jeudi 27 juin 2013

Como posso fazer Teologia?

Fonte: Jorge Pinheiro, Teologia bíblica e sistemática, o ultimato da práxis protestante, São Paulo, Fonte Editorial, 2012, pp. 15-20.

A pergunta acima nos remete a outra: o que é teologia sistemática? Antes de tudo, podemos dizer que traduziu através dos séculos a tentativa de organizar de forma ordenada as doutrinas da igreja cristã. Ou seja, entender o que faz do cristianismo uma fé diferente das outras religiões. Essas doutrinas, expressões da fé cristã, foram entendidas como afirmações das Escrituras sagradas, reveladas pelo Eterno a profetas e apóstolos. Essa busca de formatar um sistema coerente do que as Escrituras sagradas dizem da fé cristã, apesar de ser uma busca antiga, só foi, de fato, realizada pela primeira vez no século VIII, quando João Damasceno escreveu a sua Exposição da Fé Ortodoxa, onde apresentou os textos clássicos dos pais orientais.

A igreja latina fez algo pelo estilo, quando, no século XII, Pedro Lombardo coletou citações dos pais no livro Sentenças. Esse texto – Sentenças de Pedro Lombardo -- tornou-se então a base dos estudos sistemáticos na igreja medieval até Tomás de Aquino publicar a sua Suma Teológica. Com a Reforma protestante, no século XVI, surgiu com Felipe Melanchton (Loci Communes) e João Calvino (As Institutas da Religião Cristã) um repensar da teologia cristã, que ficaria conhecida como ortodoxia protestante. Essa ortodoxia marcou a história e a produção da teologia sistemática nos séculos seguintes, que só foram rompidas e questionadas – essa história e produção – no século XIX, quando se afirmou que a teologia está baseada em algumas doutrinas fundamentais.

Surgiu então uma nova interpretação, ou seja, uma nova hermenêutica da fé cristã, que teve como fundador o pastor Friedrich Schleiermacher. Este teólogo luterano, nos anos de 1820, disse que o centro da fé é a presença universal do Cristo, às vezes explícita, às vezes oculta, na humanidade. Tal presença dá a fé cristã uma consciência de total dependência. E, por isso, todas as nossas doutrinas deveriam ser entendidas como traduções desse sentimento de dependência. E foi assim, nessas construções através dos séculos, que chegamos aos temas principais da teologia sistemática: Escrituras sagradas; revelação; Trindade – Pai, Filho, Espírito --, o que desemboca na Cristologia e Pneumatologia; anjos e demônios; criação, ser humano; alienação e pecado; salvação; igreja; e as últimas coisas. Logicamente, o ser humano nos leva à antropologia bíblica; e as últimas coisas, à escatologia e apocalíptica. 

Esse é o nosso caminho, porém, entendemos que sem uma teologia que parta das Escrituras sagradas como Palavra do Eterno, que procure caminhar colada às formulações bíblicas, dentro da herança protestante ortodoxa, corremos o risco de fazer uma teologia sistemática excessivamente filosófica. E essa não é nossa intenção. Por isso, apresentamos três métodos de interpretação presentes na tradição protestante contemporânea, o método histórico-gramatical, o método histórico-crítico, e o método latino-americano da missão integral.

O método histórico-gramatical trabalha com quatro princípios: contextual, gramatical-literário, histórico e teológico. Reconhece a progressiva revelação do Eterno aos seres humanos, e vê os textos do Antigo e Novo testamentos como fundadores da teologia protestante ortodoxa.

O método histórico crítico nasceu a partir da concepção dialética de Hegel, passando pelos teólogos do século XIX, em especial Schleiermacher, tendo hoje fortes afinidades com a sociologia histórico-cultural. A pesquisa bíblica é aqui entendida como ato de reconstruir, direta e intencionalmente, a história do texto, que é vista como revelação, mas também humana e, por isso, histórica ao traduzir a experiência de fé de comunidades do Antigo e do Novo testamentos. Podemos sintetizar o método em cinco abordagens críticas: a redacional, que procura pesquisar o trabalho que os autores bíblicos, como redatores e editores, fizeram com os materiais que tinham à disposição. A narrativa, que estuda a ênfase que os leitores na comunidade de fé dão a uma narrativa em particular. Procura, assim, determinar o significado do texto, de acordo com a reação que a pessoa de fé, dentro da comunidade, tem quando lê. A canônica, que examina como os textos considerados inspirados foram utilizados pelas comunidades cristãs. A literária, que analisa os recursos literários utilizados pelos autores do Antigo e do Novo testamentos. A da forma, que consiste no estudo da história bíblica, mediante a análise das formas estruturais originais presentes em determinado texto. 

