jeudi 5 novembre 2020

Moshe Pinheiro, rabino italiano

A existência, a justiça e a imortalidade


Moshe Pinheiro, rabino italiano, que viveu em Livorno, no século XVII, foi um dos discípulos mais influentes de Shabbetai Zebi, com quem estudou literatura talmúdica e cabalística (1640-1650). Mas não apoiou as reivindicações messiânicas de Shabbetai Zevi, em 1648. Por volta de 1650, deixou Izmir e se estabeleceu em Livorno, onde se tornou um mestre respeitado.
 
E aqui partimos de algumas de algumas reflexões dos ancestrais que nos remetem à questão da justiça. Ou, se recorremos ao Séfer ha Neshamá, a letra jota no alfabeto hebraico tem sentido especial porque para representar a vida (חיים, jayim), precisa de equilíbrio, e por isso se situa entre hesed e gevurah. Isto porque a vida exige um equilíbrio delicado para sua manifestação: nem muito calor, nem muito frio, nem muita expansão, nem contração demais, nem muita dureza, nem muita suavidade, nem muita luz, nem muita escuridão. E assim está associada à justiça, que é a qualidade de ser justo, mas também preciso.
 
Mas há uma outra imagem, muito interessante, que parte da compreensão do Sefer Yetzirah. Nessa imagem, o jota corresponde a uma mulher sentada num trono, que tem uma espada na mão direita e uma balança na esquerda. Ela olha para a frente com os olhos bem abertos. Seu olhar encontra o nosso como um espelho que reflete fielmente o nosso interior. A espada voltada para cima é a espada da verdade, que decepa mentiras e tudo que está fora da Lei. A balança representa o equilíbrio necessário entre polos opostos, e está ligeiramente desequilibrada para um lado, já que a perfeição não existe no mundo manifesto, no qual tudo oscila em maior ou menor grau. O equilíbrio não é permanecer estático, mas evitar a polarização excessiva. A mão com a qual ela segura a balança destaca seus quatro dedos: são os níveis de nossa humanidade: espiritual, mental, emocional e físico, que se encontram com o polegar. É uma mensagem de unidade na diversidade. 
 
Assim, se no corpo existem apenas fenômenos sucessivos, sem laço que ligue o passado ao presente, como se explicam o hábito, a associação de idéias e a memória? Ora, é necessário admitir que existe em nós uma realidade que vai além do cérebro, do mental, e se liga aos atos que praticamos. Esta realidade é a própria identidade que expressa a existência de cada um de nós. E se existe a existência, tenho que perguntar o que ela é.
 
Tomando como modelo a complexidade do mundo, prefiro dizer que devemos ver que existem duas hipóteses: a existência vai além do corpo ou só existe o corpo e o resto é extensão dele. Mas como combinar uma indigestão com o arrependimento?
 
Prefiro, seguindo os ancestrais, dizer que somos substância extensa, divisível e palpável, seguimos e vamos além do corpo. A existência é essa extensão e cada pessoa tem uma identidade na existência. Não é uma unidade numérica, mas una por ser simples e indivisível. Mesmo quando a gente envelhece e o corpo muda, a identidade permanece idêntica a si mesma. Somos um ao longo do tempo e é esta imutabilidade na existência que me confere identidade. Mas continua a leitura ... vamos ver isso mais profundamente na construção e na conclusão destas reflexões.
 
Vamos aprofundar os argumentos. A existência está unida ao corpo e participa da vida do corpo, inclusive para realizar as suas operações. Mas, também é independente do corpo nas suas funções intelectuais. Deste modo, a existência pensa e deseja sem a ajuda destes órgãos. Assim, a existência não está imersa no corpo, é independente sob diversos aspectos.
 
Lembro-me de que Aristóteles dizia que um ser se conhece por suas operações. Ora, de onde vêm as idéias? Ser inteligente, pensar são atividades da pessoa ou da existência? É a existência que trabalha a inteligência. A matéria está presa às leis da matéria, mas a existência por ser extensiva tem maior liberdade diante dos impulsos da sensibilidade. A existência goza de livre arbítrio.
 
A simplicidade que caracteriza os fenômenos da inteligência impede que afirmemos que o cérebro seja a causa do pensamento. Mas, é verdade, a inteligência precisa para se expressar de um cérebro saudável.
 
O cérebro é o instrumento de que se vale a existência para expressar os pensamentos extensos. 
 
Talvez a existência seja a nefeche raiá soprada em nossas narinas, que será construção no caminhar de nossas experiências, sentimentos, emoções. E se for assim até mesmo a identidade é uma construção, algo que nos pertence enquanto potência.
 
O reinar já chegou e começa no aqui e no agora. Esta vida no reinar é a “vida das eternidades”, que começa aqui e continua para sempre. Como a vida do reino é deixar que o Eterno reine no pessoa e no corpo, o céu é a continuação do reinar do Eterno, mesmo após a morte.
 
A morte não interfere no reinar, apenas modifica a esfera de sua atuação. O ser humano continua após a morte o seu relacionamento com o Eterno, seja como for o mesmo -- na intimidade do reinar do Eterno ou na separação do Eterno, o inferno.
 
Se um louco pudesse ter transplantado o cérebro lesado por um outro que fosse são, com certeza pensaria de modo correto. Isto porque a desordem e a deterioração dos órgãos não lesam a inteligência em si mesma, mas somente a privam das condições e meios requeridos para o seu funcionamento normal. Pode-se dizer, então, que o cérebro é a interface entre o espírito e o mundo material.
 
