas se torna reducionista ao prender-se aos aspectos negativos do termo -- conservação, integrismo, retroação – e deixa de ver aspectos relacionais positivos que a busca por fundação implica. 


O Brasil desde 1940 vem numa acelerada marcha de urbanização. Em 1940, 30% da população do país, 40 milhões de pessoas viviam em cidades. Em 2006, 56,3 milhões de brasileiros viviam nas nove maiores regiões metropolitanas do país. Segundo dados do IBGE (2007), hoje 83% da população moram em cidades, 140 milhões de habitantes. Portanto, 8 em cada 10 brasileiros vivem em núcleos urbanos.


Parte da população urbana concentra-se no Sudeste do país, em especial em grandes áreas metropolitanas como São Paulo, 17 milhões na Grande São Paulo, e Rio de Janeiro, mais de 10 milhões na Grande Rio.


Subi ao alto, à minha Torre esguia,

Feita de fumo, névoas e luar,

E pus-me, comovida, a conversar

Com os poetas mortos, todo o dia.


Além do aumento da população urbana ocorre no país uma urbanização do território: há crescimento da população urbana, do número de cidades, e os núcleos urbanos passam a se espalhar por todos os estados e regiões do país. Surge, então, uma rede urbana ampla, interligada e complexa. Expande-se, assim, o modo de vida urbano, apoiando-se nos sistemas de transportes, telecomunicações e informações.


O processo de modernização do país, na segunda metade do século vinte, gerou duas megalópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, que foram constituídas coração cultural e econômico do país, concentrando recursos e articulando em seu entorno uma constelação de aglomerações urbanas e cidades médias.


Por outro lado, ocorreu nos últimos anos uma tendência à desconcentração de atividades - sobretudo industriais -, com o deslocamento de unidades produtivas do núcleo central de metrópoles como São Paulo para outras cidades e aglomerações urbanas de diferentes portes e localizadas em diferentes estados e regiões. E a redução no ritmo de crescimento populacional de São Paulo e do Rio de Janeiro é fato marcante, embora não signifique a redução do poder e influência nacional e internacional de ambas.


Crescem também outras aglomerações urbanas metropolitanas e não-metropolitanas e também o número de cidades médias por todo o país. Temos, então, uma situação em que permanece o peso acentuado das metrópoles, ao mesmo tempo em que há a desconcentração ou repartição de atividades entre as metrópoles e outros núcleos. 


Contei-lhes os meus sonhos, a alegria

Dos versos que são meus, do meu sonhar,

E todos os poetas, a chorar,

Responderam-me então: Que fantasia...


E o movimento evangélico montou a cavalo no processo de urbanização. A procura evangélica por fundamentos é uma mostra de que o fenômeno não traduz um movimento espontâneo, mas procura construir raízes que lhe dêem estabilidade e permanência. As antigas construções institucionais e religiosas brasileiras, primeiramente calcadas no catolicismo rural e depois no protestantismo de migração e de missão, estão presentes nessa procura evangélica por fundamentos e são fenômeno urbano. 


E por não ter tal modernidade definições precisas e sólidas, o movimento evangélico urbano necessita um permanente olhar a frente. Assim, as necessidades estruturais da sociedade brasileira e o descon­tentamento nem sempre definido e claro das populações urbanas fornecem elementos para a compreensão da busca de fundamentos por parte dos novos movimentos evangélicos presentes no espaço urbano.


Ao acrescentarmos a variável urbanização à alta modernidade, entendemos que a procura por fundamentos é também produto da globalidade e que, embora possa assumir formas antiglobais, sua tendência é partilhar as características da globalidade. Ou seja, a alta modernidade surge como desequilíbrio e traz insegurança para as massas, e o movimento evangélico, calcado em fundamentos, apresenta-se como opção de sentido, esperança e vida para essas mesmas massas. Por isso, não podemos dizer que o fenômeno evangélico urbano brasileiro seja mero produto da correlação entre urbanização e alta modernidade. 


Os estudos publicados pelo IBGE mostram que, em 1970, a população protestante/ evangélica tinha 4,8 milhões de fiéis. Em 1980, passou a marca dos 7,9 milhões. Em 1991, avançou a barreira dos 13,7 milhões. Em 2000, acima de todas as previsões estatísticas, ultrapassou os 26 milhões de adeptos. Durante a década de 90, a velocidade de crescimento das igrejas protestantes e evangélicas foi quatro vezes maior que a da população brasileira. Atualmente, o movimento como um todo tem 20% da população, ou seja, 35 milhões de adeptos. 


Criança doida e crente! Nós também

Tivemos ilusões, como ninguém,

E tudo nos fugiu, tudo morreu!


Devemos reconhecer, porém, que a multiculturalidade brasileira tem suas correlações com a globalidade, e que não há cidades de refúgio na temporalidade globalizada. As culturas brasileiras estão integradas na ordem de um conjunto maior que é a própria brasilidade na alta modernidade, coladas cultural e economicamente à globalidade da produção e do consumo capitalistas. Assim, dentro desse panorama, o protestantismo evangélico, em seus diferentes matizes, leva a uma viagem da tradição em direção à alta modernidade. 


Uma das características do fenômeno religioso urbano, e aí se enquadra o movimento evangélico em seus diversos matizes, é a procura por fundamentos. Tal tendência pode ser ilustrada nas propostas de volta às tradições históricas da Reforma, o que aparentemente entra em choque com a globalidade. Mas essa volta às tradições históricas faz parte da própria globalidade. É o lado misterioso dela. 


Assim, há uma procura pelas tradições históricas do protestantismo brasileiro, o que implica em ressignificar o estudo da Bíblia, a liturgia nas igrejas e até mesmo os currículos de faculdades de teologia. A caminhada em direção às tradições históricas, à nacionalização do culto e à compreensão da teologia parte dessa luta da alta modernidade pela busca da autonomia e da expressão local, mas traduz também o desejo, e aí entra a globalidade, de que a igreja local contribua para a espiritualidade mundial. 


O estímulo da alta modernidade às expressões das religiosidades locais implica numa combinação sincrética de práticas ditas locais com adaptações às práticas alheias às circunstâncias locais. Assim, expressões do fenômeno evangélico urbano são ressignificadas. São produções sintetizadas e sincretizadas de diferentes tradições cristãs e, até mesmo, não-cristãs. São formas particulares de adaptação à urbanização e uma resposta aos efeitos da tribalização da alta modernidade.


A maioria do movimento evangélico contemporâneo aparentemente parte das necessidades religiosas dos diferentes estratos urbanos. Mas é, também, multinacional e mantém alianças com instituições forâneas. Nos últimos vinte anos desenvolveu uma solidariedade entre estratos urbanos marcados pelos contatos e pela crescente participação com os Estados Unidos da América. Esses setores do movimento evangélico são conduzidos como opinião mundial, e capitalizam a preocupação geral com uma identidade protestante genérica e dela se alimentam. 


Tal fenômeno não é negativo, se entendermos que estimula, ao participar da globalidade, o reconhecimento de que o evangelicalismo local só é possível numa base cada vez mais global. Ou seja, para os protestantismos e evangelicalismos urbanos pensar globalmente é cada vez mais necessário a fim de tornar a própria noção de protestantismo urbano viável. O evangelicalismo urbano está globalmente institucionalizado, embora apresente complicações dispersas.


A urbanização produz variedade e a diversidade é, em muitos sentidos, um aspecto básico da globalidade. Mas, e esta é uma complicação, a diversidade pressupõe na globalização a preservação de enclaves da particularidade em meio à crescente homogeneidade e uniformida­de. Ou seja, dentro do conjunto movimento evangélico vamos encontrar singularidades que rompem as uniformidades e também as não-uni­formidades. Podemos definir essa idéia dizendo que a urbanização envolve simultaneamente globalidade e localidade.


É por isso que, quando falamos em evangelicalismo urbano, apontamos para a comunicação entre grupos, igrejas e confissões. Tal fenômeno é uma reação ao aumento da compressão do espaço e do tempo urbanos Essa comunicação, que chamo de interdenominacional, se faz em todos os níveis, está presente nas salas de aula, na presença marcada da mídia, e já chegou aos cultos e às liturgias. Mas na mídia traduz a utopia da diferença e funciona como o espaço aberto dos símbolos. Nesse sentido, não apresenta a diferen­ça autêntica, mas faz uma descrição simbólica ao adequar evangelicalismo e religiosidades não-cristãs às características contemporâneas da urbanização das religiões. 


E Florbela completa:


Calaram-se os poetas, tristemente...

E é desde então que eu choro amargamente

Na minha Torre esguia junto ao céu! ... 



A Assembléia do Deserto



[De Montpellier, França] -- Uma jovem de jeans, no meio de um grupo de moças e rapazes, se aproxima: é Christine Mielke, jovem pastora da Igreja Reformada, originária de Heildelberg, que no exercício de seu ministério pastoral vai realizar batismos nas paróquias de Mialet e Saint-Jean-du-Gard. Ela, como quase todos aqui, conhecem o drama dos huguenotes de Cèvennes. Christine cursou a Faculté Protestante de Théologie em Montpellier.


Aqui em Cèvennes, frequentemente, há reuniões de pastores e comunidades originárias desta região conhecida pelos protestantes como o « país do refúgio », mas um dos acontecimentos mais importantes é, sem dúvida, a Assembléia do Deserto, que acontece no verão. Pastores de regiões e países diferentes, mas na maioria francofônicos, reunem suas comunidades para cultos conjuntos. Todos de origem reformada, mas que com o passar do tempo se tornaram diferentes, às vezes no que se refere à liturgia, às vezes no que se refere à teologia. Por isso, a Assembléia do Deserto é tão importante, permite redescobrir a fé comum, presente na resistência dos séculos XVII e XVIII, e no estabelecimento do protestantismo no século XIX.


Embora a grande maioria dos fiéis presentes reconheça suas raízes huguenotes, que deu origem entre outros aos presbiterianos e à própria Igreja Reformada francesa, mas também, por influência indireta, à Igreja Reformada evangélica, aos metodistas, adventistas, Exército da Salvação, pentecostais e darbistas, se dirige à Assembléia do Deserto não muito preocupados com essas origens. Assim, todas as tendências do protestantismo europeu se fazem presentes em Cèvennes, no verão, para adorar a Deus, realizando cultos nas cidades de Anduze, Saint-Jean-du-Gard e Alès, em reuniões de até 900 pessoas, o que é um número expressivo quando nos referimos à Europa. 


Até os pentecostais de hoje se sentem próximos às manifestações inspiradas dos antigos profetas cèvenols. Uma dessas correntes pentecostais que reinvindica a tradição profética cèvenols é a Mission Timothè, que inquieta os mais tradicionais. 


Um pouco de história


Quando falamos de camisards, temos que voltar ao levante popular, que teve origem com a revogacão do Édito de Nantes, em 1685, que deu início a uma violenta perseguição à fé reformada. Os templos foram fechados, os cultos proibidos, pastores obrigados pela força a se converter ao catolicismo ou a fugir para o exílio. Os huguenotes que não fizeram o caminho do exílio para a Suíça, Alemanha, Países Baixos ou Inglaterra, se refugiaram nas montanhas e nas florestas, formando as primeiras Assembléias do Deserto.


Nessa época, se desenvolveu entre os crentes um interessante fenômeno espiritual: o profetismo, que levou camponeses, mulheres e crianças a profetizar, a anunciar acontecimentos extraordinários, chamando à resistência. Em resposta ao testemunho da fé protestante, os dragonnads, dragões do rei, católicos arregimentados atacaram com maior violência ainda os fiéis protestantes. 


Na noite de 24 de julho de 1702, um pequeno grupo de protestantes, liderado pelo pelo profeta Abraham Mazel e por Pierre Esprit Séguier, com a finalidade de libertar um grupo de jovens presos em Pont-le-Monvert, atacou a abadia de Chala, residência do inspetor das missões católicas de Cèvennes, a serviço da diocese de Mende, que era famoso pela caça sem piedade que fazia aos protestantes. Nessa noite a abadia foi massacrada.


Como esses ataques guerrilheiros dos protestantes aconteciam, em geral, à noite, os jovens combatentes costumavam vestir uma camisa branca para serem reconhecidos por seus companheiros durante os combates. Do uso dessas camisas brancas veio o nome camisard, que hoje é sinônimo de maquis, resistente. Essa guerrilha foi amplamente apoiada pela população de Cèvennes e foi crescendo numa sucessão de vitórias.


Diante das derrotas sistemáticas, no final de 1703, o governo decidiu incendiar todas as vilas, cidades e fazendas que pudessem apoiar os camisards. Em 1704, o profeta Roland foi morto, e, em 1710, o mesmo aconteceu com Abraham Mazel. Mas a igreja protestante resistiu e se reorganizou. Em 1787, com o Édito da Tolerância, depois, em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem, e, em 1791, com a adoção da da liberdade de culto pelo governo francês, os protestantes depois de mais de cem anos de resistência e luta puderam adorar a Deus a seu modo.


E se você vier a Cèvennes, no verão, participe dos cultos da Assembléia do Deserto e não se esqueça de fazer uma visita ao Museu do Deserto, na comuna de Mialet, cidade natal de Pierre Laporte, o camisard Roland. O museu, através de objetos usados nos cultos e da vida cotidiana, é um impressionante documento da resistência dos protestantes à perseguição sofrida nos anos de 1685 e 1789. Para os estudantes de Ciências da Religião é interessante pesquisar a coleção de hinários e de Bíblias antigas do museu.  


Esses acontecimentos se deram numa época de intolerância religiosa, o que não nos autoriza ao ódio contra os católicos. Devemos sim defender a liberdade religiosa, de pensamento e de expressão, deixando que o Espírito toque os corações. E como os irmãos que hoje se fazem presentes à Assembléia do Deserto agradecemos a Deus por sua fidelidade, por ter mantido viva a igreja protestante na França.



Onde está o chão?



Quando analisada a partir do princípio protestante, a situação proletária mostra que a miséria humana toca tanto o corpo como a alma. E a contracultura, por sua parte, lembra ao protestantismo que o dualismo platônico, idealista ou burguês, não tem correspondência nem com a mensagem bíblica, nem com a teologia. Por isso, Tillich disse que o protestantismo está livre para o materialismo proletário. Porém, no caso brasileiro, desde sua origem, com os mercadores ingleses e imigrantes alemães e norte-americanos, e depois com os missionários norte-americanos, o protestantismo sempre teve para o país um projeto político capitalista.


Com a teologia liberal, presente no Brasil nas primeiras décadas do século vinte, tal projeto político capitalista viu os Estados Unidos como modelo de um desenvolvimento que, no entanto, esbarrava na cultura católica, considerada cartorial. Por isso, no correr do século vinte, o catolicismo sempre foi olhado como força retrógrada, inimiga do progresso. Mas até os anos cinquenta, os protestantes não tiveram como enfrentar o catolicismo dominante.


Foi a cavalo do crescimento econômico a partir dos anos cinquenta, com o surgimento de novos setores sociais, de uma classe média e de um proletariado urbano modernos, que o protestantismo abandonou velhas maneiras de ser, virou evangelicalismo, movimento reformista, redentor, e cresceu entre as massas urbanas.


