Por Jorge Pinheiro
Noite alta, o demônio
Nebo, mestre da loucura e palavras mortas, ficou pensando na viagem e na última
coisa que seu parceiro Shedu, morador das ruínas de Edom, dissera antes de se
retirar para o oco de sua figueira: “Demônio bem sucedido trabalha em equipe.
Nós estamos incompletos. Astarote é a parte que falta para criarmos o inferno
que desejamos”. Palavras difíceis, como poderia catalogá-las?
Detesto essa terra, mas
adoro essa hora da meia-noite. Pensou. Sem lua, sem aragem, esse silêncio de
tudo. Essa é a hora dos meio-tons. Não está gelado, mas faz frio. Está escuro,
mas não completamente. Existe o mais e o menos. É a hora mais difícil para os
humanos. Eles ficam inseguros, procurando algo que se mova, que faça um ruído.
Ao menos uma folha, mas nada. E eu também fico quieto, acompanhando a ordem
natural do momento. É certo que o céu está cheio de nuvens, que brincam de
fantasmas com as estrelas. Mas eles nem percebem. São seres medrosos.
Às vezes, vem uma nuvem
gorda, roliça de gula, e engole um punhado de estrelas. E fica mais escuro. É
aí que as árvores e seus galhos secos começam a se espreguiçar. É o momento.
Vem um vento frio, desses que saem do fundo do inferno. Sacudo a solidão
eterna, espicho as pernas, vou até a cidade da desolação e começo a falar com
os mortos.
Sou
filho de Merodach e Sarpanitu. Vivi e fui adorado em Borsipa, mas na primavera
desse país, Shedu ia passando pela beira do grande rio do deus-morto, quando
ouviu um soluço fino. Um lamento do fundo das trevas. Era eu. Tinha sido desterrado,
exorcizado para os confins do inferno. Depois de muitas eras, vim para o
cinturão de fogo. É aqui, a 2.660 metros, bem no alto, rodeado de neve, a minha
casa, hueñunauca, há 12 mil anos
acendo o Osorno.
E lá em
baixo, no Llanquihue, refletido no lago, vê-se a silhueta do vulcão que
esquenta as minhas noites geladas. Sua presença imponente domina a paisagem.
Quem
olha para a maravilha, mal pode imaginar os estragos que eu orquestro. Na
primavera, quando os loucos se apaixonam, derreto o gelo e formo um violento
aluvião de barro, cinza, lava e troncos, que arrasta tudo que encontra pela
frente. Depois da corrida do vulcão, deixo fluir a lava, que incendeia tudo por
onde passa. Fiz isso em 1851 e foi um sucesso, mas agora tenho outros planos.
Gosto do gelo das
geleiras. Esta é a minha casa, a casa do demônio. E foi por esses vulcões que
entrei no mundo da violência e da morte, pelas mãos do meu amigo Shedu, o
demônio das onze horas.
Posso estar velho e
passar as noites aterrorizando os humanos que encontro, mas tenho bom ouvido.
Gosto de colecionar as palavras, tirando delas todo sentido, misturando tudo
num saco de gatos -- que linda expressão --, e depois soprar nos ouvidos
desatentos, convencendo salvos e perdidos de que tudo o que se ouve reflete apenas
a loucura do mundo dos homens.
Falar sobre a vida não é
fácil, já que eu estou do outro lado. Mas é minha especialidade. A memória
humana é uma colcha de sensações. Eles sempre se lembram da dor das pedras. O
momento suave é fugidio, escorrega na lembrança, mas o chute fica grudado.
Assim são eles. Suas lembranças estão escritas no corpo: a mentira dita
casualmente, o roubo rápido e furtivo, o aborto que ninguém soube. Tudo fica
escrito. Até as marcas da saudade não se apagam. E para eu soprar no ouvido
deles, basta uma leitura lenta, quase uma tradução de cada cicatriz, de cada
marca.
Aprendi a caçar os
fantasmas humanos. Mergulho no charco de suas vidas, farejo sentimentos
escondidos, estraçalho lembranças esquecidas, ressuscito cadáveres antigos e
mal cheirosos. Não há matagal ou pântano que eu não atravesse para chegar à uma
boa história de desespero.
Quem me ensinou esta
especialidade demoníaca foi Shedu. No início ele me disse que o mundo das
palavras mortas fica aqui, entre ruínas, e que, por isso, não havia razão para
eu me afastar. Bastava aprender, com ele, a viajar na memória dos humanos.
Sempre levo comigo uma bolsa. É a bolsa onde guardo as palavras que vou achando
no meio do caminho. São palavras fáceis, como exatamente, que parece precisa, mas que transformo numa centopéia
lânguida. Ou palavras difíceis, como formidável,
que vira uma trilha de formigas incendiadas. São palavras de pobre, como guspe, frio e maleita. São palavras
quatrocentonas, como treme-treme e sezão. Junto todas elas e à noite vou
tirando-as do saco.