Vimos que a correlação íntima que existe entre as diversas operações da existência pensante, sensibilidade, inteligência e vontade, prova a unidade substancial do princípio de onde elas se originam. Esta mesma correlação se verifica entre as operações psicológicas e as funções orgânicas.
 
Uma comoção violenta da existência faz parar a circulação do sangue, o medo paralisa, e a confiança sustenta as forças físicas, o trabalho intelectual intenso retarda a digestão, poder-se-ia citar fatos que provam a influência do físico no moral, e reciprocamente. Demonstrada a união da existência e do corpo, como se faz esta união? O corpo não existe antes da sua união com a existência. Da existência, o corpo recebe a sua unidade, a organização, a vida e atividades próprias, numa palavra, tudo o que faz dele ser humano.
 
Assim, o corpo apenas se separa da existência pela morte, quando perde todos estes caracteres, todas as suas determinações específicas, dissolvendo-se nos elementos químicos de que foi formado. Quanto à existência, sem dúvida que existirá separadamente do corpo, vivendo a sua vida espiritual mas, sem o corpo, não mais poderá exercer as faculdades que exigem o concurso dos órgãos corporais, como a sensibilidade, a percepção externa e a imaginação.
 
Deste modo se conclui que o corpo é a matéria, e a existência é a forma, e que a união do corpo com a existência faz um todo verdadeiro e substancial. É esta união no ser que faz da existência e do corpo um só princípio de ação, que faz com que não haja ação humana na qual o corpo não faça a sua parte, nem ação humana tão humilde e material que não repercuta na existência. É este o princípio que coloca em cheque o racionalismo.
 
Com a morte, o corpo se dissolve. Acontecerá o mesmo com a existência e morreremos inteiramente? O que é a imortalidade?
 
A imortalidade consiste na sobrevivência substancial e pessoal do eu, na identidade permanente da existência, que conserva as suas faculdades de conhecer e amar, sem as quais não há felicidade humana. Após a morte, a existência mantém a consciência da sua identidade, com as lembranças e responsabilidades do seu passado, sem as quais não poderia haver nem recompensa nem castigo: em uma palavra, não existiria o princípio da justiça divina. A metafísica afirma que a existência é imortal por sua natureza não corruptível. A razão para a sua sobrevivência após a morte do corpo é demonstrada pelo argumento moral. Que esta sobrevivência é indefinida e ilimitada, prova-o o argumento psicológico.
 
O corpo se desagrega e se dissolve logo que se separa do seu princípio de unidade, da sua forma substancial que é a existência. A existência ao ser como é, simples e espiritual, não pode decompor-se nem se desagregar -- não morre, pois, com o corpo. Este é o argumento metafísico da imortalidade da existência.
 
Se há o Eterno e lei moral, a justiça exige absolutamente que o crime seja punido e a virtude seja recompensada. Neste mundo, nem a natureza, nem a sociedade, nem a própria consciência dispõem de sanções suficientes para recompensar plenamente a virtude ou punir adequadamente o vício; é necessário, portanto, que haja outra vida onde a justiça seja plenamente satisfeita, e a ordem seja estabelecida. Este é o argumento moral, que demonstra a sobrevivência da existência, mas não prova que esta existência seja ilimitada na sua duração.
 
O argumento psicológico, que prova a perseverança da existência humana depois da morte, assenta sobre o princípio de que o Eterno não se contradiz, por isso ao dar um fim a um ser, lhe dá também os meios de o atingir. Tudo na natureza do humano aponta para o fato de que é criado para atingir a felicidade. Mas, se não pode alcançá-la neste mundo, deve haver outra realidade onde tal projeto se concretize. E como felicidade pressupõe expansão sem limites, segue-se que a realidade futura teria esta qualidade.
 
O ser humano aspira a um objeto infinito, a uma verdade, beleza e bondade absolutas, cuja posse nos deve fazer felizes. Nossas faculdades superiores possuem capacidade ilimitada, que não se pode satisfazer fora deste bem infinito, que não é outro senão o próprio Eterno.
 
Mas, o que encontramos neste mundo que apague esta sede de felicidade humana, que preencha o vazio do coração criado para o infinito? A natureza é tão limitada e o mundo tão pequeno; esta vida é tão curta e a realidade tão imperfeita! Queremos amar, queremos viver o mais possível, mas encontramos decepção, dor e morte. Assim, é evidente a desproporção entre os nossos meios e as nossas necessidades.
 
O conceito hades é a expressão grega utilizada na Bíblia dos setenta para traduzir o termo hebraico sheol, lugar de continuidade daqueles que deixaram o mundo dos vivos. Na Torá, sheol é uma expressão de origem incerta, mas que aparece 65 vezes no testamento hebraico-judaico. O conceito sofreu mudanças ao longo da história da religião judaica. No rolo de Eclesiastes, por exemplo, nem entra em cogitação a possibilidade de uma vida além-túmulo. Quando, porém, surge na religião de Israel a construção do conceito de vida além-túmulo, surge como lugar de silêncio. O termo sheol, aparece, no entanto, ao lado de outros, como abadon, cujo primeiro significado é destruição, mas vai ser lido também como reino dos mortos. As duas expressões, porém, são imprecisas e estão muito vinculadas ao contexto em que estão inseridas. A idéia geral mais ampla seria de lugar dos que dormem. No rolo do patriarca Jó, abadon é a personificação do lugar de destruição. E o tehom, que pode ser traduzido por profundezas, abismo e, inclusive, pela idéia de deserto são símbolos da religião antiga de Israel para o mundo dos mortos. E uma das passagens mais ilustrativas do conceito de sheol está no rolo do profeta Isaías.
 
