lundi 23 août 2010

A paridade entre o cristianismo e a consciência social crítica e militante


A práxis socialista só pode ser compreendida a partir do desenvolvimento econômico e espiritual e sua permanência está ligada diretamente ao cristianismo. Foi do interior do cristianismo que brotou a consciência e a militância social e, por isso, um socialismo sem pressupostos cristãos se mostra capenga. Ou seja, aqueles que defendem o socialismo devem defender também os princípios sobre os quais ele repousa.

Conforme explica Paul Tillich em artigo publicado em “Das neue Deutschland”, de 1919, a consciência e a militância social são produtos do desenvolvimento econômico e espiritual, que surgiu lentamente e que se impôs com a Renascença, a Reforma e o o capitalismo. A consciência e a militância social brotaram em oposição à cultura autoritária e unitária da Idade Média e sedimentaram suas bases nas criações culturais dos últimos séculos.

A organização econômica e espiritual da Idade Média estava fundada sobre um sistema de centralização da autoridade que, ancorado no sobrenatural, associava a natureza e a sobrenatureza numa unidade poderosa, à qual os povos se encontravam sujeitos.

A Reforma, sustentada pela visão humanista que surge com a Renascença, golpeou o sistema de autoridade, trouxe a fé para o plano formal ao recorrer à autoridade dos textos escriturísticos judaico-cristãos e no plano material valorizou a subjetividade da consciência pessoal.

Apoiada formalmente sobre os textos escriturísticos judaico-cristãos, o protestantismo eclesiástico engendrou novas contradições. Mas o sistema centralizado de autoridade já estava em frangalhos: as autoridades anularam a autoridade. Agora cabia ao indivíduo decidir a que grupo ele queria ligar-se.

Por causa das guerras religiosas, essa realidade viveu um processo lento transmitindo a cada lado a esperança de que poderia chegar a uma vitória exclusiva. Mas com o fim dos combates o que se viu é que as oposições às confissões se tornaram permanentes. Dessa maneira, brotou o espírito autônomo e crítico nos mais variados campos. A consciência européia ocidental se tornou adulta, atacou as muralhas autoritárias das confissões e não deixou subsistir sob o solo protestante nada mais que destroços do constrangimento autoritário.

René Descartes deu seu golpe decisivo. A certeza que eu tenho de mim mesmo é o princípio de toda certeza objetiva. Embora a autoridade não possa me livrar da dúvida, é em mim mesmo, somente, que se enraíza a certeza. E o Iluminismo tirou suas conclusões: toda tradição deve ser submetida à crítica.

No domínio econômico, espiritual e político nada ficou de positivo que não fosse pensado, confrontado com a consciência, medido e negado. Os sistemas de fé, as formas de Estado, as definições econômicas sofreram o assalto da autonomia, que não livraram nada, que não tiveram nenhum respeito pelas autoridades humanas e divinas.

Lamentou-se a perda do sistema de autoridade ou festejou-se tal acontecimento como um passo em direção à maturidade cultural. De todas as maneiras, houve o reconhecimento de que a vida cultural não podia ser pensada sem autonomia e que a consciência e a práxis social estão presente em todos os lugares. Líderes e camponeses tiveram o mesmo sentimento, conquistaram a liberdade das mãos do autoritarismo irracional, fosse ele imanente ou transcendente. Este foi o primeiro fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Do lado positivo, a autonomia significou o reinado da razão. Pela primeira vez, depois de um milênio e meio, a razão humana não via limites para seu poder. Através da análise ela penetrou as profundezas da vida cultural e social, simultaneamente, e através da síntese dos elementos descobertos apresentou um sistema novo, racional. Depois de séculos de arbítrio, as pessoas foram possuídas por uma vontade de dar forma ao mundo de maneira racional.

