mardi 24 janvier 2017

Consagre as obras das tuas mãos



Sermão do Pr. Jorge Pinheiro
Domingo à noite, 15.01.2017
Igreja Batista em Perdizes

Nebo, mestre da loucura e palavras mortas

Por Jorge Pinheiro

Noite alta, o demônio Nebo, mestre da loucura e palavras mortas, ficou pensando na viagem e na última coisa que seu parceiro Shedu, morador das ruínas de Edom, dissera antes de se retirar para o oco de sua figueira: “Demônio bem sucedido trabalha em equipe. Nós estamos incompletos. Astarote é a parte que falta para criarmos o inferno que desejamos”. Palavras difíceis, como poderia catalogá-las?

Detesto essa terra, mas adoro essa hora da meia-noite. Pensou. Sem lua, sem aragem, esse silêncio de tudo. Essa é a hora dos meio-tons. Não está gelado, mas faz frio. Está escuro, mas não completamente. Existe o mais e o menos. É a hora mais difícil para os humanos. Eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído. Ao menos uma folha, mas nada. E eu também fico quieto, acompanhando a ordem natural do momento. É certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de fantasmas com as estrelas. Mas eles nem percebem. São seres medrosos.

Às vezes, vem uma nuvem gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. E fica mais escuro. É aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. É o momento. Vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. Sacudo a solidão eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da desolação e começo a falar com os mortos.

Sou filho de Merodach e Sarpanitu. Vivi e fui adorado em Borsipa, mas na primavera desse país, Shedu ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando ouviu um soluço fino. Um lamento do fundo das trevas. Era eu. Tinha sido desterrado, exorcizado para os confins do inferno. Depois de muitas eras, vim para o cinturão de fogo. É aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha casa, hueñunauca, há 12 mil anos acendo o Osorno.

E lá em baixo, no Llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que esquenta as minhas noites geladas. Sua presença imponente domina a paisagem.

Quem olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. Na primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela frente. Depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por onde passa. Fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos.

Gosto do gelo das geleiras. Esta é a minha casa, a casa do demônio. E foi por esses vulcões que entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos do meu amigo Shedu, o demônio das onze horas.

Posso estar velho e passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido. Gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas a loucura do mundo dos homens.

Falar sobre a vida não é fácil, já que eu estou do outro lado. Mas é minha especialidade. A memória humana é uma colcha de sensações. Eles sempre se lembram da dor das pedras. O momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado. Assim são eles. Suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. Tudo fica escrito. Até as marcas da saudade não se apagam. E para eu soprar no ouvido deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada marca.

Aprendi a caçar os fantasmas humanos. Mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, ressuscito cadáveres antigos e mal cheirosos. Não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma boa história de desespero.

Quem me ensinou esta especialidade demoníaca foi Shedu. No início ele me disse que o mundo das palavras mortas fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para eu me afastar. Bastava aprender, com ele, a viajar na memória dos humanos. Sempre levo comigo uma bolsa. É a bolsa onde guardo as palavras que vou achando no meio do caminho. São palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia lânguida. Ou palavras difíceis, como formidável, que vira uma trilha de formigas incendiadas. São palavras de pobre, como guspe, frio e maleita. São palavras quatrocentonas, como treme-treme e sezão. Junto todas elas e à noite vou tirando-as do saco.

Tenho o meu catálogo, que é infinito como as estrelas do azulão. E aí, sozinho, vou colocando cada uma delas na sua forma. E ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. E vou formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. O demônio é formidável é, logicamente, uma frase furtiva, pois compara o velho Nebo a uma centúria de formigas flamejantes. Na Semana Santa vou comungar é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. E a paixão e a morte são irmãs-gêmeas. Ninguém está vendo é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. É a porta de entrada da minha casa.

Ao contrário de nós demônios, na vida dos homens sempre ocorre um encontro de grande significado, encontro que modifica o prumo de seus sonhos. Lembro-me de um jornalista carioca, que na madrugada de 23 de abril, dia de Ogum, foi fazer uma reportagem na floresta da Tijuca. Ele trabalhava na revista Manchete. Era auto-suficiente e não tinha dúvidas quanto à sua capacidade profissional. Vivia com uma jovem, bisneta de escravos, e, no fundo do seu coração, queria ser o dono do mundo. Nessa época, eu, Shedu e Astarote trabalhávamos juntos. Tínhamos organizado uma grande festa.

Era noite de lua cheia. Corpos endemoniados tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num círculo formado por toras de madeira. Representavam os mortos: os esquecidos e os lembrados. No meio do círculo, muita comida. Do fundo da terra e do oco das árvores saiam sons lindos e terríveis. Sons de cantar, dançar e de fazer sexo. Nunca me esqueço. O luar cobriu a floresta. Astarote vestida de teias e chorando a sinfonia quatorze de Shostakovitch penetrou no labirinto e depositou um feto, a pequena Gaia, numa cova rasa. Eu, cheio de palavras, resfolegando e soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de Artaud, poeta maldito: "... somos a força da vida, mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus (...), o que respira não é eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado".

E como não fazíamos há muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e fizemos o sexo dos malditos, loucos e suicidas. Foi então que apareceu o rapaz. Ele olhou, mas não viu. Nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos. Astarote, toda sensual, chamou:

-- Luís, entra na roda.

Ele levou um susto. Não entendeu como sabíamos o nome dele. Mas cheio de orgulho, aceitou conversar.

-- Quem é você?

Astarote respondeu:

-- Você sabe, entra na roda e vem dançar comigo.

Na verdade, o corpo de Astarote era lindo aos olhos humanos. Usava um vestido vermelho rodado, todo trabalhado em renda branca. Sorria para ele, dançava fazendo o vestido levantar. Sob a luz da lua, a cena era encantadora. Os atabaques batiam no ritmo do coração. O ar era de sensualidade e magia. Cuidadoso, mas cheio de autoconfiança, o rapaz respondeu:

-- Não posso entrar aí. Sou filho de Ogum. Meu orixá não permite, ele é o senhor da guerra.

Era mentira, nós sabíamos. Ele não tinha nenhum acordo com nenhum dos nossos. Mas nós adoramos a mentira. Ah! Se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. Quisemos saltar dentro dele. Era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. Partimos para o ataque, mas uma espada flamejante nos impediu.

-- Ele pertence ao Deus criador dos céus e da terra. Aceitou o Senhor e o Senhor o recebeu. Estão proibidos de fazer nele morada e de tocar na vida dele. Esta é uma ordem do Senhor dos senhores, diante do qual se dobrará todo o joelho, tanto no céu, na terra, como embaixo da terra.

Aquela luz brilhava demais. Feriu nossos olhos, apavorou nossos corações, lembrou-nos da condenação eterna. Nossa festa tinha chegado ao fim. O ódio estremeceu os corpos que ocupávamos. Urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os outros. Depois, semimortos, os abandonamos ali. A partir daquele momento, resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.

Nenhum encontro é casual. Há sempre aquele que busca. Só que nem sempre o que se encontra entra na forma da imaginação. Descobri que a carne sente o gosto da madeira e do metal, mas também do ódio e da mentira.


No verão, quando sopra aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e casas. Transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. Sobrevôo as árvores, matas e rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. As folhas que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o pensamento feito ladrão, que assalta e mata. E o tempo, para que serve? Eu o transformo na memória da solidão. Minhas palavras são punhais assassinos. Elas amedrontam a noite e congelam o dia. E eu fico encantado, como num conto de fadas. Afinal, sou Nebo, mestre da loucura, um demônio muito especial, cheio de malícia e de palavras mortas.

lundi 23 janvier 2017

O delírio bashert

O DELÍRIO BASHERT

Jorge Pinheiro, PhD

A propósito de introdução 

Em iídiche temos a palavra bashert (באַשערטque significa destino. Ela é usada para um cônjuge escolhido por Deus. É a basherte, feminino, ou o basherter, masculino. Também pode ser usada para expressar o destino aparente, como uma profunda amizade, ou o destino de um acontecimento. No uso moderno, pessoas solteiras dizem que estão procurando seu bashert, ou seja, a alma gêmea que irá complementá-las. 


Mas aqui vou construir um segundo conceito para bashert, como o da pessoa que se considera destinada no sentido religioso fundamentalista. Que tenta enfiar suas crenças goela abaixo das pessoas que se aproximam delas. É pró-ativa e numa conversa, ao ver que está perdendo terreno, se torna agressiva e até mesmo violenta.

É interessante notar que a idéia de progresso, na Modernidade, considerava que a realidade social devia estar em permanente desenvolvimento. Tudo tinha que progredir, tinha que gerar novidade. E se não fosse assim, seria ultrapassada pela voracidade da mudança. Embora parte dessa visão tenha sido diluída na pós-modernidade, em relação à religião, gentes ainda agem assim. Ou seja, esquece-se de que a fé é profundidade do ser e, como se diria faz um certo tempo, troca o motorneiro pelo ilustre passageiro.

Creio que as bases que possibilitam a postura esta bashert são a perversão da compreensão da fé e a aceitação sem críticas de idéias e lideranças religiosas. 

1. O falso encantamento

A postura bashert, conforme denominamos neste contexto, presente em instituições que fomentam o confronto religioso, geralmente prosperam a partir do encantamento, da soberba intelectual e da subversão da razão.

