mardi 12 mai 2015

Radicalmente

Entre o céu e a terra
Jorge Pinheiro


Vamos ver a correlação entre as leituras judaico-cristãs e a vida. As leituras judaico-cristãs são construções que levam em conta dois fundamentos, os relatos das experiências do povo hebreu com o Eterno único e os relatos das experiências dos discípulos com o rabino de Nazaré. No correr dos séculos da Era Comum, rabinos partiram dos textos fundadores e construíram duas religiosidades que deram origem ao Ocidente, o judaísmo talmúdico e o cristianismo católico. Ambos desenvolveram diversidades e hoje se nos apresentam com uma riqueza de formas e ideias difícil de se imaginar no início de suas histórias.

As leituras judaico-cristãs entregam, assim, a partir dos dois fundamentos, um conteúdo transcendente e outro humano, que procuram contextualizar as experiências com o Eterno e as experiências com o rabino de Nazaré, e responder aos desafios do tempo presente, armando e fortalecendo as comunidades de fé, tanto judaicas, como cristãs. Apesar desse importante serviço, as leituras judaico-cristãs são sempre passageiras e parciais. 

A vida é fundamento da existência humana, mas também motivação que anima a existência, que lhe dá entusiasmo e nesse sentido é espírito, alma e corpo. Não é apenas razão filosófica ou leituras judaico-cristãs, mas correlação entre o céu e a terra. 

Quando correlacionamos o céu e a terra surgem questões difíceis de serem respondidas. Entre essas questões podemos citar o esvaziar-se do homem e o ser levantado. Outra questão difícil, por implicar esse cruzamento do eterno e com a finitude, é a própria leitura da vida.

Nesse sentido, há leituras que olham esta questão a partir da eternidade. E há outras leituras que olham esta questão a partir do finito. Mas há outra maneira de olhar a questão da vida, a partir do reconhecimento de que estamos diante de um cruzamento das coisas ditas do céu com a realidade da terra. É esta perspectiva que orienta nossa leitura judaico-cristã da vida.

Para entendermos a correlação céu e terra começaremos a partir da leitura de que a violência não pode ser limitada a um período particular. Nessa leitura, a eternidade vem até aqui embaixo e a liberdade começa quando é entregue ao ser humano, que vive sob os limites da lei. O movimento em direção ao humano resulta em convicção e posicionamento. Ocorre, então, uma troca: a eternidade toma a natureza humana e entrega aos homens e mulheres o fim dos limites. Dentro dessa leitura, devemos fixar nosso olhar na novidade, de maneira que possamos reconhecer nossos alvos errados. Depois, lutar contra tais alvos que fizeram com que perdêssemos o sentido da vida. E, por fim, sob a sombra da violência, descobrimos a providência e o conforto que ela oferece. Assim, o que vem de cima é uma esperança. Pois, nos momentos de sofrimento e morte é a providência que dá garantia da presença da misericórdia nas vidas. 

Dessa maneira, o caminho começa com o ato de ouvir, com o reconhecimento dos alvos errados, mas também da misericórdia eterna. Continua no correr da vida com a luta contra os alvos errados e, finalmente, quando debaixo da violência e do sofrimento, é a providência da eternidade manifesta que garante a esperança. 

Mas podemos inverter a leitura. Acabamos de ver que o ser humano não tem como discutir e mergulhar na compreensão da soberania da eternidade, por isso a esperança é entregue, vem da eternidade nos momentos de dificuldades e sofrimentos. Se invertermos, a base é a escolha eterna. Assim, a esperança embora venha da eternidade não acontece como fim, mas é começo. Tal leitura tem por base a soberania da eternidade. Olha sempre do ponto de vista da eternidade, descarta a leitura de que o humano é imagem. 

Essa leitura da eternidade pode ser definida em três palavras: absoluta, dupla e particular. É absoluta porque não está condicionada a nenhuma contingência finita, é dupla porque p Eterno, para o louvor de sua misericórdia, elegeu uns para a eternidade benfazeja e, para o louvor de sua justiça, outros para a eternidade maldita; e é particular no sentido que pertence a pessoas e não a grupos. 

Quando tal leitura correlaciona céu e terra, pode ser entendida no sentido de que a vida depende do decreto eterno. E de que a convicção e o posicionamento traduzem esta escolha feita na eternidade. E de que se alguém crê, tem a vida porque já foi escolhido.

A leitura da eternidade absoluta enfrentou oposição, mas deve deve ser entendida como um esforço de demonstrar que existe garantia para os momentos de provação. É uma confissão de confiança na misericórdia da eternidade.

Uma leitura da terra parte da imagem da eternidade e de suas necessidades. É uma leitura que fala da degradação humana e diante dela realça a misericórdia. Mas, como sua visão é telúrica e negativa realça também a possibilidade de perda da vida. Assim, a vida é condicionada pela fé. Numa leitura da terra, os seres humanos têm a liberdade aceitar ou recusar a vida. E que o masiah morreu pela vida existente em todas as épocas e lugares. E que os seres humanos podem perder a vida caso não permaneçam na fé.

