jeudi 4 septembre 2014

Pede-se ser levantado

Jorge Pinheiro

“Você está falando de bens materiais, de coisa frágil. Se você tem certeza de que esses bens ficarão sempre com você, fique com eles sem partilhar com ninguém. Mas se você não é o senhor absoluto deles, se tudo que você tem depende mais da sorte do que de você mesmo, por que este apego a eles?”. [1]

Fuks conta que Freud, um dia depois do sepultamento do pai, sonhou com um cartaz onde estava escrito: “Pede-se fechar os olhos”. Mais tarde, em carta a Fliess, o pai da psicanálise falou dos sentidos subjetivos da frase: “era parte da minha auto-análise, minha reação diante da morte de meu pai, vale dizer, diante da perda mais terrível na vida de um homem”. [2]

Não vou entrar nos detalhes das leituras que o próprio Freud fez da frase que apareceu em seu sonho. Diria ao leitor que vale a pena ler Freud e a Judeidade. Pretendo aqui levantar uma proposta de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”. É a partir dessa hermenêutica, que vamos ler trechos do final da primeira carta de Paulo aos Coríntios.



“... Foi sepultado e foi despertado do sono no terceiro dia, de acordo com o escrito”.

A frase acima, e a continuação do texto, é uma das mais importantes sobre a egeiro e anástasis, duas expressões gregas não substancialmente diferentes, que sintetizam a teologia da anástase dos cristãos do primeiro século. As traduções posteriores, e creio que dificilmente poderiam ser diferentes, criaram um padrão de imagem que dificultam a experiência do ir além. Por isso, fomos obrigados antes da tradução transversa fazer a desconstrução histórico-filosófica da anástase.

As leituras da anástasis e egeiró remontam a Homero e ao grego antigo e com seus sentidos correlatosaxanástasis, anhistémi e anazaó, que podem ser traduzidas por “ficar de pé”, “ser levantado” e “voltar à vida”, foram fundamentais para a construção do conceito anástase, amplamente utilizado pelas ciências do espírito. Mas é com Platão, na literatura filosófica, que vamos encontrar um debate fundamental para a teologia da anástase, quando apresenta a alma enquanto semelhança do divino e o corpo enquanto semelhança do que é físico e temporário.

Platão, em Fédon [3], num diálogo entre Sócrates e seus amigos defendeu a idéia da imortalidade da alma. Sócrates foi condenado à morte por envenenamento, mas não teve medo, por crer ser a alma imortal. Para Platão, as almas possuem semelhanças com as formas, que são realidades eternas por trás do mundo físico, natural. Nesse sentido, para Platão, o corpo morre, mas a alma não. Ele parte do padrão cíclico da natureza, frio/ quente/ frio, noite/ dia/ noite. Assim, os mortos despertam numa nova vida depois da morte: caso contrário, a vida desapareceria.

E dirá através de Sócrates em Fédon: “(...) perguntemos a nós mesmos se acreditamos que a morte seja alguma coisa? (...) Que não será senão a separação entre a alma e o corpo? Morrer, então, consistirá em apartar-se da alma o corpo, ficando este reduzido a si mesmo e, por outro lado, em libertar-se do corpo a alma e isolar-se em si mesma? Ou será a morte outra coisa? (...) Considera agora, meu caro, se pensas como eu. Estou certo de que desse modo ficaremos conhecendo melhor o que nos propomos investigar. És de opinião que seja próprio do filósofo esforçar-se para a aquisição dos pretensos prazeres, tal como comer e beber?”

Paulo conhecia a discussão filosófica grega acerca da anástase, já que isso se evidencia em seus escritos, principalmente no trecho que estamos analisando, mas é certo que construiu seu conceito também levando em conta a tradição judaica, acrescentando novidades ao debate teológico. Existem referências ao ser trazido de volta à vida nas escrituras hebraico-judaicas. Mas a preocupação judaica era existencial, como vimos em Qohélet. Mais do que remeter a um futuro distante, embora tais leituras estejam presentes na teologia de alguns profetas, as histórias de anástase relacionadas aos profetas Elias e Eliseu falam do aqui e agora. Aliás, este último, mesmo de depois de morto, trouxe à vida um defunto que foi jogado sobre sua ossada. Ao tocar os ossos de Eliseu, o morto ficou vivo de novo e se levantou. Esse caminho será a novidade da compreensão cristã/ helênica da anástase.