Quando falamos em encantamento não estamos falando de um mundo mágico, mas nos referimos a pessoas que desejam se esconder delas próprias. É o encantamento da pessoalidade real e a tentativa de construção de uma identidade ahistórica e irreal. Ora, o encantamento da pessoalidade está intimamente ligado à culpa, ao medo e subversão da razão, e se traduz na vivência de um mundo de aparências, virtual. E para que a construção de pessoalidades mascaradas tenha sucesso, os recursos de marketing, mídia e propaganda são essenciais. Mas não podemos esquecer a soberba. 

No caso protestante, o bashert considera a mensagem do evangelho simples demais. A justificação através do sacrifício expiatório de Jesus é coisa pouca. Um bashert protestante, auto-suficiente, não aceita sua miserabilidade, não necessita sentar-se aos pés do Cristo e aprender com ele.

É característica típica de um bashert protestante reivindicar alguma nova descoberta ou revelação. Mesmo quando declara que aceita os ensinamentos das Escrituras, quase sempre dilui essa afirmação em alguma revelação nova, que cancela o ensino das Escrituras. Com isso, diz que elas são apenas uma parcela da revelação de Deus e, que, em materia de doutrina e fe, o Cristo continua a falar à parte das Escrituras.

As Escrituras do Novo Testamento ensinam que a liberdade é outorgada como resultado da fé em Jesus Cristo. Podemos citar Rm 5:1, 3:23-25, 4:4-5, Gl 2:16, Ef 2:8-9 entre os muitos textos neotestamentários sobre esta questão. Bashert não pensa assim: troca a justificação pela salvação por associação e pela salvação através de obras. No primeiro caso, está salvo quem está ligado a determinado líder ou instituicao bashert. No segundo caso, o que a pessoa faz é o que conta. O que pode ser traduzido em horas passadas em trabalhos, doação de dinheiro, penitências, recitação de cânticos. Através da associação coercitiva e de um número de obrigações, pessoas deixam-se escravizar.

2. O buraco negro do futuro

Outra característica bashert é a incerteza da salvação. Interessados que estão no dinheiro, realização pessoal e poder, bashert usa como arma a incerteza sobre a salvação. Lança por terra a promessa bíblica e fundamental, que encontramos em I Pe 1:3-6, Ef 1:13, Hb 6:19, II Tm 1:12, II Co 5:1, Fp 1:23, Fp 3: 20-21, Cl 1:13, Cl 3:4, I Ts 4:17, entre outros textos. O futuro é um buraco negro para o bashert. 

Um líder bashert geralmente se apresenta como possuidor de alguma natureza divina, que deve inspirar a adoração de seus seguidores. E mesmo quando se mostra humilde, gasta rios de dinheiro em promoção pessoal, a fim de fazer seu nome brilhar diante dos olhos de seus seguidores. É muito comum ver um líder que se apresentar como detentor de dons especiais de oração, cura e milagres. Nega a doutrina do sacerdócio universal dos crentes e se coloca como mediador entre Deus e as pessoas (I Tm 2:5, Hb 4:14-16, Hb 10: 19-22).

Uma característica comum ao bashert é a mudança doutrinária. Suas doutrinas não param de sofrer alterações, a fim de adaptarem-se às novas situações, ou a novos argumentos. Essa aparente falta de consistência doutrinária é um recurso. O líder bashert ao recorrer a constantes mutações doutrinárias está, de fato, procurando colocar de lado a racionalidade, a lógica e a inteligência das pessoas, apelando a sentimentos e emoções religiosas vazias. A intenção é confundir e não esclarecer. Assim, a tendência bashert é o afastamento da verdade vivida nas Escrituras Sagradas.

No início da era cristã, a partir do segundo século, a igreja enfrentou o gnosticismo, que negava a humanidade de Cristo. E logo depois, o arianismo, que negava a divindade de Jesus. Em ambos os casos, apresentavam uma Cristologia defeituosa. Hoje, o bashert repete os erros do passado. 

Outro erro bashert comum é tomar um aspecto da fé cristã e colocá-lo como destaque em relação ao conjunto do cristianismo. Podem ser usos e costumes --véus, vestidos longos para as mulheres e ternos escuros para os homens --, que passam a definir a comunhão entre os irmãos, ou qualquer outro tipo de excentricidade teológica -- dom de línguas extáticas, dom de profecia.

Bashert, quase sempre, reduz seus seguidores a alguma forma de escravidão psicológica. O medo é a sua matéria-prima. Assim, ao invés de promover a liberdade cristã (Jo 8:36, II Co 3:17, Rm 14:5, I Co 7:23, Gl 5:1), cria um partido fundamentalista. E faz uma leitura particular da fidelidade cristã. Riqueza e bens passam a pertencer à igreja enquanto instituição de um líder ou grupo de líderes. Visa a formação de patrimônio no mundo da comunicação de massas, comercial e financeiro. Inescrupulosamente, vende privilégios, curas, dons ou poderes para seus seguidores. Muitas vezes, pressiona os fiéis até a exaustão econômica, levando famílias inteiras ao empobrecimento.

Quando um basher considera-se ungido, inevitavelmente, se levanta contra o restante da comunidade cristã, acusando todos os demais de falsos pastores. Isso gera violentos choques entre lideranças e igrejas. Este líder bashert, por ser sectário, nega de fato o papel do Cristo como o caminho da salvação e de cada cristão como crente e sacerdote, que se relaciona com Deus unicamente através da mediação de Jesus.

Um dos recursos favoritos do bashert é aglutinar numa miscelânea teológica doutrinas religiosas diferentes e antagônicas. Muitas vezes, tem uma piedosa aparência cristã e fala das coisas que conhecemos. Outras vezes, traz para o evangelho modismos sociológicos e políticos, colocando um sinal de igual entre o que o Evangelho é, a boa nova da salvação pela fé na expiação vicária de Cristo, e o que ele implica em termos sociais.

A maneira de conclusão

Diante da expansão bashert temos uma responsabilidade crescente. É preciso conhecer a fé cristã. O cristão deve ser preparado para viver a sua fé, e as igrejas devem ensinar que os cristãos não podem soltar-se pela vida, na onda da euforia existencial. Somos chamados à teologia da vida simples (I Pe 5:8).

Não podemos fugir à responsabilidade de defender a fé. E fazemos isso vivendo o testemunho dela. Reconhecemos as bases e fundamentos daquilo que professamos e a proclamação nasce deste viver, e não de um postura bashert. É assim que apresentamos ao mundo o legado que nos foi entregue por Jesus de Nazaré.




vendredi 20 janvier 2017

Patrifocalidade e experiência mística

A patrifocalidade judaica

De acordo com os rabinos especialmente da corrente reformada, a família judia como aparece na Torá é patrifocal, e os costumes seguem a tradição religiosa do marido e não da mulher. Por isso, não se poderia falar em tradição matrilinear dentro do judaísmo. A matrilinearidade, então, será um idéia que surgirá mais tarde, e que nunca se tornou uma norma unânime para todos os judeus. Aliás, podemos dizer que a matrilinearidade foi introduzida por rabinos ucranianos nos pogroms de Kirovohrad, em Kiev, em abril 1881, depois do assassinato de Alexander II. O objetivo da medida era dar às crianças de legitimidade social, já que muitos estupros tiveram lugar nessa época.

Mas, podemos dizer que a transmissão matrilinear no judaísmo foi codificada pela primeira vez no Talmude, no Kidushim 68 TB, no Tratado da Mishná. O princípio da transmissão matrilinear, foi assim discutido no Talmude de forma a deixar para que definições posteriores pudessem optar ou não pela matrilinearidade. Se fizermos uma leitura da Torá em sua literalidade vemos que as pessoas são apresentados por sua ascendência paterna, como é o caso, de Josué, filho de Nun, e de Rachel, filha de Labão, por exemplo. Mas encontramos também Bethuel, filho de Milca, e Dinah, filha de Leah. As leis da herança e partilha de terras são baseadas no pai, daí o episódio inédito das filhas de Tzelofehad. E a herança sacerdotal e levítica é transmitida exclusivamente pelo pai.

Alguns historiadores conservadores, como rabino Shaye Cohen, afirmam que o princípio da matrilinear foi introduzido na Mishná, e rompeu com a lei da patrilinearidade. Ou seja, podemos dizer, apesar dos exemplos dados acima, da citação do nome de mães, que o princípio da matrilinear é desconhecido na Torá e nos escritos do primeiro século da Era Comum. 

Michael Corinaldi, professor de direito na Universidade de Haifa, no entanto, nos apresenta algumas razões que devem ser levadas em conta para que a transmissão matrilinear seja base da nacionalidade. Em primeiro lugar, o fundamento biológico, já que a identidade da mãe é certa, e a do pai pode ser questionada. Em segundo lugar, o fundamento sociológico, pois a educação é transmitida pela mãe. E não podemos esquecer, sob este ponto de vista, que a identidade judaica é muito dependente da educação. E, em terceiro lugar, o fundamento político durante as guerras judaico-romana, quando os filhos das mulheres judias estupradas pelos romanos eram reconhecidos como judeus e não romanos.

Há ainda outros fatores que devem ser levados em conta, como o fundamento demográfico, já que muitos judeus morreram na guerra, e foi decidido, então, que as crianças nascidas como judeus, fossem consideradas filhas de pais estrangeiros. E há ainda o fundamento jurídico, já que no direito romano, as crianças nascidas romanas, de mães não romanas, recebiam a cidadania da mãe e eram excluídas da herança do pai e não recebiam os benefícios de um filho de cidadania romana. E a lei talmúdica segue esse pensamento, quando considera que o filho ilegítimo de mãe judia tinha o direito de usufruir seus direitos como cidadão de Eretz Israel. 

