jeudi 28 février 2013

A ideologia do ficar rico com Jesus

Primeira parte

Falar da ideologia do ficar rico com Jesus nos leva a falar sobre Mamon e a discutir a vida plena. O sábio do Esclesiastes disse que compreendeu que não há nada melhor do que ter prazer naquilo que se faz. Esta é a recompensa. Pois como é que podemos saber sobre o não-estar? O sábio procurou a felicidade e a paz. Foi objetivo e prático na avaliação de seu tempo e constatou que o evento humano está sujeito à lei da alternância, que vai além da explicação imediata: o humano não tem domínio sobre as dinâmicas que governam a vida e a morte. E procurou refúgio na sabedoria grega. O texto hebraico do Eclesiastes, com a presença de palavras aramaicas e persas, sugere autoria anônima, situada entre 450 e 200 antes de Cristo, mas foi registrado como texto de um rei antigo, Shlomo.

O estar e o não-estar

O sábio procurou entender o estar e o não-estar, ou seja, a existência e aquilo que está fora e além da existência, no jogo de seus movimentos. Percebeu que não tinha controle sobre o movimento dos fenômenos do universo e viu que era preciso respeitar o espaço e o tempo para poder existir dentro do ritmo dos eventos.

Mas ele não foi o único a pensar nessas coisas. A pergunta pelo não-estar, presente na história do humano desde que ele é sapiens, levou à pergunta pelo sentido do estar. Qohélet, em português Eclesiastes, e segundo Haroldo de Campos, O-que-sabe, de forma magnífica, quase à maneira de Nietzsche, trabalhou o tema da vida e da morte e nos leva a pensar sobre a única realidade a que de fato temos acesso: a existência -- terreno afetivo e emocional que produz e repousa sobre a riqueza material das humanidades. O sábio numa abordagem existencial discute o estar, sua integralidade e potencialidades.

Ele não foi o único a pensar a existência e a não-existência. Górgias (480-375 a.C.) traduziu no pensamento pré-socrático a dúvida sobre o não-ser e, por extensão, sobre o ser. Disse que se houvesse alguma coisa, seria ser ou não-ser, ou ser e não-ser juntos. E se o não-ser existe, ele é e não-é ao mesmo tempo. Mas é absurdo dizer que alguma coisa existe e não-existe ao mesmo tempo. Para Górgias, o não-ser não existe. Górgias disse mais do que isso, mas essa constatação, o não-ser não existe, é o que nos interessa nesse momento. Mas como nossa reflexão é teológica, vamos trabalhar com o conceito de estar, que é estado da existência, e não de ser que é essência do único que é, o Eterno -- Eu sou o que sou (Êxodo 3.14).

É interessante que o sábio apresentou o não-estar, aquilo que está fora, além da existência, de uma maneira que nos lembra Górgias. Disse que ninguém se lembra do que aconteceu no passado e que até as coisas que acontecerão no futuro também serão esquecidas. Que ninguém se lembra dos sábios, assim como ninguém se lembra dos imbecis, pois no futuro todos estaremos esquecidos. Há tempo para nascer e tempo de morrer, mas todos caminham para um mesmo lugar, pois tudo vem do pó e tudo volta ao pó.

Disse, ainda, que felicitava os que já morreram mais do que os que estavam vivos. E considerou que mais vale o dia da morte do que o dia do nascimento. Ou, mais vale ir a uma casa em luto do que ir a uma casa em festa. Que ninguém é senhor do dia da própria morte e que nessa guerra não há trégua. Por isso, um cão vivo vale mais que um leão morto, já que os vivos sabem que irão morrer; mas os mortos não sabem de nada e não tem recompensa nenhuma: sua memória já está no esquecimento. O amor, ódio e ciúmes pereceram com eles. E nunca mais participarão de qualquer coisa que se faz debaixo do sol.

Mas é a consciência do não-estar que remete ao sentido do estar. E aqui há uma diferença básica com Górgias, porque para ele a negação do não-ser é também a negação do ser e, por isso, fez três afirmações que marcaram o pensamento lógico-matemático e balizaram o ceticismo: (1) não dá para dizer que algo existe; (2) se alguma coisa existe não temos como conhecer sua existência; (3) e se o ser existe não temos como explicar sua existência aos outros.