“Somos arautos de que o ungido foi levantado do meio dos mortos: como alguns podem dizer que não há o ser erguido dos mortos? E, se não há o despertar do sono da morte, também o ungido não foi levantado. E se o ungido não foi levantado, é inútil o que falamos e também inútil a nossa crença. Somos então testemunhas falsas, porque anunciamos que Deus ergueu o ungido. Mas se ele não foi levantado, os mortos também não são erguidos. E se os mortos não são erguidos, o ungido também não o foi. E, se o ungido não foi erguido, a nossa crença é inútil e vocês continuam a vagar sem destino. E os que foram colocados para dormir no ungido estão destruídos”.

Outras fontes de Paulo foram o profeta Daniel e outras literaturas intertestamentárias, que trabalharam com a idéia de “despertar subitamente do sono”. Chifflot e De Vaux [3] situam o livro de Daniel no período helênico por entender que é uma edição de antigos fragmentos do período babilônico, compilados, organizados e contextualizados ao momento histórico descrito no capítulo onze. Nesse capítulo, as guerras entre lágidas e selêucidas, assim como as investidas de Antíoco IV Epífanes contra Jerusalém e o templo são narradas com riquezas de detalhes. Ao contrário do que acontece nos livros proféticos anteriores, aqui o autor cita fatos aparentemente insignificantes, querendo demonstrar que é uma testemunha ocular da história. Dessa maneira, a edição que conhecemos do livro de Daniel deve ser situada no período da grande perseguição de Antíoco IV Epífanes, possivelmente entre os anos de 167 e 164 a.C., segundo Chifflot e De Vaux, já citados. A partir desse enquadramento, os capítulos 7 a 12 de Daniel, enquanto edição são chamados de “vaticinia ex eventu”, dado que o texto é contemporâneo aos acontecimentos descritos. Esses capítulos expressam a reação contra a helenização da Judéia e das perseguições em curso, mas, paradoxalmente, uma forma de pensamento afetado pela civilização helênica.

A partir da segunda metade do livro, o autor trabalha sobre dois temas registrados na primeira metade: que o judeu deve ser fiel a Deus em meio à tentação e à provação; e que Deus defende o servo leal que prefere morrer a violar os mandamentos. Nos seis capítulos finais, o sábio (ou grupo de sábios, cujos escritos foram compilados por um redator) retoma o conteúdo das visões que teve em relação à profanação do templo, em 167 a.C., e o erguimento da “abominação desoladora”.

Durante o período helênico idéias novas afloraram em meio à vida judaica, entre elas a esperança da recompensa escatolõgica apresentada pelas profecias apocalípticas, como em 2Macabeus 7, Daniel 12:2-3 e o Escrito de Damasco 4:4, que se traduzem concretamente na anástase.

Assim, os elementos novos da compreensão paulina da anástase já aparecem delineados no profeta Daniel: “Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos conduzirem à justiça, como as estrelas, sempre e eternamente”. Paulo, porém, somará um componente existencial à compreensão de Daniel, dirá que a morte, o maior de todos os odiados pela espécie humana, será privada de força.

“Caso o ungido só sirva para esta vida, somos as pessoas mais dignas de lástima. Mas o ungido foi levantado dentre os mortos e foi o primeiro fruto dos que foram colocados para dormir. Porque se a morte chegou pela humanidade, também o ungido dará à luz nova vida. Como morre a espécie, noungido ela recebe vida. E isso acontece numa ordem: o ungido é o primeiro fruto, depois os que pertencem ao ungido, quando ele aparecer. E veremos o limite, quando o ungido entregar o reino a Deus e Pai, e tornar inoperante o império, os poderes e os exércitos. Convém que seja rei até derrubar os odiados por terra. O último odiado a ser privado de força é a morte, porque o resto já foi colocado debaixo de seus pés”.