Ou seja, nos casos de casamentos mistos, a criança herdaria o judaísmo através da mãe. Em casos normais, herdaria o estado do pai. O judaísmo objetivo da mãe, no entanto, seria o pré-requisito para que isso acontecesse, o que nos leva a pensar que a transmissão matrilinear está presente em qualquer caso.

Já a determinação da nacionalidade israelense a partir da mãe é o oposto do que é feito na maioria dos países. Mas há uma pressão crescente a favor a exclusividade da herança matrilinear, principalmente por parte dos movimentos judaicos progressistas, presentes nos países anglo-saxões. Tal leitura no entanto não nega os ensinos do Talmude, mas se baseia numa adaptação aos tempos atuais. Para muitos rabinos, especialmente do judaísmo reformado, a família hebraica como aparece na Torá é patrifocal, então, nada indicaria uma obrigação fechada exclusivamente na matrilinearidade. Esses rabinos aconselham a conversão da mãe não-judia, para dessa maneira facilitar a educação dos filhos dentro do judaísmo. Tal princípio, da transmissão matrilinear ou patrilinear foi adotada oficialmente nos EUA em 1983 e é válido também na Inglaterra. 

Assim, embora com presença forte da matrilinearidade, o judaísmo continua a ser uma religião patriarcal. O sexo extraconjugal é proibido, as mulheres adúlteras eram apedrejadas, e deviam usar o véu para não ser fator de sedução. A segregação das mulheres em Israel ainda é praticada, o sangue menstrual é demonizado, e a circuncisão estabelece o direito sagrado do pai.

A experiência mística

A Torá diz que o Pai, visto e lido como o Eterno, dá como ele quer, quando ele quer, para quem ele quer. Esta experiência judaica traz embutida algumas informações importantes sobre o Pai, ele é pessoal e livre para tomar as decisões que quiser. Ao escolher o povo de Israel como sua testemunha na história, o Pai particularizou um povo para o bem de todas as nações. E foi assim que decidiu revelar o mistério guardado no coração de cada criatura, apesar do egoísmo presente nos corações. O mistério é que todos somos portadores de uma dignidade inalienável, nativa e universal.

E se o Pai dá livremente, ele recebe livremente. O dar do Pai é o mesmo para todos, já que ele dá a si próprio, mas cada pessoa recebe o dom de forma singular, porque o encontro com o Pai é sempre pessoal e pessoalizado. O que é uma pessoa? Quem é uma pessoa? Fora do Pai, não está sob a autoridade humana decidir quem é pessoa e quem não é. Na Torá, a experiência expressa o que todos os humanos percebem, sabem, sentem, o mistério de Pai. E todos os humanos reconhecem, de forma diferentes, que é um risco todo e qualquer encontro com ele. E as palavras confiança, fé, posicionamento traduzem esse trágico e inusitado encontro, é experiência compartilhada por todos que, através do tempo e espaço, reconheceram fragilidade e vulnerabilidade diante do Pai. 

O encontro com o Pai é sempre místico, oferece um momento de aventura que transcende o humano. Por isso, místico é o ato de procurar igualar o dar do Pai com uma abertura total, para receber pessoalmente na medida maior da liberdade aquilo que ele entrega. Por isso, o extraordinário da experiência mística, que parte da experiência ordinária com um superar inimaginável da riqueza da vida e da realidade, cria sempre um momento de graça. É a graça mística presente em todo encontro com o Pai. Essa graça, presente do Pai, é sobrenatural, pois é mistério divino que opera em nós. E assim o Pai renova a natureza humana, porque o dom recebido de Pai chama a uma resposta corajosa, fiel e pessoal, sem a qual não pode haver aliança e novo sentido de vida. E o selo da autenticidade está no trabalho abnegado que a visita do Pai nos leva a realizar.

Para o místico, o conhecimento de Pai não é uma abstração, mas um acontecimento decisivo, um encontro que clama por resposta. Existe encontro místico quando o racionalista ou cético em todos nós é derrotado. O Pai não pode ser reduzido a uma realidade puramente externa, ou pior a uma divindade bloqueada nas imagens congeladas de um catecismo colorida ou conhecimentos higienizado. O Pai, o primeiro, conhece e ama o ser humano misticamente, cada ser humano. A revelação do "Eu Sou" não termina com a confissão de fé que diz "você é", mas na amizade com ele que leva a dizer: "Eu estou com você".

É por isso que os místicos costumam comparar sua experiência com a de amantes ou cônjuges que constroem relacionamentos, em que são envolvidos total e completamente. Eles se tornam-se, pelo encontro, um com o outro. Com o Cântico dos Cânticos, com Teresa de Ávila e Edith Stein podemos dizer que a união mística é o resultado tanto que suga e quer o amor eros, como o amor do Pai, que olha com piedade sua criatura como caritas e ágape. No ponto onde estes dois amores se encontram, a união pode ser realizada. 

Assim, podemos descrever o lugar e o desafio da experiência mística: é a união no coração do ser humano e seu Pai. Neste contexto, as uniões pessoais que se pode fazer com Pai são singularidades, como a de Shaul, o rabino de Tarso.


mercredi 18 janvier 2017

Sejamos radicais

Política e responsabilidade social hoje no Brasil

Prof. Dr. Jorge Pinheiro


Diante da vergonha de evangélicos corruptos, de votos mercadejados no púlpito, da Palavra deturpada e enlameada por lobos travestidos de cordeiros, faço uma pergunta -- afinal, que relação existe entre o presente e o espírito crítico e transformador do protestantismo? 

E exorto homens e mulheres de boa vontade a uma reflexão sobre o que significa o presente enquanto desafio político para os protestantes brasileiros.

Bem, falar do presente, em primeiro lugar, significa dizer que vamos de uma contingência a algo diferente, que pode ser inferior ou superior, mas nunca igual. 

O presente é sempre parte de uma situação mais geral e está enquadrado no caminhar de um processo. E para fazer a leitura do presente pode-se recorrer à análise histórica, à avaliação crítica ou à construção filosófica. Algumas vezes, porém, algum desses elementos falha. Por isso, não basta observar o presente. Estamos excessivamente ligados a ele, o que pode nos levar a escorregar num julgamento do aqui e agora e esquecer que devemos estar voltados para o futuro.

O momento é importante, mas transformar o exame do presente em apreciação subjetiva é realizar uma redução, é ver a situação como totalidade e permanência. Olhando assim colocamos a situação num patamar muito elevado e a perspectiva que temos se torna global, apesar de seu caráter individual e limitado.

Tal análise do presente pode levar a uma ampla aprovação e tocar emocionalmente setores expressivos de comunidades inteiras. Esta é uma maneira de ver, mas é irresponsável, mesmo quando apresenta análises de conjuntura e perspectivas para o futuro. E por que irresponsável? Por não aceitar suas responsabilidades. Por não reconhecer os limites daquele que observa, assim como de seu próprio horizonte. 

Mas se existe um nível mais amplo do que este analisado, somos levados a falar da situação do presente como possibilidade. Mas é possível chegar a tal patamar de observação? Caso exista um ponto de vista mais amplo, a partir do qual se posicione um observador do presente, ele precisa estar livre das amarras do historicismo.

Busque a justiça
Voltem para Deus todos os humildes deste país, todos os que obedecem às leis de Deus. Façam o que é direito e sejam humildes. Talvez assim vocês escapem do castigo no Dia da ira do SENHOR. (Sofonias 2.3).  

Pode-se dizer que pessoas, militantes e revolucionários, souberam interpretar uma época dada. Eis aqui o ponto de intersecção entre o presente e o espírito crítico e transformador do protestantismo. Seguindo a trilha aberta, é possível afirmar que o protestantismo radical traduz inquietude e descontentamento em relação aos acontecimentos sociais concretos. 

Há uma busca ética de respostas entre o protestantismo radical e a ação consciente do intelectual orgânico. Ambos representam determinada comunidade, têm função superestrutural e, apesar de sua organicidade, precisam exercer autonomia em relação às pressões sociais que sofrem. É dessa postura que nasce a força crítica e a compreensão de que diante da realidade há alternativas diferentes daquelas expressas pelo poder. 

O protestantismo radical diante do presente não pode ser apreendido a partir da leitura do apresentado no passado, porque procura uma compreensão que não possa ser abalada. E essa interpretação não pode estar pousada sobre experiência própria e nem mesmo sobre a história da Igreja.

Pratique a justiça. 
O SENHOR já nos mostrou o que é bom, ele já disse o que exige de nós. O que ele quer é que façamos o que é direito,  amemos uns aos outros com dedicação e vivamos em humilde obediência ao nosso Deus. (Miquéias 6.8).  

Mas um terceiro elemento deve ser levado em conta: a tendência dialética do protestantismo radical, que se expressa de forma paradoxal, ao fazer a crítica de pontos de vista estabelecidos. 

Quando analisamos o protestantismo a partir desta problemática, vamos constatar que ele não testemunha em benefício do presente, mas profere um não ao presente. Um não amplo, já que não critica cada detalhe do presente, e também por não discordar inteiramente do presente. Ao renunciar a um não de cada detalhe do presente, apresenta um sim às conquistas e vitórias obtidas no processo. 

O individualismo e o criticismo se transformaram, quando analisamos o presente, em movimentos reacionários. Mas estão, muitas vezes, sob a proteção de religiosidades cujas essências e mensagens consistem em declarar um não para tudo que está no presente. 