Já o argumento do sábio, a partir do não-estar, afirma o sentido do estar, único conhecido. A negação do não-estar do sábio expressa o desejo de estar em abundância, porque tem por limites as bordas do tempo de ser. O estar existe, mas tem espaço e tempo – hoje diríamos é existencial e histórico. Por isso, é melhor o sentido do estar, a intensidade das ações do estar do que ficar na espera do não-estar. Assim, quando o não-estar sinalizar que está chegando e se aproximar, teremos o prazer de ter estado plenamente, com intensidade, de forma abundante.

E, por isso, o sábio nos aconselha a aproveitar a vida, a ir em frente. A comer com prazer e beber alegremente o nosso vinho, pois o Eterno já aceitou deliciado o nosso bem-fazer. Sejamos felizes, diz O-que-sabe. Enquanto vivermos na fumaça deste mundo, curtamos a vida com a pessoa amada, pois essa é a recompensa pelo nosso fazer debaixo do sol. E o que tivermos para fazer, façamos ótimo, porque o não-estar é nada e no nada não se faz, e no não-estar não existe pensamento, nem conhecimento, nem sabedoria. E depois do estar, vamos repousar no nada.

O fazer da existência vale a pena. O Eterno aprecia esse bem-fazer humano, que tem seu próprio tempo, que integra a existência de cada pessoa na história dos fazeres humanos. É por isso que Bereshit, o primeiro texto na Torah, apresenta um ponto zero. O tempo zero vai do entardecer à meia-noite. É quando o sol desilumina o nosso espaço de forma gradual. O tempo do não-estar não é uma fratura do tempo, é tempo da história. O sábio não contempla a passagem do tempo, mas a vinda do tempo. O tempo significa nada ou pouco para o Eterno, mas há um sentido de tempo para o humano. A conclusão do sábio é que temos de estar no tempo para dar valor à eternidade que brota do nada do não-estar.

Jesus nos fala do não-estar existencial, daquilo que parece que é, mas, na verdade, é ilusão, ídolo. E esse não-estar não fez parte do discurso dele e tem um nome Mamon. O tema lá era o dinheiro, mas aqui é neoliberalismo evangélico. Mamon foi a expressão utilizada por Jesus para descrever a cobiça ou a riqueza material, personificada como divindade, e que em hebraico significava literalmente dinheiro. Representa, assim, o alvo errado da avareza e da ganância. E na mitologia judaico-cristã transformou-se num dos sete príncipes do inferno, de aparência nobre, mas deformado, que carrega um saco de moedas de ouro nas costas e suborna os humanos. Então, o nosso tema aqui é o não-estar do dinheiro, enquanto deus que estraçalha as vidas e, por outro lado, a plenitude do estar, consubstanciada no programa de Jesus para a expansão do reino do Eterno.

Jesus disse no Sermão do Monte: Se o teu olho direito te faz tropeçar [literalmente, se o teu olho for mau], arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5.29).

Mas, o que é um “olho mau”? Aparentemente, fora da cultura judaica, soa como algo esotérico, mas não é isso: em hebraico, possuir um ‘ayin ra‘ah, “olho mau”, significa ser avarento, ganancioso. E ter um ‘ayin tovah, um “olho bom”, equivale a ser generoso. Jesus está condenando a avareza, a adoração a Mamon, e incentivando à generosidade. E é por isso que vai acrescentar: onde estiver seu tesouro, aí também estará seu coração [...] você não pode ser escravo de Deus e do dinheiro.

Do estar em plenitude nasceu o programa de Jesus. Eis o texto.

Então Jesus, pelo poder do Espírito, voltou para a Galiléia e a sua fama se espalhou em toda a região. Ensinava nas suas sinagogas, sendo glorificado por todos. Ele veio a Nazaré, onde tinha sido criado. Entrou, segundo o seu costume, no dia do sábado na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías e, desenrolando-o, encontrou a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me conferiu a unção [A] para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me [B] para proclamar aos cativos a libertação e [C] aos cegos, a recuperação da vista, [D] para despedir os oprimidos em liberdade, para proclamar um ano de acolhimento da parte do Senhor”. Enrolou o livro, entregou-o ao servente e se assentou; todos na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Então, ele começou a lhes dizer: "Hoje, esta escritura se realizou para vós que a ouvis”. Todos lhe prestavam testemunho, espantavam-se da mensagem da graça que saía de sua boca, e diziam: "Não é esse o filho de José?” Então ele lhes disse: "Por certo ireis me citar este provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo’. Soubemos de tudo o que se passou em Cafarnaum, faze, pois, o mesmo aqui em tua pátria". E acrescentou: "Em verdade, eu vos digo: nenhum profeta é bem acolhido em sua pátria. É verdade o que vos digo: havia muitas viúvas em Israel nos dias de Elias, quando o céu ficou fechado três anos e seis meses e sobreveio uma grande fome sobre a terra toda. No entanto, não foi a nenhuma delas que foi enviado Elias, mas sim a uma viúva em Sarepta de Sidom. Havia muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu, no entanto, nenhum deles foi purificado, mas sim Naamã, o sírio". Todos na sinagoga ficaram tomados de cólera, ouvindo essas palavras. Eles se levantaram, lançaram-no fora da cidade, e o conduziram até uma escarpa da colina sobre a qual estava construída sua cidade, para daí o precipitarem abaixo. Mas Jesus, passando no meio deles, seguiu seu caminho. (Lucas 4.14-30).