Nos vinte anos de ditadura militar, esses protestantes tiveram uma oportunidade política: foram reconhecidos como força religiosa emergente – e isso os militares conseguiram ver e aproveitar – e também futura força política. Tal realidade fez com que o evangelicalismo nascente levantasse como sua herança o projeto político capitalista. E foi esse projeto, agora evangélico, que sensibilizou e conquistou milhões de brasileiros. E, ao que tudo indica, vai continuar conquistando. Nesse sentido temos aqui um processo civilizatório calcado sobre uma antiga proposta, fazer do Brasil um país capitalista como os Estados Unidos dos anos cinquenta. 


Os evangelicalismos urbanos estão à procura de fundamentos, numa busca por bases sólidas, mas não por um centro. Tal busca por fundamentos nem sempre é bem resolvida por causa das inter-relações sociais. Ou seja, os evangelicalismos, assim como outras religiosidades urbanas na alta modernidade, apresentam um forte grau de inautenticidade. 


Claro que o evangelicalismo não é, por natureza, inautêntico em relação aos seus objetivos, porque tem por base o princípio protestante de luta pela justiça, mas muitas vezes chega próximo ao delírio na inautenticidade da experiência que oferece às pessoas. Por isso, o evangelicalismo globalizado, ou aquele de expressão local, solitário, é um espaço e tempo de produção da diferença, mas também de contínua produção da globalidade. Tal situação remete à urbanização global e à tendência de acomodação e de homogeneização do evangelicalismo. 


A produção da diferença é um ingrediente essencial à urbanização, que está envolvida na múltipla variedade do evangelicalismo. Ao mesmo tempo, as micro-expressões evangélicas ocorrem no contexto das práticas protestantes globais. Assim, os evangelicalismos têm que se aco­modar à materialidade do mundo urbano com suas contingências e à multiculturalidade, inclusive para dar sentido às necessidades de seus fiéis.


É importante reconhecer os esforços do evangelicalismo em correlacionar o mundo global com o local. Isto porque o evangelicalismo em sua diversidade tem que responder às questões de suas micro-expressões dentro do contexto do interesse local, particular, mas também global. Assim, a questão do evangelicalismo urbano emer­giu com força significativa na vida brasileira nos últimos sessenta anos. 


Uma primeira hipótese parte da abordagem da urbanização do evangelicalismo brasileiro a partir das generalizações empíricas referentes à crescente compressão do protestantismo em um campo global único. A segunda hipótese parte das idéias conceituais sobre os modos pelos quais os protestantismos deveriam ser mapeados em termos sociológicos. As duas compreensões estão relacionadas. No início da expansão evangélica urbana no Brasil, nos anos cinquenta, a questão da busca de sentido era central. 


No final da década de 1970 teve início o ressurgi­mento dessa busca de sentido e vimos o fenômeno como ex­pressão de identidade social. Mas não notamos que essa busca por identidade social era também, e muito, busca por conquistas dentro da sociedade capitalista. Ao perder a noção da herança política protestante em solo brasileiro, enquanto ética do capital, se passou a ver a busca por fundamentos, analiticamente, apenas enquanto problema de particularidade do cenário global. 


Mas a verdade é que a tradução do projeto político protestante na alta modernidade brasileira está a ser construída através de princípios que balizam a busca por fundamentos. Esses princípios se expressam como teológicos quando levantam o conceito da promessa de vitória dos escolhidos. Como econômicos, quando direcionam os crentes a um novo posicionamento no mercado produtivo, não mais como assalariados, mas como gestores. Como sociais, quando baseados em famílias mononucleares de alta performance, o que implica em rígido controle da natalidade e educação dirigida para um novo posicionamento na produção. E financeiros, onde dízimos e ofertas são vistos como investimentos que geram retornos materiais. Assim, é necessário analisar a construção glo­bal do fenômeno evangélico urbano e como se dá sua busca por fundamentos dentro do projeto capitalista protestante. 


Quando analisamos a primeira hipótese, focamos a compressão espaço-temporal, que percebe a necessidade das cidades em expressarem suas iden­tidades através de propósitos internos e externos. Olhando dessa perspectiva, a busca evangélica por fundamentos é uma reação e não uma criação da globalidade. Mas, a partir da segunda hipótese, vemos que a expectativa de identidade é construída dentro do processo geral de globalidade.


Quando falamos de urbanização brasileira na alta modernidade estamos nos referindo aos caminhos específicos que as cidades tomaram nos últimos anos na construção de suas singularidades. Mas também que no processo geral da globalidade, as cidades brasileiras, por razões geográficas e por suas diferentes expressões de multibrasilidade, tenderam a um processo de diferenciação. Estes dois aspectos, no que se refere ao evangelicalismo urbano estimularam os fundamentalismos gerando dois tipos de vivências: a totalizan­te e a antitotalizante.


Os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo totalizante apresentam um empenho estratégico de ligar sua urbanidade à globalidade, sob a suposição de que suas teologias e doutrinas e mesmo suas expressões eclesiológicas possam ser mais bem resolvidas no reconhecimento de ser enclave de um contexto maior. Mas consideram que seus desafios só podem ser resolvidos ao nível urbano. Essa leitura se expressa principalmente naquelas entidades e mesmo agrupamentos de tradições e heranças históricas, chegadas com os protestantismos de imigração e missão, que pensam seus desafios de forma estritamente analítica e constroem uma visão de mundo que acaba por excluir a cidade. De todas as maneiras, devemos entender que quando realçamos a globalidade tendemos a nos perguntar: mas podem as urbanidades não ser partes da globalidade? Ora, tal questionamento surge quando se pensa apenas a relação globalidade/urbanidade em termos de grande/pequeno, forte/fraco, civilizado/nativo. A noção de globalidade refere-se à universalidade em sua plenitude, mas não é a única dimensão da expressão evangélica. 


Já os evangelicalismos que se situam no campo do fundamentalismo antitotalizante, ao enfrentaram a questão globalidade/urbanidade não colocam a globalidade no centro da discussão. Ao contrário, dão importância ao fato de que as cidades brasileiras na alta modernidade se transformaram e continuam a se transformar em espaços de conquista capitalista. Por isso, se voltam para as culturas regionais. Só que as expressões urbanas, locais e regionais também se tornam cada vez mais globais. De certa maneira, o fundamentalismo antitotalizante nega a globalidade em seu sentido primeiro, como processo autônomo, e por sensibilizar que a principal dinâmica da globalidade envolve um processo de urbanização, privilegia o espaço urbano com suas possibilidades e desafios. 


Ora, o fundamentalismo evangélico brasileiro é capitalista e urbano, o que facilita a emergência de movimentos que buscam o significado imediato das cidades e procuram ressignificações globais para as questões enfrentadas por seus membros. A globalidade das cidades remete à busca global por soluções localizadas. Tal busca leva aos cultos contextualizados, às necessidades dos estratos sociais marginalizados e à proposta de reconstrução da vida. Tal compreensão, nesse tipo de fundamentalismo, repousa sobre a procura da pessoa urbana por respostas atávicas à globalidade. Essas respostas atávicas expressam atitudes antitotalizantes. 


Para o fundamentalismo antitotalizante o centro da teologia e da prática não é apenas a procura por funda­mentos, mas a correlação entre a busca por fundamentos e a comunidade, onde as crenças caminham pari passo com a saudade de algo que ficou para trás. Dessa maneira, o fundamentalismo antitotalizante trabalha com um sentimento de perda, de nostalgia. Mas, quando a procura por fundamentos é organizada em bases extra-urbanas a idéia de volta aos fundamentos reais fica problematizada. 


A procura por fundamentos foi uma marca do protestantismo, mas na urbanidade brasileira aprofundou-se o conservadorismo fundamentalista, quer totalizante ou antitotalizante. Mas é preciso entender que tais fundamentalismos viabilizaram o movimento evangélico. Os evangelicalismos vivem numa urbanidade que é um espectro de diferenças entrecruzadas. Esta é a urbanidade onde os evangelicalismos funcionam, onde o aqui e agora não está mais isolado, nem está definido. Por isso, a herança do projeto político protestante tem fissuras e possibilita leituras sociais, como a apresentada pela teologia da missão integral, uma práxis evangélica que nasceu do diálogo com a teologia da libertação. Além disso, tal herança associa, de forma estranha, mas compreensível, a defesa tanto de fundamentos tota­lizantes como antitotalizantes.


Por mais que pareçam rudes ou grosseiras, algumas idéias devem ser realçadas na finalização desses três artigos sobre os mitos da religiosidade evangélica: (1) a pobreza não é ideal ético no Brasil evangélico; (2) é melhor ser banqueiro de Cristo do que “povero Francesco d'Assisi”; (3) no evangelicalismo não há santos, o que possibilita múltiplas compreensões e múltiplas atitudes; (4) líderes bem sucedidos – pastores, bispos e apóstolos – são confiáveis por serem exemplos do projeto político protestante e, por extensão, padrão para a comunidade. 


As relações entre evangelicalismo, projeto protestante e urbanização nos ajudam a compreender alguns mitos da religiosidade evangélica. Expressões de inautenticidade são superficiais e não traduzem o fenômeno evangélico enquanto processo civilizatório. Quer queiramos ou não, o fato é que o evangelicalismo transformou-se em formador e dinamizador de um projeto capitalista. Esse fenômeno corre em trilhos próprios a pleno vapor. 


Apesar dessa obsessão política capitalista no evangelicalismo, a esperança exorta à luta política a caminhar na direção de um futuro bom. A ação evangélica não-alienada deve criar novas possibilidades de existência, provocar antecipações significativas do futuro. Na ação animada pela espera, há transformações e superações, embora nunca se alcance uma existência isenta de ameaça. O princípio último da justiça é o reconhecimento concreto da dignidade do ser humano como pessoa e, em primeiro lugar, dos injustiçados ou ameaçados pela injustiça. Essa é a proposta militante de Paulo, o apóstolo, no capítulo doze de sua carta aos romanos, com trechos presentes nos intertítulos deste artigo. Esse é o desafio – correlacionadas unidade e diversidade --, construir um tempo de justiça, paz e alegria, que sobrepasse os limites do capitalismo, seja ele evangélico ou não.



Histórias da vovó Ester 


Meninas... Vou contar para vocês a estória da vovó Ester, meio lenda, meio memórias, que estão meio em livros por aí. Ela nasceu em 1638. Sua mamãe se chamava Raquel Pinheiro, de Amsterdã, uma cidade holandesa, mas o nome do papai dela a gente não sabe qual era. 


Como todas as mulheres da família ela não era alta, tinha talvez um metro e sessenta. De olhos negros, cabelos cacheados e pele morena, sabia ler e escrever em três idiomas, espanhol, holandês e inglês, mas memorizava suas orações, para evitar ter livros religiosos em casa, embora guardasse a sete chaves algumas histórias antigas como as de Judite e Ester. Entre as tradições que mantinha, acendia as velas no início do shabat e nos dias prescritos pela Lei. Orava em ladino, dentro da antiga tradição marrana, entre as quais uma oração de Rosh haShana, o “Sakrifisyo de Ishak”:


“Abastado sea, Eterno Dios,

El sakrifisyo de Ishak

Ke por ser el su amado

Avraam lo entrego en korban,

Desterrado”.

Manteve, assim, na família os costumes sefaraditas e a identidade judaica.


A vovó Mariana contava que a vovó dela dizia que vovó Ester tinha um sorriso todo especial. Quando sorria metade dos desafios caiam por terra, derretia gelos e apagava fogueiras. Mas era, sobretudo, muito sábia, perspicaz. Certa vez quando visitava o porto de Boston, em conversa com o juiz Andrew Wiggin, este lhe perguntou o que uma senhora fazia ali no cais, entre escravos e homens rudes. E a vovó respondeu:


-- Estou construindo caminhos para as minhas netas. 


Ela casou-se com seu primo Isaque, o vovô, em 27 de janeiro de 1656, em Amsterdã. O vovô contou, em 1708, que o pai dele e uma irmã moravam em Amsterdã, por isso a gente acredita que esses primeiros membros da família Pinheiro participaram do êxodo marrano para a Holanda que ocorreu durante a primeira metade do século XVII. Para entender o que significa marrano, vamos contar um pouco da história da Espanha. Depois que os cristãos espanhóis conseguiram expulsar os mouros, no século XIV, eles resolveram acabar com toda a presença não católica que ainda havia na Espanha. Ora, os judeus viviam na Espanha desde o século IV e tiveram uma presença próspera e bem sucedida na península ibérica.


Depois da expulsão dos mouros, a igreja católica exigiu que os cerca de 400 mil judeus se convertessem ou deixassem o país. Esse, porém, não foi um processo pacífico. Aconteceram levantes contra os judeus, sendo o maior deles o de 1391. O resultado dessa perseguição levou 250 mil judeus a aceitarem a conversão forçada. Passaram então a ser conhecidos como “cristãos novos” ou marranos, palavra que vem do árabe e significa porco.


Como muitos desses marranos continuaram a praticar o judaísmo em segredo, os reis católicos trouxeram para a Espanha, em 1478, o Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, para avaliar e julgar se os cristãos convertidos eram fiéis ou não. A partir daí começou uma perseguição terrível contra os marranos. O que levou milhares deles a fugirem da Espanha, indo então para a Holanda e outras regiões onde a perseguição não tinha chegado. Assim, as famílias da vovó e do vovô fizeram parte do êxodo marrano em direção à Holanda.


Mas de Amsterdã o vovô foi para em Nova York, onde trabalhou como importador-exportador e teve dois sócios Levi Moisés Gomes e Abraão Bueno de Mesquita. Em 1708 mudou para Névis, uma ilha do mar do Caribe, situada perto da extremidade norte do arquipélago das Antilhas.


Para a gente entender a garra da vovó Ester, vou contar um pouco da história de Névis. No início do século XVII, Névis era a “rainha do Caribe”: produzia e exportava tabaco, dando um lucro danado aos ingleses. Mas, em 1628, em consequência de uma guerra entre a Grã-Bretanha e a Espanha, os espanhóis invadiram as ilhas da região e mandaram os ingleses e franceses de volta para seus países. Anos mais tarde foi assinado um tratado, em 1630, e as ilhas foram devolvidas aos ingleses. Em 1640, Névis, assim como St. Kitts passaram a produzir cana de açúcar e a prosperidade deslanchou. Por volta de 1660, Névis era a colônia mais rentável da Inglaterra, superando as treze colônias norte-americanas. Mas isso fez de Névis e também de St. Kitts alvos dos piratas e de várias nações européias. 


Em 1690, um terremoto e um tsunami destruíram a cidade de Jamestown. A cidade afundou no mar e a terra se moveu pelo menos 100 metros a oeste. A capital foi então transferida para o sul, para Charlestown, e o comércio do açúcar voltou a crescer. 


Saint Kitts foi devastada na virada do século. Os franceses atacaram as tropas britânicas em 1705 com mais de oito mil soldados, derrotando os mil soldados aquartelados na ilha. Durante oito anos os franceses ocuparam St. Kitts, até assinatura do tratado de Utrecht, em 1713. Com o total controle sobre a ilha, os ingleses transferiram a capital para Basseterre em 1727 e mais uma vez a produção de açúcar decolou.