E a vida econômica também foi formulada racionalmente. Não era o prazer de certos indivíduos ou povos que deveriam fazer a lei, mas era a humanidade inteira, que é sujeito e objeto dos processos econômicos, quem deveria fazê-lo a partir de critérios racionais. A mesma autonomia que substituiu a autoridade, a partir da razão precisava construir um mundo sem arbítrio. Eis o segundo fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Sem dúvida, foi Karl Marx quem introduziu o pensamento histórico objetivo a partir do idealismo alemão no socialismo, ao dizer que a razão precisa ser separada da subjetividade e colocada ao nível das necessidades objetivas. O processo dialético é racional e a fé nele é uma fé na razão: uma fé que adquire uma força enorme graças à sua amarração metafísica objetiva e que se tornaria o dogma fundamental de milhões de pessoas.

Foi o processo da própria história que fez o mundo conformar-se à razão e levou este combate a tornar-se vitorioso. E foi essa vitória que deu cara ao mundo que conhecemos como moderno.

A fé na razão está fundamentada sobre os resultados conquistados pela ciência da natureza. Mas atrás da ciência da natureza veio a cultura moderna. Preparada de várias maneiras a partir do fim da Idade Média, ela surgiu com uma força irresistível na Renascença e conduziu a uma afirmação alegre deste mundo, que durante muito tempo foi negado, desdenhado e rebaixado por outro onírico e místico.

Os outros mundos empalideceram diante da nova astronomia, diante da validade universal das leis da natureza, diante da redescoberta da beleza do real na arte, diante da consciência de unidade do finito e do infinito na filosofia da natureza. Foi assim que a imanência ressoou no humanismo e na filosofia das Luzes, com Goethe e no idealismo alemão, da mesma maneira que o socialismo se uniu à consciência da autonomia e à fé do poder formador da razão na construção de um sentimento unitário da vida e do mundo. Este foi o terceiro fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Se o socialismo é, nesse sentido, uma herança da cultura universal, ele teve, no entanto, uma originalidade que não se restringiu aos conceitos, mas à experiência vivida. O conceito de humanidade, que manifesta a vitória da idéia de tolerância, não teve no desenvolvimento da práxis burguesa mais que uma realização acidental. A consciência da humanidade foi neutralizada pela consciência de classe, educação e de dependência nacional.

A humanidade se colocou antes de tudo no campo das confissões, sob formas absolutamente contrárias a idéia de uma transformação racional do mundo. E foi pela pressão econômica e política sobre os trabalhadores, nos primeiros decênios do capitalismo, que nasceu uma consciência solidária, no coração do qual está presente o sentimento universal de humanidade, que se opõe àquele que vê as pessoas como meios e não como fim.

O combate contra o feudalismo, o capitalismo, o nacionalismo e o confessionalismo constituiu a expressão negativa da consciência incondicional de humanidade, que derruba barreiras e reconhece a pessoa em cada ser humano. Este foi o quarto fato que o cristianismo teve de levar em conta.

Esses elementos formadores da consciência social crítica e militante são fundamentais para a compreensão das relações entre cristianismo e socialismo. Eles possibilitam entender até que ponto o cristianismo pode ter uma atitude positiva em relação à essa consciência social crítica e militante.

Um sistema como o catolicismo pré-Vaticano II, que foi erigido sobre o princípio da autoridade centralizada, só pode se opor a um movimento autônomo como o socialismo. Esse tipo de catolicismo e o socialismo são opostos na medida em que o catolicismo se afirma enquanto sistema de autoridade.

Eles se colocam como opostos mesmo quando o catolicismo aceita as exigências do socialismo em matéria de economia política. Entre os católicos continua a ser determinante a ética social do tomismo, estabelecida de maneira autoritária, em estreita relação com a dogmática. Ela permite uma ampla margem de manobra, mas a unidade do sistema católico impõe limites bem definidos, que uma doutrina econômica autônoma não pode jamais reconhecer.

O protestantismo quebrou o sistema de autoridade em seu princípio-base e deu voz à autonomia. É um erro considerar de forma heterônoma as palavras de Jesus ou dizer que o comportamento da comunidade de Jerusalém em Atos dos Apóstolos conduz a uma política econômica socialista.

Do ponto de vista histórico, os fatos não são assim tão simples, porque Jesus não levantou um programa de reforma social radical, embora convencido da irrupção iminente do reino de Deus tenha apresentado aos seus discípulos as conseqüências éticas do mandato do amor.

