jeudi 30 avril 2009

O cristianismo e a filosofia ocidental -- Filosofia II

Para análise e discussão em sala de aula.

O cristianismo e a filosofia ocidental, por Maria Leonor Xavier
I Colóquio sobre Filosofia da Religião
WEB: http://religioes.no.sapo.pt/leonor2.html

O cristianismo e a filosofia são duas construções da civilização ocidental. Pensar a relação entre as duas é um desafio necessário, porque há um desejo de compreender os fatores estruturantes do desenvolvimento da filosofia no Ocidente, entre os quais se encontra inelutavelmente o cristianismo, e, por outro lado, há o desejo de compreender porque cristianismo continua a exercer um fascínio crescente, apesar das múltiplas contradições da sua história. Ambos são motivos da vontade filosófica de compreensão, mas esta vontade é dimensão indissociável da experiência religiosa na sua integralidade.

Compreender a influência estruturante do cristianismo no desenvolvimento da filosofia ocidental exige a consideração da interação histórica entre cristianismo e filosofia. Compreender a força que o cristianismo continua a suscitar exige uma permamente reflexão da presença filosófica nesta construção religiosa. Donde o esforço por encontrar o essencial do cristianismo. Mas haverá uma essência do cristianismo, separável da sua história? Muitas têm sido as interpretações do cristianismo que valorizam ou desvalorizam a relação com a sua história. Não cabe eliminar interpretações, mas elaborar uma compreensão que responda aos questionamentos colocados pela alta Modernidade. Partimos do fato de que existiu uma correlação de aspectos da história do cristianismo com a tradição filosófica ocidental. Deste modo, a filosofia, enquanto fator de apreensão do essencial do cristianismo, pode ajudar na busca de sua essencialidade.

Por isso, começamos com a questão do cristianismo enquanto filosofia para chegar à questão do essencial do cristianismo. Entre as duas questões cabe, então, a reflexão sobre a interação histórica entre cristianismo e filosofia. Não se trata de retrospectiva histórica dessa interação, mas de realçar dados e analisar referências, como os testemunhos da influência do cristianismo na história da filosofia e, também, da filosofia na história do cristianismo.


1. O cristianismo como filosofia em questão
Ao pensar a relação entre cristianismo e filosofia ocidental nos colocamos diante de uma questão: é de fato o cristianismo uma filosofia? Esta é uma questão que ressurgiu nos anos 1930 e envolveu dois historiadores da filosofia, Émile Bréhier e Étienne Gilson. Bréhier negava a marca filosófica do cristianismo, Gilson, ao contrário, defender o caráter filosófico do cristianismo. A controvérsia repercutiu entre pensadores cristãos, que acrescentaram versões do que se poderia ser entendido como filosofia cristã. Essa agregou duas linhas de interpretação: uma de que a filosofia cristã é uma concepção do universo elaborada com base nos textos bíblicos; a outra identificou a filosofia cristã com uma filosofia que parte dos seus próprios recursos e atinge resultados afins ao cristianismo. Na primeira linha de interpretação, uma filosofia é cristã por ter nas Escrituras o seu fundamento, enquanto, na segunda linha de interpretação, uma filosofia é cristã no fim do processo de construção de suas teses. No entanto, estas duas linhas de compreensão do conceito de filosofia cristã não são novas. Ambas encontram correspondentes em referências dos primeiros séculos do cristianismo. A admissão de que o cristianismo comporta uma filosofia foi partilhada por autores como Justino de Roma, Clemente de Alexandria, Orígenes e Agostinho de Hipona. Ao lado dessa admissão, outra corrente dizia que a tradição filosófica oferecia filosofias, umas mais próximas do cristianismo, outras menos, tendo sido as filosofias de origem platônica, aquelas que foram escolhidas pelos primeiros filósofos cristãos como as mais compatíveis com o cristianismo.

Haverá, então, alguma diferença entre a contemporaneidade e o passado quanto à defesa da noção de filosofia cristã? Os autores contemporâneos defendem a noção de filosofia cristã num contexto de separação crítica entre filosofia e religião, Já os autores do passado defenderam uma noção afim de filosofia cristã num contexto de proximidade entre filosofia e religião. Este contraste de ordem contextual não é, porém, exterior à concepção da natureza da filosofia e da religião, antes comporta uma alteração susbstancial relativamente à índole de ambas, pelo que não é possível abstrair dele. Alteração essa, que se repercute significativamente, em especial, na relação entre filosofia e cristianismo. Se filosofia e religião são incomunicáveis entre si por natureza, qualquer determinação da filosofia pela religião, ou da religião pela filosofia, tornar‑se‑á forçada e abusiva. Se, em contrapartida, filosofia e religião são de natureza semelhante, ou partilham aspectos respectivamente essenciais, resulta natural e plausível a interação de ambas.

Na civilização helenística, que se estendia pelas regiões da bacia do Mediterrâneo, nos primeiros séculos da nossa era, filosofia e religião não eram domínios entre si incomunicáveis. Daí que a conversão de filósofos ao cristianismo não implicasse ruptura com a filosofia, antes proporcionasse a elaboração de um sentido de continuidade entre filosofia e cristianismo. É esse o caso de Justino, uma das mais antigas e ilustrativas referências da história cruzada do cristianismo e da filosofia. Na tradição do cristianismo, Justino é mencionado como um dos primeiros apologistas. Mas, ao fazer apologia do cristianismo, Justino fez também apologia do cristianismo como filosofia. No início do seu Diálogo com Trifão, Justino narra simbolicamente a sua conversão ao cristianismo, como resultante do encontro com um ancião, que lhe dá a conhecer uma nova filosofia. Antes desse encontro, Justino tinha já um percurso de busca em filosofia, visto que tentara freqüentar diversas escolas filosóficas. A filosofia de que Justino parece ter conhecimento mais desenvolvido e assumido, por ocasião do seu encontro com o ancião, é uma filosofia de linhagem platônica. São lugares comuns dessa filosofia, como a natureza divina e transmigratória da alma ou a contemplação puramente inteligível do divino, que o ancião contesta, no seu diálogo com Justino platônico. Essa contestação, que conduz Justino a questionar o seu platonismo, faz parte do seu processo de conversão ao cristianismo. Outra parte desse processo é a contraposição de novas teses, em alternativa às teses rejeitadas do platonismo: à natureza divina e transmigratória da alma, o ancião contrapõe a natureza mortal da alma criada; à contemplação inteligível do divino, o ancião contrapõe a possibilidade de um conhecimento apenas mediato e indireto de Deus. Estas teses, que o ancião contrapõe ao platonismo de Justino, são teses de uma nova filosofia: o cristianismo. O ponto de vista crítico do cristianismo sobre o platonismo, no texto de Justino, mostra que não foi sem reservas que a tradição do cristianismo veio a adotar a tese platônica da imortalidade da alma, bem como a possibilidade de uma visão direta de Deus. Nestas matérias, o cristianismo surge filosoficamente mais céptico do que o platonismo. De qualquer modo, é na relação com o platonismo que, segundo Justino, o cristianismo afirma a sua diferença, como filosofia.