St. Kitts cresceu e exportou muito, mas Névis entrou em declínio. A monocultura e a erosão devido à inclinação do solo levaram a produção açúcar cair continuamente. E foi nesse contexto de prosperidade, desafios e declínio econômico das Índias Ocidentais, mas em especial de Névis, que viveu vovó Ester.


A primeira referência documentada que temos da vovó Ester é da época em que morava com o vovô em Nova York, quando comprou do governador Lord Cornbury uma escrava chamada Bastiana e que lhe custou quarenta libras. Sabemos que a vovó, principalmente quando morou em Névis, teve muitos escravos. A vovó Ester via a escravidão dos negros como realidade ligada à produção. Embora fosse uma revolucionária ao nível das relações mulher/ homem, da família, não conhecemos por parte da vovó nenhuma crítica à escravidão negra. Talvez porque sua concepção era a da conquista de direitos. Sim, vovó era uma mulher da sua época, com virtudes e defeitos. Mas, queridas netas, vamos aprender com as virtudes dela e ir além de seus erros. Justiça é a palavra que deve nortear nossas ações.


A segunda referência documentada que temos da vovó Ester é um recibo de mercadorias transportadas para Levi Moisés Gomes de Nova York por conta da senhorita Anne Levermore. Este recibo foi assinado em 20 de fevereiro de 1707. Não sabemos para onde as mercadorias foram enviadas. A vovó Ester estava em Nova York na época da compra das mercadorias. É importante dizer que Nova York fora fundada algumas décadas antes como um posto de troca comercial por judeus holandeses, em 1624, que tinham vivido antes em Pernambuco, no Brasil. Mas, o certo é que a vovó Ester emigrou para Névis no ano seguinte e aparece como residente na ilha no censo que foi feito em março de 1708.


Quando o vovô morreu, em 17 de fevereiro de 1710, ela escolheu duas pessoas para executarem o testamento do vovô em Nova York. Através de carta nomeou Rip Van Dame e Luís Gomez, que também eram comerciantes, a fim de acertarem as contas do vovô Isaque no Citty Said de Nova York e para receber dos devedores. 


Depois da morte do vovô, a vovó Ester Pinheiro virou uma comerciante super bem-sucedida. Tinha plantações de açúcar, importava produtos da Europa e fazia o comércio de sal, melaço, madeira e peixe. Há vários registros sobre as atividades comerciais dela em Névis, entre os anos de 1708 e 1723. Que ela tinha grandes planos não há dúvidas, pois nos anos de 1716, 1717 e 1718 fez várias visitas aos portos de Boston e Nova York Mulher porreta era a vovó. E entre 1720 e 1728, imaginem, comprou três navios, "Samuel", "Abigail" e "William", em sociedade com um comerciante não judeu de Boston. E depois comprou um quarto navio, "Ester", em sociedade com comerciantes judeus de Boston e Névis. E, assim, seus quatro navios levavam as mercadorias comercializadas pela vovó do porto de Névis para Barbados, Boston, Rhode Island, Madeira e Londres. E de cada um desses portos trazia outros produtos. 


Não sabemos exatamente o dia, mês e ano da sua morte, mas seu testamento foi lido em St. Kitts em 1733 ou 1734. A partir do censo de Névis e dos testamentos do vovô e da vovó, sabemos que eles tiveram cinco filhos, dois meninos, Jacó e Moisés, e três meninas, Sara, Rebeca e Judite. 


O extraordinário na vida da vovó foi a ruptura com a aceitação da servidão feminina, já que esta era a regra do olhar masculino, mesmo para um juiz como Andrew Wiggin. Ele e os cristãos da época achavam que a mulher era para dentro de casa. Mas diferente das outras tradições religiosas, vovó foi buscar nas leituras dos livros antigos a compreensão de que a mulher não é a santa do lar. E como conta o livro de Judite, deve decapitar os Holofernes que ameaçam a construção de um futuro de liberdade.


De pé ao lado do leito, movendo em silêncio os lábios, ela orou com lágrimas ao Eterno, dizendo: Senhor, Deus de Israel, dai-me força. Olhai agora o que vão fazer minhas mãos, a fim de que, segundo a vossa promessa, levanteis a vossa cidade de Jerusalém, e eu realize o que acreditei ser possível graças a vós. Dizendo isto, aproximou-se da coluna que estava à cabeceira do leito e tomou a espada que ali estava pendurada; desembainhou-a e, tomando os cabelos de Holofernes, disse: Senhor, dai-me força neste momento! Feriu-o duas vezes na nuca e decepou-lhe a cabeça. Desprendeu em seguida o cortinado das colunas, e rolou por terra o corpo mutilado. Feito isto, saiu e deu à sua serva a cabeça de Holofernes para que a metesse no saco. Depois saíram ambas, como de costume, como se fossem para a oração. Atravessaram o acampamento, contornaram o vale e chegaram às portas da cidade. (Judite 13.6-12).


E, assim, como Judite, parecia entender que tal postura não é uma necessidade apenas familiar, mas ação cultural e social. 


Por isso, vovó Ester entendeu, mesmo sendo mãe de cinco filhos, que a maternidade não era destino sacrossanto, mas desafio na construção de descendentes livres, capacitados, por sua vez, a transmitir consciência e liberdade às gerações futuras. Nesse sentido, o afeto é conquistado, não é destino, e tanto a maternidade quanto a paternidade são relações paritárias.


A vovó Ester e o vovô Isaque viveram como marido e mulher até que o Eterno levou o vovô para o lugar além de todo o mal. Mas, para realizar seus projetos, em momentos distintos viveram em cidades diferentes. Aliás, quando o vovô morreu, ele vivia em Nova York e ela em Névis. Isso mostra que a esfera doméstica não regeu com vara de ferro a relação entre vovó e vovô. O lar, muitas vezes locus político de opressão da mulher, estava submetido ao projeto maior da vida dos dois: serem livres na nova sociedade das Índias Ocidentais e serem cooperadores entre si.


Vovó Ester entendia que ser mulher ia além de qualquer divinização da maternidade e da escravidão às tarefas do lar a que as mulheres cristãs estavam destinadas. Ser mulher não era ser rainha de coisa alguma, mas ser pessoa que olha e age para além dos preconceitos de uma época. É ser Judite, mulher engajada na luta de seu povo, que usa as armas possíveis. Podem ser olhos negros sagazes. Podem, é claro. Pode ser o sorriso que derruba barreiras? Pode, é claro. Mas é, sobretudo, a consciência de futuro – que abre caminhos para as netas – que fez de Ester essa vovó tão especial. 


Queridas netas, a vovó Ester construiu uma história de garra e talvez suas histórias ajudem vocês a construírem um mundo ainda mais impressionante. E parabéns pelo dia internacional da mulher.



Se o capital é a besta do Apocalipse...

 

 

O filósofo da libertação Enrique Dussel em Las metáforas teológicas de Marx [Editorial Verbo Divino, 1993] considera Marx um teólogo negativo, que construiu um discurso metafórico, que possibilita leituras transversas num novo século marxiano, diferente do anterior, por não mais existir o bloco burocrático. Será a partir de Dussel que vamos fazer uma rápida viagem por este pensamento metafórico-teológico de Karl Marx.

 

Partimos da hipótese de que Karl Marx não está teoricamente morto, mas, ao contrário, continua a dar impulso a novas leituras no campo da filosofia e da teologia. Marx, luterano de origem judia, se preparou para ser professor adjunto de Bruno Bauer em Bonn, e como Bauer seria um professor de teologia, se não tivesse deixado a universidade. Na verdade, a teologia não estava fora do horizonte existencial de Marx, porque o protestantismo da região renana, que influenciou Tréveris, cidade natal de Marx, esteve sob forte presença pietista. Dussel cita Heinz Monz [Karl Marx. Grundlagen der Entwicklung zu Leben und Werk, 1973] e diz que “quase todos os rabinos de Tréveris desde o século  XVII até a emancipação pertenceram à família dos pais de Karl Marx”. E segundo Arnold Künz-li [Karl Marx. Eine Psychagraphie, 1966], também citado por Dussel, Marx só é “compreensível desde a configuração do Antigo Testamento e da mensagem bíblica do judaísmo”. 


A mãe de Marx, Henriette Marx, 1788-1863, era judia de origem holandesa, e teve entre seus familiares importantes rabinos. Seu sobrenome de solteira era Pressburg (Pressborck). Por motivos políticos, já que o imperador prussiano desejava uma burocracia homogênea, seu pai se batizou, possivelmente entre 1816 e 1817. No dia 26 de agosto de 1824 Marx foi batizado. Sua mãe nunca se batizou, mantendo-se espiritualmente judia. Mas, ao que tudo indica, Marx não aprendeu hebraico, porque em seu exame de final do curso secundário não recebeu nenhuma nota em hebraico, o que leva seus biógrafos a pensarem que não conhecia o idioma. E como seu pai, Marx era de origem pequeno-burguesa, formado na tradição judaica, mas também luterana. Ainda no segundo grau, conheceu o pietismo através dos ambientes hegelianos de Berlim e da própria filosofia vigente na época. Schelling, Hoelderlin e outros da mesma geração também foram marcados pelo pietismo. E nessa tradição situam-se o idealismo alemão e o Iluminismo. 

 

Assim, as posições filosóficas, éticas, antropológicas e históricas de Marx estavam relacionadas aos problemas teológicos colocados na época. Marx apresentava, assim, soluções para problemas teológicos. Não é de admirar, então, que se descubra leituras teológicas no pensamento de Marx, entre as quais uma discussão da escatologia do anti-Cristo, presente no pietismo alemão, que dava prioridade à práxis. E será a partir dessa leitura que Marx se oporá ao Estado luterano em primeiro lugar e depois lançará sua crítica contra o capital. 

 

Nessa construção, Marx trabalhou com duas premissas. A primeira delas dizia: se um cristão é capitalista... Esta premissa situa o cristianismo existente, cotidiano, enfim, o cristianismo protestante e puritano da Europa na época de Marx. O capitalismo é o realmente existente, compreendido cotidianamente por todos. 

A segundo premissa era: se o capital é a besta do Apocalipse, o demônio visível, conforme Apocalipse 13.17, “ninguém podia comprar ou vender, a não ser que tivesse o sinal da Besta ou o número de seu nome” e 17.13, “esses dez estão de acordo entre si e entregaram à Besta o poder e a autoridade que possuem” [El Capital, Siglo XXI, t. I/1, 1979]. Dussel cita Engels, que em El libro del Apocalipsis, 1883, ao falar do fetichismo do capital diz que “essa crise é o grande combate  final entre Deus e o anti-Cristo, como o chamaram outros. Os capítulos decisivos são os 13 e 17”. Engels cita o texto de Marx em O Capital, e comenta: “O cristianismo, como todo grande movimento revolucionário, foi estabelecido pelas massas.” 


Assim, a segunda premissa apresenta o capital como Moloch, um fetiche, o demônio visível, como desenvolvimento da doutrina do anti-Cristo pietista. O cristão se encontraria em contradição porque o exercício cotidiano da práxis no sistema capitalista envolveria eticamente uma ação satânica, demoníaca. Ora, da sua origem judaica e mesmo da compreensão pietista, Marx parte da tradição teológica de que Deus é transcendente, donde uma divindade visível é satânica, idolátrica, e não pode ser Deus. E a conclusão é: esse cristão se encontra em contradição prática. E tal construção lógica é verdadeira, pois o cristão só teria quatro maneiras de livrar-se dela: (a) afirmar o cristianismo e renunciar ao capitalismo; (b) afirmar o capitalismo e renunciar ao cristianismo; (c) inventar uma religião fetichista, com o nome de cristã, que não seja contraditória com o capital; e, por último, (d) interpretar o capital, a fim de que não apareça como contradição diante do cristianismo autêntico e profético. 

 

As possibilidades a e b não podem ser criticadas porque solucionam a contradição objetivamente. Mas, a possibilidade c deve levar à crítica da religião fetichista, questão sobre a qual Marx deixou sugestões, que foram agregadas à tradição marxiana como crítica da religião. Essa crítica da religião fetichista é aceitável quando se pretende construir a consciência cristã autêntica, profética. De Marx podemos dizer o que disse Justino, no século II, quando criticou os grupos hegemônicos do império romano: “Daí que nos chamem também de ateus. E quando se trata desses supostos deuses [romanos] confessamos ser ateus”. 

 

Com respeito à possibilidade d, Marx dedica a ela O Capital, ao impossibilitar ao cristão escapar da contradição, ao mostrar que o capital é mais valia acumulada, e como mais valia é objetivação do trabalho não pago, ou seja, não se pode esconder a visão crítica da não-eticidade do capital. Para desenvolver tal argumento, Marx mostra que o capital esconde essa não-eticidade através da pretensão de criar o lucro a partir dele próprio. Essa pretensão é fetichismo. O caráter fetichista do capital é outra cara da interpretação econômica, política, ideológica, que oculta a essência não-ética do capital: é a afirmação do capital como “absoluto”. 

 

A crítica do caráter fetichista do capital é, em termos epistemológicos, uma tarefa econômico-filosófica. E o argumento de Marx parte da premissa menor “e se o capital é anti-Cristo, o demônio visível”: esse enunciado pode soar como distorção do discurso de Marx para apresentá-lo como teólogo. No entanto, o fato é de que essa contradição do cristão com o caráter fetichista do capital não foi ainda analisado pela teologia cristã. Mas, sem dúvida, Marx desenvolve de maneira metafórica o tema nos capítulos quatro e cinco de O Capital, ao referir-se às determinações relacionadas ao fetiche, ao demônio e à besta do Apocalipse, ou sob outros predicados. Moloch é um deles. O Antigo Testamento no livro de Levítico 18.21 diz: “Não oferecerás em sacrifício o seu filho a Moloch”. E o deus Moloch, a quem os amonitas queimavam seus filhos, aparece 2 Samuel 12.30; Jeremias 32.35; Sofonias 1.5; e no Novo Testamento: Lucas 20.2-5. E nos Manuscritos de 44, Marx diz: “Para poder converter o amor em Moloch, no demônio corpóreo, o senhor Edgar começa convertendo-o em deus. E uma vez convertido em deus, quer dizer, em objeto teológico, cai naturalmente sob a crítica da teologia, e, como é sabido, Deus e o diabo não andam nunca um muito longe do outro”.


Mamon é outra metáfora usada por Marx. “Acaso quando dizeis que deve dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, não considerais como Rei e Príncipe deste mundo não só ao Mamon de ouro, mas também [...] à livre razão?”. E Marx adota a posição dos profetas de Israel, explicitamente, já que se compara como jornalista a eles, apresentando-se como “traça para a Judéia e câncer para Israel”, referência ao texto do profeta Oseas 6.12 na Gazeta de Colônia. E uma terceira metáfora é Baal. Essas metáforas produzem um discurso paralelo dentro do discurso econômico-filosófico de Marx. É o discurso da metáfora, é a teologia metafórica de Marx. 

 

A metáfora, o símbolo, não produz um novo conhecimento no campo da filosofia e da economia, mas abre um horizonte teológico. Por não serem metáforas caóticas e fragmentárias, não se pode falar que não existem metáforas teológicas na obra de Marx. Mas como as metáforas têm uma lógica, então se pode falar de uma teologia implícita em Marx. 

