samedi 14 septembre 2013

História de Israel -- tradição e nomadismo

TRADIÇÃO E NOMADISMO
Jorge Pinheiro, Historia e Religião de Israel, origens e crise do pensamento judaico, ed. Vida, pp. 33--39.

A busca de um centro para as Escrituras hebraico-judaicas traduz uma preocupação moderna, que, na verdade, se referia à preocupação com a unidade desses livros, dentro de sua natural e reconhecida diversidade. Nós acreditamos que essa busca pelo centro causou bastante polêmica e não nos ajudou muito. Por isso, consideramos trabalhar melhor com a ideia de teia e linhas-força, que atravessam os livros e, por assim dizer, sustentam sua unidade. Essas linhas-força sempre foram reconhecidas por muitos estudiosos da história e da religião de Israel, mas na maioria dos casos foram apresentadas separadas umas das outras. Quando pensamos em teia ou rede, sabemos que todo o entrelinhamento é fundamental, assim como os próprios espaços vazios. Podemos então falar de um entrelinhamento teológico formado pelas linhas-força das ideias de Deus, ser humano, aliança, pecado, arrependimento, história e caminho.[1] Embora não seja nossa intenção aqui fazer uma teologia das Escrituras hebraico-judaicas, podemos dizer que a ideia de Deus nas Escrituras é peculiar e alinhava ideias que, se não inéditas, mas por estarem correlacionadas, apresentam um Deus peculiar, já que ele é único, eterno, criador e pessoal. Do ser humano também podemos dizer que é valorizado, pois não surge por acaso, tem universalidade, liberdade para a construção de seu destino.

A discussão em torno de um centro para a teologia de Gênesis é polêmica, pois o próprio conceito de centro, para muitos teólogos, seria uma limitação para um segundo conceito: o de revelação. Ora, dizem eles, se a revelação é dinâmica toda definição de centro é descabida.[2] Acontece que não devemos falar de um desenvolvimento linear em progressão, mas de uma expansão. Poderíamos tomar uma imagem, apesar dos perigos que um grafismo pode representar, de círculos concêntricos formados na água ao cair de uma pedra. A expansão se dá em todos os sentidos; há sem dúvida uma progressão, mas temos um centro inicial, criado pelo choque da pedra com a água. Já a aliança tem por base a descrição de um processo vivo que tem origem em determinado momento histórico, numa relação entre Deus e um personagem, que será transistoricamente definido no correr da história e dos textos.[3] Assim, ao entendermos o conceito de aliança como linha-força das Escrituras, a leitura do texto bíblico passa a ter uma compreensão que cresce conforme essas linhas se transformam em osso e carne, primeiramente, na vida dos patriarcas e, posteriormente, na formação da própria nação.

Mas falamos de sete linhas-força. Vejamos as outras quatro. Pecado e arrependimento: ao contrário da leitura reformada, as Escrituras hebraico-judaicas não afirmam que o ser humano é bom ou mal, mas que agirá a partir dessa polaridade. Isso fica claro no diálogo que Deus tem com Caim, quando diz que ele está inclinado para o mal, que está diante dele como um animal feroz, mas que Caim deve dominá-lo. Essa conversa, de certa forma, apresenta nas Escrituras hebraico-judaicas um padrão humano, a tendência ao mal. Assim podemos ler Gênesis 6.5; 8.21 e Deuteronômio 31.21. É interessante ver que nenhum desses textos fala do ser humano como essencialmente corrupto, mas inclinado ao mal. A própria palavra yetzer, que vem da raiz yzr, utilizada quando as Escrituras falam de inclinação maligna, significa moldar, propor-se. A ideia aqui é que somos dirigidos por nossas inclinações, nossas imaginações, sejam elas boas ou más. Nesse sentido, somos totalmente diferentes dos animais. E é exatamente yetzer que, combinado à liberdade humana, possibilita o arrependimento. Ou, conforme, nos diz Deuteronômio 11.26-28:

Prestem atenção! Hoje estou pondo diante de vocês a bênção e a maldição. Vocês terão bênção, se obedecerem aos mandamentos do Senhor, o seu Deus, que hoje lhes estou dando; mas terão maldição, se desobedecerem aos mandamentos do Senhor, o seu Deus, e se afastarem do caminho que hoje lhes ordeno, para seguir deuses desconhecidos.

Como essas linhas se entrelaçam e formam uma teia, a ideia de história está presente nas Escrituras quando vê a vida humana e a realidade presente e futura como estruturas abertas, que nascem desse relacionamento e diálogo entre Deus e o ser humano. É a dicotomia existencial, ser natureza e transcender a ela, que leva o ser humano à possibilidade da revolução, ou seja, à construção da História. Tal fato pode ser mais bem compreendido nos relatos da libertação do cativeiro egípcio. Essa libertação não é uma libertação nacional, que inclui apenas uma etnia, mas revolução social. Ora, é nesse momento que tem início a história de Israel, como ação de liberdade, como revolução e construção da História.