É interessante que Paulo em seu texto sobre a anástase cita o dramaturgo, filósofo e poeta grego Menandro (342-291 a.C.), que num verso disse: “as más companhias corrompem os bons costumes”. E voltando ao Misantropo: “insisto que, enquanto você é dono deles, você deve usá-los como um homem de bem, ajudando os outros, fazendo felizes tantas pessoas quantas você puder! Isto é que não morre, e se um dia você for golpeado pela má sorte você receberá de volta o mesmo que tiver dado. Um amigo certo é muito melhor que riquezas incertas, que você mantém enterradas”. Tudo indica que Paulo gostava de teatro e de comédias.

Que Paulo recorreu à tradição profética fica claro quando cita o profeta Oséias literalmente: “eu os remirei do poder do inferno e os resgatarei da morte? Onde estão ó morte as tuas pragas? Onde está ó morte a tua destruição?”. Mas há uma correlação entre Platão e a tradição hebraico-judaica, que pode ser lida nesta carta de Paulo. Isto porque, como afirma Fuks, o leitor desconstrói, pois ler não é repetir o texto: é um modo de criação e de transformação. Por isso, digo que ler é um ato de anástase. E Paulo trabalhou de forma brilhante o termo, tanto nas suas leituras e estudos, como na reconstrução do próprio conceito.

“Que farão os que se batizam pelos mortos, se os mortos não são chamados de volta à vida? Por que se batizam então pelos mortos? Por que estamos a cada hora em perigo? Protesto contra a morte de cadadia. Eu me glorio por vocês, no ungido Iesous a quem pertencemos. Combati em Éfeso contra animais ferozes, mas o que significa isso, se os mortos não podem ressurgir? Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos. Mas não vamos nos enganar: as más companhias corrompem os bons costumes”.

Na sequência da tradição hebraico-judaica, ou como diz Fuks, “os antigos hebreus não estavam trabalhados, como nós, pela necessidade de abstração, de síntese e de precisão na análise conceitual do real, herança dos gregos”, Paulo está preocupado com o corpo, com a vida.

“Mas alguém pode perguntar: como os mortos são trazidos à vida? E com que corpo? Estúpido! O que se semeia não tem vida, está morto. E, quando se semeia, não é semeado o corpo que há de nascer, mas o grão, como de trigo ou qualquer outra semente. Deus dá o corpo como quiser, e a cada semente o corpo que deve ter. Nem toda a carne é uma mesma carne, há carne humana, de animais terrestres, de peixes, de aves. E há corpos celestes e corpos terrestres, uma é a dignidade dos celestes e outra a dos terrestres. Diferente é o esplendor do sol do esplendor da lua e das estrelas. Porque uma estrela difere em brilho de outra estrela. Assim também o ser levantado dentre os mortos. Semeia-se o corpo perecível; levantará sem corrupção. Semeia-se na desgraça, será levantado em excelência. Semeia-se em debilidade, será erguido vigoroso. Semeia-se corpo controlado pela psiquê, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo controlado pela psiquê , também há corpo espiritual”.

Para Paulo, anástase leva à uma teologia da vida que nasce do corpo. Mas, não é simplesmente ter de volta a vida do corpo material, tanto que em certo momento Paulus diz que “deveremos ser a imagem do homem do céu”.

“Assim também está escrito: o primeiro ser humano, terrestre, foi feito ser-que-deseja, o futuro humano será um espírito-cheio-de-vida. Mas o que não é espiritual vem primeiro, é o natural, depois vem o espiritual. O primeiro ser humano, da terra, é terreno; o segundo humano, a quem pertencemos, é celestial. Como é o da terra, assim são os terrestres. E como é o celeste, assim são os celestiais. E, como somos a imagem do terreno, assim seremos também a imagem do celestial”.