“O sheol desde o profundo se turbou por ti, para sair ao teu encontro na tua vinda; ele despertou por ti os mortos, todos os que eram príncipes da terra, e fez levantar dos seus tronos todos os que eram reis das nações. Estes todos responderão, e te dirão: Tu também estás fraco como nós, e te tornaste semelhante a nós. Está derrubada até o sheol a tua pompa, o som dos teus alaúdes; os bichinhos debaixo de ti se estendem e os bichos te cobrem. Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste lançado por terra tu que prostravas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas do Eterno exaltarei o meu trono; e no monte da congregação me assentarei, nas extremidades do norte; subirei acima das alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. Contudo levado serás ao sheol, ao mais profundo abismo.”
 
O contraste entre o desespero que se agarrava às existências dos homens no sheol, e a esperança que surgia pela esperança da ressurreição, está expressa no apocalipse do profeta Isaías. Ele diz com respeito aos ímpios: “Os falecidos não tornarão a viver; os mortos não ressuscitarão; por isso os visitastes e destruístes, e fizeste perecer toda a sua memória”. E tomado pela esperança declara que “os teus mortos viverão, os seus corpos ressuscitarão. Despertai e exultai, vós que habitais no pó, porque o teu orvalho é orvalho de luz”. O ser levantado para a vida é realidade do Eterno e do coração reto humano diante do Eterno. No texto cristão do Apocalipse, a morte e o hades são jogados no lago de fogo e sua força sobre a existência é aniquilada, de forma que tais poderes ficam sob o domínio do Eterno.
 
Ao retratar o conceito de inferno, com o emprego de termos como sheol e hades, os limites dos conceitos estão determinados pelas conotações das cosmologias antigas. Na cosmovisão hebraica de universo, o sheol fazia parte do mundo subterrâneo. O rabino de Nawaré trabalha a partir dessa cosmovisão, mas sua intenção na parábola não é realçar a dimensão espacial, mas a realidade relacional. Por isso, inferno não é tanto dimensão espaço-temporal, mas estado de solidão, separação, do Adon da vida. A leitura hebraico-judaica realçava o conceito normativo de retribuição. O justo recebia recompensa material, e o injusto carecia de bens, prazeres e saúde. Ricos eram naturalmente abençoados pelo Eterno e dignos do reino messiânico. Mas o rabino de Nazaré desconstrói essa normatização e nomeia o mendigo. É interessante notar que o pobre tem nome, é Lázaro, mas o rico não.
 
Lázaro é Eliezer, aquele a quem o Eterno ajuda. É grego transliterado. Ter nome compõe identidade, nomeia o quem é quem. Há aí distinção entre o valor da vida do pobre em relação ao rico. Naquela sociedade o rico tinha destaque, e atuava com desprezo frente ao mendigo. O Eterno, porém, o socorre. O rabino de Nazaré faz, assim, críticas às práticas dos fariseus: a negligência para com os despossuídos de bens e direitos, o fazer bem aos que podem retribuir, o orgulho e a infidelidade à lei, que exige amor ao próximo. O ensino do rabino nos últimos capítulos do evangelho do discípulo São Lucas está resumido nesta parábola.
 
O rabino de Nazaré fala da vida e embora trabalhe dentro da cosmologia hebraica antiga, levanta algumas questões que direcionam o pensar além-túmulo: há consciência do estado, memória, juízo imediato, mesmo que intermediário, o que implica em alguma forma de retribuição. Há conforto para os justos oprimidos, não há mudanças no juízo, e a informação para receber o descanso está na lei e nos profetas. Assim, o Eterno se preocupa com aqueles descartados pela sociedade. Não há retorno para esta vida terrestre após a morte. A confiança no Eterno é o único mérito de Lázaro, que se expressa no nome que tem. A vida neste mundo é de pouca valia quando se passa à dimensão além-túmulo.
 
Uma pergunta que provém do estudo da parábola pode bem ajudar a redefinir as prioridades do quotidiano. Que diferença faz a presente circunstância ou forma de atuar em termos de vida daqui a dez mil anos? Em certo sentido, é esta a pergunta do rabino aos fariseus através desta e outras palavras de ensino. Em outra passagem se registra as palavras do rabino em reação à preocupação de ter um corpo inteiro na ressurreição -- para tal queriam guardar qualquer parte do corpo que fosse amputado para ser incluído com o resto do corpo no sepultamento. Nesse contexto, o rabino de Nazaré diz que é melhor arrancar e jogar o olho fora se fizer a diferença no ingressar no reinar de Deus. Muito melhor viver no reino coxo, cego, ou aleijado do que perder o reino por completo.
 
Logo, se há um Eterno sábio e justo, esta contradição não pode ser definitiva; deve haver outra vida onde se restabeleça o equilíbrio entre o que desejamos e o que podemos, uma vida em que sejamos perfeitamente felizes. A duração ilimitada da imortalidade constitui o elemento essencial da felicidade completa; não se pode gozar plenamente um bem quando receamos perdê-lo. A incerteza dói tanto mais quanto maior é o bem possuído.
 