No método histórico-crítico a interpretação é entendida como mediação no seio da prática comunitária. A prática comunitária pode ser olhada, então, como ponto de partida e ponto de chegada da pesquisa bíblica. Daí decorre um método de interpretação que parte da prática comunitária onde o teólogo, feito profeta, se encontra inserido em realidades onde é desafiado a julgar e transformar, condição que deve levar a uma relação da compreensão do texto bíblico com o encaminhamento da solução dos problemas colocados pela vida na comunidade. Assim, a partir do método histórico-crítico cabe ao teólogo utilizar a revelação para viabilizar transformações na vida de pessoas e comunidades.

O método da Missão Integral partiu da hermenêutica histórico-crítica, mas teve uma preocupação fundante: compreender, julgar e transformar a realidade latino-americana. Ao se debruçar sobre os problemas da América Latina, como injustiça social e miséria, promoveu uma reflexão teológica contextual. Estrategicamente, propõe uma ação missionária que parta do ser humano real, latino-americano. Para isso, dialoga com as ciências humanas, entendidas como instrumento de análise e compreensão da vida latino-americana, e também com teologia da libertação. Embora faça a crítica do capitalismo neoliberal, assim como da teoria desenvolvimentista, e defenda a construção de sociedades solidárias, tem uma preocupação marcada: a preservação do evangelho bíblico. Nos últimos anos, tornou-se uma referência acadêmica nos seminários e faculdades de teologia brasileiros, por trazer a realidade latino-americana para as reflexões sobre a teologia bíblica e sistemática. Dessa maneira, o método da Missão integral tem marcado presença nos estudos da Bíblia, na reflexão missiológica e, por extensão, na própria educação teológica. 

Ao invés de opor um método ao outro, creio que os três se correlacionam e possibilitam novas reflexões nos estudos da Bíblia, mas também responder aos desafios da vida real de nossas comunidades. E, dessa forma, o imbricamento entre teologia sistemática e teologia bíblica permite ao leitor um olhar dialético, porque se a teologia sistemática está relacionada à filosofia e faz um caminho dedutivo, indo do geral ao particular; a teologia bíblica é indutiva, caminha do particular em direção ao geral. Ao analisarmos uma doutrina temos sempre uma universalidade de leitura, mas também uma especificidade de leitura, o que nos possibilita pensar a teologia como balizamento para o viver diário. 

Dentro da herança cristã temos várias teologias bíblicas e mesmo sistemáticas, que traduziram maneiras confessionais de entender a fé cristã. Tomamos como ponto de partida a teologia da ortodoxia protestante, que parte dos pais reformadores, sem esquecer as leituras apresentadas pelos reformadores radicais do século XVI e, depois, no século XX, pelos teólogos dialéticos. 

E voltamos à pergunta do título do capítulo: como podemos fazer teologia? Quais princípios metodológicos norteiam nossa pesquisa teológica? Essas duas perguntas, que podem parecer difíceis, a partir do que vimos, podem ser respondidas assim:

Tomamos como princípio arquitetônico, fundante da teologia, a doutrina da revelação, ou seja, as Escrituras sagradas como base e eixo da fé cristã. E tomamos como princípio hermenêutico, os métodos acima descritos, entendendo, porém que as hermenêuticas são produtos da razão, que se expressam enquanto universalidade do senso comum; enquanto ordenação e sistematização do pensamento; e enquanto analise dos fenômenos da realidade que nos cerca.

Essas opções metodológicas norteiam nossas pesquisas teológicas, embora estejamos conscientes de que no correr da história da teologia foram construídas diferentes compreensões do fato teológico. E por que? Porque dependemos sempre do que colocamos como base da estruturação geral da revelação. Por exemplo, será a aliança, a justiça ou amor? E porque entendemos que partimos sempre de uma ou de múltiplas visões filosóficas que podem ser utilizadas como instrumentos de interpretação da essencialização da vida . É por isso que se diz: a ideologia define a hermenêutica. Aqui reside a dificuldade -- toda teologia é transitória, pois reflete um momento de compreensão da substância católica e da essencialização da vida. 

No Manual de Teologia Bíblica e Sistemática utilizamos o Cristo lido a partir dos Evangelhos como referencial hermenêutico para pensar o Deus da fé cristã, tendo consciência de que assim fazendo não teremos todas as respostas, mas aquelas centrais para a vida. E recorremos ao Cristo também para compreender o ser humano. E fazemos assim, porque Cristo está no centro da fé cristã. Ele é divino e humano, ele revela o Eterno e o ser humano. E se Cristo é esta palavra sobre o Eterno, que fala às pessoas, é a comunicação de um Deus que se fez humano porque ama a humanidade.




A igreja brasileira e os desafios contemporâneos

Como fazer a diferença no Brasil neste século 21

Vou sintetizar o que quero dizer e depois a gente desenvolve essas idéias. Diria que em relação ao passado devemos ser conservadores; em relação ao presente devemos ser criticamente contextuais, contemporâneos e conterrâneos; e em relação ao futuro, revolucionários.