Tenho o meu catálogo,
que é infinito como as estrelas do azulão. E aí, sozinho, vou colocando cada
uma delas na sua forma. E ficam todas sem alma: as más, as boas, as alegres, as
tristes, as grandes, as pequenas, as gordas, as finas, as de morte. E vou
formando frases, que classifico de furtivas, de paixão e destruidoras. O demônio é formidável é, logicamente,
uma frase furtiva, pois compara o velho Nebo a uma centúria de formigas
flamejantes. Na Semana Santa vou comungar
é uma frase de paixão, pois se refere à morte de um deus. E a paixão e a morte
são irmãs-gêmeas. Ninguém está vendo
é uma das minhas frases prediletas, é destruidora. É a porta de entrada da
minha casa.
Ao contrário de nós
demônios, na vida dos homens sempre ocorre um encontro de grande significado,
encontro que modifica o prumo de seus sonhos. Lembro-me de um jornalista
carioca, que na madrugada de 23 de abril, dia de Ogum, foi fazer uma reportagem
na floresta da Tijuca. Ele trabalhava na revista Manchete. Era auto-suficiente
e não tinha dúvidas quanto à sua capacidade profissional. Vivia com uma jovem,
bisneta de escravos, e, no fundo do seu coração, queria ser o dono do mundo.
Nessa época, eu, Shedu e Astarote trabalhávamos juntos. Tínhamos organizado uma
grande festa.
Era noite de lua cheia.
Corpos endemoniados tinham montado gigantescos labirintos, que terminavam num
círculo formado por toras de madeira. Representavam os mortos: os esquecidos e
os lembrados. No meio do círculo, muita comida. Do fundo da terra e do oco das
árvores saiam sons lindos e terríveis. Sons de cantar, dançar e de fazer sexo.
Nunca me esqueço. O luar cobriu a floresta. Astarote vestida de teias e
chorando a sinfonia quatorze de Shostakovitch penetrou no labirinto e depositou
um feto, a pequena Gaia, numa cova rasa. Eu, cheio de palavras, resfolegando e
soltando fumaça pelas narinas, recitava uma pequena carta de Artaud, poeta
maldito: "... somos a força da vida,
mas esta não é eterna, seja ou não o hálito de deus (...), o que respira não é
eterno, e até o hálito-deus tem seu tempo contado".
E como não fazíamos há
muito tempo, utilizando corpos expropriados, comemos, bebemos, dançamos e
fizemos o sexo dos malditos, loucos e suicidas. Foi então que apareceu o rapaz.
Ele olhou, mas não viu. Nós vimos, lembramos velhas histórias e falamos.
Astarote, toda sensual, chamou:
-- Luís, entra na roda.
Ele levou um susto. Não
entendeu como sabíamos o nome dele. Mas cheio de orgulho, aceitou conversar.
-- Quem é você?
Astarote respondeu:
-- Você sabe, entra na
roda e vem dançar comigo.
Na verdade, o corpo de
Astarote era lindo aos olhos humanos. Usava um vestido vermelho rodado, todo
trabalhado em renda branca. Sorria para ele, dançava fazendo o vestido
levantar. Sob a luz da lua, a cena era encantadora. Os atabaques batiam no
ritmo do coração. O ar era de sensualidade e magia. Cuidadoso, mas cheio de
autoconfiança, o rapaz respondeu:
-- Não posso entrar aí.
Sou filho de Ogum. Meu orixá não permite, ele é o senhor da guerra.
Era mentira, nós
sabíamos. Ele não tinha nenhum acordo com nenhum dos nossos. Mas nós adoramos a
mentira. Ah! Se ele pudesse ouvir nossas gargalhadas. Quisemos saltar dentro
dele. Era uma casa nova, quase limpa, se comparada às que tínhamos. Partimos
para o ataque, mas uma espada flamejante nos impediu.
-- Ele pertence ao Deus
criador dos céus e da terra. Aceitou o Senhor e o Senhor o recebeu. Estão
proibidos de fazer nele morada e de tocar na vida dele. Esta é uma ordem do
Senhor dos senhores, diante do qual se dobrará todo o joelho, tanto no céu, na
terra, como embaixo da terra.
Aquela luz brilhava
demais. Feriu nossos olhos, apavorou nossos corações, lembrou-nos da condenação
eterna. Nossa festa tinha chegado ao fim. O ódio estremeceu os corpos que
ocupávamos. Urramos, gritamos e fizemos com que se lançassem uns contra os
outros. Depois, semimortos, os abandonamos ali. A partir daquele momento,
resolvemos estraçalhar a vida daquele que nos perturbara.
Nenhum encontro é
casual. Há sempre aquele que busca. Só que nem sempre o que se encontra entra
na forma da imaginação. Descobri que a carne sente o gosto da madeira e do
metal, mas também do ódio e da mentira.
No verão, quando sopra
aquele vento quente da madrugada, saio pelos montes, atravessando paredes e
casas. Transformo o calor no frio da morte, mato a esperança com uma palavra de
medo, destruo a aliança com um sopro de adultério. Sobrevôo as árvores, matas e
rios, envolvo tudo em trevas, tudo que vejo, imagino ou pressinto. As folhas
que se mexeram sem minhas ordens, a mancha escura da nuvem que corre fugaz, o
pensamento feito ladrão, que assalta e mata. E o tempo, para que serve? Eu o
transformo na memória da solidão. Minhas palavras são punhais assassinos. Elas
amedrontam a noite e congelam o dia. E eu fico encantado, como num conto de
fadas. Afinal, sou Nebo, mestre da loucura, um demônio muito especial, cheio de
malícia e de palavras mortas.
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