 

Podemos dizer que Marx não teve a intenção de produzir uma teologia explícita e, por isso, não foi teólogo, mas que abriu caminho para reflexões teológicas. Um exemplo: nos Grundrisse, ao falar do dinheiro, diz que “[O dinheiro] de sua figura de servo, que antes se apresentava como simples meio de circulação, se torna de repente soberano e deus do mundo das mercadorias”. Aqui Marx se refere ao texto do apóstolo Paulo, em Filipenses 2.6-7, quando diz: “Ele, apesar de sua figura divina, não procurou ser igual a Deus, ao contrário, alienou-se a si mesmo e tomou a figura de servo”. Marx utiliza o Novo Testamento de forma sutil e consciente. Mostra o dinheiro como o inverso do Cristo, como anti-Cristo. Enquanto Cristo era “figura divina” que se alienou assumindo “figura de servo”, o dinheiro, em movimento contrário, ao ser “figura de servo”, se transforma em “deus”, em fetiche. Cristo se humilhou, o dinheiro se exalta, se diviniza. Trata-se de uma inversão. 

 

Essa maneira metafórica de usar temas bíblicos e conceitos teológicos deve levar o leitor de Marx a uma leitura oblíqua, tanto filosófica e econômica, mas também teológica. Só a leitura aberta, que procura descobrir a lógica do discurso filosófico e econômico de Marx, pode traduzir os significados do caráter fetichista do capital dentro de seu pensamento. Esse é o caminho proposto por Dussel para a compreensão do discurso metafórico, de sentido teológico implícito, negativo e fragmentário de Marx.  

 

 

Pedaço do meu coração



A temática do humano tem pilares, e Janis Joplin, a mamma da minha geração rebelde, cantou uma delas, a alienação de gênero. Seu tema de impacto maior era o relacionamento e a defesa da mulher diante do escapamento masculino. Por isso, vamos falar da alienação e da festa do Novo Ser, que nasce da correlação com o Espírito, pois a humanidade é emancipada por esta correlação. Temos, assim, no Espírito, uma humanidade emancipada, exaltada, esperançosa e exultante. Traçado o curso da humanidade, no qual o presente triunfa, os humanos experimentam o livramento da alienação.


Oh, come on, come on, come on, come on! / Didn’t I make you feel like you were the only man —yeah! / Didn’t I give you nearly everything that a woman possibly can? / Honey, you know I did! (Janis Joplin, Piece of my heart).


Oh, venha, venha, venha, venha! / Eu não te fiz sentir como se você fosse o único homem? Sim! / Eu não te dei quase tudo que uma mulher possivelmente pode dar? / Doçura, você sabe que sim! (Janis Joplin, Pedaço do meu coração). 


O desejo do Eterno foi apresentado na festa do Novo Ser, mas também no seu prazer e dor. Quando o humano cresce no presente se reveste de parecença. Comer o pão juntos, na comunidade da certeza, se faz através da dó, que é afetiva e cuidadosa com o mundaréu machucado. Por isso, quando o Novo Ser viu o mundaréu, ficou com dó porque estava aflito e abandonado. Daí que vamos bailar idéias na festa do Novo Ser.


A teologia diz que há nução para aqueles que estão no Novo Ser. O escrito do Espírito da vida no Novo Ser é a vida liberta do escrito da alienação e do acabamento. De fato, o Eterno enviou o Novo Ser em humanidade semelhante e disse não à alienação no humano, a fim de que o escrito se cumprisse no humano segundo o Espírito. Com efeito, os humanos que vivem segundo o Espírito curtem as coisas que são do Espírito.


And each time I tell myself that I, well I think I’ve had enough, / But I’m gonna show you, baby, that a woman can be tough. / I want you to come on, come on, come on, come on and take it, / Take it!


E a cada vez digo a mim mesma que eu, bem, acho que tive o bastante. / Mas eu vou te mostrar, baby, que uma mulher pode ser durona. / Eu quero que você venha, venha, venha, venha e leve-o, / Leve-o!


Daí a serventia para fazer o bem bom sem olhar, pois o Eterno mostrou o seu prazer: o Novo Ser está mesmo quando o humano acorda e dorme na alienação. A serventia fala com os que estão agachados e diz que o Novo Ser não quis ser assentado, mas sacou a vida pelo mundaréu. A serventia e os agachados foram então e chamaram a meiguice, que não pesa a mão, mesmo quando quer pessoas novinhas em folha. Sigam os meus pés, manejem e treinem do meu jeito, porque tenho serventia e estou agachado, só assim vocês vão dormir folgados, disse o Novo Ser. É isso mesmo, o humano não vive no rabo de arraia, mas na sapiência. É mestre sim, mas do bem bom, de delicadeza.


Temos, então, um alinhamento igual à esquerda e à direita pela certeza, a exclusão temporal de alguns e a inclusão do mundaréu. Ao analisar o alinhamento igual à esquerda e à direita vemos que o ir além do humano repousa sobre a certeza, proveniente do presente do Novo Ser. Essa dó do Eterno não depende do escrito, porque o humano não tem como responder às exigências do escrito, que expressa o Eterno que está do outro lado. Assim, o presente chega com o Novo Ser, que no seu prazer e dor, dá o indulto às alienações humanas. A liberdade diante do escrito não depende do humano aqui, mas do humano para lá de humano. Assim, há um ir além nessa correlação entre o escrito e o presente. 


Take another little piece of my heart now, baby! / Oh, oh, break it! / Break another little bit of my heart now, darling, yeah, yeah, yeah. / Oh, oh, have a!


Leve outro pedacinho do meu coração agora, baby! / Oh, oh, quebre-o! / Quebre outro pedacinho do meu coração agora, querido, sim, sim / Oh, oh, possua um!


Uma toada linda é a animação, que não pisa a fraqueza do mundaréu. Quando alguém é apanhado com a faca na mão, no momento do golpe vil, humanos desarmam, mas não esquecem a serventia do Espírito. Ajudam e obedecem à lei do Novo Ser. Por isso desobriga, e é desobrigado pelo Eterno. A desobrigação da pena foi cantada pelo Novo Ser, porque esquecer o dinheiro que foi levado é difícil, mas é o que o Eterno faz comigo e você. E é o que nos leva à rede, na varanda, no fresco da tarde. E resultado do gozo, da desobrigação e da serventia é quando a comunidade da certeza acende o farol alto e mostra ao mundaréu que a taba e a rede são possíveis, mesmo quando o mar não está para peixe.


O Novo Ser fala de liberdade. Para ser livre não basta a certeza, é necessário permanecer. Mas o que é isso? É continuar na certeza. No humano para lá de humano não deve haver cera. Permanecer é constância e ser humano no Novo Ser. Mas para ser livre é preciso também conhecer o axioma. E o que é conhecer? É gostar de dormir com, mesmo que tenha que comer sal junto. Depois, então, é que se vai inteirar, descobrir. É a partir daí que o humano caminha em direção à liberdade. E a liberdade passa a ser a vida distante da azáfama da alienação.


O Eterno acorda e dorme no partir do pão. Gente é parecença chamada a viver a experiência humana como comunidade da certeza. Pode beber e comer bênçãos nas celebrações de todos juntos. Gente é convocada a conviver na consistência do Novo Ser.


Have another little piece of my heart now, baby, / You know you got it if it makes you feel good, / Oh, yes indeed.


Possua outro pedacinho do meu coração agora, baby, / Você sabe que pode, se isso te faz sentir-se bem, / Oh, sim, realmente.


Liberdade para o Novo Ser é ir para a cama sem a faina da alienação, das coisas que amarram e impedem o movimento do Espírito. Descobrir o significado de duas toadas, ficar e conhecer, na festa do Novo Ser leva ao axioma e ao livramento da azáfama da alienação, escombros e acabamento.



Pede-se ser levantado

 


Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. [Menandro, O Misantropo].

 

Você vai fazer uma viagem no expresso transiberiano. A viagem leva 15 dias, de Moscou até Pequim. Para passar o tempo você vai ler o Fédon de Platão. Você deve fazer uma leitura teatral, em voz alta, na sua cabine, e ocupar a cada momento o papel das personagens centrais no texto. No dia seguinte, da mesma maneira deve ler O Misantropo de Menandro.

 

Tomando assento no trem. Betty Fuks no seu livro Freud e a Judeidade, a vocação do exílio [Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133, conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. 

 

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta aos coríntios de Paulus, o pequeno, apóstolo temporão de Iesous. 

 

Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”. 

 

A frase acima e a continuação do texto, que veremos no correr dessas três aulas, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

 

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatos axanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário. 

 

Platão, em Fédon, num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria. 

 

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?” 

 

Na sequência da viagem, você deve ler o texto grego da 1ª. Carta de Paulo aos Coríntios, capítulo 15. Caso tenha dificuldades com o idioma do Novo Testamento, com a ajuda de um bom dicionário de teologia do Novo Testamento, analise os conceitos anástasis e egeiró que se apresentam no texto.

 

Chegando à Novosibirsk. Paulus conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

 

Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”. 

 

Outras fontes de Paulus foram o profeta Daniel e a literatura intertestamentária, que trabalham com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Os elementos novos da compreensão paulina da anástase, porém, já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulus, porém, acrescentará uma leitura existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

 

Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, no ungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”. 

 

É interessante que Paulus em seu texto sobre a anástase cita o filósofo, dramaturgo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. Parece que Paulus gostava de teatro e de comédias. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”.

 

Que Paulus recorreu à tradição hebraico-judaica fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulus. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de transformação e de criação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulus trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

 

Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cada dia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

 

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulus está preocupado com o corpo, com a vida.

 

Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psique, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psique, também há corpo espiritual”. 

 

Ulan–Baator ficou para trás. Aproveitando seu tempo livre, depois de ter visitado o Parque Nacional de Terelj em Ulan-Baator, você vai correlacionar a presença do pensamento grego e platônico na construção da teologia da anástase/egeiro a partir dos três textos lidos.

 

O trem corre, as paisagens também. Para Paulus, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

 

Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”. 

 

Mas o pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psique, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal. 

 

E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

 

Chegamos a Pequim. Agora, ao desembarcar do trem, com os textos utilizados em mãos, analise o conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos coríntios, tomando como ponto de partida o desafio e a afirmação de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. E considere se, no referido texto, Paulus traduziu – e se traduziu, como? -- o desejo grego/judaico/cristão, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”. Ah! Esqueci de dizer: a viagem não acaba, mas é você quem decide como viajar.



Homo non naturalis



[Chapada dos Guimarães] -- Meia-noite. O tempo está agradável e aproveito para comer uma bagunça dupla aqui na esquina das avenidas Marechal Deodoro com Getúlio Vargas. A fome e a ousadia turística me trouxeram até aqui, nesse início da madrugada cuiabana.


Algumas horas se passaram e estou à caminho da Chapada. Vou de rubi, sete da manhã, a partir da rodoviária. 


Como a vida, o que parece nem sempre aparece, não é, pois. Rubi não, mas viação rápido chapadense pode ser. Até aqui a família chegou, por isso também é terra do Emanuel Pinheiro. Os pinheiros são pinophyta, mas a família é pinaceae. São perenes e resinosos. Tudo casca grossa, escamoso. Mas as novas gerações são bonitas, produzidos em inflorescências regulares, em espiral, anel de brotos, apertado. Desses pinheiros quero falar não. Mas daqueles que enfrentaram o tribunal da Inquisição, em 1536, junto aos demais infectos de sangue, árabes, negros, mestiços e ciganos, que o Ofício resolveu expurgar, e aos de conduta reprovável, feiticeiros e sexuais transviados. Coitados dos pinheiros, perenes, resinosos, casca grossa, escamosos, mas, sobretudo, matadores de aluguel do homem de Nazaré. E durma-se... E porque cristão-novo não fica velho, ó Manuel, sou possuído pelo desvario. Mas quem entende de pinheiro é o Murillo, patriarca dos cubas cariocas.


É, até aqui a família chegou -- do paraíso ao paraíso. Qual é mais paraíso? O paulistano ou o dos Guimarães? Sem dublê, em curvas e imagens, piso no freio porque a pista não tem acostamento. Há homens, máquinas e a Mitsubishi Motors a falar de touro. A placa anuncia o Coxipó do ouro, comedourinho do gado lá das bandeiras, cheio de colonialidades e rusticidades, ao lado das ruínas do arsenal de pólvora.

 

Verde que te quiero verde. / Verde viento. Verdes ramas. / El barco sobre la mar / y el caballo en la montaña. / Con la sombra en la cintura / ella sueña en su baranda, / verde carne, pelo verde, / con ojos de fría plata. / Verde que te quiero verde. / Bajo la luna gitana, / las cosas le están mirando / y ella no puede mirarlas. (Federico Garcia Lorca, Romance sonâmbulo).


Um lugar – pomposamente apelidado de centro geodésico da América latina -- foi marcado pelo pessoal do general Rondon, em 1909, no campo do Ourique, onde se enforcava os contrários e se matava touros por esporte. É a atual Praça Moreira Cabral, para os cuiabanos do tempo presente, ali onde fica a Assembléia Legislativa de Mato Grosso. Mas o mirante fica mesmo na Chapada. Lá embaixo, a planície pantaneira, e ao longe o sol que vai se espreguiçando até cair de sono. Natureza para paulistano nenhum botar defeito. 


Mas a caverna Aroe Jari e a Lagoa Azul ninguém imagina. Fazem parte das formações do Alto Garças e Vila Maria, na bacia do Paraná, na borda noroeste. A caverna é uma gruta de arenito de 1.550 metros de extensão, onde o homo naturalis marcou as paredes. É um cosmo pequeno do cerrado e pisca para uma percorrência inteira desse sistema do centro-oeste. Ver, caminhar, mas não grafitar, por favor, são momentos hippies, cheios de significações que só a Lucy no céu com diamantes explica.


Sou paulistano e isso é profissão de fé, porque considero o apóstolo e a cidade gentes finas. Com todo desrespeito à uniformidade imposta, grito que é na cidade diversa que realizo a polissemia da graça multiforme. Como a carne dos antigos tropeiros, estou na salgadeira, não sou ecologenco, embora respeite a fé. Sou desnaturado, não abraço árvore, nem chamo urubu de meu louro. Sou filho da máquina, respiro nitrogênio e vou viver trezentos anos. Ciborgue. Homo non naturalis, constructo sapiens.


Compadre, quiero cambiar / mi caballo por su casa, / mi montura por su espejo, / mi cuchillo por su manta. / Compadre, vengo sangrando, / desde los montes de Cabra. / Si yo pudiera, mocito, / ese trato se cerraba. / Pero yo ya no soy yo, / ni mi casa es ya mi casa. / Compadre, quiero morir / decentemente en mi cama. / De acero, si puede ser, / con las sábanas de holanda.