Logo, a vida futura da existência, a imortalidade, não tem fim, é infinita e ilimitada, e a sua tendência natural é a prática da virtude, em conformidade com os desígnios do seu criador, o Eterno.
 
Jorge Pinheiro
 
  

Os limites da existência, terceira parte

que bom saber que o eterno cumpre o que promete. yoffe estava sob a guarda da eternidade. miriam só tinha que ter paciência. qualquer dia ele entraria por aquela porta e a saudade cederia lugar à alegria do reencontro.
  
13.
 
o segundo limite da vida 


noite alta, o segundo limite da vida, mestra da lucidez e palavras, ficou pensando na viagem e na última coisa que o primeiro limite, morador dos castelos de edom, dissera antes de se retirar para a sombra de sua figueira: “limite bem sucedido trabalha em equipe. nós estamos incompletos: o terceiro limite é a parte que falta para criarmos o paraíso que desejamos”. palavras difíceis, como poderia catalogá-las?
 
amo essa terra, adoro essa hora da meia-noite. pensou. sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. essa é a hora dos meio tons. não está gelado, mas faz frio. está escuro, mas não completamente. existe o mais e o menos. é a hora mais difícil para os humanos. eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. ao menos uma folha, mas nada. e eu também fico quieta, acompanhando a ordem natural do momento. é certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. mas eles nem percebem. são seres medrosos.
 
às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. e fica mais escuro. é aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. é o momento. vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da consolação e começo a falar com os vivos.
 
sou amiga de merodach e sarpanitu. vivi e fui adorado em borsipa, mas na primavera desse país, o primeiro limite ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. um lamento do fundo das trevas. era eu. tinha sido desterrada, exorcizada para os confins do inferno. depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. é aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há doze mil anos acendo o osorno.
 
e lá em baixo, no llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. sua presença imponente domina a paisagem.
 
quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos. gosto do gelo das geleiras. esta é a minha casa, a casa do limite. e foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos da minha irmã, o limite das onze horas.
 
posso estar velha e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens. falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. mas é minha especialidade. a memória humana é uma colcha de sensações. eles sempre se lembram da dor das pedras. o momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. assim são eles. suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. tudo fica escrito. até as marcas da saudade não se apagam. e para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.
 
aprendi a caçar os fantasmas humanos. mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, levanto cadáveres antigos e mal cheirosos. não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero. quem me ensinou esta especialidade limítrofe foi o limite das onze horas. no início ela me disse que o mundo das palavras fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. bastava aprender, com ela, a viajar na memória dos humanos. sempre levo comigo uma bolsa. é a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. são palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. são palavras de pobre, como cuspe, frio e maleita. são palavras das quatrocentas, como treme-treme e sezão. junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.
 
tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. e aí, sozinha, vou colocando cada uma delas na sua forma. e ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. e vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. o limite é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho  limite das onze horas a uma centúria de formigas flamejantes. na semana santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. e a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. é a porta de entrada da minha casa.
 
ao contrário de nós limites, na vida das gentes sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. lembro-me de um jornalista que não tinha dúvidas. vivia com uma jovem italiana e, no fundo do coração, queria ser o dono do mundo. nessa época, eu, e meus dois outros limites  trabalhávamos juntos. tínhamos organizado uma grande festa.
 
era noite de lua cheia. corpos cheios de limites tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. representavam os mortos esquecidos e os lembrados. no meio do círculo, comida. do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. sons de cantar, dançar e de fazer sexo. nunca me esqueço. o luar cobriu a floresta.  sharon vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de shostakovich penetrou no labirinto e depositou um gato, chamado miró, numa cova rasa. eu, cheia de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de artaud: ... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus, o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado. 
 
e sharon pensou: e se vida for uma só. e se a morte do miró for também a minha morte. e se esses dias, quando a vida dele vai se esvaindo, for também um esvair-se da minha vida. e se esses dezessete anos de vida em comum, dividindo a mesma casa, conversando em idiomas diferentes, mas muitas vezes multiplicando emoções e sentimentos, são parte de um todo que eu vejo como caleidoscópio? claro, eu sei que você vai dizer que não é nada disso. que ele é apenas um gato e eu sou apenas uma humana, não tão racional neste momento. e outros vão me achar boba, cheia de sentimentos infantis, piegas, porque estou com emoções em desequilíbrio e triste porque o gato do rabino que, na verdade, é o gato da filha do rabino, está a morrer de velhice aos dezenove anos de vida felina. 
 
e a vida vai deixando ele devagar. vai morrendo aos minutos, às horas, mas de forma vagarosa. não está sofrendo, só deixando de viver. o gerúndio aqui é o jeito mais perfeito de dizer, vai deixando de viver. é como se a vida estivesse nele em camadas, e fossem se desfazendo no ar. ou quem sabe, se de fato tivesse sete vidas que fossem se desprendendo não uma a uma, mas cada uma delas em primeiro lugar formasse uma bolha de vida ao redor dele e essa bolha fosse se esvaziando aos poucos. e é possível que cada uma dessas bolhas dure dias. dias sem comer, sem beber, sem miar, mas que permitem a ele olhar para mim com olhos fundos, mas fundos mesmo, olhasse de dois buracos, e me dissesse, chefa você falou com o eterno sobre mim? a vida que ele me deu, as sete, estão a se esvaziar, cada uma delas, mas quero lá na frente estar contigo, como seu companheiro e matemático. 
 