O espírito crítico e transformador do protestantismo radical está envolvido no presente concreto, tem a coragem de decidir e colocar-se sob julgamento, ao nível do particular. E é a partir dessa compreensão do que significa o espírito crítico e transformador no tempo, que nos remetemos às três posições que definem diferentes compreensões do presente. Primeiro, vamos analisar duas: a concepção conservadora e a concepção progressista, que se apresentam com variáveis e modulações. 

A concepção conservadora admite o surgimento do criativo e da novidade no tempo, mas considera que isso aconteceu no passado. Por essa razão nega toda mudança, presente ou futura. A força dessa concepção repousa no fato de que considera o criativo e a novidade como dados e não como resultados da ação cultural e social do ser humano. 

A concepção conservadora também reconhece necessidade e transformação como componentes do presente, mas também os situa no passado. Desconsidera que se aconteceu no passado, necessidade e transformação se revelam em todas as positividades e negatividades do passado, do presente e futuro. Sob tal visão repousam os conservadorismos. Perderam o sentido de necessidade e transformação.

Faça o bem, repreenda o opressor 
Aprendam a fazer o que é bom. Tratem os outros com justiça; socorram os que são explorados, defendam os direitos dos órfãos e protejam as viúvas. (Isaías 1.17).

A concepção progressista considera necessidade e transformação alvos a serem projetados no futuro, existentes em cada época, mas que não se apresentam enquanto irrupção no presente. Assim, os tempos tornam-se vazios, sem decisão, sem responsabilidade. Na concepção progressista existe uma tensão diante do que foi. Mas a consciência de que o alvo é inacessível aqui e agora a debilita e produz um compromisso continuado com o passado. A concepção progressista não oferece nenhuma opção ao que está dado. Transforma-se em progresso mitigado, em crítica pontual desprovida de tensão, onde não há nenhuma responsabilidade definitiva.  

Este progressismo mitigado é a atitude característica da sociedade burguesa. É um perigo que ameaça constantemente, é a supressão do não e do sim incondicional às questões concretas. É o adversário do protestantismo radical.

Conservadorismo e progressismo, reação e progresso, estão entrelaçados na consciência do presente que surge enquanto necessidade e transformação. E é esse entrelaçamento que leva a um terceiro caminho.

E o terceiro caminho é a utopia. Sem o espírito utópico não há protesto, nem crítica radical. A utopia quer responder às necessidades e transformar o tempo, mas esquece que criatividade e novidade não abalam todos os tempos e todos seus conteúdos. É por isso que a utopia leva, necessariamente, à decepção. Assim, o resultado da utopia desencantada é o deslumbramento sem compromissos.

Mas a idéia de necessidade e transformação nasce da discussão com a utopia. Necessidade e transformação clamam pela irrupção de criatividade e novidade no tempo, cujo caráter é decisivo no instante histórico enquanto destino. Mas, com a irrupção da criatividade e novidade que respondem às necessidades e transformam o tempo concreto, é preciso ter consciência de que não existe um estado de perfeição no tempo, a consciência de que o ideal e perfeito nunca se fixam num presente eterno.

Assim, toda mudança, toda transformação exige uma compreensão do momento vivido que vá além do meramente histórico, do aqui e agora. Deve projetar-se no futuro, deve entender que há na busca permanente da justiça um choque entre necessidade/ transformação e criatividade/ novidade. Tal desafio não pode ser resolvido por uma pessoa, por mais protestante e radical que seja. O sujeito da transformação será, em última instância, o sujeito social, as massas em mobilização. Mas o protestantismo radical, assim como a intelectualidade orgânica têm aí um importante papel a cumprir, serem voz e ação críticas para que o sonho de Amós aconteça no presente concreto: que o juízo corra como as águas e a justiça como ribeiro perene. 

mardi 17 janvier 2017

Weber em perspectiva

MAX WEBER EM PERSPECTIVA
Um diálogo com Michael Lowy 

Por
Jorge PINHEIRO

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO
1.1. O marxismo weberiano
1.2. O caminho da convergência

2. HERDEIROS DE MAX WEBER
2.1. Racionalidade orientada a fins e outros conceitos
2.2. Legitimidade e dominação
2.3. A crítica ao weberianismo: prós e contras

3. Considerações 

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. INTRODUÇÃO

Estas reflexões tomam como ponto de partida o artigo Figuras do Marxismo Weberiano, de Michael Lowy [Figures du marxisme wébérien, in Weber et Marx, Actuel Marx no ll, Paris: PUF, l995, pp.83-94, tradução de Edmundo Lima de Arruda] que apresenta pontos de intersecção entre o pensamento de Weber e Marx, procurando mostrar a existência de um produtivo marxismo weberiano. De minha parte, farei contrapontos a algumas formulações de Lowy, com a finalidade de manter um diálogo entre o pensamento weberiano visto como complementar do pensamento marxista e a análise de Enrique Dussel [Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Vozes, 2000]. 

De todas as maneira, não podemos esquecer, como afirmam Filoramo e Prandi , que os estudos socio-religiosos de Max Weber (1864-1920) formam uma parte considerável dentro de sua vasta produção e se distingue pela originalidade da impostação, comparados com o latente funcionalismo que caracteriza a tradição sociológica nesse setor. De fato, é preciso sublinhar, antes de tudo, que Weber não aceita a equação marxista de religião enquanto alienação ou o esquema, de igual matriz, do reflexo, nem se coloca o problema dos funcionalistas sobre o eventual papel de coágulo ideológico, desempenhado pela religião nas sociedades antigas e modernas. Isso não impede que o estudioso alemão pense na religião como um fato cultural de natureza não transcendente, produto histórico:

“A ação religiosamente ou magicamente orientada – escreve ele em Economia e sociedade – tira a sua original consistência de um processo mundano. As ações que se apresentam como religiosas ou mágicas precisam ser realizadas a fim de que tudo corra bem e possas viver longamente sobre a terra”. 

Em nossa exposição, o texto de Lowy corre em destaque no diálogo.

O marxismo weberiano

A expressão “marxismo weberiano” foi inventada por Merleau-Ponty para designar, em seu livro As Aventuras da Dialética, de l955, a corrente marxista ocidental mais marcada pelas idéias de Weber, particularmente Lukács e seus discípulos. 

Trata-se de uma expressão que, considerada com atenção,  parece  paradoxal: Weber e Marx não representam dois sistemas de pensamento contraditórios e mutuamente excludentes? Suas teorias científicas não são rigorosamente incompatíveis? 

O fato é que essa foi por muito tempo a opinião dominante nos meios universitários. A obra de Talcott Parsons ao propor uma leitura semipositivista e antimarxista de Weber contribuiu, sem dúvidas para o reforço daquela imagem. E, o que é fundamental para reforçá-la, outro grande mal entendido,  que foi o de tomar a Ética Protestante como um livro de polêmica espiritualista contra o materialismo histórico, quando o seu objetivo era completamente outro: colocar em relevo a afinidade eletiva entre calvinismo e o espírito do capitalismo. Somente em um ou dois parágrafos deste livro, Weber vai afirmar a prioridade histórica do fator religioso. 

Em 1975, Michael Lowy escrevia. “Segundo Weber, os conceitos das ciências sociais não devem ser ‘gládios para atacar adversários’ mas somente ‘relhas de arado para surribar o imenso campo do pensamento contemplativo’, porque ‘cada vez que um homem de ciência faz intervir seu próprio julgamento de valor, não há mais compreensão integral dos fatos”. É verdade que, em certos escritos metodológicos, Weber reconhece que os valores do observador, nas ciências sociais, desempenham um papel destacado na seleção do objeto da pesquisa científica, na determinação da problemática das questões a serem postas. Mas ele assinala que as respostas fornecidas, a pesquisa mesma, o trabalho empírico do cientista, devem estar livres de qualquer valoração, e seus resultados aceitos por todos. Como se a escolha das questões não determinasse, em larga medida, as respostas mesmas! Lucien Goldmann assinala, com muita razão, o caráter contraditório da posição de Weber que se situa a meio do caminho entre o desconhecimento do determinismo social do pensamento sociológico nos positivistas e sua aceitação integral pelos marxistas”. [Michael Lowy, Método dialético e teoria política, RJ, Paz e Terra, 1975, p.16]. Ora, exageros à parte, não se trata de demonogizar Weber, mas, como o próprio Lowy assinalava vinte e cinco anos atrás, discutir o alcance de suas sociologias especiais e, para nós, a importância de sua sociologia da religião enquanto instrumental metodológico para as ciências das religiões.

Mas o que tem isso a ver com as abordagens de Marx acerca do conhecimento e do capitalismo? Tem muito porque com a derrocada do comunismo nos países do Leste, o pensamento marxista se viu diante do dilema de decretar, ele próprio, a falência de sua metodologia e visão de mundo ou, a partir de um diálogo transdisciplinar, rever conceitos e formulações visando sobrevivência e superação. Nesse sentido, Weber fornece elementos imprescindíveis para esse diálogo. 

O caminho da convergência

Exceção feita aos marxistas weberianos e ao trabalho pioneiro de Karl Lowith, é sobretudo nos últimos anos  que se desenvolveu uma interpretação diferente, colocando em acento as numerosas convergências entre os dois pensadores. Isso não significa que divergências essenciais não separem o autor de Economia e Sociedade e do Capital. As notáveis diferenças filosóficas (neokantismo contra neo-hegelianismo) e políticas (nacionalismo contra socialismo) determinam em certa medida suas respectivas interpretações do capitalismo, do poder  e das classes sociais.
Mas existem também inúmeras correspondências e, sobretudo, análises que, sem serem idênticas, podem ser consideradas como perfeitamente complementares. 