Terá sido, então, o encontro entre Justino platónico e o ancião cristão que originou a adesão de Justino a uma nova filosofia. Através desse simbólico encontro, Justino sugere‑nos que ele próprio assumia a sua adesão ao cristianismo como uma conversão filosófica, o que não afectava de superficialidade, o sentido da conversão religiosa, uma vez que filosofia e religião não eram de natureza díspar. Os dois domínios cruzavam‑se em áreas de interesse comum, como as da reflexão teológica e ética. Questões pertinentes da filosofia sobre a divindade eram, segundo Justino, a questão da unicidade ou da multiplicidade divina, bem como a questão da extensão da providência divina ao particular. Justino considera, porém, que a tradição da filosofia grega não foi muito longe no aprofundamento destas questões, e não é sem argumentação que ele indica as suas decisões no âmbito das mesmas questões. Com respeito à primeira, a filosofia do cristianismo pronuncia‑se, pela voz do ancião, a favor da unicidade divina, argumentando por redução ao absurdo, ou seja, denunciando as dificuldades racionais de uma investigação das causas para as diferenças a supor entre múltiplos hipotéticos incriados. Este procedimento ilustra bem que, a propósito de uma das questões basilares de teologia filosófica, o cristianismo de Justino está ainda longe de se assemelhar a uma teologia dogmática, comportando‑se de facto como uma filosofia que assume o ónus da prova. Com respeito à segunda questão teológica mencionada, a questão relativa à extensão da providência divina, Justino preconiza a extensão da providência divina ao indivíduo, e fá‑lo, não por razões de ordem teológica, mas em razão da ética: se Deus não se interessasse pelos indivíduos, de forma a premiá‑los pelos actos bons e a puni‑los pelos maus actos, tornar‑se‑ia indiferente, para o destino humano, agir bem ou mal, e, por conseguinte, perderia sentido e eficácia qualquer exigência de ordem ética. Nós podemos decerto contra‑argumentar, advertindo de que a extensão individual da providência divina, assim preconizada por Justino, condicionaria a ética pelo interesse nos seus frutos, tornando‑a interesseira. Justino não dá resposta explícita a esta objecção, mas talvez nos respondesse que a ética não é auto‑sustentável para o ser humano, requerendo, por isso, uma ordem de sustentação teológica. De qualquer modo, teologia e ética são domínios próprios e essenciais da filosofia, para Justino. A rectidão de vida não é uma preocupação opcional do filósofo, mas é a sua indeclinável prioridade. Ao afirmar que santos são os filósofos, Justino faz coincidir a noção de santidade com a exigência filosófica de rectidão. De acordo com essa afirmação, o estatuto de filosofia não diminuía, ao olhar de Justino, a grandeza do cristianismo. Caso contrário, ele não teria tentado criar uma escola de filosofia cristã em Roma, conforme reza a tradição.

Mas o que é que permitia essa tão estreita comunicação, senão mesmo coincidência, entre filosofia e religião, que se verifica na concepção justiniana do cristianismo como filosofia? A consideração de uma fonte comum de sabedoria. Mas era possível que a filosofia e o cristianismo partilhassem a mesma fonte de sabedoria? Os primeiros filósofos do cristianismo admitiram que sim: o cristianismo não veio senão manifestar plenamente a mesma fonte que havia alimentado a tradição da filosofia grega. Nesta tradição, a fonte de sabedoria, que era princípio de inteligibilidade do universo, recebera por vezes o nome de «Logos», como no caso do estoicismo. A tradição do cristianismo podia adoptar esse mesmo nome, no seguimento de um dos textos mais célebres e, filosoficamente, mais interpelativos do Novo Testamento: o Prólogo do Evangelho de João. Este texto começa dizendo: «No princípio era o Logos, e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito» (Jo. 1, 1‑3). Este enigmático início do Evangelho joanino permite conceber um Logos primordial e divino, que está na origem de todas as coisas. Assim concebido, o Logos divino podia agir, desde o princípio, em todas as coisas, no ser humano inclusive. O Prólogo joanino elege, aliás, o ser humano como destinatário privilegiado da actividade do Logos. Por um lado, «o Logos era a luz verdadeira, que ilumina todo o ser humano» (Jo. 1, 9). Em virtude desta acção iluminadora, o Logos podia ser identificado com a fonte universal de sabedoria no ser humano. Assim o entenderam os primeiros filósofos cristãos, como Justino, através da sua noção de Logos seminal; como Clemente, através das múltiplas revelações do Logos, na filosofia, na profecia e na poesia; ou como em Agostinho, através da sua noção de Mestre interior ou de Verdade iluminadora. Por outro lado, «o Logos fez‑se carne e habitou entre nós» (Jo. 1, 14). Em virtude desta incarnação do Logos, ele deu‑se a conhecer em pessoa, e, desse modo, manifestou‑se totalmente. Daí a noção de Logos total, em Justino, para quem a religião de Cristo era a filosofia do Logos total, e, por isso, a mais verdadeira filosofia.
Os antigos defensores do cristianismo como filosofia, ou em estreita conexão com a filosofia, entenderam‑no com uma vocação comunicante e inclusiva, capaz de assumir a confluência de, pelo menos, duas tradições distintas, a filosofia grega e a profecia judaica, a partir de uma fonte comum de sabedoria. Quanto aos recentes defensores da noção de filosofia cristã, poderiam eles conceber essa noção à luz de uma fonte de sabedoria, comum à filosofia e ao cristianismo? Não, eles não ousariam já reclamar um laço tão profundo.

Aqueles que admitiram que a filosofia pode apurar conteúdos compatíveis com o cristianismo, procuraram decerto restabelecer alguma continuidade entre a filosofia e o cristianismo, mas a noção de filosofia cristã daí resultante não constitui senão uma semelhança acidental entre filosofia e cristianismo. Aqueles que, por seu turno, admitiram que o cristianismo inclui uma mundividência própria, capaz de constituir uma filosofia diferente, procuraram decerto restabelecer relações entre o cristianismo e outras mundividências, mas a noção de filosofia cristã, assim concebida, não é senão uma diferença acidentalmente resultante da análise comparativa de conteúdos.

Neste âmbito, é apreciável o contributo de C. Tresmontant, que, nos anos 60 do séc. XX, elaborou uma noção de metafísica do cristianismo, cuja parte fundamental é a metafísica judaico‑cristã da criação, que ele demonstrou ser irredutivelmente diferente do sentido da génese da realidade quer na filosofia neoplatónica quer na gnose quer nos Upanishades. É certo que este género de análise comparativa corre sempre o risco de sacrificar a compreensão em profundidade de cada uma das tradições em confronto, justapondo e nivelando o que nem sempre deve ser reduzido ao mesmo nível, como bem o fez notar Carlos Silva. Todavia, a análise de Tresmontant tem, para nós, o grande mérito de recolocar a questão do que seja mais próprio do cristianismo, após quase dois milénios de história, sem recusar o diálogo com outras tradições antigas de sabedoria, susceptíveis não só de fazer sobressair como de diluir o sentido desse próprio.

Outrora, também Orígenes partilhou a busca da filosofia própria do cristianismo. Ele considerou com justeza que a Bíblia não demitia a filosofia, antes a solicitava, porque, para além do que ela diz explicitamente, há também o que ela diz implicitamente e aquilo que ela permite dizer; à filosofia, cabia tornar explícito o implícito e discernir os possíveis que a letra dos textos bíblicos autoriza. A filosofia do cristianismo era, para Orígenes, um desenvolvimento natural da exegese bíblica. E que filosofia do cristianismo veio ele a apurar? Uma mundividência que incluía uma criação eterna, em virtude da eternidade do atributo divino de criador, e os seres humanos, como seres espirituais criados, que, por negligência na contemplação do eterno, caíram em corpos do mundo material, destinado a acolhê‑los. Estes indícios convêm mais a uma filosofia própria do cristianismo ou a uma forma derivada de platonismo? A análise comparativa de conteúdos permite discernir melhor em questões como esta.

A consideração dos conteúdos tornou‑se a mediação possível no restabelecimento da relação entre filosofia e cristianismo, para os defensores da noção de filosofia cristã, no passado recente. Eles já não podiam fazer apelo a uma fonte comum de sabedoria; eles tornaram‑se inelutavelmente reféns de uma separação extremada entre filosofia e religião. A relação crítica entre filosofia e cristianismo, em particular, tendeu a confinar‑se habitualmente à dualidade entre razão e fé, como se a razão fosse isenta de crenças e a fé fosse desprovida de razões. A dualidade de razão e fé procede da distinção escolástica entre ambas, que promovia a aplicação da razão à fé; na medida em que essa aplicação se foi transformando numa instrumentalização, ela desencadeou um processo de emancipação da razão, que parece ter conduzido a dissociá‑la irremediavelmente da fé. Essa dualidade tornou‑se de certo modo intransponível: se nos perguntarem pela fé, não nos pedem razões; se nos perguntarem pela razão, não nos pedem crenças ou convicções. Essa dualidade tornou‑se de certo modo opaca: se não nos perguntarem o que é a fé, nós julgamos saber do que se trata, mas, se nos perguntarem, nós teremos grande dificuldade em explicar; e a razão, saberemos nós explicar melhor o que seja? Numa fase pós‑kantiana da filosofia, já não podemos, através da razão, nem participar numa fonte superior de sabedoria nem intuir inteligíveis, resta‑nos analisar conceitos. Neste contexto, dificilmente poderia vingar alguma noção de filosofia determinada pela religião. De facto, a controvérsia recente em torno da noção de filosofia cristã passou à história e os esforços de implementar essa noção não tiveram continuidade. A noção de filosofia do cristianismo tornou‑se demasiado híbrida, para poder ser consistente.

