jeudi 3 septembre 2020

Profetismo e literatura profética no Antigo Testamento

A profecia clássica ou canônica representa a maturidade do profetismo em Israel. E, segundo Byron Harbin, querido mestre de teologia e vida (1997), evidencia um alto grau de qualidade espiritual e moral de mensagem e conduta. 

Mas, neste texto queremos apenas tocar uma questão que o profetismo levanta, o da produção do texto profético. 

Na verdade, as mensagens eram, em primeiro lugar, pregadas. Só depois eram escritas e guardadas para a posteridade. Mas esse processo não era simples. Não nascia de uma necessidade meramente intelectual ou mesmo de uma cultura que privilegiava o texto. Nesse sentido, é uma erro considerar a profecia canônica ou clássica como uma profecia que nasce voltada para o texto. 

Um trabalho de equipe 

Os livros proféticos são coleções das revelações proféticas, e assim como em relação à grande maioria das escrituras bíblicas, existe um longo caminho entre a experiência revelatória do profeta e a redação final desses livros. 

O termo coleção usado acima implica que o profeta não é um autor solitário, no sentido romântico do termo, e que não necessariamente foi ele mesmo, mas outros, que nós chamamos aqui colecionadores e editores, que deram a seus textos a forma literária que conhecemos atualmente. 

Os profetas enquanto receptáculos das revelações divinas, seus discípulos, e aqueles que coletaram e editaram essas revelações são os autores primeiros de um complexo modo de produção literário que resultou nos livros dos profetas como os conhecemos hoje. 

Sem dúvida, a recepção da revelação divina é a função fundamental do profeta. Mas a apresentação dessa revelação podia ter dois destinos: aquela que está dirigida à Israel e outras nações, ou mesmo a pessoas em especial; e aquela que está dirigida ao próprio profeta e à sua vida pessoal. É normal que as revelações que estão no primeiro grupo tenham sido guardadas e posteriormente editadas, sem maiores problemas. Mas com as revelações privadas, dirigidas em especial ao profeta, esse processo sofria certa mediação. É verdade que o profeta nunca via a si próprio como um ser privado. Ele é sempre um arauto.

Cada revelação é uma mensagem. Vemos isso em Isaias, Jeremias e Ezequiel, quando apresentam suas confissões, lutas e desventuras pessoais (Jr 12:1-6; 15: 15-21; 20:7-18). 

Por isso, uma análise mais detalhada dos livros proféticos nos mostra que por trás da revelações proféticas encontramos muitas passagens de caráter histórico, com datas, notícias e descrições de episódios da vida dos profetas. Exemplos típicos são o conflito entre Amós e os sacerdotes de Betel (Am 7), a história do casamento de Oséias (Os 1, 3), o encontro de Isaias e Acaz (Is 7), a narrativa de como Isaias andou nu (Is 20), o conflito entre Jeremias e Ananias (Jr 28), a história da fidelidade dos recabitas (Jr 35), as narrativas de Gedalias e a migração para o Egito (Jr 40) e muitas informações cronológicas e notas em Ezequiel, Ageu e Zacarias. Essas passagens sobre a vida particular dos profetas cumpre vários propósitos. Em primeiro lugar, servem de pano de fundo para os oráculos de Iaveh, indicando o que as ocasionou. Em outros casos, estão ligadas ao propósito e desenvolvimento do gênero literário utilizado, formando uma espécie de “lenda profética”. 

Todo esse conjunto, que inclui aquele que recebe a revelação, seus discípulos, os colecionadores dos textos e os editores, dentro de um processo temporal e histórico, forma o modo de produção da literatura profética clássica no Antigo Testamento.

De próprio punho 

Quando analisamos o material primário da literatura profética a primeira questão é tentar definir o que foi escrito pelo próprio profeta. 

Logicamente, essa é uma questão muito difícil de definir, pois significa separar o que pode ter sido escrito de próprio punho, daquilo que foi ditado. Por isso, é comum considerar que ambos os processos estão ligados a um só autor, o profeta, quer tenha escrito ele mesmo ou ditado. Mas, em outros casos temos a revelação apresentada aos discípulos do profeta. Nesses círculos proféticos, o oráculo era ouvido, memorizado e retransmitido. Entre o material entesourado por esses círculos estão as confissões proféticas, como encontramos no livro de Jeremias, quando suas visões, em especial as primeiras, e suas lembranças são apresentadas. 

Parte desse material parece ter sido comunicado pelos próprios profetas e está escrito na primeira pessoa. Vemos isso nas visões do livro de Amós, na segunda narrativa do casamento de Oséias, na visão inaugural de Isaias, e também em Jeremias, Ezequiel e Zacarias. É um estilo biográfico, embora muitas vezes apresente outra característica, a conversação entre duas pessoas. 

Os discursos dos profetas nem sempre foram transmitidos como os temos atualmente nos textos finais. Nós os temos, em muitos casos, na forma de reproduções livres. 

Um exemplo disso encontramos em Jeremias 7 e 26, já que ambos são intitulados o sermão do templo de Jeremias. O capítulo 7 apresenta uma versão longa, detalhada, enquanto o capítulo 26 é um breve resumo do discurso direto de Jeremias. O conteúdo de ambos permanece o mesmo, mas cada um representa uma reprodução livre do discurso feito por Jeremias, isto porque nem sempre um texto mais longo ou detalhado traduz maior fidelidade em relação ao original. 

Em todo o processo, a providência do Senhor 

É importante entender esse processo por que traduz a realidade da compilação, que significava arrumar o texto, às vezes cronologicamente, outras segundo o assunto tratado, ou mesmo por tema. 

Exemplos desse processo temos nos livros de Amós e a utilização da expressão “ouvi esta palavra” (3:1; 4:1; 5:1), que serve para introduzir três mensagens semelhantes, que compõem a segunda parte do livro. Da mesma maneira, o trabalho do editor, aparece através do acréscimo de datas e referências históricas, que servem assim para situar a mensagem profética. 

Voltando a Amós, vemos em 1:1: “As palavras de Amós, que estava entre os pastores de Tecoa, o que ele viu a respeito de Israel, nos dias de Uzias, rei de Judá, e nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel, dois anos antes do terremoto”. Em linguagem jornalística ou editorial moderna chamaríamos essa introdução de lead do texto, já que situa e explica quem é o autor e em que época se deram os fatos que serão relatados.

Tecnicamente, essa preocupação mostra a maturidade e um compromisso com a veracidade do que será dito em seguida. Apesar da complexidade do processo de produção do texto profético canônico, vemos em tal processo a mão de Deus cuidando em preservar aquilo que Ele desejava que as gerações futuras conhecessem. Graças a Deus por sua providência!