eu sei miró, nós falamos sobre isso nesses dezessete anos de convívio, quero você lá comigo. falei com o eterno que quero você lá. e como você sabe, e como ele sabe, quero você como meu matemático. meu gato matemático, que sabe falar a linguagem do meu coração e sabe fazer todos os cálculos que eu preciso, como por exemplo a equação para se conhecer a hipotenusa, ou outras mais complexas como a equação de hagen-poiseuille. e querido miró, inteligente, falante e matemático, você vai me dizer que esta é a equação do físico francês jean louis marie poiseuille, que relaciona o caudal q de um tubo cilíndrico transportando um líquido viscoso com o raio r, comprimento l, pressão p e coeficiente de viscosidade n. 
 
e que a equação de hagen-poiseuille é uma lei da física que descreve um fluxo, que não pode ser comprimido, de baixa viscosidade através de um tubo de seção transversal circular constante. e eu vou rir porque sei que é isso mesmo, mas eu quero ter você ao meu lado em minhas viagens por essa eternidade do eterno.
 
mas, por enquanto, estou vendo o seu momento que me parece um momento difícil. as bolhas que se esvaziam devagar, e você quieta conversando com a eternidade. é um momento seu, talvez um momento de sabedoria, de conversa de amigas. e eu só posso olhar e pensar que quero entrar na conversa também. ontem, como boa protestante, cheia do meu jeito brasil, também conversei com o eterno. e disse para ele, que se a minha alienação existencial era a responsável pelo esvair-se de sua vida, que ele me perdoasse. e ele disse para eu deixar de ser convencida, pois o esvair-se da vida é o momento mágico do renascimento. e eu calei o meu pensamento, entendendo perfeitamente que você vai continuar comigo, ranzinza, reclamante, mas cheio de matemáticas, ao meu lado, neste cruzar eterno da eternidade sem fim.
 
estou saindo agora para minhas lides, e se a última bolha se esvaziar... nos vemos depois. te amo, miró. obrigado pela parceria nesses dezessete anos, que projetam a eternidade no meu coração e em nossas vidas.
 
e como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos loucos, malditos e suicidas. foi então que apareceu o rapaz. ele olhou, mas não viu. nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos.  sharon, toda sensual, chamou: menino, entra na roda.
 
ele levou um susto. não entendeu como sabíamos o nome dele. mas cheio de orgulho, aceitou conversar. quem é você?  sharon respondeu: você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.
 
o corpo do terceiro limite era lindo aos olhos humanos. usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. sob a luz da lua, a cena era encantadora. os atabaques batiam no ritmo do coração. o ar era de sensualidade e magia. cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu: não posso entrar aí. sou filho do eterno da guerra.
 
ah! se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. quisemos saltar dentro dele. era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. partimos para o ataque, mas uma espada nos impediu. ele pertence à eternidade. estão proibidos de romper os seus limites e tocar na vida dele. esta é uma ordem diante da qual os limites se dobrarão.
 
aquela luz brilhava demais. feriu nossos olhos, apavorou nossos corações. nossa festa tinha chegado ao fim. o ódio odiado estremeceu os corpos que ocupávamos. urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. depois, semimortos, os abandonamos ali. a partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.
 
nenhum encontro é casual. há sempre aquele que busca. só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.
 
no verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. sobrevoo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. as folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. e o tempo, para que serve? 
 
 
eu transformo o tempo na memória da solidão. minhas palavras são punhais assassinos. elas amedrontam a noite e congelam o dia. e eu fico encantada, como num conto de fadas. afinal, sou o segundo limite, mestra da loucura, um limite muito especial, cheio de malícia e de palavras. 
  
14.
 
espero alegremente a saída


vai e goza a vida com a mulher que tu amas, pois isso é tudo o que você vai receber pelos seus trabalhos nesta vida dura que a eternidade lhe deu, disse aquele que anuncia. 

diego rivera e frida kahlo serão pintores, peregrinos e apaixonados. o pensamento está na ponta de suas mãos, nos olhares. eles vivem em seus corpos, como numa dança, num ato sexual, e se projetam em seus quadros, é assim que se falará deles. a pintora e sua arte virarão tela na produção estrelada. 

atípica, frida não será apenas pintora, mas uma das mais incríveis personalidades do século vindouro. viverá de forma intensa, até morrer deixando não apenas os seus quadros de trágica beleza, mas ideias. será filha da revolução e terá uma vida marcada por tragédias. vai contrair pólio, será para as amigas do colégio frida perna de pau... 

agora, vou olhar para trás. anos mais tarde, quando já havia superado a doença, o ônibus em que viajava chocou-se contra um bonde. sofreu múltiplas fraturas e uma barra de ferro atravessou-a, entrando pela bacia e saindo pela vagina. por causa do acidente fez várias cirurgias e ficou muito tempo presa à cama. começou a pintar durante a convalescença, quando a mãe pendurou um espelho no teto. 

"eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor". 
pintou os medos e o amor por diego, o marido. produziu uma arte íntegra e, em toda a vida, não aceitou nada que limitasse sua liberdade. pintar significou declarar amor por diego, o sofrimento desse amor, o limite terrestre e a crença na eternidade do amor. escreveu em seu diário:

diego-princípio, diego-construtor, diego-meu menino, diego-pintor, diego-meu pai, diego-meu filho, diego-meu amante, diego-meu esposo, diego-meu amigo, diego-minha mãe, diego-eu, diego-universo, diversidade na unidade. por que o chamo meu diego? nunca foi nem será meu. é dele mesmo.

frida se tornou membro da trilha em 1928. alguns de seus quadros, como o auto-retrato com stalin, revelam a fé no comunismo. foi nessa época que conheceu diego rivera.

apaixonaram-se e se casaram no ano seguinte. há quem afirme que foi um casamento meio por amor, meio por ser diego alguém que a compreendia. diego tinha muitas amantes e frida, por mágoa ou opção, teve alguns. um desses amantes de frida foi o revolucionário russo león trotsky, quando do exílio no méxico. 

frida pintou, em 1926, o auto-retrato com vestido de veludo, o primeiro trabalho sério de sua vida e que deixava entrever o interesse pela pintura renascentista italiana. nele, ela retratou o seu pescoço de forma alongada, ao estilo de amedeo modigliani, numa pose aristocrática e algo melancólica. a partir desse momento, seus trabalhos passaram a evidenciar não apenas anseios profundos, como sentimentos ambíguos e a realidade de suas crenças. 

"pensaram que eu era um surrealista, mas eu não era. nunca pintei sonhos. pintei a minha própria realidade". 

ao final da vida, como na juventude, a revolução voltou a ter força para o marido diego. ele retomou o caminho da sua arte, imperioso, sensual, que escapa a trivialidade e inventa a lógica do extraordinário. diego morreu em 25 de junho de 1957. três anos após a morte de frida, em 13 de julho de 1954, de embolia pulmonar. 

na última página do diário de frida, diante do anjo da morte, palavras cheias de beleza expressam sua postura diante da vida: "espero alegremente a saída -- e espero nunca mais voltar -- frida". 

e eu pergunto, os peregrinos vão para o céu? para além da metáfora, ir para o céu é liberdade na eternidade. para aqueles que consideram a possibilidade da liberdade eterna, conforme acreditarão muitas pessoas, na plenitude do tempo todas as pessoas renascerão para a vida restauradas para a eternidade. hosea ballou, dirá no futuro em seu tratado sobre a expiação, que o sacrifício não é uma posição jurídica, mas moral. 
 
sofremos a violência para a humanidade, mas não em seu lugar. a liberdade dos humanos leva à morte, e este é o último limite. libertação é amanhã, é ir além dos limites da alienação e dos alvos errados, mas, também é presente que nasce da misericórdia: amizade com o sem fim e fora de todos os limites. donde, fica a provocação: os peregrinos vão para o céu?
 
 
a terceira chave
os bons ventos da paz
  
15.
  
quem não gosta de wilhelm reich?
 
 
este inverno está terrível. eu e reyna estamos nos separando. não tem lógica nenhuma. eu a amo, eu preciso dela, mas não aguento ir ao pedagógico, assistir aulas, vê-la alegre e cercada de amigos.
 
ando deprimido, não consigo aceitar a československá como minha nova morada, com a possibilidade de nunca mais voltar ao  a terra dos brasis. o frio, as árvores desfolhadas, esse sol de virilidade duvidosa que não esquenta nada, nem ninguém...
 
hoje resolvi andar sem destino. peguei a bernardo o’higgins e caminho como se carregasse um trem nas costas. o inverno de praha é noiva a caminhar para o altar. e eu carrego o meu trem nevado sobre terra e sob céu, brancos. paro num bar, sento e peço um conhaque. tiro um livro do bolso e começo a ler. sou professor assistente da cadeira de psicologia social. dou aulas de reich.
 
a análise do caráter e a revolução sexual estão entre meus livros prediletos. tenho nas mãos o livro de um autor que não é encontrado nesta československá de masaryk/dubček. os peregrinos não gostam de reich e pressionam para eu desistir de meu projeto. 
 
a vida é tão simples (...). apenas torna-se complicada pela estrutura humana caracterizada pelo temor à vida. a consecução geral teórica e prática da função vital e da segurança de sua produtividade chama-se revolução cultural. sua base somente pode ser a alegria do trabalho natural. amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. deverão regê-la também, afirma o amigo reich. eu até acho que ele tem razão, mas nunca vi alguém viver isso.
 
irina, minha amiga e catedrática de psicologia social, me enturmou com um pessoal que está realizando uma experiência inédita aqui em praha, uma clínica de terapia de grupo ao ar livre, com jogos, pouca roupa e muito rock. é meio woodstock, mas eu gosto. só não sei se vai dar certo. já tive vários problemas.
 
vi minha terapeuta transando com um dos nossos. vi por acaso, mas não gostei. na verdade, morri de ciúme. márcia é uma jovem belíssima. do tipo loira esguia. às vezes, tomamos banhos juntos, todo mundo, debaixo de uma árvore centenária. somos uns dez, mais ela e rodolfo, outro terapeuta.
 
num desses dias, estávamos sentados em roda, e márcia pediu que eu expressasse o que sentia para um jovem que estava ao meu lado. ele se levantou. eu me levantei e dei-lhe um soco no meio da cara. foi a maior confusão. mas por que você fez isso? e o sujeito chorando. chorando de soluçar. imagina, chega na terapia e leva um soco na cara.
 