2. O cristianismo e a tradição filosófica: influências recíprocas
Importa, no entanto, reconhecer que a controvérsia recente, sobre a questão do cristianismo como filosofia, não foi totalmente inconsequente. Se ela não chegou a causar o renascimento do cristianismo como filosofia, ela foi responsável pelo relançar de renovado olhar e interesse sobre a história interactiva da filosofia e do cristianismo no Ocidente. Como parte relevante desta história se dá ao longo da Idade Média, aquela controvérsia acabou por dar um enorme incremento aos estudos medievalistas, no âmbito dos quais, Gilson se tornou mestre incontestado. Um dos principais motivos da sua obra, tanto em estudos de síntese como de especialidade, foi defender que o cristianismo exerceu uma influência decisiva na história da filosofia da Idade Média e que essa influência foi um fator de diferenciação específica da filosofia medieval. Também por obra do ilustre medievalista, tornou‑se impossível contornar a filosofia da Idade Média, como se de uma excrescência obscura e inconsequente se tratasse, sem repercussão na história posterior da filosofia. O reconhecimento de linhas de continuidade entre o pensamento medieval e o moderno, na tradição da filosofia ocidental, é hoje um dado adquirido e incontroverso nos meios informados.

Não é, pois, nosso intuito aqui reavivar uma controvérsia, que julgamos ultrapassada. Pretendemos, sim, evidenciar que o cristianismo exerceu, de diversos modos, uma influência de fundo e de longa duração no desenvolvimento da filosofia ocidental, isto é, uma influência que não se esgotou nas épocas em que se fez sentir mais explicitamente, como na Patrística e na Idade Média. A fim de fazer sobressair essa influência de longo curso, convocaremos esporadicamente uma ou outra referência patrística ou medieval, a título meramente exemplificativo acerca de possibilidades que se expandem muito para além delas.

Dado, porém, que a filosofia era já uma tradição multissecular, quando do advento do cristianismo, não é de estranhar que o legado da filosofia clássica tenha exercido, por sua vez, uma apreciável influência na história ocidental do cristianismo, sobretudo, ao nível da elaboração teológica. Tal não é de estranhar, atendendo ao próprio facto de muitos dos primeiros teólogos cristãos terem sido filósofos convertidos ao cristianismo. Eles são, pois, capazes de dar testumunho de influências recíprocas, não só do cristianismo na filosofia como da filosofia no cristianismo. Não descuraremos esta reciprocidade de influências.

2.1. O teoantropocentrismo
Um dos aspectos mais relevantes da influência do cristianismo na filosofia parece‑nos ser a determinação de certas dominâncias temáticas, como sejam as dominâncias correlativas do tema de Deus e do tema do Ser humano. A filosofia, sob influência do cristianismo, tendeu a centrar‑se quer em Deus quer no Ser humano, oscilando pendularmente entre o teocentrismo e o antropocentrismo. Se quisermos sintetizar, numa só palavra, esta dupla preferência temática, diremos que a filosofia de influência cristã é teoantropocêntrica, e não poderia deixar de o ser. Objectar‑nos‑ão, porventura, que isso não é uma novidade ou uma diferença significativa, porquanto a tradição da filosofia grega não era alheia nem ao divino nem ao humano. Sem dúvida que não, mas, na antiga filosofia grega, o divino era necessário, sobretudo, à explicação da ordem do universo, não correspondia directamente às solicitações humanas. Daí a crítica dos primeiros filósofos do cristianismo aos limites, senão mesmo à ausência do sentido de providência na antiga teologia filosófica grega, crítica especialmente dirigida a Aristóteles e a Epicuro. A relação entre o humano e o divino só poderia dar‑se por via das mediações necessárias do processo de conhecimento. Em contrapartida, o cristianismo transmite o sentido de uma solicitude directa do divino para com o humano. É verdade que, por um lado, o cristianismo não poderia deixar de estimular o teocentrismo, pois no princípio era Deus. Mas Deus não ficou apenas no princípio, ele continuou velando providentemente por toda a realidade decorrente, em especial, pelo ser humano, cujas dimensões interior e histórica elegeu como domínios privilegiados de intervenção e manifestação. Por essa razão, o cristianismo não poderia deixar de estimular, por outro lado, o antropocentrismo.

Entretanto, como se verifica, na filosofia marcada por assumida influência do cristianismo, esse duplo centrismo que damos pelo nome de teoantropocentrismo? Verifica‑se na correlação entre a compreensibilidade de Deus e a do Ser humano: Deus é pensável através da compreensão do Ser humano e o Ser humano é compreensível através do que sobre Deus é possível pensar. Esta correlação era autorizada pela afirmação bíblica de que o Ser humano fora feito à imagem e semelhança de Deus (Gn. 1,26‑27), embora a afirmação da semelhança entre o humano e o divino não seja um legado exclusivo da tradição judaico‑cristã. Sob influência desta tradição, aquela afirmação obteve, porém, relevância especial e apreciável elaboração filosófica.

Agostinho de Hipona foi um dos filósofos que melhor soube explorar filosoficamente o sentido da relação de imagem e semelhança entre Deus e Ser humano. Num extenso tratado, intitulado De Trinitate, Agostinho tenta compreender como é possível pensar a unitrindade divina, ou seja, como é possível pensar que Deus, sendo uno e único, seja concomitantemente a Trindade constituída pelo Pai, o Filho e o Espírito Santo, postulada a partir da menção destes três nomes divinos nos textos do Novo Testamento. Pensar a unitrindade divina desde cedo revelou ser um dos maiores desafios teológicos do cristianismo. Agostinho procurou responder a esse desafio, recorrendo à compreensão do Ser humano, posto que fora feito à imagem e semelhança de Deus. Apreendendo no ser humano uma ordem de trindades com distintos graus de semelhança à Trindade divina, Agostinho construíu um processo de mediações para pensá‑la; discernindo diversos níveis de vida trinitária no ser humano exterior e, sobretudo, na unidade essencial do ser humano interior, Agostinho tornou analogicamente pensável a unitrindade divina. Deste modo, Deus tornava‑se pensável através da compreensão do ser humano.