Esses desafios de vida evangélica para a igreja brasileira nascem da própria experiência profética. Os profetas clássicos do Antigo Testamento eram ao mesmo tempo revolucionários voltados para o passado e conservadores impulsionados pela paixão do futuro. Nada faziam sem invocar a tradição. No entanto, suas mensagens apontavam para os tempos futuros. Os profetas sabiam servir-se do passado para a crítica do presente. Todos tinham uma coisa em comum: uma atitude realista. E ao contrário dos profetas falsos interessavam-se pelo concreto do presente: eram contextuais, contemporâneos e conterrâneos. Não viviam envoltos em véus de ilusões e, por isso, condenavam o palavreado inútil e a eloqüência abstrata. Mas, a pregação do futuro não constituía o essencial de seus ministérios, eram antes fruto e resultado do conhecimento do mundo, de suas contradições e possibilidades. 

Se partirmos dessa compreensão, podemos dizer que nosso compromisso com o passado é a manutenção de nossas heranças, da qual a Palavra de Deus é a principal delas. Guardamos, estudamos, refletimos sobre o que diz e transmitimos àqueles que não conhecem o rico passado que nos deu origem. Não negamos nossas origens, sabemos de onde viemos e devemos ser maduros para entender o que fizemos de certo e de errado na história. Ao compreender assim o passado, dizemos que no correr dos séculos existiram homens e mulheres que interpretaram a situação espiritual de suas épocas. Eis aqui o ponto de intersecção entre a manutenção do passado e o tempo presente: a inquietude e o descontentamento em relação aos acontecimentos sociais e religiosos concretos.

Nesse sentido, deveria existir busca semelhante de respostas àquelas dos antigos profetas e a ação consciente dos líderes evangélicos e da igreja. Como os profetas deveríamos concretamente representar nossas comunidades, nossa terra brasileira, nosso mundo. Mas, ao lado das organicidades contextual, contemporânea e conterrânea, precisamos exercer autonomia em relação às pressões sociais, já que é dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente.

E se compreendemos que não basta o exame da situação espiritual do presente como totalidade e permanência para fazermos diferença e transformarmos o mundo, é necessário entender as exigências lançadas adiante e, nesse sentido, ir além do próprio presente.

Ora, se o presente não pode ser apreendido apenas a partir do passado e de sua conservação, porque se procuramos a transformação do mundo, se estamos envolvidos com a construção do Reino de Deus, esse fazer não pode repousar exclusivamente na experiência da conservação. Porém, ser contextual, contemporâneo e conterrâneo não significa negar a existência de alternativas diferentes daquelas expressas pelo presente. Quando analisamos a ação dos profetas em relação ao presente, vamos constatar que eles não testemunhavam em benefício do presente. Eles diziam não ao presente. Mas esse não era um não abstrato, era um não concreto, que partia da militância contextual, contemporânea e conterrânea deles. Isto porque só através dessa condenação concreta e real do presente podemos, de fato, denunciar os símbolos das forças demoníacas no presente, que no caso do Brasil são as exclusões: social, racial, de gênero, entre outras.


E é a partir dessa compreensão do que significa estar envolvido com o presente para ir além dele, que podemos falar do futuro, não de um futuro vazio, mas de um futuro construído a partir de novos conteúdos.

Esse futuro deve ser momento concluído, tempo e lugar onde a própria eternidade se faz agora e aqui. Repare, o futuro construído pela manutenção do passado, pela crítica contextual, contemporânea e conterrânea do presente não é um futuro qualquer, mas momento novo e pleno: é um futuro onde se completa aquilo que é significativo.

Esses desafios, em especial o da relação da conterraneidade com o Reino de Deus, repousam sobre o principio protestante. Este princípio central do protestantismo é a doutrina da justificação pela graça apenas, significando que nenhuma pessoa ou comunidade humana pode reivindicar para si a dignidade divina em conseqüência de conquistas morais, de poder sacramental, de sua santidade ou de sua doutrina. Conseqüentemente, a liberdade profética precisa sempre criticar, condenar e transformar o status quo ou os sistemas morais, políticos e sociais que se consideram sagrados. Cada evangélico, e aqui prefiro usar a expressão protestante, tem que decidir por si próprio se determinada conjuntura, doutrina ou sistema social é verdadeiro ou falso, se os líderes existentes em seu meio são verdadeiros ou falsos e se o poder estabelecido é divino ou demoníaco. Para os protestantes tal decisão será sempre pessoal.

Esses são os desafios protestantes, entendidos como expressão crítica e livre, para a igreja brasileira e seus líderes. Nesse sentido, é bom lembrar que onde se proclama o poder do Cristo e onde se denuncia as situações-limite que ameacem o sentido da vida, aí está o protestantismo no seu sentido mais profundo e abrangente.

Do amigo e colega,
Jorge Pinheiro

Estudos Interreligiosos