Fazendo uma abstração histórica, deve-se reconhecer que no terreno da autonomia, a justiça de uma ética social ou a verdade de uma doutrina não depende de sua conformidade às escrituras judaico-cristãs. Por isso, a consciência social crítica e militante pode ter por base, num determinado contexto, um sólido apoio psicológico a seu favor, enquanto convicção pessoal, que não nasce da autoridade imposta.

Quando os laços do cristianismo com a consciência social crítica e militante estão fundamentados de maneira heterônoma sobre as escrituras judaico-cristãs, não há um protestantismo autêntico, mas uma legalidade sectária. Isto porque o protestantismo como essência é autônomo. Mas, sem dúvida, as fórmulas “pela graça somente” e “pela fé somente” transportaram vida ao domínio do conhecimento, ao rejeitarem o legalismo, o farisaísmo da posse da verdade e o desejo de querer impor a verdade aos outros.

A religião e o espírito autônomo podem ser entendidos como paritários quando se chega a essa união através da autonomia, que livra do arbítrio. Diante da decomposição da cultura burguesa, o socialismo propôs a criação uma nova vida cultural e social unidas sobre a base de uma economia unificada. Mas tal proposta só é possível quando a autonomia caminha em direção à teonomia. Ou seja, é necessário uma práxis que permita à incondicionalidade apoderar-se de todas as realidades. Este é um ponto sobre o qual cristianismo e socialismo precisam se colocar de acordo.

A idéia de dar forma racional do mundo fez oposição à concepção do cristianismo que via o mundo como contra-divino e a razão como caída, e que via a redenção não como ação que dá feitio ao mundo, e o conhecimento não como razão, mas como revelação. Por isso, nesses últimos séculos, a teologia protestante propôs-se a superar a oposição entre razão e revelação, através da idéia de uma história universal da revelação, humana e imanente ao espírito, que nada mais é que a história do espírito em geral e do cristianismo em particular.

Essa concepção ética elaborada pela cultura protestante considerou que a pessoalidade livre é impossível sem o fundamento natural de sua individualidade psíquica e corporal, com suas inevitáveis particularidades lógicas, fisiológicas e biológicas e que o valor da pessoalidade consiste em ir além, elevar-se acima dessa naturalidade.

Tal concepção de mundo, que repousa sobre o absoluto, que aprofunda esta contradição entre o ser e o mérito, fundamento de toda liberdade moral, não é um estado ideal, pois seria onírico, desprovido de liberdade e de mérito inferior. Assim, o protestantismo traduziu uma vontade de dar forma ao mundo de maneira imanente: o reino de Deus vem ao mundo. Mas, ao mesmo tempo, tal concepção apresentou limitações: o dar feitio está situado no âmbito da técnica, não no da ética, no âmbito da categoria de meio e de fim e não dos juízos e do mérito.

Fazer é técnica, mas a técnica não é o fim em si, não é um fim último. Mesmo que toda economia fosse uma produção racional, a organização jurídica englobasse todos os povos, a vida material estivesse livre do imprevisível, restaria ainda o mérito da pessoalidade, a revelação do espírito e a idéia criativa que traduzem graça e brotam das profundezas do fazer.

Por isso, e essa será uma das sacadas de Tillich, é importante que o olhar lançado nas profundezas da existência não seja turvado, que a fé enquanto experiência da incondicionalidade apóie a vontade de dar forma ao mundo e a livre do vazio e do nada de uma simples tecnificação do mundo. Esta é outra questão sobre a qual cristianismo e socialismo devem se colocar em acordo, pois é com a experiência do imanente que surge claramente a oposição entre o socialismo e o cristianismo, já que o cristianismo está comprometido, enquanto fé, com o lá em cima, e o socialismo voltado para o aqui embaixo. Mas esta oposição não é correta.

Lá onde se vive a profundidade última da experiência humana, onde a experiência da incondicionalidade é pronunciada sobre todas as coisas e sobre todos os méritos, é onde acontece a supressão da oposição entre o em cima absoluto, perfeito, e o embaixo relativo. Sim e não são pronunciados sobre o aqui embaixo, que afinal é a única realidade conhecida. É no coração das pessoas que acontece a separação entre céu e terra, o julgamento paradoxal que confronta absoluto e relativo, perfeito e vão, eterno e terrestre. É assim que devemos entender a teologia do “somente pela fé”, que não admite nem perfeição, nem conhecimento, nem estado absolutos, mas que vê brotar o absoluto em todo relativo.