Pensar Deus interessava, por sua vez, também ao aprofundamento da compreensão do ser humano. A reflexão sobre o sentido da liberdade humana, por Anselmo de Cantuária, é ilustrativa a esse propósito. Insatisfeito com a acepção de uma liberdade igualmente disponível para o bem e para o mal, Anselmo empenhou‑se em elaborar o sentido de uma liberdade reclamada como capacidade de resistir ao mal. Esta liberdade define‑se, em De libertate arbitrii, como o poder de guardar a rectitude da vontade pela própria rectitude. Assim definida, a liberdade confina com a fidelidade desinteressada à rectitude. Todavia, esta liberdade, ou esta fidelidade, é apenas um poder, por si só, insuficiente para realizar a sua finalidade; para se exercer, esse poder supõe a satisfação de algumas condições, como seja uma orientação prévia da vontade para a própria rectitude. Quer isso dizer que o poder de resistir ao mal não se exerce sem uma vontade previamente orientada para o bem. Insatisfeito com a sua própria acepção de liberdade, como capacidade condicionada de resistir ao mal, Anselmo prossegue a sua reflexão, tentando pensar, no anjo, uma liberdade mais eficaz: a perseverança. Todavia, nem a liberdade humana, reunidas todas as condições para o seu exercício, nem a perseverança angélica provaram ser infalíveis. O grande desafio de compreensão da liberdade, para Anselmo, era perceber como é que tanto a liberdade humana quanto a perseverança angélica experimentaram a falibilidade. Ambas tinham condições para serem infalíveis como Deus. Anselmo não encontra razão ou explicação para a queda quer humana quer angélica. A incompreensibilidade do mal pela liberdade acusa que a medida da liberdade, para Anselmo, não era humana, mas divina. Deste modo, a compreensão da liberdade humana aprofunda‑se através daquela que é pensável em Deus.
A liberdade era, aliás, um atributo cuja extensão divina, o cristianismo não poderia deixar de favorecer. Uma das teses maiores da filosofia da criação, elaborada por influência da tradição judaico‑cristã, é a afirmação de um criador livre: Deus não criou por necessidade, mas por livre vontade. Deus torna‑se, então, pensável independentemente do mundo da criação. A concepção de uma criação livre permite pensar Deus absolutamente, isto é, abstraindo da relação com a criação. Esta foi uma possibilidade desenvolvida pela teologia negativa, que preconiza serem mais adequadas a Deus as negações do que as afirmações dos atributos construídos por analogia com o mundo da criação, com o ser humano inclusiva e privilegiadamente. É certo que esta linha teológica não se alimenta apenas na tradição judaico‑cristã, mas também na filosofia neoplatónica, como se faz notar em Dionísio, o Pseudo‑Areopagita, um dos seus mais influentes representantes. Contudo, os teólogos de confissão cristã, que elaboraram abundantemente teologia afirmativa, sentiram por vezes a necessidade de relativizá‑la através das negações. Porquê? Porventura, porque pensar Deus, sobretudo, pela sua solicitude para com o Ser humano e por via de analogias com o ser humano, conduzia a conceber um Deus para o Ser humano e à medida do Ser humano. Pensar Deus, sobretudo, em relação com o Ser humano, conduzia a instrumentalizar Deus ao serviço dessa relação, e, desse modo, a diminuí‑lo. Daí a necessidade de abstrair da relação privilegiada com o Ser humano, para pensar Deus absolutamente, de modo conforme com a sua originária liberdade criadora. Esta necessidade de aprofundamento do pensar teológico não deixou de ter, a nosso ver, significativas repercussões filosóficas de longo prazo. A possibilidade de pensar Deus fora da relação com o Ser humano, a fim de libertá‑lo de uma concepção excessivamente condicionada por essa relação, terá dado lugar, de forma mediata, à possibilidade simétrica: a de pensar o Ser humano fora da relação com Deus, a fim de libertá‑lo de uma concepção excessivamente condicionada por essa relação. Se não é necessário pensar Deus em relação com o Ser humano, também se pode tornar desnecessário pensar o Ser humano em relação com Deus. Deste modo, o cristianismo terá proporcionado, através da influência que exerceu na filosofia por via da teologia, a experiência da morte de Deus na história recente da filosofia ocidental. As modernas negações de Deus seriam, para nós, incompreensíveis sem a influência directa e indirectamente exercida pelo cristianismo na filosofia.

2.2. O lugar do mundo
Oportuno se torna perguntar, neste momento, que lugar pode ocupar o mundo, no âmbito do duplo centrismo divino e humano, que caracteriza a filosofia marcada pela influência do cristianismo? Uma vez que a tradição da filosofia de influência cristã dá prioridade a uma teovidência, ou a uma antropovidência, relativamente a uma mundividência propriamente dita, que lugar fica reservado a esta última? Esta é uma questão inevitavelmente decorrente do teoantropocentrismo, tal como acabámos de caracterizá‑lo. A questão do lugar do mundo é, assim, uma questão pendente e em aberto, no âmbito da dupla tendência teoantropocêntrica, que o cristianismo estimulou no pensamento filosófico. Não estando o mundo no centro, ele dispõe‑se a ser tomado, quer em função da relação com Deus, quer em função da relação com o Ser humano, quer em função da relação entre o Ser humano e Deus.

Considerado em função da relação com Deus, o mundo surge como criação divina, que o próprio criador se comprazeu em contemplar, ao concluí‑la (Gn. 1, 31). À imagem e semelhança da contemplação divina da obra da criação, torna‑se plausível também uma contemplação humana do mundo criado, através do conhecimento. Deste modo, o cristianismo é capaz de estimular o conhecimento do mundo, e da sua ordem própria, como obra inteligível da vontade de um criador inteligente. Mas, não obstante assumir uma narrativa cosmogónica, como a do Génesis, o cristianismo não é uma teoria sobre o mundo, pelo que a sua a influência dificilmente poderia bastar‑se na determinação de uma mundiviência filosófica. Em matéria de cosmologia, a influência do cristianismo solicitava uma relação de complementaridade com outras heranças de saber. Essa relação, todavia, nem sempre se processou sem dificuldades, como ilustram a suspeição e as reacções suscitadas, nos sécs. XII e XIII, pelo renascimento filosófico de Aristóteles, a cuja mundividência eram estranhas as relações directas de criação e de providência entre Deus e o mundo. O desenvolvimento da cosmologia científica veio, posteriormente, a ocasionar novas dificuldades, senão mesmo uma história de relacionamento conflituoso entre a religião e a ciência. O conflito eclode sempre que a ciência ou prescinde de Deus ou descentra o Ser humano ou prepara a superação deste, isto é, sempre que a ciência contraria o teoantropocentrismo que o cristianismo comporta. Com efeito, num mundo sem Deus e depois do Ser humano, que sentido poderá ainda ter o cristianismo?

A consideração do mundo em função, especialmente, da relação com o Ser humano, não é, por seu turno, difícil de pensar no horizonte de influência do cristianismo. Tanto a concepção bíblica da criação quanto o entendimento do cristianismo como religião salvífica concorrem para uma mundividência antropocêntrica.

É célebre, por um lado, o passo da narrativa do Génesis, que coloca sob o domínio do Ser humano, todo o reino animal e vegetal da criação (Gn. 1, 26‑30). Assim submetido ao domínio do Ser humano, o mundo natural é um mundo para o Ser humano. O domínio do Ser humano sobre o mundo natural pode, no entanto, receber duas interpretações díspares entre si: pode ser um poder arbitrário, mas pode ser também um cuidado responsável. O mundo terá sido sujeito ao arbítrio do Ser humano ou entregue à sua responsabilidade? A constituição e o desenvolvimento da ciência tecnológica, na civilização ocidental, têm‑se feito acompanhar de um exercício nem sempre responsável do poder humano sobre a natureza, o que acusa alguma preponderância da primeira sobre a segunda interpretação. Esse género de ciência, porém, com todos os benefícios e malefícios, que traz consigo, com todos os anseios e receios, que desperta, dificilmente teria cabimento fora de uma mundivência antropocêntrica. Esta continua, aliás, presente em grande parte do pensamento ecologicamente empenhado da actualidade, na medida em que aposta na salvação do mundo para o Ser humano. Será, sem dúvida, excessivo imputar exclusivamente à influência do cristianismo a visão antropcêntrica do mundo, que acalenta a dimensão tecnológica da civilização ocidental, embora não nos pareça possível compreender a génese desta dimensão abstraindo totalmente daquela influência.

Importa reconhecer, entretanto, que uma tendência dominante não elimina os contra‑exemplos. Se o cristianismo favorece uma visão antropocêntrica da criação, ele não exclui perspectivas de moderação desse antropocentrismo. Uma delas é‑nos legada por uma das figuras mais apelativas da história do cristianismo, Francisco de Assis. À semelhança de Jesus Cristo, cuja condição divina não o impede de chamar irmãos aos homens, a condição humana de Francisco não o impede de considerar irmãos os outros animais e demais elementos do mundo natural.

É certo, por outro lado, que o entendimento do cristianismo como religião salvífica veio reforçar o antropocentrismo da criação. Jesus Cristo veio ao mundo por causa do Ser humano, e, conforme tem vindo a ser dominantemente entendido ao longo dos tempos, ele veio para redimir e salvar o Ser humano, através do sacrifício da sua paixão e morte na cruz. Nessa medida, o fim da salvação do Ser humano tende a absorver o próprio sentido da criação. Diante do fim da salvação do Ser humano, o da conservação do mundo torna‑se um fim menor, passível de ser neglicenciado ou, então, instrumentalizado ao serviço daquele.