Esse estar de Jesus com a vida (Lucas 4.14–9.50) situou-se, em primeiro lugar, na Galiléia (cf. 23.5; At 10.37). E Lucas, ao contrário de Mateus (15.21; 16.13) e Marcos (7.24-31; 8.27), abriu a ação de Jesus com o discurso na sinagoga de Nazaré (4.16-30), onde leu Isaías 61.1-2 e Isaías 58.6, que descortina a seqüência do evangelho: o anúncio da plenitude fundado sobre as promessas antigas da tradição judaica.

No texto, Lucas descreve duas questões centrais para a compreensão do estar em plenitude: há um programa e há um destinatário da mensagem. Assim, os versículos 18-19 apresentam o programa e os versículos 23-27 o público, aqueles que estavam fora da geografia da liberdade.

Segundo Lucas, Jesus foi marcado, escolhido peplo Eterno, e sob a ação do Espírito, ação esta que caracteriza o vero profeta, teve como objetivo anunciar a boa notícia de que chegara o momento de viver o estar em abundância e de libertar aqueles que estavam dominados pelo não-estar. Seu programa foi estruturado ao redor de quatro questões: anunciar a boa notícia do estar em abundância aos excluídos da vida; proclamar a liberdade aos cativos: dar olhos aos cegados pelo não-estar; e libertar os que, por causa do não-estar, perderam o sentido da vida.

O programa destaca duas idéias: a de anunciar a boa notícia e a de libertar os dominados pelo não-estar existencial.

A idéia de anunciar estava presente na antiga tradição judaica, já que a tarefa profética era, sobretudo, proclamatória. De Samuel a Jeremias – incluídos nesse período homens como Samuel, Natã, Gade, Azarias, Elias, Eliseu, Joel, Miquéias, Micaías, Isaías e Jeremias -- esses anunciadores da palavra do Eterno falaram aos reis e ao povo. Advertiam e encorajavam. Falavam de juízos e promessas espetaculares. E assim também foi o último período da profecia hebraica, de Ezequiel a Malaquias. No período helênico, graças às reuniões nas casas de oração, sinagogas, a proclamação se generalizou. Os textos antigos eram lidos e comentados.

João, o batista, foi um anunciador da chegada do reino. E Jesus, ali na sinagoga de Nazaré, colocou em seu programa a tarefa do anunciar.

E o que significa libertar? O conceito de libertação na antiga tradição judaica partiu da idéia de livramento e de segurança. A pessoa de um libertador traduzia a imagem do rei-herói, alguém que arrancava o povo da destruição (Jz 18.28). E no testamento cristão, o salvador é aquele que liberta os escravos do não-estar (At 7.35) e que arranca a nação do estado da não-vida (Rm 11.26).

Para o judeu, no momento de Jesus, o ato característico de liberdade ocorrera sob a liderança de Moisés, quando o Eterno salvou seu povo do estado de escravidão sob os egípcios e o pousou no deserto do Sinai (Ex 12.31—14. 31).

É fundamental entender que a libertação do domínio egípcio definiu para os judeus do período helênico o paradigma da liberdade como ato do Eterno, que não visava apenas o alívio de uma situação desastrosa, mas estar em abundância. Aí estava a chave do conceito de aliança, livres pora adorar. Essa idéia fundamentou o conceito de aliança e da espiritualidade judaica até o primeiro século.

A partir do programa de Jesus entendemos o estar existencial como sentido pleno de vida, liberdade no Espírito, gerador de alegria, justiça e paz, pessoal e comunitária. E não-estar existencial como exclusão de bens e possibilidades, escravidão sob as suas mais diferentes formas e cegueira espiritual, que geram perda do sentido de vida.