Meu guia, o Zé, amacia o quilômetro longo. Homem de muitas andanças é engenhoso no falar pousado. Foi ele quem me contou que aqui as festas começaram longe, lá com os franciscanos de Assis, e vieram chegando. Invadiram os corações dos índios e dos negros. Cantigas e toadas viraram folclore, atravessaram os séculos até chegar ao colégio Buriti, usina de açúcar, a deixar para trás o morro de são Jerônimo. A matéria-prima foi a pedra canga, presente nas construções e nos caminhos que levam ao portal do Céu. Mas se há do céu, do inferno deve haver. Por isso, disse o meu guia, vamos trilhar em direção ao primeiro portal, lugar de descanso no meio do andar longo na viagem para Cuiabá. Mas quem caminha sabe ser a morte companheira de viagem, assim somos meio nobres, meio escravos, todos aventureiros, sem honra para levar as armas e os brasões assinalados. E quando levantamos a arma, para desferir o golpe mortal, o outro portal faz-se presente. E no gesto certo, o de devolvê-la à bainha, faz-se presente o portal do céu. Este é o descanso no meio do caminho, a paz necessária à viagem. Mas ambos sempre estão diante de nós, dentro de nós.


No atrás de muitos atrás, a terra jorrou o seu de dentro, metamórficas, sedimentares, vulcanizadas. História geológica do pré-cambriano e do cenozóico, mas a invasão marinha foi mais forte. Houve uma, houve duas, inundou, infiltrou a esponja do maciço. Hoje, embaixo do pé que anda há caminhos eternos de água, que navegam fora dos olhos pelas terras guaranis.


¿No ves la herida que tengo / desde el pecho a la garganta? / Trescientas rosas morenas / lleva tu pechera blanca. / Tu sangre rezuma y huele / alrededor de tu faja. / Pero yo ya no soy yo, / ni mi casa es ya mi casa. / Dejadme subir al menos / hasta las altas barandas, / dejadme subir, dejadme, / hasta las verdes barandas. / Barandales de la luna / por donde retumba el agua.


Ficam para trás as cachoeiras, cavernas, lagoas, trilhas, sítios arqueológicos, paleontológicos e os artigiani da Praça Dom Wunibaldo. Volto para o habitat, paraíso sem avatares de Vixnu, eu ciberantropo que de leme na mão faço da máquina irmão pós-natural, consciente de que constructo sapiens também é gente.



Um Natal branco



Na Lombardia, o município de Coccaglio lançou a operação White Christmas. Policiais vão de casa em casa para controlar a presença de imigrantes não legais na cidade e expulsá-los, senão do país, como mínimo de Brescia.

 
A operação foi denominada pela imprensa “Um Natal branco sem imigrantes”. Assim, a partir de outubro, até os feriados natalinos, a cidade se transformará em campo de caça aos imigrantes ilegais. O objetivo da mobilização policial é varrer a área, disse o prefeito.
E o secretário de Segurança de Coccaglio agregou: "O Natal não é festa de boas-vindas, é tradição cristã".

 
Logicamente, tal decisão gerou polêmicas. E ativistas ligados aos direitos humanos, afirmam que tal caçada é totalmente ilegal. Mas, enquanto judicialmente a questão não é definida, a operação segue em andamento.


Mas outra questão que chama a atenção é o fato do Natal ser resgatado como festa italiana, de brancos, e mote para a perseguição daqueles que não são nem italianos, nem brancos e muito menos cristãos. Tal questão nos remete à teologia.


Lo Spirito del Signore è sopra di me 

perciò mi ha unto per evangelizzare i poveri


O teólogo estadunidense Ben Witherington III desenvolveu estudos sobre a marginalidade social de Jesus, a partir das acusações feitas a ele pela hierarquia sacerdotal da época (João 8.41) e chegou a algumas considerações interessantes. Ao não ter, por exemplo, pai reconhecido não tinha direito a um nome. Por isso, era visto como alguém de genealogia desconhecida. E o fato de ser nomeado “de Nazaré” (Lucas 4.34, 18.37, 24.19; e João 8.48), oriundo de uma vila de camponeses e artesãos, de mínima relevância, e afastada das rotas comerciais, fazia com que sua identidade geográfica também o desclassificasse como alguém que pudesse jogar papel de importância na vida política e social da Palestina. 


Na cidade de Coccaglio, o nome escolhido para a operação policial, White Christmas, deve-se, aparentemente, ao fato de que terminará no dia 25 de dezembro. Para o criador da operação, o secretário de Segurança do município, Claudio Abiendi, há uma razão cristã, teológica, para a expulsão dos imigrantes ilegais: "Para mim, o Natal não é a festa do acolhimento, mas de nossa tradição cristã, de nossa identidade". 


Assim, até 25 de Dezembro, Coccaglio, que tem um pouco menos de sete mil habitantes, dos quais um mil e quinhentos são estrangeiros, assiste as brigadas de carabineiros ir de casa em casa, tocar a campainha, e informar a cerca de quatrocentos não-europeus que eles devem deixar a cidade. E o prefeito Franco Claretti agrega: “Aqueles cuja autorização de residência expirou há seis meses, deveriam ter renovado seus vistos. Se isso não aconteceu, sua residência está automaticamente revogada”. 


Mi ha mandato ad annunziare la liberazione ai prigionieri 

e ai ciechi il ricupero della vista, a rimettere in libertà gli oppressi


A genealogia e geografia faziam de Jesus um palestino socialmente à margem, que, por suas origens, não merecia crédito. Mas, esse homem sem nome, esse homem sem terra, apresentou aos judeus e palestinos um programa político-social de reforma radical. Esse programa é apresentado e justificado pelo evangelista Lucas (4.14-30) e tem o exercício da justiça como centralidade. 


E nessa pregação pela justiça, todos judeus e palestinos deveriam gozar concretamente de liberdade e usufruir dos bens da natureza -- dom de Deus para suprir às necessidades humanas. E ao recorrer às promessas do jubileu (Lucas 4.19), aquele “nazareno” – e isso era um xingamento -- sem terra e sem nome disse que a natureza era de todos e para todos, e condenou o monopólio que impossibilitava este destino universal. Dessa maneira, a justiça, tão presente no texto referido de Lucas, nasce da mensagem profética presente no discurso de Jesus, e consiste em reconhecer a gratuidade do amor de Deus na Palestina, e, posteriormente, no mundo. Por isso, o discurso de Jesus é o discurso da justiça, da ação justa que remete à paz.


A proposta de repressão aos imigrantes ilegais em Coccaglio é fruto da aprovação de um decreto de segurança que deu mais poderes ao prefeito. E como primeira medida exigiu de seus funcionários o levantamento da situação de todos os estrangeiros na cidade. É interessante notar que, em dez anos, a presença de imigrantes na cidade cresceu de 177 em 1998 para 1.562 em 2008, tornando-se cerca de vinte por cento da população. Diante dessa presença de marroquinos, albaneses, gente da antiga Iugoslávia, entre outros, o secretário de Segurança diz que “não estamos a cometer nenhum crime, só queremos começar uma limpeza”. 


Durante os últimos trinta e seis anos Coccaglio foi governada pela esquerda. Mas a partir de junho a situação mudou e a direita acusou a gestão anterior de ter permitido o caos da imigração ilegal na cidade. O ex-prefeito Louis Wrestling, de centro-esquerda, no entanto, diz que isso não é verdade. "É pura propaganda. Deixei a cidade unida, sem problemas de integração. Os noticiários nos últimos anos só registraram uma briga de faca entre kosovares. E nada mais". 


E a proclamare l’anno accettevole del Signore


Se o discurso de Jesus apresentou um alcance palestino imediato, a partir da própria realidade vivida pelo nazareno, tal discurso remete à catolicidade da promessa messiânica: a restauração do mundo. Ou seja, tal discurso visto sob a ótica teológica do referido texto de Lucas fala do fim da discriminação e da violência. 


Conforme a caçada aos imigrantes ilegais toma corpo tem aumentado os protestos na cidade. E diante disso o secretário de Segurança se defende: “Eu sou crente, estudei no colégio dos salesianos. Onde estavam estas pessoas no domingo passado? Eu estava na Brescia do Papa”. 


E enumera os resultados da operação White Christmas: “A partir de 25 de outubro tivemos 150 inspeções. Metade estava em situação irregular”. E disse que os municípios vizinhos de Castelcovati e Castrezzato também iniciaram ações semelhantes. Mas o apoio a tal política não parou aí. No dia 24 de outubro de 2009 foi realizada a primeira convenção de prefeitos da Liga Coccaglio, em Milão, onde a operação White Christmas recebeu total apoio da direita. “O ministro Maroni é um homem prático, e nos deu conselhos sobre como implementar a medida sem sofrer sanções judiciais”, informou Claretti.


A proposta de reforma do Jesus marginal foi a anunciação profética da entrada em vigor de uma era nova, caso os ouvintes aceitassem a notícia. Não estava a se referir a um evento histórico, mas reafirmava uma esperança conhecida de seus ouvintes: a da reforma econômica e sócio-política que deveria mudar as relações entre os povos palestinos.


Assim, aquele homem de genealogia desconhecida e geografia marginal colocou a centralidade de uma reforma radical sobre ele próprio ao afirmar que naquele momento, na sinagoga de Nazaré, a promessa profética se cumpria. E é isso que Lucas vai mostrar na sequência de seu Evangelho: o reformador marginal era o Cristo universalmente prometido. Niente a che fare con il Natale bianco del comune de Coccaglio!



A alienação como desafio

Reflexões a partir de uma cama de hospital



Sou malandro velho

Não tenho nada com isso (Loki, Arnaldo Baptista, 1974).


Depois de quatorze dias internado no Hospital AC Camargo, em São Paulo, e duas cirurgias, resolvi escrever sobre uma afirmação de Paul Tillich – “o estado da existência é o estado da alienação” – presente na Teologia Sistemática (São Leopoldo, Est/Sinodal, 2005, p. 339), e dizer um olá para Arnaldo Baptista, roqueiro-mor da minha geração militante.


A existência, enquanto processo, pode ter determinação construtiva no sentido teleológico, por apresentar qualidades adequadas à sua natureza ou função. E o humano, momento da existência, tem possibilidades diante dela. Essas possibilidades podem ser chamadas de liberdade condicionada e relativa à própria existência. Mas tais possibilidades são desafios à compreensão da condição humana e de suas relações reais. Estamos, então, falando de alienação.


A alienação antecede o exercício da liberdade. A idéia, trabalhada por Tillich, a partir de Hegel, é de que pertencemos essencialmente àquilo de que estamos separados. Ou seja, o humano não está separado de seu ser, mas é julgado por ele, e mesmo quando este lhe é hostil não consegue separar-se dele. As possibilidades humanas estão, nesse sentido, mesmo enquanto determinação construtiva e dinâmica, sob funções correlatas, alienação e lei, liberdade e necessidade, que são realidades da existência.  


Se a alienação é ruptura essencial, parto que vai produzir a consciência humana, remete tanto ao distanciamento como à aproximação com o ser. Não seria, então, apenas disfunção, mas apontaria também às funções do humano, enquanto ser com possibilidades de realização somática, psíquica, cultural, ecológica e do sentido pleno da vida. 


Na tradição judaico-cristã essa relação entre alienação e liberdade foi um tema teológico de importância. Dos textos judaicos resgatamos idéias como aliança, constância, fidelidade, que remetem à correlação alienação/lei. E no testamento cristão a idéia de destino traduziu o conceito de alienação em seus dois vetores, distanciamento e aproximação.


Por isso, Paulo diz que o Eterno fica de humor transverso com a alienação que distancia, mas segura as pontas com calma, por saber que a alienação é fruto da sua valência, e, diante da alienação que aproxima, também obra sua, Ele expressa alegria. (Romanos 9.22-23).


Paralelo ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma rica leitura do conceito de destino enquanto distanciamento. O conceito destino nasceu da reflexão de que os deuses são imortais porque o humano está situado entre a finitude existencial e a infinitude potencial. Para os gregos o destino era finitude existencial, e esse é o tema da tragédia grega e da busca da superação filosófica, principalmente de estóicos e epicuristas. Era uma tentativa de colocar o humano acima do destino que o distanciava de seu ser, transformando-se em poder destrutivo que envolveu o mundo helênico em culpa e julgamento. 


Na teologia paulina, enquanto diálogo das concepções do apóstolo com o mundo helênico, principalmente em sua carta aos romanos, alienação/destino é o tempo favorável que triunfa sobre o espaço. O caráter do tempo propício à liberdade substituiu o tempo cíclico, transitório e perecível do pensamento helênico. A partir dessa compreensão, alienação/destino traduz aproximação, e apresenta novas possibilidades de construção da liberdade no tempo e na história. 


Ficamos até mesmo todos juntos

Reunidos numa pessoa só


Antes, a filosofia confrontava-se com a inspiração dos poetas, mas, a partir de Paulo, a revelação apodera-se da filosofia. Assim, o destino que distanciava foi questionado pelo pensamento paulino: “aquele que não era meu povo será chamado de meu povo, e aquela que não era amada passou a ser amada”. (Romanos 9.25). O transitório e perecível perdeu importância e a idéia da construção da existência enquanto tempo favorável foi tomando forma. 


Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro da visão paulina, que traduz o pensamento cristão palestino, alienação/destino, no sentido de que os limites são potencialmente ilimitados, é a lei na qual surge o conceito de liberdade. Assim, alienação/destino correlaciona conceitos, porque a alienação está sujeita à liberdade; porque alienação significa que a liberdade também está sujeita à lei; e porque alienação significa que liberdade e lei são complementares e interdependentes.


Analisando o conceito cristão palestino de alienação/destino -- exposto por Paulo em sua carta aos romanos -- podemos dizer que a liberdade humana está ligada às leis universais, de tal forma que liberdade e leis se encontram entrelaçadas. Para Paulo, assim como para a tradição judaica, lei é imposição de limites. Por isso, a alienação é um estado que surge da correlação entre lei e vida, porque se o julgamento é inerente a tudo na existência, também o é a liberdade.


Assim, a certeza de que a alienação/destino é propícia e tem significado realizador e não destruidor, é a peça chave do pensamento de Paulo, que coloca o sentido da vida acima do destino. Ao fazer isso, Paulo está dizendo que a compreensão do destino não está ao alcance da razão humana, mas o sentido da vida traduz a imortalidade potencial do humano. 


Quando o humano faz a defesa do sentido incondicional da vida deixa de temer a ameaça da alienação/destino que distancia, e aceita o lugar que cabe à alienação enquanto estado da existência. Reconhecemos, então, que desde o princípio vivemos num estado de alienação e que sempre desejamos nos livrar dela, mas nunca conseguimos. Mas nessa análise da alienação cabe relacionar sentido de vida e tempo. O sentido de vida deve envolver as leis universais, a plenitude do tempo e a própria existência. E quando o sentido de vida alcança a existência, penetra no tempo e faz da alienação, aproximação. 


É necessário, porém, entender que a consciência parte da alienação e que o reino da existência só é acessível ao conhecimento liberto da alienação que distancia. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade humana – que cresce na medida da expansão do sentido da vida – maior será sua consciência de destino.


O destino humano, que nasce da alienação, aponta para o sentido da vida que emerge das crises e desafios. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no sentido paulino de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossas comunidades, tanto mais livres seremos. 