Contudo, também a interpretação dominantemente soteriológica do cristianismo, contribuindo para uma mundividência antropocêntrica, não exclui perspectivas de correcção do antropocentrismo. Uma dessas perspectivas é a de Anselmo de Cantuária, um dos grandes teólogos do cristianismo, como religião salvífica e, concomitantemente, um vigilante crítico do antropocentrismo na sua própria teologia. Essa vigilância crítica favorece antes de mais o teocentrismo: não é a necessidade humana de salvação que obriga Deus a salvar o Ser humano, mas, sim, a própria finalidade divina de conduzir a obra da criação à sua perfeição máxima e última. Nessa perfeição final, há lugar para o mundo natural. Apesar dos homens estarem destinados a co‑habitar com os anjos na cidade celeste, o mundo natural não fica por isso condenado a perecer; está, também ele, destinado a renovar‑se e a persistir nesse estado renovado. Anselmo não especula muito sobre esse estado final e renovado da natureza sensível, mas, ao admiti‑lo, sugere que o mundo merece existir, mesmo que o Ser humano já não necessite dele para existir. Deste modo, o cristianismo é também capaz de integrar o sentido da existência do mundo por si.

Esta perspectiva é, todavia, muito mais um contra‑exemplo do que um exemplo típico da influência do cristianismo na visão do mundo. Essa influência fomenta, sobretudo, mundividências ou mais teocêntricas ou mais antropocêntricas. Tendo em conta este duplo centrismo, resta considerar ainda o sentido do mundo em função da relação entre o Ser humano e Deus. Esta relação também pode inspirar atitudes distintas relativamente ao mundo: este pode ser tomado quer por uma mediação, na relação entre o Ser humano e Deus, quer por oposição a esta relação. O cristianismo foi capaz de propiciar estas duas atitudes contrárias.

Por um lado, é verdade que se desenvolveu, sob a influência do cristianismo, certo desprezo do mundo, atitude que encarava o mundo como obstáculo à relação entre o Ser humano e Deus. Mas o que é que pode significar esse desprezo do mundo? Ou que mundo era esse, hostil à aproximação humana de Deus? É conhecido um episódio da vida de Cristo, que contribui para esclarecer o sentido dessa atitude e desse mundo. Trata‑se do encontro de Jesus com um jovem rico, que lhe pergunta o que fazer para obter a vida eterna. Depois de propor‑lhe algumas condições principais, como sejam alguns dos mandamentos, que o jovem assumia ter satisfeito, Jesus fez‑lhe uma proposta de mais radical exigência, que era a de abandonar a sua fortuna material e segui‑lo. Incapaz de o fazer, o jovem afasta‑se entristecido. Jesus, então, comenta dizendo que é mais fácil a um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que a um rico entrar no reino dos céus (Mt. 19, 16‑24). Entrar neste reino exige, pois, certo abandono do mundo, não do mundo natural, mas do mundo secular, onde abundam os motivos de todos os apegos e paixões humanas desordenadas. Desprezo do mundo será, então, desprendimento ou desapego de todos os motivos menores da paixão humana, susceptíveis de escravizar o Ser humano. Ao cultivar o desprendimento dos motivos menores de paixão, o cristianismo não está só, antes se aproxima de múltiplas outras tradições religiosas e sapienciais.

Na própria história do cristianismo, as interpretações gnósticas terão sido aquelas que mais dilataram o sentido do desprezo do mundo, sublinhando correlativamente a dimensão soteriológica do cristianismo. Com efeito, de acordo com uma orientação comum a diversas correntes de cristianismo gnóstico, a necessidade de salvação não decorre de uma queda humana avulsa, mas da própria natureza da criação, que não é obra de um deus bom. As cosmogonias gnósticas negam a bondade da criação e do deus criador, que pode ser um deus menor, não o Deus supremo e bom. A este cabe intervir para a salvação, não para a criação. A salvação impõe‑se porque há criação, a qual inclui uma malignidade constitutiva. O desprezo do mundo da criação torna‑se, assim, um imperativo de salvação. Toda a matéria e natureza sensível caem debaixo do âmbito do mesmo desprezo. É verdade que a tradição católica do cristianismo sempre combateu com veemência os movimentos gnósticos, defendendo a bondade da criação e acentuando a responsabilidade humana pelo aparecimento do mal no mundo. A divergência entre a tradição católica e os movimentos gnósticos é uma das divisões mais profundas e irredutíveis que a história do cristianismo conheceu no Ocidente.

Por outro lado, o cristianismo foi também capaz de propiciar uma atitude de valorização do mundo criado em função da relação entre o Ser humano e Deus. Nesta relação, o mundo pode desempenhar um papel mediador. É certo que Jesus Cristo é o mediador por excelência entre Deus e o cristão (Jo. 14, 6), mas, assim como Deus acedeu vir ao mundo por causa do Ser humano, assim também por via do mundo, não contra o mundo, poderá o Ser humano aceder a Deus. E por via de que mundo? Antes de mais, o mundo das relações humanas, dado que Jesus não só privilegiou os mandamentos do amor como colocou o amor ao próximo no caminho do amor a Deus. Mas também o mundo das perfeições naturais, entre as quais sobressai a própria natureza humana. Como? A mediação de Jesus Cristo, na relação entre Deus e o Ser humano, provê a um conhecimento de Deus pela fé, não a uma visão directa de Deus (2 Cor. 5, 6‑7). Não obstante as perspectivas ontologistas que emergiram no âmbito da tradição do cristianismo, este promoveu mais o cepticismo do que o optimismo a respeito da visão de Deus.

O tema da visão de Deus obtém especial pertinência ao nível quer da mística quer da escatologia. Todavia, a união mística do Ser humano com Deus supõe a cessação de todas as mediações e relações diferenciadas de conhecimento, mesmo que se trate de uma mística que exige percorrê‑las todas ordenadamente e exauri‑las, como a de Dionísio, o Pseudo‑Areopagita, um dos modelos mais influentes da história da mística ocidental. É, aliás, questionável que uma mística de inspiração cristã vise conduzir a uma união indiferenciada do Ser humano com Deus. Com efeito, ao revelar Deus com a máxima solicitude para com o Ser humano, o cristianismo não favorece a anulação do Ser humano na sua relação com Deus, mesmo que seja no fim do caminho ascendente do Ser humano para Deus. O cristianismo é muito mais fortemente motivador de uma relação diferenciada entre Deus e o Ser humano do que de uma união indiferenciada, que implique a anulação de um dos termos da relação. Tal é o que nos sugerem, particularmente, as palavras do apóstolo Paulo, que fazem esperar uma visão directa de Deus, como uma visão face a face (1 Cor. 13, 12), isto é, sem anulação de uma das faces, portanto, no âmbito de uma relação diferenciada, que não exclui a componente do conhecimento. Como no mundo que conhecemos, nós não podemos ver senão indirectamente a Deus, como num espelho e em enigma, segundo as palavras do mesmo apóstolo (ibid.), a possibilidade de uma visão face a face de Deus tende a ficar diferida para o destino último do Ser humano. A escatologia é o domínio onde se torna mais pertinente o tema da visão face a face de Deus, sobretudo, na medida em que se desenvolve também escatologicamente o tema da cidade celeste, que não é concebível sem relações diferenciadas.

Entretanto, o cristianismo provê, como dissemos, a um conhecimento de Deus pela fé. Ora, o que é que pode constituir um conhecimento pela fé? Um conhecimento por testemunho: pelo testemunho da vida de Cristo, e dos escritos que a narram; e também pelo testemunho de toda a obra divina da criação, na qual sobressai a perfeição da natureza humana. A influência do cristianismo na filosofia assim nos permite pensar, conduzindo a valorizar o mundo como testemunho da sua origem divina, e a natureza humana, como testemunho de maior perfeição da obra divina. Deste modo, o conhecimento do mundo e do Ser humano é mediação plausível do conhecimento indirecto de Deus. Retomando as palavras do apóstolo, o mundo pode ser o enigma e o Ser humano pode ser o espelho, nos quais Deus se adivinha. Daí que a filosofia ocidental se tenha empenhado, sob influência do cristianismo, em construir argumentos a favor da existência de Deus a partir da ordem causal do mundo, e em inferir os atributos divinos por analogia com as melhores faculdades humanas. Propiciando a consideração do mundo e do Ser humano em função do conhecimento indirecto da existência e da essência de Deus, o cristianismo não só influenciou como estimulou o desenvolvimento da filosofia. De facto, os mais elaborados exercícios especulativos da filosofia ocidental têm sido motivados por esse propósito, entre os quais destacamos os múltiplos argumentos de vária índole a favor da existência de Deus. Mesmo que outro alcance não tenham, esses argumentos têm pelo menos o mérito de nos fazer pensar ao ponto de experimentarmos os limites do próprio pensar. Deste modo, tais argumentos constituem momentos altos da especulação filosófica, que não podem deixar de influir de forma ponderosa numa avaliação de qualidade e de grau relativamente ao desenvolvimento da filosofia no Ocidente.