A leitura da eternidade não define os seres humanos para o não-ser, mas decreta a vida e o não-ser dos humanos em particular com base na onisciência divina da convicção e perseverança de cada pessoa.

A tensão da discussão entre eternidade absoluta e finitude relativa gira ao redor da compreensão da vida. Quando se diz que a eternidade não demora a fazer o que prometeu, como alguns pensam. Pelo contrário, ele tem paciência porque não quer que ninguém seja destruído, mas deseja que todos se arrependam dos seus alvos errados. 

Há uma chave para que a função misericórdia e função vida sejam plenamente exercidas. E essa chave está em que todos deem a volta por cima. A misericórdia da eternidade absoluta deve ser somada à mudança existencial, produzindo então vida. Ou seja: misericórdia mais sentido existencial é igual a vida. A misericórdia da eternidade absoluta sem o sentido de vida produz justiça. Ou seja: misericórdia sem sentido de vida é igual à violência manifesta. Assim, o valor da violência ontológica não é limitado, mas sua aplicação sim. A finitude condicional remete à vida através do sentido pleno da vida. Por isso, a eternidade define a vida e o não-ser com base no conhecimento divino da convicção e perseverança de cada pessoa.

A leitura da terra ressalta a liberdade humana. Como tal leitura é telúrica e negativa, vê a alienação humana como alvo errado de origem, a vontade humana como degradada e incapacitada para produzir qualquer bem maior. 

A leitura do céu parece confrontar a leitura da terra. Mas, as abordagens de ambas as leituras levam a uma leitura dialética: a leitura judaico-cristã da vida, que trabalha a tensão existente entre eternidade absoluta e finitude relativa.

A tendência minimalista olha a questão a partir da eternidade e nega a possibilidade da liberdade humana, de consciência livre e escolha. A tendência maximalista olha a questão a partir da finitude e não vê limitação à possibilidade do humano responder de forma livre à eternidade.

Mas há uma dialética nessa relação, é a leitura da vida. Esta entende que o humano pode apoiar sua resposta à proposta de vida em sua liberdade de ação e consciência, assim como no uso da razão. Mas tal processo deve ter como ponto de partida a eternidade absoluta. Nesse sentido, vida é escolha feita pela eternidade absoluta, a partir da misericórdia. É ação de escolha, chamado e comissionamento. Ainda que baseada na eternidade absoluta, a vida está em perfeita consonância com a liberdade de comunidades e pessoas. Viver de forma plena implica em consciência do ato e ação de viver. 

Existe uma tensão entre eterno e finito. E o que resolve essa tensão é a própria ação de viver. Para os leitores da vida, a vida é síntese que equilibra a tensão. Dessa maneira, a eternidade absoluta em sua misericórdia cria e mantém a vida, em e através do Messias, de comunidades e pessoas sob escolhas, chamados e comissionamentos desde o eterno, à luz da presciência, e de acordo com a liberdade de cada comunidade e de cada pessoa. 



Entre o céu e a terra está a vida. Por isso, a vida é para todos e acontece em e através do masiah por ação graciosa da eternidade absoluta. A eternidade é presciente e de acordo com a liberdade da finitude relativa entregue ao humano, colocou sob escolhas, chamados e comissionamentos a vida e os viventes.

A vida implica em geração e regeneração, relação dialética que é ato inicial em que a eternidade faz crescer o humano. É obra da eternidade. Mas geração e regeneração implicam em sentido pleno da vida e fé. Sentido pleno da vida é mudança na raiz da vida humana. E fé é a confiança e aceitação da vida como comissionamento. Nessa experiência de vida radical o humano pisa na terra, mas se eleva em direção ao céu. E o céu se derrama em direção à terra através do humano.

Assim, a partir da consistência ontológica do humano, somos levados à necessidade de uma análise da vida como leitura radical. Quando descartamos a reflexão sobre o ser humano a quem a eternidade fala, temos um discurso meramente ideológico, distanciado do homem e da mulher verdadeiros e da realidade em que vivem e transformam. Temos, então, um ser humano-mito, onde naturalidade e historicidade transformam-se em alegoria.

O pressuposto fundamental dessa reflexão teológica da vida traduz a verdade de que a compreensão da eternidade leva à compreensão do humano e de sua existência. Não se trata de conhecer o humano para conhecer a eternidade, porque o finito relativo não é eterno absoluto. Nesse sentido, a leitura da vida parte da eternidade absoluta. 

Se as experiências com o Eterno único e as experiências com o masiah cristão são conversas entre eterno absoluto e finito relativo, é a partir desse diálogo que temos os elementos fundamentais para conhecer a vida, embora ela própria no diálogo adquira características específicas. É nesse contexto que se dá a liberdade de consciência necessária para aceitar ou não esse diálogo de vida e para a vida.


Por isso, comissionamento é a propagação da vida e de seu sentido ao mundo, visando a geração e regeneração própria da vida. É escolha e chamado. A responsabilidade da propagação da vida se estende até os confins da terra. Comunidades e pessoas devem promovê-la. E assim nos posicionamos radicalmente entre o céu e a terra.