Assim, a liberdade humana se dá na existência, enquanto realidade condicionada pela materialidade. A liberdade entende-se como correlação entre lei e sentido de vida. Quando Hegel afirmava que a liberdade é a consciência da necessidade, como fez questão de mostrar Marx, cometia um erro porque descartava a realização da liberdade. É por isso que Marx dirá que liberdade é práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade somada à ação transformadora. Ou seja, consciência da lei diante do estado de alienação que distancia é mudança radical, é ação transformadora da vida.


A alienação é um fazer. Em relação ao imediato é um estado e no que se refere à espécie humana é um domínio. A alienação acontece quando minha liberdade é desafiada, quando ela é chamada a surgir como feitura humana. Nesse sentido, a alienação não se apresenta sem agente moral, sem liberdade. Toda vez que realizo minha liberdade a lei está presente, pois a alienação é um contra-tipo da liberdade.


Por isso só podemos responder à alienação que distancia reconhecendo que a alienação é feitura minha e de minha espécie, e que devo promover a ruptura desse estado através da ação de expansão do sentido pleno da vida. Ao nível do pensamento, do sentimento, da vontade e da ação -- pois a alienação que distancia do ser é o que não devia estar -- devemos exercer uma ética radical de defesa da vida e de seu sentido, de combate ao estado de alienação na vida de pessoas e comunidades.


Eu sou velho mas gosto de viajar por aí


Em 1970, Manuel Ballestero publicou em Madri, pela Siglo XXI, La Revolución del Espíritu (Tres pensamientos de libertad), analisando o caráter radical da liberdade no pensamento de três gênios da modernidade: Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Ballestero diz que sua preocupação residiu em analisar o projeto de liberdade desses três pensadores, sabendo que a autonomia e o ato livre são concebidos de maneiras diferentes e mesmo antagônicos, embora existam, no contexto da obra dos três, analogias de fundo. E essas se referem ao fato de que liberdade poderia significar a abolição da lei, o colapso da determinação exterior, e não o comportamento que se adequou aos limites da ordem. Assim, segundo Ballestero, Cusa, Lutero e Marx olham a liberdade como a destruição da ordenação exterior e anterior ao próprio ato livre.


Os ensaios mostram que a revolução teórica empreendida por Cusa e Lutero não é gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraíza no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos detalhes das mutações vividas no século dezesseis, com a ruptura do equilíbrio cidade/campo, o surgimento das manufaturas e a consolidação do sistema de trabalho assalariado, vemos que a alienação que distancia da condição humana na incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a liberdade do sujeito se dá como dor. 


Mas ambos consideram essa subjetividade liberada pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa quanto Lutero partiram do distanciamento nessa subjetividade alienada do nascente capitalismo, considerando que deveria ser superada para que o sentido da vida florescesse. Aí, então, teríamos o fim da não-essencialidade do sujeito alienado e a inserção deste na totalidade objetiva. Mas isso não poderia acontecer sem a transformação dessa realidade objetiva em realidade plena de vida, que sustém o humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o sentido da vida constrói num nível superior o universo anteriormente negado.


O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partiu dessa discussão. Para ele, a religião era a realização imaginária da essência do humano, mas essa essência não tem realidade alguma. De todas as maneiras, há um ponto de interligação nessa perspectiva: a liberdade como abolição da legalidade, como coincidência do momento subjetivo com o momento objetivo e como responsabilidade maior do ser humano. 


Para Lutero, o humano existe como estrutura ontológica dual. Sua conceituação partiu da ansiedade teórica do século dezesseis, mas traduziu-se em superação da subjetividade alienada. O humano pleno do sentido de vida é senhor de todas as coisas, não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da vida em plenitude. Sua liberdade transforma a subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter da liberdade do humano pleno do sentido de vida se dá como processo: morre o imediato, o alienado, e tem início a construção de uma segunda natureza. 


A liberdade surge como deslocamento do humano alienado, como distanciamento crítico daquilo que foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em servidão, criando tensão e luta. “É necessário desesperar-se por você mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão” (Lutero, Les grands écrits, p. 259). Mas superada a tensão, temos a liberdade enquanto sentido pleno de vida, uma dimensão de combate. 


So malandro velho

Não se mete no enguiço


Os humanos são chamados a superar a alienação, ter a liberdade que vai além, a liberdade que é construída na expansão do sentido pleno da vida. E, assim como Paulo, estou convencido de que nem morte ou vida, anjos ou governos, coisas presentes ou futuras, poderes, altura ou profundidade, ou qualquer criatura poderá me distanciar do amor do Eterno, que está no Novo Ser, o senhor.



Conselhos para um rei



Estas são as palavras solenes que a mãe do rei Lemuel lhe disse... Fale a favor daqueles que não podem se defender.


Lemuel aparece no primeiro testamento como rei de Massá e autor de um bloco de textos que cobre todo o capítulo 9 do livro de Provérbios. Embora o nome Lemuel seja de origem hebraica e signifique uma pessoa dedicada a Deus, tudo indica que não era hebreu. Os provérbios de Lemuel, que são os conselhos de sua mãe para ele, trazem recomendações éticas para o rei, ou seja, para ele mesmo depois de coroado. Se partirmos da compreensão de que esses provérbios, como os temos hoje, foram editados em fins do sexto século antes de Cristo, estamos diante de textos com cerca de 2.700 anos, que traduzem uma sabedoria milenar. 


E a partir dessas antigas palavras sobre a defesa dos direitos dos desamparados faremos uma reflexão sobre a morte de Orlando Zapata Tamayo, ativista pelos direitos humanos em Cuba. Mas também vamos recorrer a um texto político de primeira grandeza, Frente a la muerte de Orlando Zapata Tamayo e las libertades en Cuba, publicado pela Liga Internacional de los Trabajadores.


A morte de Zapata, após uma longa greve de fome, gerou uma polêmica internacional. As circunstâncias do caso e sua repercussão acabaram por colocar um foco de luz sobre a atuação do governo cubano. E o debate nos levou a questão do que é atualmente o estado cubano.


A maioria da esquerda saiu na defesa do governo cubano e denunciou que a repercussão da mídia seria uma nova campanha contra o que consideram “o último bastião do socialismo”. 


O primeiro argumento é que Zapata não era um preso político, mas um delinqüente social que aproveitou sua condição de preso para apresentar-se como dissidente. Tal acusação falsifica a realidade. É necessário ver como funciona o sistema penal cubano e quem era Orlando Zapata, porque é a partir desta questão que se começa a entender o que ocorreu.


Os órgãos oficiais de Cuba e quem os apóiam tratam de mostrar Orlando Zapata Tamayo como um preso comum, alegando que foi detido várias vezes nos anos 90, acusado por delitos como agressão, desordem pública e fraude. É sobre esta ficha policial que se apoiam os órgãos do Partido Comunista cubano para caracterizá-lo como delinqüente.


O sistema judicial cubano está a serviço da ditadura. Vamos supor que Zapata tenha cometido esses delitos pelos quais foi preso nos anos 90. Mas, é bom notar, que esses mesmos órgãos oficiais disseram, em dezembro de 2002, que ele não foi detido por esses delitos, mas por ter se transformado em opositor do regime. O jornal Granma, órgão oficial do Partido Comunista cubano, disse que ele foi liberado sob fiança em 9 de março de 2003 e “voltou a delinqüir no dia 20 do mesmo mês”. A que se deveu essa última detenção? O que significa para o jornal do Partido Comunista “voltar a delinqüir”?


Proteja os direitos de todos os desamparados


É interessante notar que o termo hebraico utilizado aqui, halop, pelo mítico rei Lemuel, e que pode ser traduzido por desamparado, significa também desaparecimento, pessoa destinada à destruição, morte. Proteger os desamparados em última instância é isso, evitar que sejam destruídos, que sejam mortos.

 

A última detenção ocorreu porque, junto a outras pessoas, realizava uma greve de fome organizada pela Assembleia para Promover a Sociedade Civil. Foi preso, julgado e condenado por “desacato, desordem pública e desobediência ao Estado” e recebeu uma condenação pesada. Aconteceram, então, protestos de outros ativistas políticos exigindo melhores condições na prisão, e sua liberdade, que culminaram com a greve de fome que o levou à morte.

 
A Comissão Cubana de Direitos Humanos e Reconciliação Nacional (CCDHRN), encabeçada pelo advogado e dissidente político Elizardo Sánchez, afirmou que ele era preso político e, desde 2004, a Anistia Internacional o reconhecia como “preso de consciência”, exigindo sua liberdade.


É muito provável que Orlando Zapata Tamayo tivesse posições pró-capitalistas. Ele, porém, não foi detido porque estava a favor de restaurar o capitalismo em Cuba e sim por exigir liberdades democráticas no país. O enfrentamento que houve entre ele e o governo cubano, e o que o levou à morte, teve origem no fato de que o regime político não aceita opositores.


É necessário se perguntar o que ocorreu em Cuba nas últimas décadas para que um operário especializado, como era Orlando Zapata Tamayo na década de 80, tenha sido condenado a anos de prisão por protestar com o regime. Em segundo lugar, por que o governo cubano preferiu deixá-lo morrer antes de fazer qualquer concessão a um preso de consciência para que não sirva de “mau exemplo”.


As circunstâncias de sua morte e a atitude do governo de Raul Castro de negar sua responsabilidade ofendem todos aqueles que lutaram por liberdades democráticas e que muitas vezes foram lançados nas masmorras  das ditaduras latino-americanas


Fale por eles e seja um juiz justo


Aqui a expressão hebraica, shapat tsadeq, pode ser traduzida por “julga retamente”. Mas significa também exercer bem o processo de governo. E diante de um litígio, onde o desamparado não tem como fazer valer direitos, é pleitear a causa deles, lutar por eles. Interessante! A mãe de Lemuel sugere ao futuro rei que julgue com justiça a causa daqueles que estão condenados à morte e, se necessário, se mobilize por eles.  


É impossível entender a morte de Orlando Zapata Tamayo sem localizá-la no marco de um processo econômico social mais profundo: decadência do projeto de construção de uma sociedade socialista em Cuba, a partir do final dos anos 80 e meados dos 90.


O processo aberto com a revolução de 1959 transformou Cuba num estado com um projeto de construção do socialismo no continente. A revolução conseguiu avanços em áreas como educação e saúde, e melhoria do nível de vida da população e a eliminação da miséria.


Cuba se converteu em um símbolo do que era possível conquistar a partir de um projeto de construção do socialismo e os dirigentes do processo, Fidel Castro e Che Guevara, se transformaram em uma referência política. Mas, desde o início da revolução, o comando revolucionário não soube combinar projeto social e democracia. O estado cubano se ossificou, distanciou-se de qualquer tipo de democracia e se integrou ao aparelho internacional da antiga União Soviética.

 
Tal ligação política se expressou no apoio de Fidel Castro à invasão do exército soviético à Checoslováquia em 1968, por exemplo. No interior de Cuba, impediu o exercício da democracia e perseguiu seus opositores de esquerda.


No final dos anos 80 e começo dos 90, a débâcle no Leste europeu repercutiu como um golpe sobre a economia cubana, centrada na exportação de açúcar e no intercâmbio por petróleo e tecnologia com aqueles países. Neste contexto, a direção cubana começou a adaptar-se aos novos tempos: deixou de lado o planejamento centralizado e o monopólio do comércio exterior, abrindo espaço para uma economia de mercado.


Isso nos leva à Revolução Traída (1936), de León Trotsky, quando dizia que apesar dos avanços econômicos da União Soviética o futuro dela se colocava sobre alternativas: ou se produziria uma nova revolução política que, mantendo as bases econômico-sociais do Estado operário, reinstalasse a classe trabalhadora no poder e impulsionasse a revolução permanente, ou os aparatnicks terminariam restaurando o capitalismo na União Soviética.


Em Cuba, a volta progressiva da economia de mercado levou à deterioração das conquistas anteriores, gerando desemprego, delinqüência e prostituição. O governo de Raul Castro marginalizou outras conquistas: reduziu, por exemplo, o orçamento da educação e saúde. Os salários de setores operários foram arrochados, e os direitos de greve e de organização independente dos trabalhadores continuaram a não existir.

 
Sob tais condições, a China e países europeus se aproveitaram da situação de arrocho salarial e da desorganização política e sindical dos trabalhadores e passaram a investir em Cuba.

 
O processo cubano lembra o modelo chinês: os trabalhadores não conseguiram controlar a liderança do Partido Comunista, que continua à cabeça de uma ditadura que fala em nome do socialismo e usa seus símbolos.


A esquerda tem dificuldades para entender o que acontece em Cuba e muitos consideram o regime de Fidel Castro “o último bastião do socialismo”. Mas não podemos negar a realidade. Ela nos mostra que hoje, por um lado, há em Cuba um capitalismo selvagem. E, por outro lado, um regime ditatorial que é sócio e defensor desse capitalismo selvagem. Neste sentido, o regime cubano é semelhante ao chinês: os que antes defendiam seus privilégios, agora defendem o capitalismo selvagem e seus negócios.


Temos, então, uma ditadura que impede a liberdade de expressão e reprime as correntes políticas. Segundo a Comissão Cubana dos Direitos Humanos e Reconciliação Nacional existem hoje em Cuba duzentos presos políticos. A Anistia Internacional reconheceu a existência de cinquenta e oito presos políticos em 2008. Mais ainda, em Cuba não há processos judiciais públicos, as audiências são fechadas e, por isso, pode perseguir os ativistas por direitos humanos e condená-los a longos anos de prisão por crime de “desacato à autoridade”. 


É uma ditadura, como todas, que teme a liberdade de manifestação. Eis um exemplo: para evitar que se transformasse em evento político, o enterro de Zapata foi objeto de um cerco policial na pequena cidade de Banes, sem nenhum respeito pela dor de amigos e familiares. Mais de sessenta detenções em todo o país foram realizadas, para que pessoas mais próximas a ele não estivessem presentes.


Há outros ativistas de oposição que lutam pela liberdade dos presos políticos: um dissidente, o jornalista Guillermo Fariñas entrou em greve de fome em sua casa, em repudio à morte de Zapata e pela libertação de outros detentos. Novamente, a resposta do regime foi a de não se responsabilizar por sua possível morte, além de acusá-lo de “agente dos Estados Unidos”. 


Proteja os direitos dos pobres e necessitados 


Aqui, duas palavras traduzem a compreensão do primeiro testamento sobre aqueles que devem ser defendidos diante dos poderosos. Essa pessoa é ani, pobre. Mas ani significa também que ela está sob aflição, que se encontra tolhida, sob humilhação. E a segunda palavra é ebyon, necessitado, porque está sob opressão para fazer algo que não deseja. Ou seja, está forçado a ser submisso. 


Na época que era um projeto de Estado socialista, já havia um intenso debate sobre Cuba. Para muita gente, a defesa de Cuba implicava no apoio a Fidel Castro. 


A realidade mudou: Cuba não é mais um projeto de Estado socialista, assim como a China também não é. Ambos são Estados construídos sobre um capitalismo selvagem, sem leis sociais que definam a relação capital/trabalho, onde não existe mecanismo de defesa política e social dos trabalhadores, que permita, entre outras coisas, direito de greve, expressão e organização independentes do Estado. Donde, aqueles que se colocam no campo socialista devem pressionar governos e entidades a uma luta frontal contra a ditadura cubana e pela defesa das liberdades civis, democráticas, políticas e sindicais.