2.3. Novos modelos de inteligibilidade
Mas, não só através do aprofundamento da reflexão sobre Deus e do reconhecimento do ser humano como mediação privilegiada da relação com Deus, o cristianismo exerceu influência na filosofia. Essa influência fez‑se sentir também de outro modo, a saber, através do provimento de novos modelos de inteligibilidade, constituídos pelo esforço de elaboração teológica, que a evolução cultural do próprio cristianismo suscitou. Esses modelos são, na realidade, temas teológicos que se projectam como formas de organização de outras matérias temáticas. Esses modelos são, por isso, formas de origem teológica para a inteligibilidade de conteúdos não teológicos. Ora, há dois temas nucleares da teologia tradicional do cristianismo que se constituíram como modelos para a inteligibilidade de outros temas da compreensão filosófica: a Trindade e a Incarnação. A conversão destes dois temas teológicos em modelos de inteligibilidade de outros temas filosóficos deixa‑se verificar muito expressivamente no pensamento de Agostinho de Hipona. Com este filósofo, o tema da Trindade tornou‑se modelo de inteligibilidade de um dos temas clássicos da filosofia grega: a alma. Concomitantemente, o tema da Incarnação tornou‑se modelo de inteligibilidade de um tema incontornável para o antigo retórico: a linguagem. Pertinente se torna, para nós, apreciar o alcance dessa aplicação dos modelos teológicos da Trindade e da Incarnação à compreensão, respectivamente, dos temas filosóficos da alma e da linguagem.

De acordo com a teologia augustiniana da Trindade, elaborada ao longo dos primeiros sete livros da obra De Trinitate, cerca de três quartos de século volvidos sobre o Concílio de Niceia (325), a unitrindade divina deixa‑se traduzir conceptualmente do seguinte modo: a unidade divina pode ser tomada por uma unidade de substância, ou de essência; a trindade pessoal corresponde, por sua vez, a uma pluralidade de relações no interior de uma só substância ou essência. Esta tradução conceptual da unitrindade divina, longe de esclarecer o mistério da Trindade, conduziu Agostinho a procurar nas naturezas criadas analogias possíveis com a unitrindade divina, a fim de aprofundar o grau de compreensão da sua fé em Deus uno e trino. Entre as naturezas criadas, Agostinho elegeu a alma humana, como lugar das melhores analogias com a unitrindade divina. Ao fazê‑lo, Agostinho converteu a formulação conceptual da unitrindade divina em modelo de inteligibilidade da alma humana: à luz do modelo divino, constituído por uma substância e três relações, a alma humana individual é substancialmente una e relacionalmente trina, ou seja, é uma só substância, composta por três partes funcionalmente inter‑relativas e interactivas. Trata‑se da trindade de faculdades comum aos níveis superiores de conhecimento, a memória, a inteligência e vontade, que é a trindade da mente ou do ser humano interior.

Todavia, esta trindade não significa tanto uma redução simplificadora do número de faculdades da alma quanto uma afirmação da necessidade de inter‑relação de, pelo menos, três faculdades, na constituição dos nossos actos mentais. É isso mesmo que se pode comprovar através da análise augustiniana dos diversos níveis de experiência trinitária da alma. E que níveis de experiência são esses? São os níveis da experiência cognitiva, como a percepção sensitiva, a lembrança, a consciência de si, a crença, o conhecimento racional e intelectivo. Em qualquer destes níveis de conhecimento, há uma experiência trinitária: na percepção sensitiva, há a forma da realidade sensível, a apreensão sensitiva, e a vontade, que une o sentido àquela forma; na lembrança, há a imagem guardada na memória, a visão interior, e a vontade, que une esta visão àquela imagem; na consciência de si, há a presença imediata da mente a si mesma, o olhar interior da mente, e a vontade, que une o olhar da mente à sua própria presença; na crença, há a memória e o pensamento acerca do credível, unidos pela vontade; no conhecimento racional, há a memória e a razão acerca do mutável, unidas pela mesma vontade; no conhecimento intelectivo, há a memória e a inteligência do imutável, unidas de novo pela vontade. A intervenção da vontade em todos os níveis da experiência cognitiva assegura, por um lado, a intencionalidade de todo o acto de conhecimento, sem a qual não pode a haver apreensão a nível algum, bem como a presença do mesmo suporte anímico em todos eles, e, desse modo, a unidade da alma, que constitui o sujeito de conhecimento. A constância de uma trindade funcional em todos os níveis analisados da experiência cognitiva impede, por outro lado, a simplificação, ou a redução do processo de conhecimento a uma relação bipolar, como a relação entre sujeito e objecto. A teoria augustiniana da alma trinitária vislumbra assim a complexidade dos processos mentais do conhecimento. Acrescente‑se que, apesar de Agostinho aplicar o modelo trinitário, especialmente, à experiência cognitiva, a sua teoria revela‑se versátil, não se esgotando na explicação do conhecimento e adivinhando‑se aplicável a múltiplos outros processos mentais, como as emoções e os sentimentos, que não dispensam conhecimento, mas que têm outras tónicas. Virtualidades e vantagens, como estas não têm sido suficientemente reconhecidas à teoria augustiniana da alma trinitária, porventura devido à assumida dependência do modelo teológico.

O mesmo modelo trinitário estende‑se à filosofia augustiniana da linguagem, no que concerne à noção de verbo mental, elaborada também em De Trinitate. Tal noção de verbo é ainda uma parte componente da teoria da alma trinitária. De que modo? Como expressão directa de conhecimento adquirido, que é, conforme acabámos de descrever, um processo trinitário. Não é, entretanto, arbtrariamente que a noção de verbo mental vem sancionar tão estreita relação entre linguagem e conhecimento. No diálogo De Magistro, anterior àquele tratado teológico, o autor efectua algumas finas análises da nossa experiência de comunicação verbal, e, com base nelas, defende que o conhecimento é um fator constituinte e condicionante da linguagem. Ora, o modelo trinitário da alma permite dar conta deste estreito vínculo da linguagem ao conhecimento: tal como, na Trindade modelar, é gerado o Verbo, que exprime constitutivamente a sabedoria divina, assim também, na alma trinitária, é gerado um verbo, que exprime inerentemente o conhecimento adquirido, seja a que nível for. Tal é o verbo mental, que se define, antes de mais, pelo seu conteúdo cognitivo. Sendo um verbo cognitivo, quanto ao conteúdo, o verbo mental é também um verbo cogitativo, quanto à sua índole ou natureza. Quer isso dizer que o verbo mental é feito de cogitação, ou pensamento. Exprimir mentalmente dado conhecimento é, então, o mesmo que pensá‑lo. Assim entendida, a noção augustiniana de verbo mental permite conceber o pensamento como uma linguagem interior da mente, mas não a torna comunicante, isto é, sensivelmente perceptível aos outros.