por que eu fiz? porque queria. você não disse para eu me expressar? então quebrei a cara dele. pressionaram e eu dei um abraço nele. pedi desculpas. ele aceitou.
 
outra vez saímos da terapia, em grupo. estávamos, não sei porque, na maior felicidade. ríamos, brincávamos, quando saiu um sujeito de um bar e passou a mão, espalmada e vagarosamente, nas partes de liliane. a menina deu o maior berro, de susto, imagino.
 
dei um grito, um salto e quebrei o nariz do sujeito. ele correu para dentro do bar, com a mão no nariz. os amigos pegaram tacos de sinuca e vieram contra mim. parei no meio da rua e comecei a lutar contra uns cinco. todo o esforço do lurton, que nos dava treinamentos especiais para briga de rua, floreava naturalmente. eu era um bailarino, voando nos peitos daqueles coitados.
 
uma mulher, cambaleante de bêbada, com uma criança no colo começou a gritar desesperadamente.
 
-- ele deu um murro no meu filhinho, deu um murro no meu filhinho.
 
perdi a concentração. o balé perdeu seu ritmo, pessoas começaram a me rodear e, de repente, uma multidão correu atrás de mim. os dos tacos de sinuca, gente com paus e pedras. uma multidão. eu ia ser linchado...
 
liliane me salvou. chamou a polícia, que de viatura e sirene aberta me agarrou e me levou para a delegacia. mas a multidão não desistiu. correu para a delegacia. queriam me linchar de qualquer jeito. eu era um perigo para a pacífica  československá.
 
e uma outra história foi contada ao delegado. eu, um carateca humano, louco, havia esmurrado uma criancinha de colo e, por isso, aqueles pacatos jogadores de sinuca se sentiram na obrigação de defender a criança e sua mãe.
 
depois de umas duas horas de xilindró, a situação se acalmou e o delegado me chamou. já tinha ouvido o depoimento de liliane e do pessoal da terapia. ouviu o meu, me deu alguns conselhos sobre não ficar usando meus conhecimentos de artes marciais por aí, me desejou boa sorte e me soltou.
 
irina e márcia diagnosticaram machismo incurável. liliane gostou, passou a dizer que era seguro andar comigo. 
 
o conhaque é espanhol. reich continua a falar mal da família e da monogamia, diz que a comuna é a nova família. os peregrinos nunca vão aceitar isso.
 
a compulsão à destruição é obsessiva. conheci uma jovem loura e tímida, que acaba de chegar de brasília. joguei reyna fora, sem ao menos me dar conta de que estava vivo graças aos cuidados dela. mudei de casa e iniciei um longo mergulho de sensualidade e niilismo. eu e náiade fazemos sexo doze horas seguidas. e dormimos as outras doze horas. conseguimos passar semanas inteiras sem sair de casa, sendo alimentados pelos amigos, que estarrecidos, deixam as refeições na porta do apartamento, para que não morramos de fome. só depois de um mês de puro sexo saímos pela primeira vez. 
 
é impossível esquecer aquela noite. era inverno, passamos pela casa de gabriel, bebemos muito, e fomos assistir à uma peça de teatro na universidade da československá. antes mesmo de terminar o espetáculo, eu aplaudia e gritava como um alucinado. mal se fecharam as cortinas, pulei no palco e fui abraçar os atores. minha euforia era contagiante. noite gelada, céu estrelado e uma sensação de gaudiosos poderes. náiade se enroscava em mim. estava feliz. todos meus amigos estavam felizes. yoffe superou a crise, está curtindo a vida, apaixonado. não vai se suicidar.
 
aliás, já tinham realizado algumas reuniões de cúpula com mário pedrosa e mary, sobre minha situação. e o velho mário, muito sábio, declarou: "não se preocupem, é uma crise epistemológica. se ele superar, aprende com ela e vai em frente. cresceu. se não superar, se suicida. não merece a vida que tem". todos tinham um amor muito grande por mim. muito grande mesmo. eu era violento, assassino e suicida em potencial, mas meus amigos me amavam. só que eu não tinha tempo para olhar para esses detalhes. o importante era guerrear a guerra da vida. o resto, ora que resto?
 
era noite de são iohanan. convidei um grupo de amigos para jantar em casa. tínhamos feito um peixe assado, o vinho branco estava na geladeira, e íamos servir o jantar à luz de velas. antes, porém, fui fazer uma visita ao iohanan. quando cheguei lá, vi um sujeito que não conhecia e que, coitado, acabava de chegar do rio de janeiro. estava acompanhado de uma moça magra, elétrica, que vestia verde e usava uma boina, imaginem, verde também. parecia um grilo. olhei para o sujeito, gritei que não ia com a cara dele. dei um urro horroroso e pulei com os dois pés do peito dele. o sujeito quase caiu morto: de susto, aterrorizado. convenceram-me a ir embora e saí babando de ódio. com náiade do lado, mansa como se nada tivesse acontecido. horas mais tarde, quando íamos dar início ao jantar, entre os convidados, quem chega? os dois. ele e ela.
 
todos se sentam à mesa. levanto-me, dirijo-me à carioca recém-chegada e pergunto:
-- vou tomar um banho de banheira, você quer vir comigo?
 
ela responde afirmativamente. todo mundo está estatelado, principalmente náiade. 
 
eu pergunto:
-- como é seu nome?
 