O marxismo da Segunda Internacional - ortodoxo ou revisionista, alemão ou russo - ignorou soberbamente Weber. Paradoxalmente - ou logicamente? - serão dois pensadores ligados ao terreno do comunismo os primeiros a se interessarem pela obra weberiana. Pode-se considerar Georges Lukács como o primeiro marxista a retomar seriamente Weber,  se inspirando de maneira significativa  em suas idéias.  Merleau-Ponty não se equivocou ao designar a Historia e Consciência de Classe (l923) como o início da corrente «marxista-weberiana»;  mas,  infelizmente ele  nos fornece poucos elementos para definir de maneira mais precisa a dívida de Lukács para com o mestre de Heildeberg. A expressão «marxismo-weberiano» também pode ser denominada de «webero-marxismo», da mesma maneira que existe um «freudo-marxismo» ou um «hegelo-marxismo», o que constitui uma provocação intelectualmente produtiva, sob condição de que não seja compreendida como uma mistura eclética de dois métodos, mas sobretudo como perspectiva  fundamentalmente inspirada em Marx,  com apropriação de alguns temas e categorias de Weber. 

Lowy infelizmente passa batido pela riqueza policrômica da Segunda Internacional, que fazia parte da própria tradição marxista. Em 1978, o autor desta monografia escrevia que o marxismo ou é pluralista ou morre. “Willy Brandt, por exemplo, considera Rosa Luxemburgo – felizmente ela está morta – sua mestra. Allende costumava citar Kautsky – é famoso o seu debate com o MIR em Concepción. Olof Palme e Carlos Altamirano – principalmente o segundo – consideram que Lênin fez grandes aportes à teoria marxista. Agora mesmo, na Itália, se dá uma luta teórica entre Berlinger – o comunista – e Bettino Craxi sobre a questão do pluralismo ideológico. Numa sociedade democrática e num partido socialista estes são temas abertos, teóricos e, nesse sentido, de discussão. Mas em nosso país a teoria e a ideologia são casos de polícia”. [Jorge Pinheiro, Memória e Política, in Versus, outubro de 1978, p. 4].

E por que Max Weber não aparece nesta discussão. Por que não é citado, nem levado em conta? Por vários motivos. Weber vê o capitalismo com a racionalidade dos engenheiros que utilizam relógios de ponto na análise da produção industrial. Apesar da afirmação de que para o calvinista a produção capitalista é uma “gaiola de ferro”, Weber, vê o capitalismo como espírito novo, racional, legal, razão burocrática. Ou como ele mesmo afirma: “Um dos componentes fundamentais do espírito do moderno capitalismo e não apenas deste, mas de toda a cultura moderna: a conduta racional baseada na idéia da vocação, nasceu (...) do espírito da ascese cristã Basta reler o trecho de Franklin, transcrito no início desse ensaio, para perceber que os elementos fundamentais do que lá se denominou ‘espírito do capitalismo’ são justamente os que ora apresentamos como conteúdo da ascese vocacional do puritanismo, apenas sem a sua fundamentação religiosa, já desaparecida no tempo de Franklin”. [A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, SP, Pioneira, 2000, p. 130]. Por isso será olhado com desconfiança pelo marxismo clássico, inclusive pela Segunda Internacional, como irracionalista que abre caminho para a contra-revolução burguesa na Alemanha. 

2. HERDEIROS DE MAX WEBER

Georges Lukács participou entre os anos l9l2 e l9l5 do círculo que se reunia todos os domingos na casa de Max e Marianne Weber. Laços de amizade e respeito mútuo foram tecidos entre os dois pensadores, e que não foram desatados depois de l9l8, quando da adesão do filósofo húngaro ao marxismo e ao comunismo (a correspondência entre eles prossegue até l920).  Por isso não é surpreendente que certos temas weberianos ocupem um lugar estratégico nos primeiros escritos marxistas de Lukács. 

Pode-se considerar o  capítulo central da História e Consciência de Classe, fundado na análise da «coisificação» (Verdinglichung) como uma síntese potente e original da teoria do fetichismo da mercadoria de Marx, e da teoria da racionalização de Weber. Fusionando a categoria weberiana de racionalidade formal (caracterizada pela abstração e quantificação) com as categorias marxianas de trabalho abstrato e de valor de troca, Lukács reformulou a temática do sociólogo alemão na linguagem teórica marxista. 

De outra parte, sua extensão da análise marxiana da forma mercantil, e da «coisificação» a outros domínios da sociedade e da cultura, se inspira diretamente nas análises weberianas da vida moderna, impregnada pelo espírito capitalista do cálculo racional (Rechnenhaftigkeit). 

Com o desenvolvimento do capitalismo, a «coisificação» termina por englobar o conjunto das formas de emergência da vida social; começando pelo Estado, pela administração, pela justiça e pelo direito. Trata-se, segundo Lukács, de uma homogeneidade estrutural constatada por «todos os historiadores clarividentes do capitalismo moderno». Quem são essas personagens clarividentes? O  único exemplo mencionado é,  sem dúvida, e por acaso, Max Weber... Citando  numerosos textos, entre eles a seguinte passagem de Economia e Sociedade: «A empresa capitalista moderna repousa interiormente antes de tudo no cálculo. Tem necessidade para existir de uma justiça e de uma administração em que o funcionamento possa ser, também, ao menos em princípio, calculado racionalmente segundo regras gerais sólidas; como se calcula o trabalho previsível efetuado por uma máquina». 

Também com base em Weber é que vai analisar o sistema burocrático, colocando as descrições aparentemente «neutrais» do sociólogo de Heildeberg sob crítica feroz ao caráter inumano e reificado dessa racionalidade administrativa puramente formal e sua  «depreciação crescente da essência qualitativa material das coisas». 

Esta radicalização anticapitalista das análises «livres de julgamento de valor» - ou ao menos ambivalentes - de Weber é particularmente surpreendente na interpretação lukacsiana da Ética protestante. Para começar, e contrariamente a maior parte das críticas marxistas do livro, Lukács não manifesta nenhum interesse pela querela «materialista» a propósito das origens do capitalismo. «Ele  é completamente indiferente para apreciar os fatos, que se aprove ou não a interpretação causal de Weber». O que lhe  parece importante, em contrapartida, é a significação da tese weberiana para a análise crítica da coisificação capitalista: «A conjunção calvinista (...) entre uma ética da prova (ascética intramundana) e a transcendência completa das  potencias objetivas que movem o mundo, fazendo de seus conteúdos e  horizontes  o destino humano (Deus absconditus e predestinação) representa de forma mitologizante, mas em estado puro, a estrutura burguesa da consciência coisificada (coisa em si)». Em uma nota de roda pé Lukács se refere explicitamente aos trabalhos de Weber, assim como a um texto de Engels no qual ele sugere, também, haver interdependência entre capitalismo e calvinismo. 
                                                          
Assinalemos que Lukács não foi o primeiro marxista a utilizar (teria que se dizer, desviar) a análise da Ética protestante para denunciar a lógica fria e alienada do capitalismo: dois anos antes do aparecimento de História e consciência de Classe, Ernst Bloch insistia, em seu livro Thomas Münzer, teólogo da Revolução (l921) sobre o papel dos ascetismos intramundano na acumulação do capital, num capítulo intitulado Calvino e a Ideologia do dinheiro atribui ao calvinismo o fato de que a «obrigação da poupança se impõe à riqueza, esta última sendo concebida como uma grandeza abstrata, que se basta a si mesma, e que, ela mesma, exige acrescentar-se». Em conseqüência, graças à ética protestante, «como brilhantemente mostrou Max Weber, a economia capitalista em vias de desenvolvimento se torna totalmente liberal, solta, livre de todos os escrúpulos do cristianismo primitivo e, mais além, da ideologia econômica que a Idade Média ainda conservava de relativamente cristã». 

Afora a problemática da racionalização, Lukács apelará aos conceitos weberianos de «tipo ideal» e de possibilidade objetiva, para construir sua teoria da consciência adjudicada (zugerechnetes Bewußtsein) do proletariado, termo que Lucien Goldmann traduzirá por consciência possível. Mas se trata aqui de um empréstimo estritamente heurístico do ponto de vista do conteúdo, já que levanta a hipótese de uma consciência proletária capaz de romper com o veio da coisificação e de derrubar o capitalismo, o que está nas  nas antípodas das idéias e convicções de Weber. 

Vinte e cinco anos mais tarde, tornando-se muito mais ortodoxo (em relação ao marxismo soviético), Lukács não considera Weber senão como um dos múltiplos representantes do processo de «destruição da razão» característica da cultura alemã pré-nazista. Por certo, encontra-se em sua obra «uma polêmica espiritual e correta contra o irracionalismo vulgar então  dominante», mas ela não suprime o «núcleo central irracional do seu método e de sua visão de mundo». Não é senão muito mais tarde, em uma conversa com Wolfgang Abendroth no ano de l966, que Lukács reconhecerá sua dívida intelectual para com seu velho mestre: « Hoje não lamento haver tomado minhas primeiras lições de ciências sociais com Simmel e Max Weber, e não com Kautsky (...). Isso foi uma circunstância favorável para meu desenvolvimento». 