Para esse efeito, Agostinho convoca outro modelo teológico, intimamente conexo com o da Trindade, que é o da Incarnação: tal como o Verbo se fez carne (Jo. 1, 14), e nela se manifestou sensivelmente ao Ser humano, assim também o verbo mental se fez voz, para que nela se manifestasse aos sentidos humanos. A fala é, portanto, a incarnação do verbo mental. Cabe, então, perguntar: que vantagens e virtualidades deste modelo incarnacional, para a filosofia da linguagem? Por um lado, este modelo realça o papel do conhecimento na origem da fala e, desse modo, permite aprofundar a questão clássica da origem da linguagem verbal. Esta questão era tradicionalmente debatida entre duas possibilidades opostas: a hipótese naturalista, segundo a qual as palavras são constituídas por semelhança com a natureza das coisas; e a hipótese convencionalista, segundo a qual as palavras não procedem senão de convenções humanas. Agostinho dá indícios de não prescindir, pelo menos em parte, de qualquer destas duas hipóteses extremas. Todavia, a aplicação do modelo incarnacional à fala obriga a considerar a mediação do conhecimento na mente, quer entre as palavras e as coisas quer entre as palavras e as convenções: as palavras não são sinais imediatos das coisas, mas sinais mediatos das coisas que são conhecidas; as palavras não resultam de convenções arbitrárias, mas de convenções fundamentadas no conhecimento da realidade. Por outro lado, o modelo incarnacional da fala sublinha um aspecto da linguagem, que é porventura uma das principais razões do seu valor: a capacidade de mediar entre o ser humano interior e o mundo exterior, entre a mente invisível e a realidade sensível. Sem esta capacidade, a linguagem verbal não poderia desempenhar a função de meio de comunicação entre os homens. Por conseguinte, o modelo teológico da Incarnação contribui significativamente para discernir as componentes do processo de constituição da linguagem verbal. A proposta augustiniana de aplicação do modelo incarnacional à fala não é, pois, desprovida de razões de pertinência filosófica.

Bem mais próximo de nós do que Agostinho de Hipona, mas de assumida influência augustiniana, Joaquim Cerqueira Gonçalves reabilita, hoje, os modelos trinitário e incarnacional em filosofia, especialmente, em filosofia da cultura, área privilegiada pela sua reflexão. Partindo de uma acepção larga e funda de cultura, não adstrita à produção intelectual do saber, mas incluindo todos os fatores da construção civilizacional, Cerqueira Gonçalves questiona‑se sobre o sentido profundo da vida da cultura. A sua interpretação das principais linhas orientadoras da cultura ocidental, no seu percurso histórico, oferece uma hipótese de resposta no debate desta questão: a hipótese soteriológica, segundo a qual toda a vida da cultura obedece a um propósito de salvação. Cerqueira Gonçalves não se conforma com esta hipótese, que ele atribui a uma inspiração gnóstica prevalecente sobre a influência cristã na história da cultura ocidental. Não obstante a irrupção de movimentos gnósticos na história ocidental do cristianismo, as fontes da gnose excedem o horizonte da influência cristã. A fim de encontrar e propor alternativa à resposta gnóstica no âmbito da questão do sentido da vida da cultura, Cerqueira Gonçalves retoma, ora explícita ora implicitamente, os modelos teológicos da Incarnação e da Trindade. O modelo incarnacional para a vida da cultura permite, antes de mais, descentrar o propósito de salvação, pois, a Incarnação é manifestação de Deus independentemente de assumir ou não uma missão salvífica. O modelo trinitário, por seu turno, permite antepor à necessidade de salvação o desejo de comunhão, posto que, na Trindade, haverá comunhão, fora de toda e qualquer necessidade de salvação. A própria concepção cerqueiriana da vida da cultura, como um duplo processo de unificação e de diferenciação, deixa adivinhar o seu modelo trinitário, pois não é fácil encontrar outro modelo que melhor compossibilite aqueles dois processos.
Considerando as várias aplicações exemplificativas dos modelos trinitário e incarnacional, podemos observar que esses modelos são particularmente eficazes na superação de dualismos redutores em qualquer das áreas visadas, seja em filosofia da mente, da linguagem, ou da cultura. Admitindo que a compreensão filosófica aspira a essa eficácia, a adopção de modelos teológicos, que a optimizem, pode ser um dos benefícios da interdisciplinaridade, com a qual a filosofia nada tem a perder.

O perdão em Eva

Jorge Sperandio é meu amigo. É presbiteriano, médico e teólogo. Ele escreveu uma longa carta para Dawkins, o ateu. Vejam essa quarta-parte da carta. Um abraço para todos. Jorge Pinheiro.

27/04/2009
Deus, um delírio – de Darwin à loucura
(4) O perdão em Eva

Misturamos tudo, Dawkins, quando dizemos que Deus criou Adão e Eva. Ora, Deus não criou Eva; Deus criou a mulher. O nome Eva só aparece na Escritura depois que ocorreram fatos bem importantes, como o pecado e a infiltração da morte. Portanto, se Deus terminou a criação antes do pecado, isso quer dizer que Eva não pertence mais à história da criação, e deve ser entendida, necessariamente, como personagem de outra história, que irá ocupar toda a Escritura: a que trata da Salvação.

A redenção se inicia em Eva
A maternidade instituída em Eva, assim, parece inaugurar e dar seqüência à redenção. Como se verá mais adiante, as transformações operadas no corpo da mulher - e iniciadas logo depois do pecado para esse fim, reúne elementos típicos da história da salvação. Não teria condições, é claro de avaliar todas as dimensões desta redenção que, descrita na Escritura, e iniciando-se em Eva, transcende a História e até mesmo a Escritura. Nosso interesse, aqui, é identificar os atos que, pertencendo à redenção - porque ocorrem depois do pecado, devem ser isolados e separados da obra anterior, da criação dos seis dias.

Logo depois de pecar, e ouvir de Deus a respeito das coisas que viriam na morte, Adão dá a sua mulher o nome de Eva – porque ela seria a mãe de todos os viventes. Levando a sério o contexto de morte provocado pelo pecado, e negando ao episódio um toque inesperado de sadomasoquismo, como diria Dawkins, (já que seria mais adequado dizer que Eva seria a mãe de todos os morrentes), essa mudança de nome, de mulher para Eva, soa como reconhecimento e profecia – por parte de Adão, da obra de Redenção: mesmo depois do pecado, no pecado e na morte[1], haveria viventes, ou até mesmo, melhor seria dizer, sobreviventes.

A maternidade da mulher
Paulo diz que Deus, nosso Salvador, (...) quer que todos os homens sejam salvos[2], e também que Deus é o Salvador de todos os homens, sobretudo dos que têm fé[3]. Se existe uma salvação especial para aqueles que têm fé, fica claro que todos, homens e mulheres, independente de qualquer crença, já foram alvos de algum tipo de salvação. E que salvação seria essa – aplicada a todos, diferente daquela que vem pela fé – reservada para alguns? Temos aprendido com o cristianismo que se trata da graça comum, estendida a todos. E em que consistiria tal graça, senão nascer e viver no mundo, e contemplar, como lembra Dawkins, a luz, as estrelas, as plantas, a vida, e os coros do amanhecer? Entretanto, como nascemos e viemos ao mundo? Pela maternidade da mulher, essa mesma que, bem conhecida pela medicina, precisa de água, de placenta, acontece na dor, em meio a riscos de morte, tribulação, envelhecimento, etc.

Um batismo de água na gravidez
A maneira incomum como Pedro descreve o dilúvio, é também significativa nesse trabalho de incluir a maternidade, como a conhecemos hoje, na história da salvação. Ele diz, “estranhamente”, que na arca poucas pessoas, isto é, [apenas] oito, foram salvas por meio da água[4] (é ela mesma Dawkins, a Arca de Noé! [5]). Isto é inicialmente tão esquisito quanto dizer que Ló foi salvo da destruição de Sodoma não pelo anjo que o tirou da cidade, mas pelo fogo que caiu sobre ela[6]. E que relação isto teria com a maternidade? Assim como os tripulantes da arca foram salvos pela água do dilúvio – que foi morte para muitos -e isso para a família de Noé foi um batismo de vida, também a tribulação da gravidez e do parto, na morte, num batismo de água, faculta o nascimento da vida. A mesma idéia é defendida também por Paulo, quando associa o batismo de água com livramento, tribulação e morte: na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés[7] – ou seja, o batismo de água, que franqueou a redenção de Israel, custou ao Egito tribulação e a morte.