Temos aqui o fundamento da compreensão positiva que cristianismo nos dá sobre a questão da imanência. Mas aqui também o cristianismo deve oferecer ao socialismo alguma coisa sem a qual ele não pode existir: a experiência vitoriosa da incondicionalidade em tudo que está condicionado, imanente, na totalidade do real.

Existe uma atitude profana e uma atitude religiosa no olhar o mundo: essas atitudes se tornam nulas num estado puro, exclusivo. Num, a primeira predomina fortemente, noutra, a segunda. Pode-se conceber a arte, a ciência, a moralidade, a vida econômica e jurídica, a política exterior e nacional como fazeres profanos e se pode concebê-las de maneira religiosa.

Pode-se vê-las como atividades úteis e agradáveis, necessárias e desagradáveis, mas pode-se ver o espírito agir nelas e ver a vida nelas se revelar e, por isso, aproximar-se de tais coisas com respeito.

O espírito religioso está vivo no movimento socialista: é uma vibração religiosa que circula através das massas. Mas há também presenças profanas no movimento, mesmo entre seus ‘padres’ e ‘bispos’. A santificação da vida cultural no geral e no socialismo em particular é a marca deixada pelo cristianismo no socialismo. Este é a terceira questão sobre a qual cristianismo e socialismo devem entrar em acordo.

A santificação da vida cultural não será possível sem uma concentração dos elementos religiosos mais expressivos da cultura e da sociedade, sem a constituição de comunidades que estejam imbuídas em aprofundar e transmitir a experiência religiosa às gerações futuras. É para isso que servem idéias expressivas e as instituições, que existem com toda a sua riqueza e sua vitalidade no seio das confissões, e que a partir da força de uma tradição provada apresentam um vigor popular em oposição a uma interconfessionalidade racionalista e artificial.

Sem desejar apresentar uma nova forma de confessionalismo, com verdades e formas absolutas, devemos insistir na necessidade de falar sobre um quarto ponto: a experiência humana universal.

Esta experiência tem seu fundamento nada menos que no próprio cristianismo. Nós podemos ver na cruz de Cristo não somente a negação do judaísmo, mas também do cristianismo, no sentido de que se absolutiza enquanto confissão.

As comunidades cristãs não podem deixar essa consciência tomar-se efetiva, pois é sobre este terreno que se deram as condições para as guerras religiosas. Em relação a isso o espírito deve ser autônomo. O caminho da cultura cristã é entender esta consciência como elemento agregador de todas as culturas e todas as confissões, sem aboli-las, inspirando um sentimento de comunhão mais profundo que todas as barreiras concebíveis.

O cristianismo confere assim conteúdo à experiência humana. A solidariedade nascida da pressão exterior deixa de existir quando a pressão cessa. Os fatos confirmam isso. O socialismo falha em relação ao sentimento de comunidade que suscita a unidade a partir das profundezas últimas do humano, lá onde o incondicionado desperta a alma.

Não devemos entender o cristianismo como confissão exclusiva, mas como brotar da fé, incondicionalidade que vê uma só humanidade, sem as barreiras internas e externas que caracterizam as comunidades. Esta fé não se mostra hostil a não ser com os domínios econômicos, políticos e religiosos, que se colocam eles próprios contra os outros.

Estes são os fundamentos da paridade entre o cristianismo e a consciência social crítica e militante que deve ser mais que uma associação, que traduz um desenvolvimento de ambos através de uma nova forma de fé e vida. E qual é o papel dos cristãos e dos militantes da consciência social crítica neste desenvolvimento? Essa questão deverá ser respondida no futuro próximo, já que exige uma postura diferente daquela que cristãos e socialistas tiveram até agora.

Fonte
Paul Tillich, Christianisme et Socialisme, Écrits socialistes allemands (1919-1931), Les Éditions du Cerf, Éditions Labor et Fides, Les Presses de l’Université Laval, 1992, Christianisme et Socialisme I, pp.24-30.