A maior parte dos webero-marxistas posteriores serão, em maior ou menor grau, influenciados por Lukács, com seu conceito de coisificação. Isso vale particularmente para a Escola de Frankfurt.
 
Convém notar que a Escola de Frankfurt surgiu num contexto histórico muito especial. No início, grandes pensadores judeus como o rabi Nehemiah Nobel, Martin Buber e Gershom Scholem e outros mantiveram um estreito relacionamento com o instituto. Mas, a negação das tendências à espiritualidade e ao misticismo judaico fortaleceu e permitiu o resgate da tradição marxista. Ao mesmo tempo, o mundo estava assistindo à revolução bolchevique e à revolução social na Alemanha. Esses pensadores judeus da Escola de Frankfurt estavam próximos do Partido Social Democrata alemão e do Partido Comunista. Estavam preocupados com a crítica e vêem as dores do mundo com profundo pessimismo. Nesse sentido, Weber fornecerá instrumental para uma sociologia da história negativa e sem esperança. Lukács e Freud completarão esse pano de fundo. É nesse contexto que surge na Escola de Frankfurt grandes pensadores, entre os quais devemos citar Max Horkheimer, Theodor Adorno, Walter Benjamin e Herbert Marcuse. 

2.1. Racionalidade orientada a fins e outros conceitos


O nome de Max Weber aparecerá somente uma  vez na grande obra filosófica da Escola: a Dialética da Razão (l944) de Max Horkheimer e Theodor Adorno. Isso não obsta que sua visão de história seja essencialmente de inspiração weberiana. Da mesma maneira que o autor de Ética Protestante, eles percebem a evolução histórica da civilização ocidental como um processo milenar de desencanto do mundo (Entzauberung der Welt, infelizmente traduzido na edição francesa como Liberar o mundo da magia) e de racionalização, que encontra sua finalização no mundo industrial e burocrático moderno. A racionalidade que triunfa no universo da mercadoria capitalista,  na industria cultural e no Estado burguês é puramente formal  e instrumental, indiferentes às direções e finalidades da ação. 

A distinção entre racionalidade instrumental e racionalidade substancial, que ocupa um lugar central no pensamento da Escola de Frankfurt é, em grande medida, a reformulação de uma problemática weberiana. Mas a Dialética da Razão não menciona em nenhuma parte o sociólogo de Heildeberg, nem para remeter-se a sua análise (como o faz Lukács na História e consciência de Classe), nem para criticá-lo. Sem embargo, em outra  obra,  escrita mais ou menos na mesma época do Eclipse da Razão (l947), Horkheimer reconhece essa filiação, comparando seus próprios conceitos de razão subjetiva e razão objetiva com os de racionalidade funcional e substancial desenvolvidos por Max Weber,  e sua escola (particularmente Mannheim em seu livro Man and Society). Segundo Horkheimer, a razão subjetiva ou funcional se reduz ao «fato de saber calcular as probabilidades, e por conseqüência  coordenar os meios convenientes a um dado fim», e a razão objetiva ou substancial (de Platão a Hegel)  visa «a idéia do maior bem» e «à maneira de realizar esses fins últimos».

Em um curioso diálogo entre Habermas e Marcuse em l977 foi tratada a questão da origem do conceito de razão instrumental. Enquanto Habermas atribui a paternidade do termo a Horkheimer, Marcuse designa a Max Weber como a fonte primeira. Na realidade os dois têm e não têm razão ao mesmo tempo: Max Weber utiliza os termos de racionalidade orientada a fins (Zweckrationalität) e de racionalidade orientada a  valores (Wertrationalität), ou ainda,  o de racionalidade formal e de racionalidade material. A distinção entre razão funcional e razão substancial é mencionada pela primeira vez no livro de Manheim. Finalmente, o conceito de racionalidade instrumental aparece pela primeira vez na Escola de Frankfurt, particularmente na Dialética da Razão. A continuidade é evidente, mas no curso dessas três etapas o termo adquire uma significação cada vez mais crítica. 

É interessante ver que esta razão instrumental na verdade procura, como explica Dussel , realizar “os fins que as táticas ou as circunstâncias impõem”. E exatamente por isso a posição de Weber “para quem os fins são de uma cultura dada” mostra-se na verdade bastante conservadora.

De todas as maneiras, é importante notar que Max Weber, como afirma Dussel , trabalha com uma classificação de quatro níveis dos atos sociais. “A ação social, como toda ação, pode ser: 1) racional, ordenada a fins...utilizando essas expectativas como condições ou meios para conseguir fins próprios racionalmente julgados e perseguidos; 2) racional, ordenada a valores... éticos, estéticos, religiosos... simplesmente no mérito desse valor; 3) afetiva, especialmente emotiva, determinada por afetos e estados sentimentais atuais; e 4) tradicional: determinada por um costume arraigado”.

Assim, os atos que operam condições ou meios com uma ordenação a fins têm a ver com juízos de fato, que são um exercício da razão instrumental e em determinados casos científica. Já os juízos de valor para Weber são enunciados subjetivos, valores culturalmente dados. E nesse campo, em especial, situa-se a religião, já que para ele o fenômeno religioso não se desenvolve a partir de juízos de fato e por isso não pode ter consistência racional ou científica.

2.2. Legitimidade e dominação

O diagnóstico pessimista da sociedade moderna esboçada na Dialética da Razão é amplamente devido a Weber, embora tenha ocorrido a todos os  filósofos de Frankfurt de maneira muito mais radical inspirada numa perspectiva marxista-lukácsiana. Enquanto Weber se esforça para estabelecer uma constante «neutra» e «objetiva» ou ao menos resignada, Adorno e Horkheimer denunciam sem vacilação a coisificação pela razão calculadora, que reduz tudo a quantidades abstratas, destruindo não somente os deuses e os espíritos mágicos,  mas também todas as qualidades.
O princípio do número unifica todos os domínios da vida social: «as mesmas equações dominam a justiça burguesa e a troca de mercadorias». A racionalidade deixou de ser uma força crítica para tornar-se uma simples ferramenta a serviço da dominação: «a razão, ela mesma não é mais que uma auxiliar no aparato econômico que engloba o todo. Funciona como um instrumento universal apropriado para a fabricação de todos os demais instrumentos; estritamente racional, carregadas de armadilhas como as manipulações exatamente calculadas da produção material». Sob a égide do capital, a racionalidade tende a transformar-se em seu contrário, o mito: «Com a extensão da economia burguesa mercantil, o obscuro horizonte do mito é iluminado pelo sol da razão calculadora, cuja luz gélida  faz crescer a semente da barbárie». Essa passagem é emblemática, associando as imagens mais clássicas da Aufklärung (a luz, o sol, a razão, a germinação) com a sombra ameaçadora da catástrofe. 

Esse tipo de crítica radical vai muito além das ambivalências de Weber, mas certos momentos de sua obra (a insistência sobre o caráter formal da racionalidade moderna, a análise do sossobrar das aspirações emancipatórias da modernidade na racionalidade burocrática, o temor que ela conduza a uma nova servidão egípcia, a uma «jaula de ferro», ou a «uma petrificação mecânica») parecem antecipar a Dialética da Razão da Escola de Frankfurt. 

O que separa Adorno e Horkheimer do autor de Economia e Sociedade  é  de saída, suas tomadas de posição em favor  do humanismo e do socialismo, seus rechaços do capitalismo e da burocracia enquanto formas necessárias,  e inevitáveis da modernidade (um «destino»), e suas utopias de uma sociedade liberada da coisificação e da dominação. Avocamos aqui a vertente  marxista dos pensadores frankfurtianos, que reinterpretam as análises weberianas, e as «desviam» em proveito de uma visão revolucionária e crítica. Mais hegelianos que Weber (que era, no fundo, um neokantiano), defendem um racionalismo concreto; substancial; «objetivo»; concernente tanto aos meios quanto às finalidades da ação. Reprovam em Weber seu irracionalismo prático, seu abandono da tradição racionalista clássica («objetiva»), sua renúncia à idéia de uma ciência ou de uma filosofia racional capaz de definir os propósitos da sociedade humana. 

Seria discutível o termo «marxismo-weberiano» para outros pensadores da Escola de Frankfurt, ainda que façam referência a escritos de Weber. É o caso específico de Herbert Marcuse, que desde l934 menciona a analise weberiana da racionalidade capitalista (quanto calculabilidade de ganhos e perdas) para por em evidência os limites da racionalização liberal, quer dizer, privada. A privatização da razão abandona a estrutura da totalidade social e econômica às forças irracionais, tanto no nível econômico (as crises) como no nível político (o líder carismático). Em um ensaio de l941, que anuncia certos temas da Dialética da Razão, se refere a Weber para apoiar a tese segundo a qual «o caráter impessoal e objetivo da racionalidade tecnológica atribui aos grupos burocráticos a dignidade universal da razão. A racionalidade individual, em sua origem crítica e opositora se transforma em uma racionalidade competitiva e termina como «submissão estandardizada ao aparato todo poderoso que ela mesma criou». 

Uma vez mais, temos de tomar com pinças o apoiar-se em Weber para aprofundar as categorias da análise marxista. Para Weber o conceito de legitimidade apóia-se em algum tipo de dominação, o que segundo Dussel tira a possibilidade dessa legitimidade transformar-se  em noção de validade ético-normativa.