Um batismo de sangue no parto
No processamento da vida, que acontece no pecado e na morte, a salvação demanda, também, como lembrou Dawkins citando a carta aos Hebreus, o derramamento, ou efusão, de sangue. Segundo a Lei, quase todas as coisas se purificam com sangue; e sem efusão de sangue não há remissão. [8] Na carta aos Colossenses se diz que fomos circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem [derramamento de sangue], mas [pela] circuncisão de Cristo[9] [derramamento de sangue], que, por sua vez declara: Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado por muitos para remissão dos pecados[10]. E Paulo insiste nisso quando pergunta: Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte [derramamento de sangue] que fomos batizados?[11]

Pois bem, seja pelo trauma genital – que às vezes acontece, seja pelo desprendimento da placenta – que sempre acontece, nenhum dos filhos de Eva veio ao mundo sem derramar sangue. Ora, se a maternidade tivesse sido, de fato, obra da criação, porque haveria de derramar sangue? Instituída, neste caso, antes do pecado não precisaria perder sangue, já que não necessitaria de perdão. De outra forma, porque haveria de perder “vida” ou a “alma”, no parto, já que, segundo o mesmo livro de Gênesis, o sangue é a “alma” da vida; e em se tratando da humanidade, a vida que foi feita à imagem de Deus [12].

O pecado do parto
Um fato descrito no Evangelho sobre o nascimento de Jesus, parece atestar, com mais clareza, que o parto, que nos trouxe à vida, não deve ser produto da obra da criação: Quando se completaram os dias para a purificação deles, segundo a Lei de Moisés, levaram-no a Jerusalém a fim de apresentá-lo ao Senhor, conforme está escrito na Lei do Senhor (...) e para oferecer em sacrifício, como vem dito na Lei do Senhor, um par de rolas ou dois pombinhos[13]. A Lei referida[14], trata da purificação da mulher depois do parto, quando um dos pombinhos deverá ser sacrificado para o holocausto e o outro em sacrifício pelo pecado fazendo o sacerdote, por ela, o rito de expiação e ela ficará [então] purificada[15]. Ora, Lucas não está falando do nascimento de qualquer um de nós, mas do próprio Jesus! Porque sua mãe deveria ficar purificada do pecado? Qual pecado? De origem sexual não era, já que o texto ressalta que nascera de uma virgem. Uma resposta imediata seria que Lucas enfatiza a observação do cumprimento da Lei pelos seus pais. Isto, provavelmente, deve ser verdadeiro. Mas a pergunta é: porque purificar-se depois do parto? De todos os partos, independentemente se foram frutos de adultério ou não? Porque a expiação pelo pecado do parto (!). Pior: a Lei coloca o parto na mesma lista de impurezas que inclui também a doença da pele, o mofo das casas, ou o corrimento de doenças sexualmente transmissíveis[16]. Se a gestação e o parto (como as outras doenças referidas) forem obras da criação, porque a necessidade da expiação, num sacrifício para o pecado? Será que a loucura de pedra é mais antiga do que imagina Dawkins?

Ou seja, a declaração acerca da maternidade em Gênesis 3, logo após o pecado, implica, necessariamente, na mudança do ordenamento reprodutivo instituído em Gênesis 1. Disse Deus à mulher: Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Se queremos coerência é preciso assumir que aquilo que Deus disse que iria ocorrer, de fato ocorreu; se queremos conseqüência, é preciso entender que o que veio a ser, a partir do que Ele disse, não existia antes que Ele tivesse dito; e se queremos consistência, é preciso admitir que: se o que veio a existir, antes não existia, isto só pôde ocorrer através de mudanças que foram impostas ao ordenamento reprodutivo anterior. Como teria sido a geração de pessoas, antes do pecado, ou como seria a concepção, fora do pecado, provavelmente não se poderá mais que especular. Se temos tido dificuldade em entender o que nos fora dado a conhecer, na Escritura inteira, o que dizer daquilo que não coube expor na história da primeira semana? O fato de a Escritura dizer que não havia morte antes do pecado, também não nos autoriza a imaginar para o cenário que precede o pecado a mesma disposição atual da reprodução, “isentada” das características que, como vimos, se ajuntaram posteriormente a ela.

Dois nascimentos de salvação
Pois é Dawkins, vontade de continuar não falta – mas a carta está ficando muito longa. Teríamos que falar, um pouco mais, também, do pecado e da primeira semana. De qualquer forma, acredito ter cumprido boa parte do objetivo inicial para esta exposição, considerando que, anteriormente, já pudemos tratar da concepção dos dias na criação[17] e do perfil das mudanças nos diversos momentos de sua história[18]. Antes de terminar, entretanto, gostaria de citar outra passagem do Novo Testamento que relaciona a maternidade com a salvação. Disse Jesus: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer do alto não pode ver o reino de Deus”. Perguntou-lhe então Nicodemos: “Como pode um homem nascer, sendo já velho?” “Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?” Jesus, então, respondeu-lhe: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus; o que nasceu da carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito; não te admires de eu te haver dito: deveis nascer do alto” [19]. Um pouco antes[20], o mesmo evangelista diz que da plenitude [do Redentor] todos nós recebemos graça por graça [ou em outra tradução graça sobre graça[21]; assim, o edifício da salvação parece ser composto de dois andares: no primeiro - o da carne, se nasce pela água e pelo sangue a partir da maternidade de Eva; o segundo - o do alto, se “nasce” pelo Espírito, na salvação que se completa pela fé.

Gostaria de agradecê-lo, por esta oportunidade - trazida pelas coisas úteis do seu livro. Finalmente, agradeço a Deus pelo privilégio de poder comentá-lo.

Grande abraço,
Jorge Luiz Sperandio
sperandios@uol.com.br


Notas
[1] Romanos 7,24: (...) Quem me libertará deste corpo de morte? (citações da Bíblia de Jerusalém).
[2] 1Timóteo 2,3.4.
[3] 1Timóteo 4,10.
[4] 1Pedro 3,20.
[5] Deus, um Delírio: pp.425 e 426.
[6] Gênesis 19,16.
[7] 1Coríntios 10,2.
[8] Hebreus 9,22.
[9] Colossenses 2,11.12.
[10] Mateus 26,28.
[11] Romanos 6,3.
[12] Gênesis 9,4.6.
[13] Lucas 2,22-24.
[14] Levítico 12,1-8.
[15] Levítico 12,8.
[16] Levítico 12-15.
[17] No ensaio Tarde e Manhã em Gênesis um, a partir do artigo Does the day begin in the evening or morning? de H. R. Stroes, se avalia que “as dificuldades de interpretação ainda existentes decorrem de um tratamento indistinto dos dias”, propondo, então, que os dias criativo, comum e cúltico sejam reconhecidos de maneiras diferentes. No dia comum, o dia-luz, composto pelas metades manhã e tarde, precede a noite; no dia cúltico, a seqüência se inverte, em relação ao dia comum, e a noite, “emoldurada” pelos crepúsculos da tarde e da manhã, precede o dia-luz; no dia criativo, por sua vez, se a noite deve ser entendida antes do dia-luz (no que lembra alguma semelhança com o dia cúltico), ele, entretanto, se distingue de ambos: difere do dia cúltico por que não tem a “moldura” dos crepúsculos e difere do dia comum por que inverte a seqüência das metades do dia-luz, colocando a tarde antes da manhã.
[18] No comentário do artigo de Jorge Pinheiro, Einstein e os caminhos da criação: a cosmogonia judaica e o conceito espaço-tempo em Gênesis um, se diz que “ao trazer para o estudo da primeira semana a noção física do espaço-tempo, o autor avança, em muito, no trabalho de buscar uma leitura mais justa e coerente do primeiro capítulo de Gênesis”, permitindo, entre outras coisas, “avaliar as mudanças que ocorreram durante a primeira semana, até o sexto dia, e seguiram acontecendo [posteriormente], até que surgisse o espaço-tempo vigente, formador dos dias atuais”; mudanças que, de outra natureza, “introduzem o que ainda não havia, ou mudam para o que ainda não existia”, deixando “reconhecer realidade no texto [ou seja,] a criação como fato e não mito (...)”.
[19] João 3,3-7.
[20] João 1,16.
[21] Bíblia de Jerusalém, nota “p”, p. 1986.