Todo militante que se mobiliza por melhores condições de vida e justiça social sabe que é necessário diferenciar uma ditadura de um regime democrático. Diante das ditaduras reivindicamos liberdades para todos os setores sociais.


Por exemplo, no Brasil, de 1964 a 1984, amplos setores da população se posicionaram contra o regime ditatorial. Naqueles momentos, diferentes setores da sociedade estavam na contramão da ditadura. Por isso, deu-se a mobilização pelas liberdades democráticas para todas as correntes opositoras, a fim de permitir que a população se organizasse contra o regime. 


Os socialistas chamaram a uma ampla unidade de ação em oposição à ditadura, mas cada setor manteve sua independência política. Essa unidade de ação respondeu ao fato de que os setores sociais necessitavam das liberdades democráticas para avançar em sua organização.


No caso atual de Cuba, estamos diante de uma situação para além das aparências. Os cubanos devem mobilizar-se para conquistar as liberdades necessárias para a construção de um estado socialista. Por isso, os cubanos devem repudiar a repressão aos dissidentes políticos. 


No caso de Orlando Zapata Tamayo, independente das posições que possa ter tido, tinha o direito de lutar por liberdade civil e democrática. Da mesma maneira, é necessário exigir a liberdade dos demais presos políticos, que reivindicam direitos civis e humanos no país. Ao mesmo tempo, é preciso condenar a atuação do governo cubano, responsável pela morte de Zapata.


Quem se posiciona a favor socialismo, mas também da democracia, deve fazer a defesa dos direitos humanos em Cuba. Quando a esquerda, de forma equivocada, defende o governo cubano no caso Zapata não está a defender a “última fortaleza do socialismo”, mas, ao contrário, a defender uma ditadura cruel e um capitalismo selvagem. A saída para Cuba é construir uma alternativa política, dos trabalhadores e independente, que enfrente a ditadura do regime atual. 



A ação do protesto contra a corrente



De que serve a bondade/ Se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados/ Aqueles para os quais eles são bons? (Bertolt Brecht, in De Que Serve A Bondade).


O teólogo teuto-estadunidense Paul Tillich, em Christianisme et Socialisme (1919-1931), Écrits socialistes allemands, fornece bases para a formatação da ação do protesto contra a corrente. E uma dessas bases é o conceito de princípio protestante, necessário para se entender os fenômenos de transformação social sob uma ótica teológica, mesmo quando tais acontecimentos se dão à margem das estruturas religiosas.


Para Tillich, a radicalidade da ação do protesto existe quando se proclama a possibilidade do novo ser. Protestantismo é isso. Pode estar presente em religiões organizadas, mas não depende delas. Talvez, por isso, as pessoas experimentem a radicalidade do estar protestante mais fora do que dentro das igrejas. Essa radicalidade, presente no Ocidente, não implica em filiação eclesiástica ou institucional, mas traduz a situação humana diante dos desafios da transcendentalidade da vida. Quando nessas situações vive-se o princípio protestante então é aí, e não nas igrejas, que o protestantismo se faz vivo.


Tomando-se por base tal conceito, temos um instrumental metodológico em que nos basear para construir a ação do protesto contra a corrente. Ao analisar o princípio protestante enquanto crítica radical deve-se levar em conta aspectos históricos, assim como os movimentos ideológicos da modernidade. 


Falar em um posicionamento de crítica radical, de julgamento e transformação da realidade, implica em falar de direções: vertical, diante do apesar de, e horizontal, diante do por que? Diante de situações, quando devemos resistir à catástrofe histórica, a mensagem do protesto deve ser simples, não ilusória, mas consciente e de esperança.


Nesse contexto, vemos que a modernidade já deu ao Ocidente o princípio da autonomia, mas manteve, contraditoriamente, o ser humano inseguro no interior dessa autonomia. Isto levou parte das organizações políticas dos trabalhadores à tentativa de emancipar os trabalhadores através da submissão às velhas leituras da vida, ou seja, à hierarquia e à tradição. Fenômeno este que chamamos de burocratização. Mas a liberdade já foi experimentada e esta é uma experiência que une todos aqueles que protestam.


De que serve a liberdade/ Se os livres têm que viver entre os não-livres?De que serve a razão/ Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam?


Tillich utilizou um conceito, o de situação-limite, para se referir àqueles momentos onde existe ameaça ao sentido da vida. Levantar-se em defesa da vida e de seu sentido é o diferencial do protestantismo. Essa expressão nasceu em torno de um conceito da Reforma protestante, o de justificação pela fé. Significa que a vida em liberdade implica em reconhecer a incondicionalidade da justiça. Assim, a crítica e a ação radical do protesto partem do reconhecimento da existência de situações-limite, que devem ser julgadas e transformadas, e não de palavras e ações favoráveis à hierarquia e à tradição.


Há um poder formador no ato do protesto. E dele podemos dizer: a espiritualidade conquista profundidade no mergulho dentro da materialidade; o que chamamos de Eterno deve se expressar em relação à situação presente; o mandato da vida deve ser expresso com ousadia e risco; e, enfim, o poder formador do protestantismo deve expressar o seu radicalismo.


A ação protestante é uma experiência transcendente ao nível da materialidade humana, uma experiência que aconteceu em todos os tempos. Nesse sentido, a ação protestante não pode ser identificada com um tipo determinado de organização social, mas sempre com a transcendentalidade da justiça.


Por isso, o protestantismo é portador de poder de transformação e oferece uma mensagem de vida tanto para a pessoa, como para a comunidade. Mas, não se pode dizer que a ação protestante é um movimento que mecanicamente parte da interioridade em direção à exterioridade, apropriando-se de formas culturais ou passando ao largo delas. Na verdade, a ação radical de protesto dá forma às expressões culturais e toma novas formas a partir delas. Dessa maneira, o protestantismo está ligado a diferentes modelos sociais e econômicos, embora tenha mais afinidade com algumas ordens sociais.


A ética da vida, por exemplo, leva o protestantismo a ter uma postura crítica diante da ordem social que se apóia na opressão e na exclusão social. E proclama a necessidade de uma ordem na qual a vida e seu o sentido sejam o fundamento da organização social.


Em vez de serem apenas bons, esforcem-se/ Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade/ Ou melhor: que a torne supérflua!


Tal ética propõe uma economia solidária onde a alegria não seja fruto do ganho, mas do próprio trabalho. E prega a submissão das nações, ricas e pobres, à idéia do direito, e à construção de uma consciência comunitária, soldada sobre a paz, que leve a uma globalidade real entre povos e nacionalidades.


Historicamente, rupturas religiosas acontecem associadas a rupturas econômicas, isto porque o núcleo da unidade cultural de determinada época ou povo é a religião, quer esteja institucionalmente expressa ou não. Assim, o fracionamento religioso característico de determinadas épocas traduz fracionamento econômico, distanciamento e choque entre classes. E naquelas épocas em que temos um processo cultural de unidade temos também uma nova base de unidade e solidariedade social e econômica.


Nesse sentido, há um processo de desenvolvimento que se realiza de forma desigual na história, mas que combina mudanças religiosas e transformações econômicas e sociais. Diante de tais circunstâncias a ação protestante está eticamente obrigada a fazer escolhas: participar dos processos de transformação ou se retrair e entrar em processo de caducidade, ao afastar-se da vida real das comunidades.


Seja qual for a opinião ética sobre as organizações políticas dos trabalhadores, um fato deve ser ressaltado: o protestantismo deve apresentar a elas uma leitura radical da incondicionalidade da justiça, que emprenhe a construção das comunidades futuras.


No século XX, a concepção materialista da história negava a possibilidade da aproximação do protestantismo às organizações políticas dos trabalhadores, mas se entendemos que em Marx esta concepção do fato histórico não é materialista, mas econômica, vemos que há uma relação de causalidade entre fundamento econômico e organização da cultura. E, ao contrário, tal fundamento dá às ciências humanas uma possibilidade metodológica fecunda, que vai além do ateísmo.


Em vez de serem apenas livres, esforcem-se/ Para criar um estado de coisas que liberte a todos/ E também o amor à liberdade/ Que o torne supérfluo!


Assim, ao contrário do que antes parecia, não podemos dizer que o ateísmo seja um elemento constitutivo das organizações políticas dos trabalhadores. É uma herança burguesa, que foi adotada pelas organizações políticas dos trabalhadores sob a crença de que ajudaria a extirpar a idéia de opressão e abriria o caminho para a construção de um mundo mais justo.


A crítica das organizações políticas dos trabalhadores esteve dirigida às instituições eclesiásticas, já que a religião se tornou negócio. Mas, essas organizações buscaram inspiração ética nas potencialidades da universalidade humana e, por isso, hoje, devem aceitar os princípios da tolerância religiosa e da separação entre religião e Estado. 


Embora tenham existido razões históricas para as críticas às instituições eclesiásticas, e ainda existam, as organizações dos trabalhadores não podem negar a base solidária e comunitária do ideal da ação radical protestante. E quanto à revolução, é preciso dizer que não existe uma relação natural entre o ideal das organizações políticas dos trabalhadores e tática revolucionária. Nem sempre se pode dizer que as táticas propostas pelos trabalhadores são contrárias às ações protestantes. Basta ver como Engels analisou a revolução anabatista na Alemanha. 


As pessoas que vivem o princípio protestante podem, sem temor, ter uma atitude positiva em relação às organizações políticas dos trabalhadores. Atitude positiva deve ser entendida como a realização da incondicionalidade da justiça e da defesa do sentido da vida, que entende a necessidade de eliminar as condições que geram miséria e exclusão. Tal atitude traduz a urgência de combater os fundamentos do egoísmo econômico e de ações para a construção de uma ordem social, que sem deixar de ser globalizada, inclua excluídos e periféricos. Isto porque o pensamento e a ação da radicalidade protestante não são tarefas, apenas, de operários e trabalhadores fabris, mas um ideal ético que traduz anseios e esperanças de todos que se levantam por uma sociedade mais justa.


Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se/ Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo/ Um mau negócio.

    


Debruçado sobre a eternidade



Nós nos importamos com a boa qualidade dos homens, em primeiro lugar porque ela nos é útil, em seguida porque queremos dar-lhes alegria (os filhos aos pais, os alunos aos professores e em geral as pessoas benévolas a todas as outras pessoas). É somente quando a boa opinião dos homens é importante para alguém, abstraindo a vantagem ou seu desejo de agradar, que falamos de vaidade”. Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.


O que é o humano? Se partirmos da teologia, teremos abordagens fundantes, que podem nos direcionar a uma compreensão mais abrangente do que é o humano. A primeira delas tem por base a antiga cosmovisão hebraica e apresenta uma antropologia da unicidade humana.


Dois textos do livro das Origens são paradigmáticos nessa leitura. O primeiro está em Gênesis 1.26 e conta que o Eterno disse: “vamos fazer os humanos, que serão como nós, que se parecerão conosco” E assim o Eterno construiu os humanos; parecidos com Ele. O segundo texto descreve o modo de construção do humano, está em Gênesis 2.7 e diz que “do pó da terra, o Eterno formou o humano. Ele soprou em seu nariz uma respiração de vida e assim esse ser se tornou vivo”. 


A partir do segundo texto, podemos entender que a matéria-prima utilizada pelo Eterno na construção do humano é ordinária, ele é uma unidade de carbono, enquanto material pertencente à ordem comum de “ló nefesh”, que também dá forma aos seres inanimados e animais. Assim, é o sopro do Eterno que faz especial essa matéria ordinária. Teologicamente, podemos nos fazer uma pergunta: será que estamos somente diante de um símbolo ou, de fato, a força criadora do Eterno transmitiu à matéria não somente vida, mas intensidade e profundidade? De certa maneira não é absurdo dizer que seres celestiais são criaturas espirituais. Sua existência procede do exterior da força criadora do Eterno. A exteriorização traduz-se no fato de que a força criadora se dá através da palavra, de uma ordem criadora do Eterno.


A expressão nefesh, presente no segundo texto, leva a uma concepção de exterior versus interior, e tem por base o texto de Deuteronômio 32.9, quando afirma que “uma parte do Eterno faz seu povo”, já que mobiliza diferentes níveis da força criadora.


Nesse sentido, nefesh, fruto do sopro primordial, procede da interioridade do Eterno e por isso é conhecida como “ein soph”, que vem de seu interior. “Ele soprou” deve ser entendido como continuidade da afirmação “façamos o humano” (Gn 1.26), de maneira que nefesh liga terra e céu, o que está abaixo e o que está acima. Por isso, na tradição antiga dos hebreus, apesar de não tão fortes, os humanos são superiores aos anjos, porque procedem da interioridade do Eterno: traduzem ação mediadora e conjuntiva da força criadora. 


Donde, o humano repousa de bruços sobre atributos eternos não ostensivos, discretos, que se traduzem em integralidade, pluralidade, sabedoria, compreensão e abertura à transcendência. Nefesh revela-se enquanto natureza que se torna compreensível e inteligível. É transbordamento e transparência do Espírito do Eterno, que remete ao transbordamento e transparência no humano, ao relacionar imanência com transcendência.


Mas, o texto de Gênesis 2.7 fala de respiração e daquilo que o humano passa a ser: não tem uma nefesh, é uma nefesh. O pensamento literário dos hebreus era sintético. Daí que a chave para chegarmos a uma compreensão analítica dele, exige identificar com que parte do corpo o humano pode ser comparado e onde o agir humano faz interface com nefesh. E para isso utilizaremos textos que apresentam diferentes sentidos da nefesh.


“A mansão dos mortos abre a sua nefesh, escancara as suas fauces desmedidamente”. Isaías 5.14. “Ele escancara a sua nefesh sem medida, como a mansão dos mortos, e é como a morte, não se saciando nunca”. Habacuque 2.5.


Embora a expressão nefesh apareça 755 vezes nas escrituras hebraicas e seja traduzida seiscentas vezes na Septuaginta, em grego, por psyché, na maioria das citações em hebraico, o significado literal de garganta e estômago transmitem a idéia de necessidade, de algo difícil de ser saciado. Nesse sentido, a palavra alma, tradução do grego psyché, nos dá uma tradução incompleta, pois a idéia é que o Eterno construiu o humano do pó da terra e insuflou em suas narinas o seu hálito e o humano se tornou um vivente que necessita Dele para ser saciado.


Nefesh não traduz algo bom ou mal, mas uma existência colada à realidade das necessidades fundamentais do humano, que ao não serem preenchidas produz alienação, individualismo, descrença, ignorância e idolatria.


Mas como o sopro do Eterno pode ter gerado um humano com tal índole de insaciabilidade? Se entendermos nefesh como figura das necessidades vitais, dos movimentos emocionais da alma, somos levados a entender o pensamento sintético hebreu ao ver a nefesh como síntese da própria vida. Assim, as necessidades humanas criadas pelo próprio Eterno só podem ser saciadas por Ele.


“Quem me encontra, encontrou a vida e alcançou benevolência do Eterno. Quem não me acha, faz violência à sua nefesh. Todos os que me odeiam, amam a morte”. Provérbios 8.39-40. “Ó Eterno, tiraste a minha nefesh da mansão dos mortos”. Salmos 30.4.