Ou seja, Deus ouviu os gemidos e os clamores do povo hebreu debaixo da escravidão e viu a situação deles (Êx 2.23-25), o sofrimento deles, e resolveu ajudar. Biblicamente, a construção da história humana é sempre uma correlação entre o sofrimento e a coragem de optar pela liberdade. E este foi o desafio apresentado aos hebreus escravizados: construir a História e optar pelo caminho da liberdade significava correr riscos, já que muitas vezes há segurança na escravidão. Bem, e qual é o papel de Deus nessa proposta de construção da história de Israel? Mostrar ao hebreu que o objetivo do ser humano é ser completamente humano, mostrar opções para as escolhas humanas. Deus também discorda quando o hebreu toma o caminho errado, mas não o abandona, pois sua preocupação é com a salvação pessoal e coletiva do hebreu, e por extensão do ser humano, pela construção de uma comunidade governada por amor, justiça e verdade.

Uma das linhas-força dessa teia de ideias teológicas presente nas Escrituras hebraico-judaicas é a do caminho. Mais do que propor uma adoração a Deus, as Escrituras nos falam de andar com ele. Daí a ideia de caminho. Se o ser humano é colocado a cada momento e a cada dia diante da exigência de exercer sua liberdade e escolher entre o bem e o mal, ou, como diz Deuteronômio 30.15, “Vejam que hoje ponho diante de vocês vida e prosperidade, ou morte e destruição”, a vida é o bem maior, o modelo de escolha, já que Deus está vivo e nós também estamos vivos. A escolha correta então é esta: escolher a vida, caminho que fica entre o crescimento e a decadência. A linha-força do caminho da vida ou do caminho de Deus é extensa e profunda nas Escrituras, e sem ela a teia estaria incompleta. E é a partir dessa teia teológica que estrutura o pensamento hebreu e depois judaico que desejamos analisar outras questões.

O livro de Gênesis apresenta a humanidade recém-formada como monoteísta.[4] Até o capítulo 11, não vemos nenhum traço de idolatria. Somente após Babel surge a idolatria, que seria contemporânea ao aparecimento das nações da Antiguidade. Assim, a partir de Gênesis 12, temos nações idólatras, henoteístas, politeístas e pessoas que adoravam ao Deus único. Entre estas estão Abraão e Melquisedeque. A compreensão desse fato é importante para tirarmos das costas de Abraão a responsabilidade de ter criado a primeira religião monoteísta. Ele não criou a religião do Deus único, mas viveu uma tradição, no sentido de transmissão de conhecimento e cultura que vinha, em parte, de seus antepassados.

Vejamos um pouco mais sobre a vida de Abraão, conforme descrita em Gênesis 12.1—25.18. Ele vivia na terra formada entre os rios Tigre e Eufrates, às margens de um afluente do Eufrates, chamado Balique. Viveu com sua família em Harã, uma cidade altamente desenvolvida. Seus parentes — Terá, Naor, Pelegue, Serugue — têm seus nomes registrados nos documentos de Mari e dos assírios como nomes de cidades naquelas regiões.[5]

A cidade de Ur, onde Abraão vivera antes de ir para Harã, é situada pelos arqueólogos na região da moderna Tell el-Muqayyar, a catorze quilômetros de Nasiryeh, no sul do Iraque. Segundo estudos de Sir Leonard Woolley, do Museu Britânico, que reconstruiu a história de Ur desde o quarto milênio até o ano 300 a.C., o deus-lua Nanar, adorado em Ur, também era a principal divindade em Harã.

É interessante agregar que todas as ofensivas da teoria crítica, que se baseavam principalmente nos estudos de Graf-Wellhausen[6] e que afirmam que Abraão, Isaque e Jacó não existiram como indivíduos, mas foram personagens criados pela literatura mitológica israelita entre os anos 950 a.C. e 400 a.C., estão em franco descrédito. A partir de 1925, uma série de descobertas arqueológicas produziu uma revolução de informação até então inédita. Segundo Bright, “temos agora textos, literalmente dezenas de milhares, contemporâneos ao período das origens de Israel”.[7] Ele cita os 25 mil textos de Mari; os milhares de textos capadócios; os das execrações, os do médio império egípcio; e os tabletes de Nuzi, Alalakh e Ras Shamra, produzidos entre os séculos XX a.C. e XIV a.C.