O pensamento grego, platônico, está presente na anástase paulina, já que a eternidade não é construída em cima da carne e do sangue. Vemos aqui a dualidade entre a realidade física e o mundo das formas. O dualismo metafísico de Paulo admite aqui duas substâncias que regem o ser humano, no mundo natural, a psiquê, e no mundo pós-anástase, o pneuma. E dois princípios, nesse sentido bem próximo a Platão, o bem e o mal.

“E agora digo que a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar a eternidade. Digo um mistério: nem todos vamos adormecer, mas seremos transformados. Num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta, porque a trombeta soará, os mortos serão levantados incorruptíveis, e seremos transformados. Convém que o corrompido seja tornado eterno, e o que é mortal seja tornado imortal. E, quando o que é corruptível se vestir de eternidade, e o que é mortal for transformado em imortal, então será cumprida a palavra que está escrita: a morte foi conquistada definitivamente. Onde está, ó morte, a tua picada? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, a picada da morte é o desviar-se do caminho da honra e da justiça, e a força do erro é a lei. Mas a alegria que Deus dá é a vitória por Iesous, o ungido, a quem pertencemos. Sejam firmes e persistentes, abundantes no serviço daquele a quem pertencemos, conscientes de que o trabalho árduo e duro não é desprezado por aquele a quem pertencemos”.

Caso voltemos à análise do conceito anástase no capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios, tomando como ponto de partida o desafio de Fuks: “há que ler o desejo: sem terra, sem pátria e sem objeto, ele vaga por um deserto, cujas trilhas conduzem o leitor à experiência limite mais-além do que aparece na imagem”, vemos que Paulo traduziu para as novas gerações o desejo judaico-helênico, humano, da anástase: “Pede-se ser levantado”.


Bibliografia recomendada

Adylson Valdez, O livro do Apocalipse, uma interpretação conforme a história e o simbolismo bíblico, São Paulo, Fonte Editorial, 2009.
Andrés Torres Queiruga, Repensar a ressurreição, São Paulo, Paulinas 2010.
Jonas Machado, Morte e ressurreição de Jesus, São Paulo, Paulinas, 2009.
___________, O misticismo apocalíptico do apóstolo Paulo, São Paulo, Paulus, 2009.
Marko Ivan Rupnik, Ainda que Tenha Morrido, Viverá/ Ensaio Sobre a Ressurreição dos Corpos, São Paulo, Paulinas, 2010.
Renold J. Blank, Escatologia da pessoa, vida, morte e ressurreição, São Paulo, Paulus, 2000.
____________, Escatologia do mundo, projeto cósmico de Deus, São Paulo, Paulus, s/d.



Notas de rodapé

[1] MENANDRO, O Misantropo. Site: Oficina de teatro. WEB: www.oficinadeteatro.com
[2] FUKS, Betty, Freud e a Judeidade, a vocação do exílio, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, pp. 127-133.
[3] PLATÃO, Fédon, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987.
[4] CHIFFLOT, Th.-G e DE VAUX, R., La Sainte Bible, Les Editions Du Cerf, Paris, 1973. Tradução: A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, p. 1347.

Inventário do Antigo Testamento

Uma breve introdução à formação do inventário do AT

A partir de uma apostila do prof. Dr. L. Byron Harbin, PhD
Edição de Jorge Pinheiro

O cânone bíblico designa o inventário, lista de escritos, ou livros considerados pela Igreja cristã, de conjunto, como tendo evidências de inspiração divina. Cânone, em hebraico qenéh e no grego kanóni, tem o significado de "régua" ou "cana [de medir]", no sentido de um catálogo. A formação do cânone bíblico se deu gradualmente. Foi formado num período aproximado de 1500 anos.