-- annabella.
 
eu e alex fazendo pesca submarina na praia vermelha. a gente sai cedo de casa e leva toda a tralha em duas sacolas grandes: pés de pato, máscaras de mergulho, tubos de respiração, facas e arpões. não usamos acqualung. mergulhamos no fôlego.
 
levamos também água potável, dois sanduíches e duas maçãs.
 
da praia vermelha, ali ao lado do forte, nadamos uns quinhentos metros, cada um com sua sacola, até a ponta da pedra. ficamos em frente ao mar aberto. 
 
instalamos nosso qg ali. escolhemos uma área protegida para as sacolas e a comida e iniciamos a pesca.
 
o mergulho. o sol atravessa às duras penas a transparência do mar. só aqui no fundo encontro o verde que eu quero verde. os cardumes de peixes coloridos diante de meu nariz e as algas que docemente oscilam ao sabor da corrente dão a agradável sensação de vôo livre.
 
o arpão está armado, mas a primeira hora de mergulho é só de observação. eu e alex sempre mergulhamos aqui, por isso já conhecemos esses amigos das profundezas. a gruta da lagosta, que sempre foge à nossa chegada e que não nos preocupamos em caçar. nem fisga para lagosta a gente traz. bagre e peixe pequeno a gente também não pesca. é a maior vergonha aparecer lá em cima com alguma coisa pequena.
 
caçonete é a meta. mas não é fácil. depende da temperatura da água, da corrente e até mesmo da claridade do dia. água fria, turva, e dia nublado favorecem a caçada, mas mesmo assim não é fácil encontrar o cação.
 
depois do cação vem a arraia e o polvo. se o mar tem cação, tudo bem. é uma questão de destreza e mira. às vezes, ele passa diante da tua cara e quando você vai atirar, ele já saiu da linha de tiro. você persegue e ele mergulha. você vai até onde o fôlego dá. pode ter sorte ou ter que subir rápido porque os pulmões ameaçam explodir.
 
já a arraia são outros quinhentos. ela fica lá em baixo, quietinha, mimetizada na areia. se bobear, você passa por ela e nem vê. ela então dá uma deslizada rápida pelo fundo, em busca de outro esconderijo. 
 
esse é o momento. você está em vôo livre, por cima, armado. tchum... o arpão corta a água e atravessa a arraia. ela fica grudada no fundo se contorcendo. você tira a faca e corta o rabo dela. segura o arpão e a traz para a superfície.
 
-- peguei, peguei uma arraia...
 
alex me ajuda, a enrola em jornal e coloca numa das sacolas.
 
tem ainda o polvo. o certo é pescá-lo com fisga. ele se esconde nos buracos das pedras e acertá-lo com arpão não é fácil. o melhor é a fisga. por isso, só levamos polvo para casa, quando, num golpe de sorte, ele dá bobeira e a gente consegue acertá-lo.
 
parada para o lanche.
 
-- tia lucy fez os sanduíches. misto quente, frio.
-- ta bom.
-- você está gostando de morar com o aeyal?
-- ele é gente fina. está me ensinando boxe.
 
eu e alex sempre nos demos muito bem, mesmo quando brigamos. geralmente sou eu quem brigo. ele é muito inteligente. aprendeu a ler aos três anos de idade, mas prefere a contra-mão. já fugiu da escola várias vezes. é menino do rio. passa o dia na praia. magro, muito queimado de sol, olhos negros, sobrancelhas enormes, lembra o shemtós, diz orgulhosa a pequena miriam. é um garoto lindo, saudável, um pequeno animal selvagem. marinho.
 
-- gostaria de ter conhecido o shemtós, ou me lembrar dele.
-- você era o nariz de batatinha. ele gostava tanto de você, que você recebeu sua primeira surra aos três anos.
-- pó, e isso é sinal de gostar?
-- para ele sim. o shemtós tinha um padrão de educação meio antigo. quem ama, educa.
-- você apanhou muito, não é?
-- não mais que o necessário. shemtós e miriam ficavam loucos comigo. eu era um moleque da pá virada.
-- por falar nisso, acho que o tempo vai virar. vamos mergulhar mais um pouco. se o mar picar, adeus pesca.
-- vamos lá.
 
já temos uma arraia, mas sei que alex não quer voltar de mãos vazias. quando não pescamos nada, levamos mariscos. eles aqui são grandes e bonitos.
 
tia lucy gosta. transforma peixes em caldeiradas e frutos do mar em paellas. nas mãos dela tudo vira banquete. e na hora do jantar, sempre regado a suco de frutas brasileiríssimas, carambola, jabuticaba, tamarindo, faz um elogio rasgado à nossa destreza de pescadores submarinos.  waldemar, daniel e eduardo também comentam e aprovam. eu e alex somos os heróis da noite.
 
waldemar é filho de alemães. seu pai tinha uma metalúrgica em joinville, onde daniel e eduardo nasceram.
 
ele e tia lucy se conheceram no rio, quando ele fazia faculdade de medicina. depois a fábrica pegou fogo, um dia depois do seguro vencer, o pai deixou de mandar dinheiro e ele passou a representar madeireiras do sul aqui no rio.
 
é um sujeito esperto, com muito tino para os negócios. trabalha sozinho, em casa. usa telefone, a western para seus telegramas, e toda a madeira vem de navio, cif ou fob, a gosto do cliente. forneceu madeira para a construção do maracanã e está ganhando muito dinheiro.