Ou como diz Weber, em texto citado por Dussel , “os que atuam socialmente podem atribuir validade legítima a uma ordem determinada: a) em merecimento à tradição: validade do que sempre existiu; b) em virtude de uma crença afetiva (emotiva, especialmente): validade do novo revelado ou do exemplar; c) em virtude de uma crença racional de acordo com valores: vigência do que se tem como absolutamente valioso: d) em merecimento ao [legalmente] estatuído positivamente, em cuja legalidade se crê”.

Donde podemos concluir, exatamente porque os três primeiros motivos são materiais (tradição, afetividade e valores), que a religião, para Weber, tem validade social quando é aceita como tradição vigente, porque motiva emocionalmente os fiéis pela crença consensual em valores ou pelo reconhecimento de leis que são cumpridas comunitariamente. Assim, o conteúdo de sentido dá validade à ordem. Ou seja, transmite legitimidade à religião. Mas tal legitimidade é essencialmente instável porque é uma probabilidade e também porque tal ordem está organizada a partir de uma estrutura de dominação.

E Weber expõe seu conceito de dominação. “Entendemos aqui por dominação a estado de coisas pelo qual uma vontade explícita (mandato) do dominador ou dos dominadores influi sobre os atos dos outros (do dominado ou dos dominados), de tal sorte que, num grau socialmente relevante, estes atos têm lugar como se os dominados tivessem adotado por si mesmos e como máxima de agir o conteúdo do mandato (obediência) “. 

2.3. A crítica ao weberianismo: prós e contras

Não é senão mais tarde, em l964, por ocasião do décimo quinto congresso de sociólogos alemães, que Marcuse esboçará um balanço da analise weberiana da racionalidade. Seu objetivo principal consiste em mostrar os limites dessa análise, mas ao mesmo tempo rende homenagem a sua  clarividência: definindo a racionalidade capitalista como formal, funcional, abstrata,  fundada sobre o cálculo numérico,  e sobre a redução da qualidade em quantidade. Weber permite compreender porque ela conduz necessariamente a dominação coisificada do aparato burocrático. Não obstante, esse texto (que representa uma das críticas marxistas mais interessantes de Weber) é posterior aos principais escritos teóricos de Marcuse que não parecem, no essencial, reveladores  da   dívida com a problemática colocada por Weber. 

Se Lukács e a Escola de Frankfurt apelaram amplamente à teoria da racionalização moderna desenvolvida por Weber, é porque compartilham com ele  um certo Kulturpessimismus e, mas fundamentalmente, de uma crítica de inspiração romântica da civilização industrial-capitalista, o que quer dizer, compartilham uma crítica da modernidade fundada  nos valores sociais e culturais pré-capitalistas. 

Um dos principais temas desta visão romântica do mundo é precisamente a recusa da quantificação da vida social, a crítica da razão abstrata e calculadora que reduz todos os valores a quantidades.  Agora bem, esse tema é precisamente o momento da análise weberiana da racionalidade moderna que é o mais diretamente integrado pelos webero-marxistas em sua teoria crítica da coisificação ou da racionalidade instrumental. Entretanto, é necessário acrescentar que a dimensão romântica é parcialmente neutralizada em Weber, por sua aceitação resignada («heróica») da modernidade como «destino» e nos marxistas weberianos por sua ligação (crítica) à filosofia das Luzes. 

Esta afinidade romântica entre Weber e certos marxistas ocidentais é fundamental para compreender a formação do webero-marxismo. Todavia,  seria falso deduzir, como o fazem certos críticos da Escola de Frankfurt, que Adorno e Horkheimer compartem com Weber « o  sentido de debilidade de um setor social  particular de uma sociedade, a classe média superior educada; ou mais especificamente os «mandarins», e a nostalgia pela  Kultur germânica tradicional. Contrariamente aos «mandarins» e a Max Weber, os teóricos críticos frankfurtianos não desejavam nem um retorno ao passado germânico,  nem uma reconciliação forçada com a modernidade capitalista-burocrática. Seu pensamento estava inspirado, de cabo a rabo, no projeto utópico de um avenir emancipado. 

Pode-se falar de um marxismo weberiano na França?  em certa medida, as Aventuras da Dialética de Merleau-Ponty  indicam essa direção. Mas se trata mais de um projeto que de uma síntese efetivamente realizada. 

No seu capítulo sobre Max Weber, A crise do entendimento,  pode-se encontrar uma tentativa original e profunda de revalorizar certos aportes do sociólogo de Heildeberg. Merleau-Ponty não oculta sua simpatia pelo método weberiano, fundado em uma compreensão autêntica da ambigüidade dos fatos históricos, ou de sua Vielseitigkeit, da pluralidade de seus aspectos,  método que permitiu ao autor da Ética protestante mostrar nas relações entre religião e economia, as mudanças,  os entrelaçamentos, as reversões ou efeitos retornando sobre as causas, e sobretudo o parentesco de eleição, dedução, um pouco literal,  que Merleau-Ponty propõe para o conceito weberiano de Wahlverwandtshchaft (afinidade eletiva).

Não se trata somente de questões de método científico, é também a fenomenologia de Weber que parece valiosa, já que, contrariamente a de Hegel, não conclui num saber absoluto; reconhece que «a verdade deixa sempre uma margem de sombra»,  e toma em conta  « a liberdade do homem e a contingência da história». Quanto a política de Weber, Merleau-Ponty reconhece que esse grande espírito julga os movimentos revolucionários na Alemanha posteriores a l9l8 «como um burguês alemão de província». Mas sublinha que sua «política do entendimento» (segundo a expressão de Raymond Aron) tem uma vantagem decisiva sobre o velho liberalismo: é um entendimento que aprendeu a duvidar de si mesmo. 

O que «Weber estabeleceu de mais seguro» deve então ser recolhido numa fórmula que lhe serve como balanço provisório: «se a história tem, já não um sentido como um rio, mas  sentidos, se ela nos ensina, não há a verdade, senão  erros a evitar; se a prática não se deduz de uma filosofia dogmática, não é superficial fundar uma política sobre a análise do homem político». O pouco que se pode dizer deste silogismo condicional é que a relação entre as premissas (extremamente interessantes) e a conclusão (tão discutível) está longe de ser evidente... Tanto mais quando o conceito ambíguo de «homem político» reenvia, para Merleau-Ponty, a «qualidade humana» dos chefes que «amam verdadeiramente o aparato político»,  no qual os «atos mais pessoais são coisas de todos». Malgrado a referência a Lênin e Trotsky como exemplos dessa rara qualidade, trata-se de  uma teoria da ação política mais próxima às idéias weberianas sobre o líder carismático necessário, que da doutrina marxista da luta de classes. 

Entretanto, o objetivo de Merleau-Ponty nas Aventuras da Dialética é, na verdade, a renovação (com a ajuda de Weber) do pensamento marxista. Daí sua homenagem ao «marxismo rigoroso e conseqüente que é, também, uma teoria da compreensão histórica da escolha  criadora e uma filosofia interrogativa da história». Em outros termos, é a palavra final desse primeiro capítulo - «é somente a partir de Weber e desse marxismo weberiano que se pode compreender as aventuras da dialética depois de trinta e cinco anos». 

«Marxismo-weberiano»? É o único momento em que essa expressão aparece em seu livro. O que significa? Quais são os pensadores que encarnam essa eleição? Em princípio, a resposta deveria ser encontrada no capítulo seguinte intitulado «O marxismo ocidental», mas o único exemplo mencionado e analisado é a História e Consciência de Classe de Lukács. Merleau-Ponty parece ignorar, naquele estágio de sua evolução filosófica, a Escola de Frankfurt  e suas relações com a herança weberiana. 

O marxismo de Lukács é, segundo Merleau-Ponty, uma «filosofia integral e sem dogmas», enquanto que Weber resta prisioneiro de uma verdade sem condição e sem ponto de vista. Lukács supera a seu mestre com a dialética do sujeito e o objeto, e com o  reconhecimento sem restrição da história como único meio de nossos erros e de nossas verificações. O que Lukács aportou,  atraindo desta forma a condenação da ortodoxia soviética  (Pravda, l924) - é «um marxismo que incorpora a subjetividade da história sem fazer dela um epifenômeno». 

Em que pode ser qualificado de weberiano o marxismo de Lukács? O brilhante capítulo II das Aventuras da Dialética  não trás, na verdade, a resposta. O  autor menciona (como muitos outros) a origem weberiana do conceito de «possibilidade objetiva» com o qual Lukács designa a consciência de classe do proletariado, e constata (mas é uma generalidade) que «nele e como em  Weber, o saber encontra-se enraizado na existência, onde encontra também seus limites». Isto parece ser o nível do que se chama «uma filosofia interrogativa da história», que se situa no lugar mais profundo entre os dois pensadores, e que incorpora o mesmo Merleau-Ponty ao que denomina «marxismo-weberiano». «Quando se diz que o marxismo encontra um sentido na história, não é necessário entender por tal uma orientação irresistível em direção a certos fins, mas a imanência na história de um problema ou uma interrogação em relação aos quais se chega  a cada momento, que podem ser classificados, situados, apreciados como progresso ou como regressão» . 

É a partir desta concepção de história que insiste sobre a contingência, a subjetividade,  e as escolhas que Merleau-Ponty fará, nos capítulos seguintes, o processo do «marxismo-leninismo» do  Pravda e do «ultrabolchevismo» de Sartre. Mas não se encontra nesses capítulos nem no epílogo do livro, dedicados à dialética da revolução, um desenvolvimento mais preciso do conceito de marxismo weberiano. É por isso que este termo torna-se uma proposição, uma hipótese, e uma (útil) provocação, mas que um projeto cumprido. 