Os livros do Antigo Testamento que compõe o cânone foram editados em dois períodos da história de Israel, durante a Monarquia e durante o Exílio babilônico. Segundo a tradição judaica, Esdras, enquanto escriba e sacerdote, presidiu um conselho formado por 120 membros – a grande sinagoga -- que selecionou e preservou os rolos sagrados. Naquela época o inventário das escrituras do antigo testamento teve sua primeira definição. Veja Esdras 7:10,14. Esta compreensão atualmente não é bem aceita pela moderna crítica textual, já que saduceus e samaritanos só aceitavam como canônicos os primeiros cinco livros. Por isso, alguns especialistas consideram que Esdras reuniu apenas o Pentateuco. Mas há praticamente unanimidade de que foi a grande sinagoga que organizou a nova vida religiosa nacional, o que mais tarde deu origem ao supremo concílio judaico, o sinédrio.

Sobre a iluminação e inspiração dos textos do Antigo Testamento, veja João 7:17 e I Coríntios 2:12-13. Portanto, “se reconhece o papel da providência do Eterno à origem, seleção e coleção destes escritos. É por esta razão que os livros do Antigo Testamento existem em número de trinta e nove, conforme o e judaico. Esta tem sido a convicção dos protestantes de modo geral, embora haja dúvidas levantadas a respeito de alguns livros, como, por exemplo, Cantares de Salomão e Eclesiastes. A providência do Eterno operante na vida da igreja, entretanto, tem feito com que todos os trinta e nove fossem aceitos [1].



a)  O texto hebraico, -- a Bíblia Hebraica, ou seja, o Texto Massorético -- não contém os chamados livros apócrifos. É basicamente o mesmo cânone reconhecido pelos rabinos em Jamnia, em 90 d. C.

b)  O mais antigo manuscrito completo da Septuaginta (LXX) é de proveniência cristã no quarto século depois de Cristo e contém textos considerados não-canônicos pelos judeus, são os apócrifos presentes na Bíblia Católica Romana.

c)  As listas cristãs do cânone, que são mais anteriores, seguem o cânone judaico da Palestina, por exemplo, a lista de Melito de Sardo, de cerca de 160 d.C. A LXX teve origem em Alexandria, no Egito, cerca de 275 a 100 anos antes de Cristo. Os cristãos usavam a LXX, embora não haja evidências de que nem os cristãos, nem os judeus da Palestina consideravam seriamente a inclusão no cânone de quaisquer dos livros que hoje chamamos de apócrifos e pseudo-epígrafos, que são outra coleção de livros judaicos relacionados ao Antigo Testamento, e assim denominados porque os seus autores empregaram nomes de homens notáveis do Antigo Testamento como sendo os autores, dependendo do livro em questão, a fim de evitar perseguições, por exemplo, dos selêucidas.

d)  Embora a LXX contenha os apócrifos, não se pode provar que a mesma autoridade fosse atribuída a todos os livros. O fato da sua inclusão, entretanto, parece uma tendência da parte dos judeus de traduzir, preservar e circular os livros incluídos sem valorizar todos do mesmo modo.

e)  A lista da LXX conseguiu aprovação da maioria nos sínodos de 393 d.C e seguintes embora contra o voto de certos líderes como Jerônimo. Agostinho estava a favor, mas seus escritos mostram uma ambigüidade a respeito.

f)   Os reformadores do século dezesseis voltaram ao cânone judaico. Calvino, por exemplo, aponta o fato de não existir tradição unânime a respeito dos apócrifos como livros que devem ser considerados como inspirados.

g)  O Concílio de Trento, em 1546 d.C., aceitou como canônicos treze apócrifos: Tobias, Judite, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Baruque, I e II Macabeus, as adições dos livros de Ester, Baruque (anexo a carta de Jeremias) e acréscimos a Daniel (o cântico dos três mancebos, a história de Susana, Bel e o Dragão, e a Oração de Azarias). A Vulgata, edição publicada em 1592 d.C., autorizada pelo Concílio de Trento em 1546 d. C., incluiu também I e II Esdras e A Oração de Manassés.