No relato de Gênesis 2.7 o humano é definido como “nefesh hayah”, um ser vivente, que necessita ser saciado. Por isso, como vimos, quando integrado ao Eterno, nefesh é transbordamento e transparência do espírito do Eterno, o que indica transbordamento e transparência no humano, daquilo que relaciona o que está em baixo com o que está em cima.


Mas essa natureza também se constituirá enquanto expansão dos significados da imagem do Eterno, em graça e amor. “Ele soprou” traduz o fato de que as coisas do intelecto e do coração expressam-se através dos órgãos da fala, em especial garganta e boca, que possibilitam o sopro. Esse padrão simboliza a interioridade da natureza humana. Portanto, para que o humano possa dar intensidade e profundidade a sua inteligência precisa de amor e graça, que nascem da interioridade do Eterno. Em Gênesis 2.7, “ele soprou” significa que Aquele que soprou o fez numa determinada direção e com objetivo definido. Aqui, direção e objetivo traduzem o destino humano.


Esse é o destino humano: ter sua nefesh saciada pelo Eterno e a partir daí relacionar-se com Ele, com o universo, com seus semelhantes e consigo mesmo. Nesse caso, temos uma nefesh em equilíbrio, plena do espírito do Eterno.


O dois dos gregos


O homem quer dar prazer a si próprio, mas à custa dos outros homens, seja levando-os a ter uma opinião falsa a respeito dele, seja aspirando a um grau de “boa opinião”, em que esta tem de se tornar penosa para todos os outros (provocando inveja). O indivíduo quer geralmente, por meio da opinião dos outros, certificar e fortalecer diante de seus olhos a opinião que tem de si; mas o poderoso respeito pela autoridade – respeito tão antigo quanto o homem – leva muita gente também a apoiar na autoridade sua própria confiança em si, portanto a só aceitar de mão de outrem: acreditam mais no critério dos outros do que no próprio”. Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.


O pensamento pré-socrático inaugurou o problema que atravessará toda a história do pensamento ocidental, o problema do ser, ao caracterizar a verdade (em grego, alethéia) como o nexo entre linguagem (logos) e natureza (physis). Para Heráclito de Éfeso, por exemplo, o filósofo, que ama a sabedoria, é aquele que busca a unidade originária da totalidade de todas as coisas. 


Logos, no grego 'palavra', foi entendido por Heráclito, como o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. ["Bem dizia Heráclito: homens são deuses e deuses são homens, porque o Logos é um só" (Hipólito, Refutações, IX, 10,6)]. 


Assim, Heráclito diante da mobilidade de todas as coisas denominou fogo ao elemento primitivo, e viu este comandado por uma lei natural racional, o Logos. Considerou o Logos dotado de dois princípios internos contrários a operar, concórdia e discórdia. Estas duas forças contrárias transformavam o elemento primitivo, ora na direção da solidificação, ora de retorno ao estado móvel do fogo. 


Portanto, o Logos, concebido por Heráclito como uma lei natural ordenadora, a tudo comanda em forma dialética. E segundo Platão é o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível. Assim, para a filosofia grega, Logos era o princípio da inteligibilidade, a razão.


Mas, por ser razão e palavra, Logos mantém uma relação de complementação com sabedoria, e por isso é pensada por Heráclito como harmonia, o próprio nexo original entre Logos e physis. Todavia, para que diante da ameaça do relativismo trazido pelas argumentações dos sofistas se compreenda o que é a verdade, Sócrates e Platão vão formular a questão: o que é? Esta questão busca definir aquilo que é sempre idêntico a si mesmo, a essência, fundamento de toda a mobilidade da existência. 


O que em Heráclito se delimitava como o encontro da harmonia passa a ser, a partir de Sócrates e Platão, uma procura: nasce, então, a filosofia como um desejo de conhecimento. Aristóteles caracteriza esta transformação quando afirma que "o que desde sempre, agora e para sempre, é constantemente procurado, porque sempre de novo a questão fracassa, é o problema: o que é o ser?". A filosofia constitui-se, a partir das concepções socrática, platônica, aristotélica, como o pensamento que investiga a questão do ser.


O conceito razão relaciona-se a três outros: essência, existência e essencialização. A essência não é apenas aquilo que uma coisa é, mas também aquilo que faz com que uma coisa possa ser. Nesse sentido, essência é potencialidade, o poder de ser e a fonte da existência: origem do ser. Mas também é o reino da cognição, do pensamento, impossível de penetrar. Pari passo à essência, o Logos correlaciona mente e realidade, tornando possível o conhecimento. Quando alguém compreende e fala sobre a realidade, faz juízos e define padrões, que são comuns aos outros seres humanos, se comunica. E quem possibilita a comunicação é o Logos. Assim, o Logos é a origem da razão e também do ser. Mas, origem do ser aqui não significa conhecimento a priori, é estar colocado à parte do reino da finitude e, por isso, a origem do ser só é conhecida por um ato de revelação.


Dentre as inúmeras transformações que surgiram com a cidade democrática grega, a pólis, a mais importante foi a preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos de poder. 


A palavra deixou de ser o termo ritual e passou a ser a fonte para o debate e reflexão, sendo o seu uso de forma persuasiva, que definirá o orador vencedor dos embates dialéticos (dialética era a arte da discussão: as normas para uma discussão correta). Todas as questões de interesse geral passaram a ser submetidas à arte da oratória e as decisões eram as conclusões dos debates. A política se tornou a arte do domínio da linguagem. Com a popularidade dos debates, a cidade grega se fundamentou na publicidade das manifestações sociais; distinguiram-se os interesses comuns dos privados, consolidaram-se as práticas abertas e o domínio público. 


Esse desenvolvimento trouxe uma profunda transformação, já que ao tornar comuns os elementos da cultura, coloco-os sob a crítica permanente. A cultura e, por extensão, o pensamento religioso ficaram expostos a debates apaixonados. Já não era possível impor idéias por prestígio pessoal ou religioso. Deveria haver o convencimento pela dialética. 


A palavra constituiu-se no instrumento da vida política. Sua vertente escrita trouxe a possibilidade da divulgação do conhecimento. A escrita tornou-se pública, não mais estando presente apenas no palácio ou no templo. O saber fez-se público, deixando de estar restrito aos magistrados ou sacerdotes. Depois de divulgadas, as idéias deveriam ser submetidas ao debate político e à aceitação popular. 


Assim com a consolidação da importância da palavra, o saber passou a ser um bem público. A sabedoria percorreu as veredas da linguagem, do discurso, da dialética: este caminho tornou-se característico da cultura grega. Por isso, podemos dizer que a filosofia nasceu no momento em que se tentou recuperar algo perdido no passado, a sabedoria. 


Na contemporaneidade latino-americana, partindo da dialética, Enrique Dussel propôs a dialética analógica da alteridade, a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além. O logos que transcende é análogo, mais além do logos, analogia que se articula na dialética da voz ouvida que leva a ouvir: ou seja, a ouvir a voz. Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz.


Fé aqui significa ir mais além do horizonte da physis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, já que o outro não se origina no idêntico, é diferente. Brota como ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa.


Em sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, Dussel afirma que tal superação se dá com a metafísica, entendida como além do fundamento. E se dá assim porque a metafísica não é somente ontológica, mas opera através da descoberta de um mais-além do mundo. E como aná significa em grego mais além, e logos significa palavra, análogos toma o sentido de palavra que brota no mundo desde um mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo desde um futuro, porém se detém diante do outro como um rosto de mistério e liberdade, de história distinta, mas não diferente. Mas se o outro é distinto, não há diferença, nem retorno, embora haja história e crise. Por isso, para Dussel, se este logos aparece enquanto interpelante indo mais além da compreensão, ele é análogo.


Essa interpretação de Dussel repousa na compreensão do Logos joanino, que pousa sobre o Cristo acima da tradição filosófica, quer de Heráclito, quer de Platão ou do neoplatonismo, e ainda da filosofia judaica expressa em Filo de Alexandria. Nesse sentido, se antes estávamos diante da personificação do Logos, ainda assim não há na tradição da filosofia grega ou judaica a idéia de encarnação do Logos. Esse Logos joanino, por isso, vai além de toda a tradição filosófica, embora João a utilize como ponte para falar à cultura de sua época. 


Há ainda uma ponte com o pensamento judaico, principalmente no que se refere aos textos de Gênesis um e de Provérbios 8.22-31. O primeiro ao utilizar a expressão “en arché” e o segundo ao personalizar a sabedoria. Nesse sentido, o Logos de João se apresenta como análogo. Análogo ao Eterno, porque é pessoa de Deus, e análogo aos seres humanos, porque é pessoa humana. 


Análogo significa que o Logos vem de mais-além, isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Embora, este Logos eterno se reflita através de nossos pensamentos e, por isso, não possa existir um ato do pensamento sem a secreta premissa de sua verdade incondicional [Romanos 12.2 e 1ª. carta aos Coríntios 2.16].


Mas a verdade incondicional não está ao nosso alcance. Em nós humanos há sempre um elemento de aventura e risco em cada enunciado da verdade. Mas, mesmo assim, devemos correr este risco, sabendo que este é o único modo que a verdade pode ser revelada a seres finitos e históricos.


Quando mantemos relação com o Logos eterno e deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos então o lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Vamos constatar que desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que sempre desejamos livrar-nos dele, mas nunca conseguimos.


Tarefa teológica da maior importância, na análise cristã do destino é saber relacionar Logos e kairós. O Logos deve alcançar o kairós. O Logos deve envolver a plenitude do tempo e o destino da existência. A separação entre Logos e existência chegou ao fim. O Logos alcançou a existência, penetrou no tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio, mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.


É necessário, porém, entender que tanto a existência como o conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino: a revelação. Dessa maneira, ao contrário do que pensavam os gregos, o humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para realizar seu destino. Quanto maior a potencialidade do ser – que cresce à medida que é envolvido e dominado pelo Logos – mais profundamente está implicado seu conhecimento no destino.


Nosso destino, que aqui pode ser entendido como missão, é servir ao Logos, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino [no sentido de prokeimai, estar colocado, ser proposto] e o de nossa sociedade, tanto mais livres seremos. Então, nosso trabalho será pleno de força e verdade.


O três de Paulo


O interesse por si próprio, o desejo de se satisfazer alcançam no vaidoso tal nível que ele induz os outros a uma falsa estima de si falsa, demasiado elevada, e depois se fia, não obstante, na autoridade dos outros: desse modo provoca o erro e, contudo, lhe dá crédito. É preciso, portanto, admitir que os vaidosos não querem agradar tanto a outrem quanto a si próprios e que chegam ao ponto de com isso descurar seu proveito; pois, muitas vezes importa-lhes suscitar em seus semelhantes disposições desfavoráveis, hostis, invejosas, em decorrência desvantajosas para eles, apenas para terem satisfação de seu eu, o contentamento de si”. Friedrich Nietzsche in Humano, demasiado humano.


Paulo dirá numa oração: “Que o Eterno, que nos dá a paz, faça com que vocês sejam completamente dedicados a ele. E que ele conserve o pneuma, a psyché e o soma de vocês livres de toda mancha, para o dia em que vier o nosso Senhor Jesus Cristo”. Primeira carta aos Tessalonicenses 5.23.


Se o soma é o espaço do Eros, da vida e da materialidade; e a psyché o espaço do logos, da razão e da sensibilidade; o pneuma é o espaço da espiritualidade, entendido em grego como poiesis, espaço da experiência estética, que responde à necessidade criativa do sentido da vida.


Assim, o sentido da vida não é experiência exclusiva da pessoa religiosa, mas experiência que traduz a criatividade humana. Tal espiritualidade, ou pnêumica, é gratuita. Essa graça está no ato do fazer com imaginação, na inventividade.


Entre os pais da Igreja, partindo de Paulo, Orígenes (185-254) via o humano como triunidade e relacionava a consciência trinitária à sua leitura e interpretação das Escrituras. Para ele, no soma estava o sentido literal da compreensão da revelação; na psyché o seu sentido moral; e ao nível do pneuma o sentido simbólico. Ou seja, a própria compreensão da revelação tinha que passar por estes níveis da consciência humana.


E porque a atividade humana acontece dentro da cultura, que comove, Tomás de Aquino viu a busca da beleza como busca da totalidade, daquilo que é pleno, que possibilita a sacada. Dessa maneira, o conhecimento implica na existência de uma ontologia que, ao dar uma classificação para a percepção sensorial, descreve a experiência como composta de objetos que existem independentemente dos seres humanos. Temos, então, as diferenças que fundamentam a classificação: humano versus não-humano. 


Assim, a temporalidade é percebida a partir dessa triunidade da consciência humana: materialidade, razão, espiritualidade. E se apresenta associada aos critérios de confirmação através de experiências intersubjetivas. Essa consciência tripartite é a base do conhecimento nas culturas, a fonte da inteligibilidade entre os humanos, mas também a base para a compreensão da natureza e da revelação.


O objetivo da revelação, antes que ser o de responder às crises que afetam o humano, é recuperar a ordem daquilo que aparece como alienação e caos. Por isso, a crítica à complexidade da revelação e à não-regularidade do comportamento proposto por ela está equivocada por não entender o mundo como infinidade de realidades não-observáveis, pois o aparente objeto único do ponto de vista do senso comum é sempre constituído por infinidade de realidades. 


Aqui, o que importa é o aspecto qualitativo: a revelação postula realidades pnêumicas para explicar a diversidade das experiências. Quanto à não-regularidade do comportamento pnêumico, isso parece apenas para aquele que está de fora, pois para a pessoa que vive o fenômeno espiritual essas realidades estão sujeitas a leis, sendo a regularidade a própria condição de seu poder explicativo.


A partir dessas leituras, correlacionando a nefesh dos hebreus, o soma e o logos do dualismo grego, e o pneuma de Paulo, o apóstolo, podemos dizer que o humano é construção, unicidade e pluralidade da pessoa, na comunidade, ser lançado no cosmo. Imagem do que é eterno, ser aberto à transcendência, há nele um deslumbramento permanente diante do absoluto e do mistério. E por pensar o que não está aqui e o que não é agora pode refletir sobre o além da realidade imediata, tem prazer em se debruçar sobre a eternidade e aquilo que é transcendente. 



e-mail para além da morte



eu quero dizer

na marcha do louvre

vi uma escultura pequena 

egípcia

de três mil anos antes

homem e mulher 

de mãos dadas


eu quero dizer

o eterno fez gente

a humanidade arrebata

ato personalíssimo 

mergulho

gracioso solene revogável


eu quero dizer

a humanidade

no balanço das horas

varou os tempos

atingiu o peito

na sala de museu


eu quero dizer

femina pulchram

moça de gurupi, 

guerreira palestina, 

menina do quarteirão latino

olhos encaram

ir vindo além do tempo


eu quero dizer

camarada trotski

alucinado pela lucidez,

o tempo começa a se esgotar

cristo liberta realidades

revolucionário

futuro solidário


eu quero dizer

profundo humano

belas gentes

gerações limpam o mal

isso somos nós

ardentes

gozamos


paris na primavera