A proposição não foi retomada por outros autores franceses. Sem dúvida em certo número de sociólogos que se inspiram em Marx e Weber, como Pierre Bourdieu, mas essas duas referências se misturam com outras (particularmente Durkheim e sua escola) e não implicam em nenhuma relação privilegiada e «orgânica». 

É interessante que Enrique Dussel [Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, SP, Vozes, 2000, pp. 551-552] mostra que a legitimidade do capitalismo, tal como visto por Weber se tornou ilegítima e já não inclui nem o tipo de dominação burocrática instrumental, nem o carismático excepcional.

Nesse sentido, trabalhando com o conceito bourdiano considera que o tipo de dominação carismático weberiano foi negado. Para Dussel, as legitimidades vistas por Weber caducaram e um novo processo está em gestação, mas por causa dos limites de seu marco teórico o próprio Weber não conseguiu visualiza-lo. E qual é esse novo tipo de dominação que se apresenta? Para Dussel é “a legitimidade que alcançam os novos sujeitos sociais emergentes, e que não se fundamentam, pelo menos em seus começos, em nenhum tipo de dominação – mas de organização com uma certa disciplina interna”.

3. Considerações 

Um caso diferente de figura está representado pelos pensadores franceses marxistas que levaram a sério a obra de Max Weber. O exemplo mais interessante é o de Jean Marie Vincent, que publicou, no curso dos anos sessenta e setenta uma série de artigos comparando as visões de Marx e de Weber sobre o direito, o estado, o capitalismo, as classes sociais e a burocracia. 

Tanto a análise e a exposição da teoria weberiana , como a sua crítica a partir de uma perspectiva marxista são de uma riqueza excepcional. Sem embargo, seu objetivo não é a busca de convergências entre os dois pensadores, mas o de mostrar seus desacordos metodológicos e políticos fundamentais: «superficialmente há, por conseqüência, uma certa analogia entre as análises de Marx e as de Weber. Mas um exame um pouco mais atento mostra que as diferenças são consideráveis». O título do ensaio do qual se extrai esta citação contém já o programa essencial de sua abordagem: Weber ou Marx. 

Em síntese, deve-se considerar Jean Marie Vincent mais como um crítico marxista de Weber, inteligente e em transição, que como um marxista-weberiano, propriamente dito. O mesmo vale, a fortiori, para outros autores marxistas que escreveram sobre Weber: Lucien Goldman, Nicos Poulantzas, etc... 

É impossível desenvolver, nos limites desta análise as figuras do webero-marxismo em outros países. Mencionemos, a título de exemplo os Estados Unidos, onde toda uma geração de sociólogos críticos (Daniel Bell, Irving Louis Horowitz, Alvin Gouldner, C. Wright Mills)  inspirou-se tanto em Weber quanto em Marx. O que se aproxima mais de um marxismo-weberiano seria, talvez, o último. Sua introdução (conjunta com Hans Gerth) à primeira coletânea sobre  Weber em língua inglesa (l948), tem por eixo central traçar um paralelo mais esclarecedor entre o sociólogo de Heildeberg e o autor do Capital.  

A idéia metodológica implícita nesse texto é a da  complementaridade, apresentada de uma maneira bastante original: «Uma parte da obra de Weber pode então, ser percebida como uma tentativa de «complementar» o materialismo econômico com um materialismo político e militar. A abordagem weberiana das estruturas políticas é mais parecida a abordagem marxista das estruturas econômicas. Não obstante, é difícil caracterizar os principais escritos sociológicos de Wright Mills (A elite no Poder, Os colarinhos brancos, A Imaginação sociológica) como marxistas weberianos. Outras tradições sociológicas, de Veblen até os «novos maquiavelistas» (Mosca, Pareto, Michels) estão mais presentes em sua obra que a dos pensadores alemäes. 

À guisa de conclusão provisória é necessário constatar que o webero-marxismo constitui um campo intelectual bastante heterogêneo, ainda que se possam descobrir certas filiações, por exemplo, de Lukács à Escola de Frankfurt ou à Merleau-Ponty. Algumas das figuras mais inovadoras e originais da história (heterodoxa) do marxismo do século XX pertencem a esse campo. Não é o maior paradoxo que um pensador tão pessimista e resignado como Weber haja podido inspirar teorias críticas tão carregadas de utopia revolucionárias.

É interessante notar que em um dos últimos parágrafos de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Max Weber diz que “ninguém sabe ainda a quem caberá no futuro viver nesta prisão [a produção capitalista de mercadorias], ou se, no fim desse tremendo desenvolvimento, não surgirão profetas inteiramente novos, ou um vigoroso renascimento de velhos pensamentos e idéias, ou ainda se nenhuma dessas duas – a eventualidade de uma petrificação mecanizada caracterizada por esta convulsiva espécie de autojusticação. Nesse caso, os ‘últimos homens’ desse desenvolvimento cultural poderiam ser designados como ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado”. Mas, conscientemente, foge de qualquer avaliação da possibilidade de real transformação da sociedade capitalista, afirmando que se fizesse isso entraria no campo dos juízos de crença e de valor. 

Na verdade, Weber foge de tal análise carência de instrumentalidade e não por uma posição metodológica ou ética. Dessa maneira, seu pessimismo é claramente conseqüência de sua abordagem metodológica.
Não podemos esquecer a modernidade sofreu, na visão de Weber, uma influência causal significativa do ethos racional protestante, que trouxe os rigores da ascese para o mundo através da Reforma protestante. Assim, para os protestantes, a vocação dos escolhidos estaria em cumprir as tarefas seculares, impostas ao indivíduo por sua posição no mundo, através de uma leitura especial da certeza da graça e da salvação, que se traduziria por meio de uma dedicação ao trabalho. 

A fides efficax se traduziria em resultados objetivos, a certitudo salutis. Fundamentada num método consistente e consciente, a vida do protestante passa a ser racionalizada e dominada pela finalidade de aumentar a gloria de Deus na terra. Tal conduta ética metodologicamente sistematizada teria influenciado o desenvolvimento do capitalismo.

Mas até onde tal esquema metodológico é falsa consciência e leva à uma distorção da compreensão da formação do Estado moderno e até onde pode agregar novas instrumentalidades à análise marxista? Acreditamos que é ideológica ao não ver que a questão da existência do Estado capitalista está ligada a um contexto de relação sociedade/poder. 

Assim, somos obrigados a olhar a religião com olhos diferentes, já que o conceito de legitimidade utilizado por Weber é de difícil normatividade. O legítimo é o aceito como válido, mas fundado numa estrutura social onde a maior parte cumpre a vontade de outro como própria, realizando interesses dos dominadores e não os próprios. Ou seja, a questão da legitimidade leva à questão do poder.

E é o próprio Weber quem diz – citado por Dussel -- que “poder significa a probabilidade de impor a própria vontade, dentro de uma relação social, mesmo contra toda resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”. 

Em outras palavras, enquanto tal probabilidade for mantida, a dominação é exercida e a legitimidade é válida.  

Por outro lado, fazendo o caminho do historiador Antônio Nespanha, podemos dizer – ampliando a abrangência de nossa análise -- que de perspectivas diversas e com diferentes intenções, Marx e Weber desenharam a leitura do moderno estado capitalista. Marx caracterizou o advento da modernidade capitalista pela separação entre política e economia. E reservou o conceito Estado para a descrição de um modelo em que a política formalmente se destaca da esfera da exploração, emergindo como pretensa portadora de interesses gerais. Weber, por seu lado, agrega a essa carga conceitual novos elementos como os conceitos de burocracia, racionalização territorial, seleção meritocrática, uma forma abstrata e geral de regulação [o direito igual], e um modelo também impessoal de participação política [a democracia representativa]. 

Assim, a partir de Marx e Weber, a construção do Estado capitalista pode ser descrita através de processos que se integram.

A convicção epistemológica de que a política, tal corno a matemática, tem uma verdade e que essa verdade pode ser comunicada por processos racionais. Com essa visão morre um ideário político baseado na probabilidade e na opinião. Essa é a tarefa realizada, dos finais do século 16 aos inícios do século 18, pelo racionalismo. Donde herdamos a ciência política, o individualismo e o contratualismo.

A instauração de um monismo político, que concentra todo o poder no Estado, expropriando as competências políticas dos pólos periféricos. A origem do processo está relacionada com o fomento da moderna guerra de colonização, com a expansão dos interesses financeiros internacionais e com a necessidade do controle social de vastos espaços geográficos. Essa concentração do poder levou ao estatismo e à identificação do direito com o legalismo. 

A reorganização do espaço e a construção de territórios políticos centralizados, homogeneizados e racionalizados. Surgiram então a engenharia territorial, as reformas administrativas, as fronteiras artificiais, como por exemplo na África, e a geopolítica.

Hoje, este modelo entrou em caducidade, mas a compreensão de novos paradigmas de organização política a partir dos excluídos nos obriga a uma releitura de Marx e, entendidos os limites expostos, também da análise crítica weberiana.


4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre, Economia das trocas simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1982.
DUSSEL, Enrique, Ética da libertação, na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis, Vozes, 2000.
FILORAMO, Giovanni e PRANDI, Carlo, As ciências das religiões, São Paulo, Paulus, 1999.
FREUND, Julien, Sociologia de Max Weber, Rio de Janeiro, Forense, s/d.
WEBER, Max, A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo, Pioneira,  2000.