O arranjo canônico na Septuaginta

a)  Livros da Lei -- o nome Pentateuco é de origem grega e sabemos do seu uso desde o primeiro século de nossa era. Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.

b)  Livros de História -- Josué, Juízes, Rute, I e II Samuel, I e II Reis, que cobrem os períodos de Samuel e Reis como I, II, III e IV reinados, I e II Crônicas , I e II Esdras, sendo o primeiro apócrifo e o segundo o canônico, Neemias, Tobias, Judite e Ester (com as adições).

c)  Livros de Poesia e Sabedoria -- Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cantares, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, ou Sabedoria de Siraque.

d)  Livros Proféticos -- Profetas Menores, em termos de tamanho e não de importância: Oséias, Amós, Miquéias, Joel, Obadias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias. Profetas Maiores: Isaías, Jeremias, Baruque, Lamentações, A Carta de Jeremias, Ezequiel, e Daniel, incluindo Susana, Bel e o Dragão e O Cântico dos Três Varões.

e)  Livros suplementares de História -- I e II Macabeus.

f)   A tradução do Pentateuco foi completada cerca de 250 a.C., a dos Profetas cerca de 200 a.C. e a dos Escritos cerca de 100 a.C.

O arranjo da Bíblia Hebraica -- Cânone Judaico ou TM

a)  A Torá -- A Lei -- Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio .

b)  Os Profetas -- Anteriores: Josué, Juízes, Samuel, I e II considerados em conjunto, Reis, I e II em conjunto. Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, e o rolo dos Doze -- Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

c)  Os Escritos --  Poesia e Sabedoria: Salmos, Provérbios, Jó. Os Rolos (Megilot) eram usados cada um na ocasião de uma festa específica: Cantares na Páscoa; Rute no Pentecostes; Lamentações no dia 9 do mês Abibe; Eclesiastes na Festa dos Tabernáculos; Ester na Festa de Purim. História: Daniel, Esdras, Neemias, Crônicas, I e II em conjunto.

Observações: são 24 livros, sendo tomados como um só livro os seguintes conjuntos: Samuel, Crônicas, Reis, Os Doze, Esdras e Neemias. Flávio Josefo, por combinar Juízes e Rute, Jeremias e Lamentações, falou em 22 livros.

O Novo Testamento menciona uma divisão tripla do Antigo Testamento: “A Lei, os Profetas e os Salmos” (Lucas 24:44). O livro de Eclesiástico, escrito cerca de 130 antes de Cristo fala de “a lei, os profetas e os outros escritos”. Veja Mateus 23:35 e Lucas 11:51 que refletem o arranjo da Bíblia judaica.

O arranjo da Vulgata, versão latina oficial da Igreja católica romana, foi completada em 450 depois de Cristo, mas aceita plenamente cerca de 650 depois de Cristo. Em geral, segue a LXX, só que I e II Esdras são iguais a Esdras e Neemias, e as partes apócrifas, III e IV Esdras, tanto como a Oração de Manassés, são colocados no fim do Novo Testamento. Os Profetas Maiores são colocados antes dos Profetas Menores. “Desta lista percebe-se que a Bíblia protestante segue a mesma ordem tópica do arranjo da Vulgata, só que omite todas as partes apócrifas. Na ordem, a Bíblia protestante segue a Vulgata, no conteúdo, segue a Hebraica” [2]. Uma avaliação do livros apócrifos indica que eles têm valor histórico e religioso. Confira Judas 14-15 que cita I Enoque 1:9, e Atos 17:28; I Coríntios 15:33 que cita o drama grego Taís de Alexandre.

Atenção: Sobre a questão da presença da cultura grega no pensamento judaico e neotestamentário, agrego um texto: Jorge Pinheiro, Teologia Bíblica e Sistemática, o últimato da práxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012, pp. 365-372.


Notas de rodapé


[1] HARBIN, Lonnie Byron. “O Cânone do Antigo Testamento” texto não publicado, p.1.
[2] ARCHER, Gleason, Merece confiança o Antigo Testamento?, São Paulo, Ed. Vida Nova, 1974, p.70