Segundo os documentos diplomáticos de Mari, cidade situada na região do rio Eufrates, o início do segundo milênio se caracterizou pelo tráfego de tribos nômades por toda a região da Mesopotâmia e da Babilônia. Essas tribos tinham sua economia baseada em pecuária, ovinocultura e criação de camelos. Água e pastagens eram necessidades básicas desses grupos. Assim, a escassez de tais elementos determinava o movimento de toda a comunidade. Sendo uma economia ajustada, com mútua dependência de seus membros, forte sentido coletivo de propriedade e consciência de uma descendência comum, o grande fator de desequilíbrio, fora questões climáticas, era o aumento natural da população tribal. Esse fator levava ao fracionamento do grupo, quando crescia em demasia, à aglutinação de parcela de uma tribo a outro grupo tribal, ou a uma postura guerreira na tentativa de apossar-se de territórios controlados por comunidades agrícolas e sedentárias. Normalmente, quando a terceira opção acontecia, essas tribos nômades, com o tempo, acabavam sendo assimiladas pela cultura sedentária. Nesses casos, os líderes nômades e seus descendentes passavam em geral a ocupar a liderança da comunidade conquistada.

Abraão, seu pai e seus irmãos, assim como seu filho, Isaque, e seu neto, Jacó, foram nômades, ou melhor, seminômades, já que todos conheceram também a vida sedentária. Mas Abraão, sem dúvida, foi um homem que viveu sob tendas, acompanhando seu rebanho às nascentes de água e pastagens. Enfrentou as guerras, que caracterizaram o período e o modo de vida tribal. Essa vida dura e cheia de dificuldades fazia desses homens pessoas bastante especiais para a época.[8]

Ao sair de Harã, Abraão deixava para trás a cultura babilônica, mas isso não significa que todos os seus parentes compartilhavam suas ideias sobre a adoração do Deus único. Em Josué 24.2 vemos que membros de sua família eram politeístas. Em Canaã, ele também estava rodeado pela idolatria henoteísta, mas mesmo assim erigiu um altar a Elohim.

Este homem, Abraão, era sem dúvida alguém peculiar. A fé no Deus único produziu um fruto muito especial em sua vida. Era um homem que procurava a paz (Gn 13.8,9), generoso (Gn 14.21-24), hospitaleiro (Gn 18.1-8), intercessor (Gn 18.23-33), que buscava a justiça e o direito (Gn 18.19). Era um homem moral e temente a Deus.

Notas
[1]Cf. Erick Fromm, O Antigo Testamento, uma interpretação radical, p. 259-60.
[2]“Não é necessário verificarmos a evolução do problema nos últimos dois séculos, quando surgiram apreciações bastante divergentes da teologia bíblica. A publicação da teologia de Eichrodt projetou a questão para uma nova dimensão. No seu entender, o conceito central e símbolo apropriado que garante a unidade da fé bíblica é a aliança.” (Gerhard F. Hasel, Teologia do Antigo Testamento: questões fundamentais no debate atual, p. 57.)
[3]“A centralidade da aliança para a religião do AT já possuía defensores muito antes de Eichrodt.” (August Kayser, Die Theologie des AT in ihrer Geschichtlichen Entwicklung Dargestellt [A teologia do AT em seu desenvolvimento histórico], p. 74; tradução livre do autor.) “A concepção dominante dos profetas, a âncora e o alicerce da religião do AT em geral, é a noção de teocracia ou, utilizando a expressão do próprio AT, a noção de aliança.” (G. F. Oehler, Theologie des AT [Teologia do AT], I, p. 69; tradução livre do autor.) “O fundamento da religião do AT é a aliança por meio da qual Deus recebeu a tribo escolhida, a fim de realizar seu plano de salvação.” (apud Gerhard F. Hasel, op. cit., p. 57.)
[4] Cf. Yehezkel Kaufmann, A religião de Israel, p. 220.
[5] Cf. Samuel J. Schultz, A história de Israel no Antigo Testamento, p. 31.
[6] Cf. J. Wellhausen, Prolegomena to the History of Israel [Prolegômenos à história de Israel], Atlanta: Scholars Press, 1994, p. 331.
[7] John Bright, História de Israel, p. 97.
[8] “No deserto não existem muros para se protegerem, e daí a importância capital da liderança, a necessidade urgente de uma disciplina. Todavia, a mobilidade da vida nômade impede a fixação definitiva do poder em determinado grupo. Não há privilégio hierárquico. Quando surgem dificuldades, quando a guerra ameaça a segurança do grupo nômade, qualquer indivíduo de sagacidade maior ou de grande coragem impõe-se como chefe, mas não passa de primus inter pares: uma vez afastado o perigo, volta a seu lugar habitual. Diante de tais condições, o poder político dificilmente pode adquirir suficiente influência ou prestígio para prevalecer sobre a ética, sobre os valores morais, mormente com a crença dos hebreus, segundo a qual os homens, criados por Deus à sua imagem, beneficiam-se dos mesmos direitos e devem assumir as mesmas responsabilidades.” (León Epsztein, A justiça social no antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, p. 107-8.)